Sentença de Julgado de Paz
Processo: 6/2024–JPVFR
Relator: MARTA M. G. MESQUITA GUIMARÃES
Descritores: RESOLUÇÃO DE CONTRATO - DEFEITO DE ARTIGO
Data da sentença: 04/26/2024
Julgado de Paz de : SANTA MARIA DA FEIRA
Decisão Texto Integral:
SENTENÇA

Proc. n.º 6/2024 – JPVFR

IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES
Demandante: [PES-1], NIF [NIF-1], residente na [...], n.º 42. 3.º Dto., [Cód. Postal-1] [...]
Demandada: [ORG-1], Lda., NIPC [NIPC-1], com sede na [...], 345, [Cód. Postal-2] [...], [...]
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OBJECTO DO LITÍGIO
O Demandante intentou contra a Demandada a presente acção enquadrável nas alíneas h) e i) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 78/2001 de 13 de julho, formulando o seguinte pedido, que se passa a transcrever:
“Nestes termos e nos demais de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Exa, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e em consequência:
- Ser declarada a resolução do contrato ao abrigo dos artºs. 10.º, 11.º e 12.º, todos do DL n.º 24/2014, de 14/02;
- Em consequência, ser a Ré condenada no pagamento ao Autor do montante de 829,16€ (oitocentos e vinte e nove euros e dezasseis cêntimos), nos termos do n.º 6 do art. 12.º do mesmo diploma legal.
Caso assim não se entenda,
- Ser declarada a resolução do contrato ao abrigo dos artºs. 6.º, 7.º, 12.º, 15.º, 16.º e 20.º, todos do DL n.º 84/2021, de 18/10;
- Em consequência, ser a Ré condenada no pagamento ao Autor do montante de 414,58€ (quatrocentos e catorze euros e cinquenta e oito cêntimos), nos termos da al. b) do n.º 4 e n.º 6 do art. 20.º do mesmo diploma legal.”.

Alegou, em suma, que, em 14.07.2023, adquiriu, através do site da Demandada, uma trotinete elétrica, pelo preço de € 414,58, a pronto pagamento, tendo o bem lhe sido entregue em 18.07.2023; constatou que a trotinete já se encontrava ligada a outro telemóvel e já tinha cerca de 40 km, pelo que, em 25.07.2023, solicitou, à Demandada, a troca da trotinete, tendo, nesse seguimento, a trotinete sido recolhida e emitida, em 06.09.2023, uma nota de crédito a seu favor, para que pudesse adquirir uma nova trotinete, aquisição, essa, que fez, tendo a nova trotinete lhe sido entregue em 01.10.2023; entre os dias 01.10.2023 e 04.10.2023, utilizou, normalmente, a trotinete, tendo constatado que a mesma perdia bateria a um ritmo muito superior ao descrito, e que, em qualquer subida de inclinação mínima, a trotinete perdia a força e atingia uma velocidade máxima de 10 km/h, o que não correspondia ao anunciado; em 04.10.2023, por mensagem de correio eletrónico, comunicou, à Demandada, que tinha perdido confiança no produtor e solicitou a resolução do contrato, com consequente devolução da quantia paga; a recolha da trotinete realizou-se em 13.10.2023; em 27.10.2023, a Demandada comunicou-lhe que, após vários testes predefinidos pela marca, o bem não apresentou qualquer defeito; até à data, a Demandada não o reembolsou do valor pago pela trotinete – cfr. fls. 1 e seguintes.
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A Demandada apresentou contestação nos termos plasmados a fls. 22 e seguintes, tendo impugnado parte da factualidade alegada pelo Demandante, invocado que a trotinete, entregue em 01.10.2023, não tinha qualquer defeito, e que a reparadora oficial da marca havia concluído que a trotinete tinha sido mal usada (pneus estavam com a pressão muito baixa, suporte guarda-lamas traseiro empenado, sujidade, riscos, coluna de direcção raspada e/ou display com riscos). Pugnou, a final, pela total improcedência da acção, e, em consequência, pela sua absolvição do pedido, com todas as consequências legais.
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, com observância do legal formalismo, consoante resulta da respectiva acta, tendo aí se possibilitado, ao Demandante, o exercício do direito de contraditório quanto ao invocado “mau uso” da trotinete (cfr. fls. 59 e 60).
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O Julgado de Paz é competente em razão da matéria (cfr. artigo 9.º, n.º 1, alíneas h) e i), da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho), do território (cfr. artigo 12.º, n.º 1, da Lei n.º 78/2001 de 13 de Julho) e do valor (cfr. artigo 8.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho), que se fixa em € 829,16 (cfr. artigos 296.º e seguintes do Código de Processo Civil, doravante CPC, ex vi artigo 63.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho ).
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
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FACTOS PROVADOS COM RELEVÂNCIA PARA A DECISÃO DA CAUSA
A. Em 14.07.2023, o Demandante adquiriu, à Demandada, através do site [Endereço web-1] uma trotinete elétrica, modelo [Modelo]”, pelo valor de € 414,58, a pronto pagamento.
B. O bem foi entregue, ao Demandante, pela Demandada, em 18.07.2023.
C. Em 25.07.2023, o Demandante enviou, à Demandada, e-mail, por via do qual informou que, ao abrir a embalagem que continha a trotinete encomendada, constatou que o saco, no qual se encontravam os parafusos do guiador, estava rasgado, que os parafusos vinham noutro saco, que ao tentar conectar-se com a aplicação necessária para a utilização da trotinete, verificou que a trotinete já se encontrava ligada a outro dispositivo (telemóvel), e que a trotinete já tinha cerca de 40 km andados.
D. No mesmo e-mail referido no precedente facto, o Demandante solicitou o agendamento da recolha da trotinete para troca por outra.
E. A recolha da trotinete foi realizada, tendo sido emitida, em 06.09.2023, uma nota de crédito, a favor do Demandante, para aquisição de uma nova trotinete, no indicado valor de € 414,58.
F. Atendendo à nota de crédito emitida, o Demandante adquiriu uma nova trotinete, de igual modelo e características, que lhe foi entregue no dia 01.10.2023.
G. Em 04.10.2023, o Demandante enviou e-mail, à Demandada, com o seguinte teor:
“Boa tarde,
Na sequência deste processo, recebi em casa uma Trotinete Elétrica [Modelo] (fatura: 84945/2023 com defeito de fabrico. Perde bateria a um ritmo muito superior ao anunciado (fiz um percurso de 2 km em que perdeu 30% da bateria e um percurso de cerca de 4 km em que perdeu 40% de bateria) e em qualquer subida de inclinação mínima perde a força e atinge uma velocidade máxima de 10 km/h. Posto isto, perdi confiança no produto e, como tal, venho por este meio pedir a resolução do contrato com consequente devolução da quantia paga.
Peço o máximo de celeridade neste processo e o agendamento de recolha da trotinete.”.
H. Em 09.10.2023, o Demandante reiterou o pedido de agendamento da recolha da trotinete.
I. A recolha da trotinete realizou-se no dia 13.10.2023, tendo sido efectuada por pessoa autorizada pela Demandada, na morada indicada pelo Demandante.
J. A trotinete deu entrada nas instalações da Demandada no dia 16.10.2023, conforme informado, em 18.10.2023, pelo departamento de suporte técnico da Demandada.
K. Em 19.10.2023, o Demandante remeteu e-mail, à Demandada, com o seguinte teor:
“Boa noite,
Enviaram-me uma atualização do RMA para o seguinte estado: “Enviado ao Fornecedor”.
Esta fase do RMA não me diz respeito. Deixei claro que quero exercer o meu direito de rejeição, de acordo com o artigo 16º da lei das garantias, Decreto-Lei nº 84/2021, de 18 de outubro. O que eu constatei, e reitero, é que, devido ao facto da trotinete me ter sido enviada com defeito de fabrico e de, consequentemente, eu ter perdido a confiança no produto, pretendo resolver o contrato com consequente devolução da quantia paga.
Aguardo resposta e uma rápida resolução deste assunto.”.
L. No dia 20.10.2023, o Demandante rececionou a seguinte resposta por parte da Demandada: “As devoluções só estão abrangidas dentro dos primeiros 14 dias. Neste caso o seu RMA tem de ser tratado em garantia. O máximo que podemos fazer é comunicar com a entidade reparadora oficial e a Marca a sua insatisfação com o produto, e aguardar a analise que eles irão fazer.”.
M. Em 21.10.2023, o Demandante respondeu à Demandada, via e-mail, como segue:
“Bom dia,
As devoluções não estão só abrangidas dentro dos primeiros 14 dias. Isso é desconhecimento da lei. Como referi, a partir do momento em que há defeito de fabrico que se manifeste nos primeiros 30 dias após recepção do artigo, posso exercer o meu direito de rejeição, artigo 16º da lei das garantias, Decreto-lei nº 84/2021, de 18 de outubro, que refere o seguinte:
Direito de rejeição
Nos casos em que a falta de conformidade se manifeste no prazo de 30 dias após a entrega do bem, o consumidor pode solicitar a imediata substituição do bem ou a resolução do contrato.
A minha relação contratual é com a [ORG-2] e não com o fabricante. O meu direito à resolução do contrato refere-se ao contrato estabelecido entre mim e [ORG-2]. O dever de Garantia Comercial para comigo é vosso.
Em todo o caso, o meu pedido resolução do contrato e devolução da quantia paga foi efetuado no dia 4 de outubro de 2023, exatamente 3 dias após o artigo ter sido entregue (dia 1 de outubro de 2023). Logo, está dentro dos 14 dias de período de reflexão que referem, relativo ao direito ao arrependimento. Mesmo que o artigo não tivesse defeito de fabrico, tenho direito à resolução do contrato e à devolução da quantia paga.
É inacreditável que a vossa resposta revele o tamanho desconhecimento do enquadramento legal da situação e que, por isso, ponham o consumidor nesta posição.
Reitero o meu pedido de resolução de contrato efetuado no dia 4 de outubro através de e-mail e no dia 5 de outubro através de RMA. Solicito que me seja feita a devolução da quantia paga o mais brevemente possível para evitarmos passar o caso para outras instâncias.”.
N. Em 23.10.2023, a Demandada respondeu ao Demandante, da seguinte forma:
“Para poder utilizar a resolução contratual dentro dos primeiros 30 dias ou mesmo defeito de fabrico nos 14, a anomalia tem de ser confirmada.
Posto isto o equipamento foi enviado para a reparadora oficial da [ORG-3] para comprovar o defeito, consoante a reposta deles e o relatório, iremos agir de acordo.
Caso o artigo apresente o defeito, neste caso poderá exercer o seu direito, contudo informo que dependendo do estado do equipamento, e o mesmo ter sido utilizado e não se encontrar dentro das mesmas condições de venda poderá ser feita uma depreciação do produto.
Assim que tivermos mais informações iremos entrar em contacto.”.
O. Em 27.10.2023, o Demandante recebeu um email, por parte da Demandada, com o seguinte teor:
“(…)
Informamos que o seu RMA se encontra concluído e não detetamos qualquer defeito. O equipamento foi submetido a vários testes predefinidos pela marca, ao qual não apresentou nenhuma anomalia. Caso pretenda o envio do mesmo, remeta-nos a sua morada para o e-mail [...]. Mais informamos que este envio terá associado um custo de acordo com a pesagem do artigo.
(…)”.
P. Até à data, a Demandada não devolveu, ao Demandante, o valor de € 414,58.
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FACTOS NÃO PROVADOS COM RELEVÂNCIA PARA A DECISÃO DA CAUSA
1. Entre os dias 01.10.2023 e 04.10.2023, o Demandante utilizou, normalmente, a trotinete aludida em F dos factos provados, tendo constatado que a mesma perdia bateria a um ritmo muito superior ao descrito, tendo efetuado as seguintes utilizações:
a) um percurso de sensivelmente 3,5km, no qual a trotinete perdeu 70% da bateria, tendo chegado aos 0% a meio do percurso, obrigando o Demandante a apanhar um TVDE para chegar ao seu destino, e
b) um outro percurso de cerca de 2 km em que esta perdeu 75% da bateria.
2. Em qualquer subida de inclinação mínima, o Demandante verificou que a trotinete perdia a força e atingia uma velocidade máxima de 10 km/h, o que não correspondia ao anunciado.
3. A reparadora oficial da marca concluiu que o Demandante procedeu a um mau uso da trotinete aludida em F dos factos provados (pneus estavam com a pressão muito baixa, suporte guarda-lamas traseiro empenado, sujidade, riscos, coluna de direcção raspada e/ou display com riscos).
4. Resulta das condições previstas no site da Demandada o seguinte:
“1. Condições de aceitação de Devoluções/Trocas:
Apesar de serem aceites devoluções/trocas nos primeiros 14 dias em compras à distância (conforme descrito acima), os bens devolvidos só serão aceites caso respeitem as seguintes condições:
1.1. O artigo devolvido tem de estar intacto e sem qualquer marca/dano de uso.
1.2. Terá de devolver o artigo juntamente com a sua embalagem, manuais e acessórios imaculados.
1.3. Juntamente com o bem devolvido, terá de juntar a fatura onde consta esse mesmo artigo.”.
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FUNDAMENTAÇÃO FÁTICA
Nos termos do disposto no artigo 60.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, as sentenças proferidas pelos Julgados de Paz devem conter “uma sucinta fundamentação”.
Isto posto, cumpre referir que ao pronunciar-se pela forma acabada de enunciar quanto à matéria de facto em causa nos autos, o Tribunal firmou a sua convicção na análise crítica e conjugada que dos meios de prova fez.
Assim, todos os factos provados foram admitidos pela Demandada, sendo que, alguns, resultaram, ainda, provados por via da documentação junta com o requerimento inicial, em concreto: o facto A por via do documento n.º 1 (factura/recibo), os factos C e D por via do documento n.º 2 (e-mail), o facto E por via do documento n.º 3 (nota de crédito), o facto G por via do documento n.º 4 (e-mail), o facto H por via do documento n.º 5 (e-mail), o facto J por via do documento n.º 6 (e-mail), o facto K por via do documento n.º 7 (e-mail), o facto L por via do documento n.º 8 (e-mail), o facto M por via do documento n.º 9 (e-mail), o facto N por via do documento n.º 10 (e-mail) e o facto O por via do documento n.º 12 (e-mail).
Os factos não provados resultaram de ausência e/ou insuficiência de prova no sentido da sua demonstração.
Concretizando:
Quanto ao facto 1, embora o Demandante tenha alegado que, num percurso de 3,5 km, a trotinete perdeu 70% de bateria e, num percurso de 2 km, perdeu 75% de bateria, o mesmo juntou aos autos, como documento n.º 4, e-mail que dirigiu, em 04.10.2023, à Demandada, e no qual afirma que, num percurso de 2 km, a trotinete perdeu 30% de bateria e, num percurso de 4 km perdeu 40% de bateria. Acresce que, em sede de declarações de parte, e quando questionado quanto a tal discrepância, o Demandante não soube explicar as razões para tal. Assim, e logo por aqui, a factualidade em causa não poderia resultar provada. Sem prejuízo do exposto, cumpre, também, referir que, embora tenha alegado que a trotinete “perdia bateria a um ritmo muito superior ao descrito”, o Demandante não alegou qual é que era o ritmo que, supostamente, lhe teria sido descrito pela Demandada (e/ou pelo fabricante). Ao que acresce que, o Demandante, em sede de declarações de parte, também não soube concretizar qual é que era esse mesmo ritmo, pois quando perguntado quanto às características da trotinete, referiu não saber. A testemunha que apresentou, [PES-2] (seu irmão), também nada soube referir quanto às características da trotinete, tendo dito que nunca observou o Demandante a usar a trotinete, que aquilo que viu foi a (segunda) trotinete a ser embalada, pelo Demandante, com vista à sua recolha pela Demandada, e que o Demandante se terá queixado, várias vezes, da trotinete, porque a mesma perdia bateria.
Relativamente ao facto 2, aplica-se o mesmo raciocínio já exposto quanto ao facto 1: embora tenha alegado que “em qualquer subida de inclinação mínima, (…) a trotinete perdia a força e atingia uma velocidade máxima de 10km/h, o que não correspondia ao anunciado”, o Demandante também não alegou o que é que lhe tinha sido anunciado, a esse propósito, pela Demandada (e/ou pelo fabricante).
Quanto ao facto 3, embora a Demandada tenha junto, com a sua contestação, o documento n.º 2 (denominado “Intervenção Técnica Qualidade”, no qual se refere que os pneus estavam com a pressão muito baixa, o suporte guarda-lamas traseiro encontrava-se empenado, a trotinete estava suja, com riscos, com coluna de direcção raspada e com display com riscos), a testemunha apresentada pela Demandada, [PES-3] (seu funcionário, o qual procedeu à análise do pedido de “RMA” formulado pelo Demandante, tendo-o aprovado, e que analisou a trotinete após a mesma ter dado entrada nas instalações da Demandada, tendo, por fim, reencaminhado o equipamento para a reparadora), nada soube concretizar quanto ao estado da trotinete após a sua recolha pela Demandada e antes do envio para a reparadora, tendo-se limitado a referir que a trotinete tinha “sinais de uso”, embora não soubesse concretizar que sinais eram esses, e “sujidade”. Disse, ainda, ter tirado fotografias à trotinete aquando da sua entrada nas instalações da Demandada, porém – e inexplicavelmente –, as mesmas não foram juntas aos autos.
Por fim, relativamente ao facto 4, a Demandada não apresentou qualquer prova documental do alegado, nem a testemunha por si apresentada depôs sobre esta mesma factualidade.
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DIREITO
Os presentes autos têm subjacente um contrato de compra e venda de um bem móvel (cfr. artigo 874.º do Código Civil, doravante CC).
Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço (cfr. citado artigo 874.º do CC).
A compra e venda tem como efeitos essenciais: a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço (cfr. artigo 879.º do CC).
Acresce que, a compra e venda em apreço nos autos insere-se numa relação de consumo, pois foi celebrada entre um profissional (a Demandada, na qualidade de vendedora) e um consumidor (o Demandante, na qualidade de comprador), sendo, assim, regulada pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, que preceitua os direitos do consumidor na compra e venda de bens, conteúdos e serviços digitais e, bem assim, pela Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, denominada Lei de Defesa do Consumidor.
E, porque o contrato de compra e venda em causa foi celebrado através do site da Demandada, o mesmo foi celebrado à distância, pelo que, à compra e venda em causa nos autos é, ainda, aplicável o preceituado no Decreto Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, que regula o regime dos contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial, tendo em vista promover a transparência das práticas comerciais e salvaguardar os interesses legítimos dos consumidores (cfr. artigo 2.º, n.º 1, deste diploma).
Com efeito, considera-se “contrato celebrado à distância” aquele que é celebrado entre o consumidor e o fornecedor de bens ou o prestador de serviços sem presença física simultânea de ambos, e integrado num sistema de venda ou prestação de serviços organizado para o comércio à distância mediante a utilização exclusiva de uma ou mais técnicas de comunicação à distância até à celebração do contrato, incluindo a própria celebração (cfr. artigo 3.º, alínea h), do Decreto-Lei n.º 24/2024, de 14 de Fevereiro).
O Demandante alega que exerceu, legitimamente, o direito de livre resolução previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do citado Decreto-Lei n.º 24/2024, de 14 de Fevereiro, nos termos do qual o consumidor tem o direito de resolver o contrato sem incorrer em quaisquer custos, para além dos estabelecidos no n.º 3 do artigo 12.º e no artigo 13.º, quando for caso disso, e sem necessidade de indicar o motivo, no prazo de 14 dias , a contar do dia em que o consumidor ou um terceiro, com excepção do transportador, indicado pelo consumidor adquira a posse física dos bens, no caso dos contratos de compra e venda.
Alega, ainda, que, caso se considere que não exerceu, legitimamente, esse mesmo direito, sempre teria direito à resolução do contrato nos termos do disposto no artigo 15.º, n.º 4, alínea c), do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, nos termos do qual, em caso de falta de conformidade do bem, o consumidor pode escolher entre a redução proporcional do preço, nos termos do artigo 19.º, e a resolução do contrato, nos termos do artigo 20.º, caso ocorra uma nova falta de conformidade.
Vejamos, então, se assiste razão ao Demandante, começando a análise por aferir se o mesmo exerceu legitimamente, ou não, o aludido direito de livre resolução.
De acordo com o artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 24/2024, de 14 de Fevereiro, antes de o consumidor se vincular a um contrato celebrado à distância ou fora do estabelecimento comercial, ou por uma proposta correspondente, o fornecedor de bens ou prestador de serviços deve facultar-lhe, em tempo útil e de forma clara e compreensível, designadamente, as seguintes informações: quando seja o caso, a existência do direito de livre resolução do contrato, o respectivo prazo e o procedimento para o exercício do direito, nos termos dos artigos 10.º e 11.º com entrega do formulário de livre resolução constante da parte B do anexo ao presente decreto-lei, do qual faz parte integrante (cfr. alínea m)).
Incumbe ao fornecedor de bens ou prestador de serviços a prova do cumprimento dos deveres de informação estabelecidos no artigo 4.º (cfr. artigo 4.º, n.º 8, do citado Decreto-Lei n.º 24/2014).
Dispõe, ainda, o artigo 10.º, n.º 2, do citado Decreto-Lei n.º 24/2014 que se o fornecedor de bens ou prestador de serviços não cumprir o dever de informação pré-contratual determinado na alínea m) do n.º 1 do artigo 4.º, o prazo para o exercício do direito de livre resolução é de 12 meses a contar da data do termo do prazo inicial a que se refere o número anterior (portanto, prazo de 14 dias a contar, no caso, do dia em que o consumidor adquira a posse física dos bens – cfr. alínea b), do n.º 1, do artigo 10.º, do mesmo diploma legal).
Quanto ao exercício e efeitos do direito de livre resolução, preceitua o artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 24/2014 que o consumidor pode exercer o seu direito de livre resolução através do envio do modelo de «Livre resolução» constante da parte B do anexo ao presente decreto-lei, ou através de qualquer outra declaração inequívoca de resolução do contrato, sendo que se considera inequívoca a declaração em que o consumidor comunica, por palavras suas, a decisão de resolver o contrato designadamente por carta, por contacto telefónico, pela devolução do bem ou por outro meio susceptível de prova, nos termos gerais (cfr. nºs 1 e 2); que se considera exercido o direito de livre resolução pelo consumidor dentro do prazo quando a declaração de resolução é enviada antes do termo dos prazos referidos no artigo anterior (cfr. n.º 3) e que incumbe ao consumidor a prova de que exerceu o direito de livre resolução, nos termos do decreto-lei (cfr. n.º 5).
No que se reporta às obrigações do consumidor decorrentes da livre resolução do contrato, preceitua o artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 24/2014 que incumbe ao consumidor suportar o custo da devolução do bem, exceto quando o fornecedor acordar em suportar esse custo ou quando o consumidor não tiver sido previamente informado pelo fornecedor do bem que tem o dever de pagar os custos de devolução (cfr. n.º 2) e que o consumidor deve conservar os bens de modo a poder restituí-los nas devidas condições de utilização, no prazo previsto no n.º 1 (prazo de 14 dias a contar da data em que tiver comunicado a sua decisão de resolução do contrato nos termos do artigo 10.º), ao fornecedor ou à pessoa para tal designada no contrato (cfr. n.º 3).
Por fim, preceitua o artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 24/2014 que o exercício do direito de livre resolução não prejudica o direito de o consumidor inspecionar, com o devido cuidado, a natureza, as características e o funcionamento do bem; o consumidor pode ser responsabilizado pela depreciação do bem, se a manipulação efectuada para inspecionar a natureza, as características e o funcionamento desse bem exceder a manipulação que habitualmente é admitida em estabelecimento comercial; porém, em caso algum, o consumidor é responsabilizado pela depreciação do bem quando o fornecedor não o tiver informado do seu direito de livre resolução.
Considerando a decisão da matéria de facto que se deixou exposta, provou-se que, em 14.07.2023, o Demandante adquiriu, à Demandada, através do site [Endereço web-1] uma trotinete elétrica, modelo [Modelo-1], pelo valor de € 414,58, a pronto pagamento, a qual lhe foi entregue em 18.07.2023; em 25.07.2023, o Demandante solicitou a troca de tal trotinete, na medida em que a mesma já tinha sido usada, o que foi aceite pela Demandada, que recolheu a primeira trotinete e emitiu uma nota de crédito, a favor do Demandante, para aquisição de uma nova trotinete, no indicado valor, aquisição que o Demandante veio a fazer, tendo adquirido uma nova trotinete, de igual modelo e características, a qual lhe foi entregue no dia 01.10.2023; em 04.10.2023, o Demandante enviou e-mail à Demandada, comunicando que a nova trotinete perdia bateria e força e que, por essas razões, tinha perdido a confiança no produto, pretendendo a resolução do contrato, com a devolução da quantia paga.
Ora, no caso, há, desde logo, que referir que, na medida em que, após o pedido de troca da primeira trotinete, formulado pelo Demandante, a Demandada emitiu uma nota de crédito a seu favor, o que se verificou foi, na verdade, a existência de dois contratos de compra e venda, um que versou sobre a primeira trotinete e outro que versou sobre a segunda trotinete (embora ambas as trotinetes fossem do mesmo modelo), pelo que, o prazo para o exercício do direito de livre resolução do contrato conta-se do dia em que o Demandante adquiriu a posse física da segunda trotinete.
Assim, assistia, ao Demandante, o direito de livre resolução do contrato, sem necessidade de indicar o motivo, no prazo de 14 dias, a contar do dia em que adquiriu a posse física do bem, portanto, no prazo de 14 dias após 01.10.2023, data em que rececionou a (segunda) trotinete.
Prazo para o exercício do direito de livre resolução, esse, que, no caso, até é de 12 meses a contar do termo do prazo de 14 dias, à luz do disposto no citado artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 24/2014, pois a Demandada não provou ter cumprido o seu dever de informação pré-contratual preceituado na alínea m), do n.º 1, do artigo 4.º (cfr., desde logo, facto não provado 4).
O Demandante exerceu o direito de livre resolução por via de declaração inequívoca de resolução do contrato, conforme se constata do teor da comunicação que dirigiu, em 04.10.2023, à Demandada (cfr. facto provado G), pelo que, o Demandante provou ter exercido, tempestivamente (veja-se, ainda, o disposto no citado n.º 3 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 24/2014) e pelo modo legalmente definido, o direito de livre resolução.
Alegou a Demandada que, porque o Demandante utilizou a trotinete, não pode exercer o direito de livre resolução.
Conforme se deixou exposto, a lei permite, ao consumidor, que inspecione, com o devido cuidado, a natureza, as características e o funcionamento do bem, sendo que o mesmo pode ser responsabilizado pela depreciação do bem, se a manipulação efectuada para inspecionar a natureza, as características e o funcionamento desse bem exceder a manipulação que habitualmente é admitida em estabelecimento comercial, porém, em caso algum, o consumidor é responsabilizado pela depreciação do bem quando o fornecedor não o tiver informado do seu direito de livre resolução (cfr. citado artigo 14.º).
Portanto, no caso, e porque a Demandada não provou ter informado, nos termos legalmente previstos, o Demandante, do seu direito de livre resolução, obrigação de informação, essa, que sobre si impendia à luz do disposto no citado artigo 4.º, n.º 1, alínea m), do Decreto-Lei n.º 24/2014, não pode a Demandada pretender responsabilizar o Demandante pela depreciação do bem e, muito menos, impedi-lo (ou pretender impedi-lo) de exercer o direito que legalmente lhe assiste de livre resolução do contrato.
Em face do que antecede, conclui-se que o Demandante exerceu, legitimamente, o seu direito de livre resolução do contrato.
Assim sendo, não cumpre conhecer do segundo fundamento invocado pelo Demandante para a resolução do contrato, o da (nova) falta de conformidade do bem (nos termos do disposto no artigo 15.º, n.º 4, alínea c), do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro), e, por conseguinte, do pedido subsidiário formulado pelo Demandante – cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC.
No prazo de 14 dias a contar da data em que for informado da decisão de resolução do contrato, o fornecedor de bens ou prestador de serviços deve reembolsar o consumidor de todos os pagamentos recebidos, incluindo os custos de entrega do bem nos termos do n.º 2 do artigo 13.º; o incumprimento da obrigação de reembolso dentro do prazo previsto no n.º 1, obriga o fornecedor de bens ou prestador de serviços a devolver em dobro, no prazo de 15 dias úteis, os montantes pagos pelo consumidor, sem prejuízo do direito do consumidor a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais (cfr. artigo 12.º, nºs 1 e 6, do Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro).
Assim, é a Demandada responsável pelo pagamento, ao Demandante, do peticionado valor de € 829,16 (portanto, € 414,58 x 2).
Por fim, cumpre, ainda, mencionar que, embora o Demandante peticione a declaração da resolução do contrato em apreço nos autos, a resolução do contrato já operou aquando do envio, pelo Demandante, à Demandada, da comunicação aludida no facto provado G, pelo que, não cumpre, ao Tribunal, declarar essa mesma resolução. O que o Demandante poderia ter solicitado era o reconhecimento do seu direito de livre resolução do contrato – e afirmamos “poderia” (e não deveria) porque, atento o pedido condenatório formulado, sempre a procedência deste (pedido) implica o reconhecimento do direito de livre resolução.
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DECISÃO
Pelo exposto e nos termos referidos supra, julgo a presente acção totalmente procedente, por provada e, em consequência, condeno a Demandada a pagar, ao Demandante, o valor de € 829,16 (oitocentos e vinte e nove euros e dezasseis cêntimos).
Custas a cargo da Demandada.
Registe e envie cópia da presente sentença aos faltosos.

Santa Maria da Feira, 26 de abril de 2024
A Juíza de Paz,

(Marta M. G. Mesquita Guimarães)

Processado por computador
(Artigo 18.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho).
Revisto pela signatária.
Julgado de Paz de Santa Maria da Feira