Sentença de Julgado de Paz
Processo: 782/2013-JP
Relator: LUÍS FILIPE GUERRA
Descritores: CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO
Data da sentença: 01/31/2014
Julgado de Paz de : PORTO
Decisão Texto Integral: SENTENÇA

Proc. nº x
I. RELATÓRIO:
A, com os demais sinais identificativos nos autos, intentou a presente acção declarativa destinada a efectivar o cumprimento de obrigação contra B, melhor identificada a fls. 4, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia indemnizatória de 1.000,00 € pelos danos estéticos ocorridos na sua cozinha.
Para tanto, o demandante alegou os factos constantes do requerimento inicial de fls. 4 a 10, que aqui se dá por reproduzido, tendo juntado ao mesmo quatro documentos.
Regularmente citada, a demandada apresentou a contestação de fls. 83 a 84 verso, que aqui se dá por reproduzida, pugnando pela improcedência da acção.
Não se realizou a sessão de pré-mediação, dado que a demandada faltou à mesma, afastando tacitamente essa possibilidade.
Foi, então, marcada e realizada a audiência de julgamento, com observância do formalismo legal.
Encontram-se reunidos os pressupostos de regularidade da instância, nomeadamente:
Este julgado de paz é competente em razão do objecto, do valor, da matéria e do território (cfr. artigos 6º nº 1, 8º, 9º nº 1 a) e 14º da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho).
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há nulidades, excepções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer, pelo que se fixa o valor da presente acção em 1.000,00 €
Assim, cabe apreciar e decidir:
II. FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA:
Discutida a causa, ficaram provados os seguintes factos:
1. No pretérito dia 22 de Janeiro de 2013, cerca das 24h, o demandante, juntamente com a sua esposa C e os filhos menores, chegou à sua casa de habitação, sita na cidade de Vila Nova de Gaia, tendo-se deparado com parte dos azulejos que ornamentam a sua cozinha, no chão.
2. Incrédulo com a situação, o demandante participou a ocorrência à demandada, ao abrigo do contrato de seguro multirriscos com esta contratado, aquando da concessão de empréstimo para aquisição da sua habitação, e titulado pela apólice nº x, para esta cobrir os danos ocorridos na cozinha com a queda dos azulejos.
3. Perante o sinistro participado, a demandada abriu o processo nº x para averiguar o enquadramento do risco garantido no referido contrato de seguro.
4. Contudo, por missiva datada de 26/01/2013, a demandada informou o demandante que, mediante as diligências efectuadas pelo perito, verificou estar perante uma queda espontânea de azulejos, sem enquadramento em nenhum dos riscos contratados, pelo que encerrou o processo sem pagar qualquer indemnização.
5. O contrato de seguro garante, no seu ponto 6.1, facultativamente, a cobertura de danos estéticos.
6. Na cobertura de danos estéticos está seguro o “pagamento, até ao limite do valor fixado nas condições particulares, de despesas adicionais, com a reparação ou substituição dos bens seguros, como consequência directa de qualquer sinistro, salvo se garantido pela cobertura obrigatória de incêndio, abrangido pelas coberturas efectivamente contratadas, que sejam necessárias para os seguintes fins: a) Continuidade e harmonia estética do edifício ou fracção segura; b) Coerência e harmonia estética do conjunto de bens móveis do mesmo tipo integrados no conteúdo ou recheio seguro de que o bem danificado faça parte.”
7. O revestimento das paredes da cozinha do demandante é constituído por azulejos.
8. A queda parcial dos azulejos da cozinha da habitação do demandante afectou a continuidade e harmonia estética da mesma.
9. A reparação da superfície interior da cozinha fixava-se no montante de 1.682,00 €, conforme orçamento efectuado pelo perito, D.
10. Esse montante advém das seguintes operações: a) trabalhos de demolição (remoção de azulejos em 40 m2), com um custo de 560,00 €; b) trabalho de construção de interiores (fornecimento e aplicação de cerâmica de parede de 1ª em 40 m2), com um custo de 1.040,00 €; e c) trabalhos auxiliares de obra (remoção de escombros e transporte a vazadouro, até 5 m3 e operações de limpeza final de obra, com um custo total de 82,00 €.
11. Para poder garantir a harmonia estética da cozinha, a reparação dos danos ocorridos obriga à remoção e substituição de todos os azulejos da mesma, dada a sua antiguidade e descontinuidade.
12. Nos termos das condições particulares do referido contrato de seguro, o limite da indemnização a pagar pela demandada, em caso de danos estéticos, era de 1.000,00 €.
13. O demandante só recebeu as condições gerais do contrato de seguro aquando da sua celebração, estando convencido do carácter autónomo da cobertura de danos estéticos.
Os factos provados correspondem à matéria não conclusiva alegada pela demandante e que não foi objecto de impugnação por parte da demandada, com excepção dos n.os 9 a 11, para os quais foi decisiva a prova documental apresentada e o depoimento das testemunhas C, E e D.
Foi ainda valorado o clausulado contratual (condições gerais e particulares) da apólice de seguro aqui em causa.
Em rigor, a controvérsia entre as partes prende-se mais com a interpretação do contrato de seguro estabelecido entre ambos do que com os factos em si.
III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
O demandante e a demandada estabeleceram entre si um contrato de seguro multirriscos habitação, mediante o qual esta se obrigou, contra o pagamento do prémio correspondente, a ressarcir aquele dos danos sofridos por efeito de um conjunto de riscos discriminado na respectiva apólice, entre os quais se contam os danos estéticos.
Trata-se de um seguro de danos, que se encontra regulado em especial pelos artigos 123º a 136º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, com referência aos artigos 1º e 3º do mesmo diploma legal.
Neste caso, discute-se se a queda espontânea de azulejos na cozinha do demandante se enquadra ou não em alguma das coberturas contratadas. Espontânea porque os azulejos caíram sem a intervenção causal de qualquer outro evento danoso, previsto na apólice de seguro, nomeadamente inundações, rotura de canalizações interiores ou qualquer outro. Por outro lado, os azulejos constituem parte integrante do objecto seguro, uma vez que se encontram ligados materialmente ao imóvel com carácter de permanência (cfr. artigo 204º, nº 1 e) e 3 do Código Civil). Nesse sentido, a queda dos azulejos constitui um dano do objecto seguro. Ora, atentando às coberturas constantes da apólice de seguro, não há dúvida de que o evento danoso só se poderia, em abstracto, enquadrar na cobertura de danos estéticos.
Contudo, nas condições gerais do mesmo contrato de seguro, concretamente na cláusula 6.1, define-se o objecto da cobertura, no caso de danos estéticos, nos seguintes termos: “pagamento, até ao limite do valor fixado nas condições particulares, de despesas adicionais, com a reparação ou substituição dos bens seguros, como consequência directa de qualquer sinistro, salvo se garantido pela cobertura obrigatória de incêndio, abrangido pelas coberturas efectivamente contratadas, que sejam necessárias para os seguintes fins: a) Continuidade e harmonia estética do edifício ou fracção segura; b) Coerência e harmonia estética do conjunto de bens móveis do mesmo tipo integrados no conteúdo ou recheio seguro de que o bem danificado faça parte.
É sobre a interpretação desta cláusula que as partes diferem. Como se sabe, a interpretação da declaração negocial segue os termos previstos no artigo 236º e seguintes do Código Civil. De acordo com estes preceitos legais, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, sendo certo que, em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações. Em qualquer caso, nos negócios formais, como é o caso, não pode a declaração valer com um sentido que não tenha o mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
Ora, do texto sob análise retira-se que, além de constituir uma cobertura facultativa - neste caso contratada pelo demandante -, os danos estéticos configuram uma cobertura complementar, actuando no caso de haver despesas adicionais com a reparação ou substituição dos bens seguros em consequência de um sinistro cujo risco se encontra garantido pelo contrato de seguro. Ou seja, de acordo com a cláusula acima transcrita, só há danos estéticos indemnizáveis se os mesmos forem o resultado de um sinistro coberto pela apólice, nomeadamente inundações, rotura de canalizações ou qualquer outro.
Deste modo, por este lado, não assiste razão ao demandante, já que a sua interpretação não tem respaldo literal.
Porém, na resposta à matéria de excepção, o demandante invocou também a seu favor o regime das cláusulas contratuais gerais, estabelecido pelo Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, particularmente os artigos 5º, 6º, 8º e 11º do mesmo diploma legal. Na verdade, segundo o demandante, não teriam sido observados os deveres de comunicação e informação a que a demandada estava obrigada por estar em causa um contrato de adesão. Por seu lado, nas suas alegações orais finais, a demandada objectou que foram facultadas oportunamente ao demandante as condições gerais e particulares do seguro contratado e que não lhe correspondia a observância dos deveres de comunicação e informação, uma vez que a contratação do mesmo tinha sido mediada por instituição bancária.
Em primeiro lugar, não há dúvida de que o clausulado do contrato de seguro em causa não foi objecto de qualquer negociação, estando previamente estabelecido e tendo-se o demandante limitado a aderir ao mesmo (cfr. artigo 1º do citado Decreto-Lei nº 446/85). De facto, analisando as condições gerais desse contrato, percebe-se que as mesmas estão padronizadas, complementando as condições particulares aplicáveis à apólice contratada. É verdade que o demandante recebeu, no momento da celebração do contrato de seguro, as condições gerais e particulares do seguro contratado, como reconheceu a sua esposa, C, no seu depoimento. Ainda assim, é de notar que o artigo 5º, nº 2 do citado Decreto-Lei nº 446/85, estipula que “a comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento”. Neste caso, é indiscutível que a compreensão do sentido e alcance da cobertura de danos estéticos contratada, exigia uma comunicação atempada, tendo em conta que o demandante não é jurista e que a linguagem utilizada na referida cláusula não é de apreensão imediata para o cidadão médio, embora não seja ambígua. Ora, a mera entrega do clausulado contratual no momento da celebração do contrato, desacompanhada de outras explicações, era insuficiente para esse fim, sobretudo se tomarmos em linha de conta que os danos estéticos constam da lista de coberturas nas condições particulares da respectiva apólice, sem qualquer ressalva ou explicitação.
Assim sendo, nos termos do artigo 8º a) do referido Decreto-Lei nº 446/85, a cláusula sob análise teria de ser excluída do contrato, sem prejuízo da subsistência deste (cfr. artigo 9º do mesmo diploma legal).
No entanto, a exclusão da referida cláusula do contrato de seguro levanta a questão de saber que tratamento devem, então, ter os danos estéticos, no âmbito do mesmo. Na verdade, poder-se-ia pensar que, excluída essa cláusula, ficaria igualmente afastada a cobertura de danos estéticos, tal como sustentou a ilustre mandatária da demandada nas suas alegações orais finais. Contudo, esse entendimento colide com o facto da cobertura de danos estéticos não ter ficado excluída das condições particulares da apólice de seguro, mas apenas das condições gerais do mesmo, nos termos aí enunciados, além de que a exclusão não significa nulidade da cláusula. Ou seja, aquilo que deixou de vigorar foi apenas o carácter complementar atribuído à cobertura de danos estéticos pela cláusula contratual excluída, mas não esta cobertura propriamente dita. Assim sendo, o âmbito de cobertura dos danos estéticos carece, por isso, de integração, nos termos do disposto no artigo 239º do Código Civil. Ora, a declaração negocial deve ser integrada segundo os ditames da boa fé (uma vez que a vontade presumível das partes é diametralmente oposta entre si), apontando no sentido do maior equilíbrio das prestações, em conformidade com o disposto no artigo 237º do Código Civil. Neste caso, o equilíbrio das prestações, atendendo nomeadamente ao limite da indemnização contratada para os danos estéticos, encontra-se mediante a consideração da cobertura dos mesmos em igualdade de circunstâncias com as demais coberturas contratadas, isto é, a título principal ou autónomo, considerando a forma de apresentação destas nas condições particulares e o prémio único pago pelo demandante por todas elas. Aliás, essa seria a forma como um declaratário normal, colocado na posição do demandante, interpretaria o sentido e alcance da referida cobertura, uma vez excluída a cláusula que lhe atribuía carácter complementar.
Porém, a demandada objectou que o artigo 4º do Decreto-Lei nº 176/95, de 26 de Julho, na redacção actualmente em vigor, faz recair sobre a instituição bancária, neste caso tomadora de seguro, o dever de comunicação e informação, pelo que não poderia ter havido violação do mesmo por sua parte. Nessa conformidade, a instituição bancária poderia ser responsabilizada civilmente pelos prejuízos eventualmente causados ao demandante, mas o regime das cláusulas contratuais gerais não poderia ser aplicável à demandada.
Apreciando questão análoga, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 09/01/2012, disponível em www.dgsi.pt (Proc. nº 27/10.4T2AND.C1), entendeu que o citado artigo 4º daquele diploma legal “tem especialmente como destinatários a instituição bancária e a seguradora, definindo a cargo de quem (…) fica o dever de informação sobre as coberturas abrangidas, as cláusulas de exclusão, etc. A ratio do preceito foi dirimir eventuais conflitos entre estas duas entidades, estabelecendo uma norma delimitadora susceptível de derrogação por aquelas partes (nº 4 do preceito), sendo o segurado alheio a esta equação, relevando ainda o preceito porquanto dele se infere, por um raciocínio de exclusão, que não é ao segurado que incumbe o ónus de alegação e prova da ausência de comunicação”.
Aliás, em abono da sua posição, o referido aresto convoca numerosa jurisprudência superior, bem como doutrina, a qual se dá aqui por reproduzida, por uma questão de economia processual.
Ora, tudo ponderado, não vemos razão para nos desviarmos deste consistente entendimento, pelo que o facto de estar em causa um seguro de grupo não afasta a aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais à demandada, sendo seu o ónus da prova do cumprimento efectivo dos deveres de comunicação e informação. Neste caso, a prova efectuada é insuficiente para considerar cumprido esses deveres, uma vez que o clausulado contratual não foi dado a conhecer com antecedência suficiente para a sua cabal compreensão nem foi acompanhado de explicação esclarecedora das suas implicações ao nível da cobertura dos danos estéticos.
IV. DECISÃO:
Nestes termos, julgo a presente acção procedente e provada e, por via disso, condeno a demandada a pagar ao demandante a quantia indemnizatória de 1.000,00 €.
Custas pela demandada, que declaro parte vencida (cfr. artigo 8º da Portaria nº 1456/2001, de 28 de Dezembro).
Registe e notifique.
Porto, 31 de Janeiro de 2014
O Juiz de Paz,
(Luís Filipe Guerra)