Decisão Texto Integral: |
Proc. 118/2023 -JPCNT *
SENTENÇA I. RELATÓRIO
XXXXX, titular do CC XXXX, com o NIF XXXX, residente na rua Dr. XXXX, nº XX XXX XX - Aveiro, veio intentar a presente ação declarativa, com fundamento na alínea h) do n.º 1 do art.º 9º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho (LJP), contra XXXXX, Lda., sociedade comercial com o NIPC XXXX, com sede na Avenida XXXXX Cantanhede, pedindo que seja a Demandada considerada responsável pela não conformidade dos implantes colocados, ainda que esse trabalho tenha sido realizado pela antiga gerência e direção clínica, antes da alegada venda, e bem assim, condenada a assumir a responsabilidade pelo tratamento e reparação do defeito dos implantes, nomeadamente com a colocação de novas coroas, por forma a assegurar a sua resolução definitiva, ou, em alternativa, a pagar ao Demandante a título de indemnização, a quantia de 1000,00 € (mil euros), para que este realize esse mesmo procedimento noutra clínica à sua escolha.
Para tanto, alegou os factos constantes do requerimento inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.
Para prova do por si alegado juntou 4 (quatro) documentos, que se dão por integralmente reproduzidos.
A Demandada foi regularmente citada cfr. fls. 17 dos autos, tendo apresentado a contestação de fls. 18 a 23.
Foi agendada a sessão de mediação, não tendo a mesma se realizado pelo facto de a demandada ter prescindido da mesma (fls. 36).
Foi marcada e realizada a Audiência de Julgamento na qual compareceram o Demandante e a Demandada, tendo ambos apresentado prova documental e testemunhal.* Verificam-se os pressupostos de regularidade da instância, já que:
O Tribunal é competente em razão do objeto, do valor, da matéria e do território, nos termos do disposto no artigo 6º nº 1, 8º, 9º nº 1 al. h), 10º e 12º, da Lei nº 78/2001, de 13 de julho, respetivamente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não existem nulidades, exceções ou outras questões prévias a conhecer.
Fixa-se o valor da ação em €1.000,00 (mil euros), cfr. artigos 306º n.º 1, 299º n.º 1, 297º n.º 1 e 2 do CPC, ex vi art. 63.º da Lei 78/2001, de 13 de julho, na redação que lhe foi dada pela Lei 54/2013, de 31 de julho.
ii. FUNDAMENTAÇÃO fáctica
Com relevo para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. No decorrer do ano de 2017, o Demandante recorreu aos serviços da Demandada;
2. A demandada é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços médicos dentários, com clínica aberta em Cantanhede;
3. No âmbito dessa prestação de serviços, foram colocados dois implantes ao Demandante, um no dente 36, a 04.01.2017 e outro no dente 46, a 26.04.2017, pelos quais pagou a quantia de 2080,00 € - 1040,00 € cada implante;
4. A Clínica Demandada assistiu e seguiu o Demandante;
5. Depois da alteração dos órgãos sociais e direção clínica da demandada, esta levou a cabo três intervenções aos dois implantes, nomeadamente, a 8 de junho de 2022, a 4 de janeiro de 2023 e 21 de março de 2023;
6. A Demandada respondeu ao demandante a comunicação de fls. 8, com o seguinte teor:
“Exmos. Senhores
O paciente colocou dois dispositivos médicos no dia 04 de janeiro e no dia 26 de abril de 2017, respetivamente na nossa Clínica. Nessa data a Clínica detinha outra gerência, e direção Clínica.
A nova Gerência adquiriu a Clínica a 01 de junho de 2021, por contrato de compra, tendo atualmente novos Gerentes e nova Direção Clínica.
O paciente deslocou-se à Clínica recentemente com um problema no dispositivo médico colocado em 2017, reiterando a informação anterior de que na altura dessa ocorrência a Direção Clínica não estava sobre alçada da atual Direção. Tentamos solucionar da melhor forma a situação, mas o Paciente não ficou satisfeito com a solução apresentada.
O tratamento inicial realizado não foi executado pela atual Profissional Clínica, julgamos não ser da nossa responsabilidade o suporte das despesas inerentes ao processo de resolução desta questão.
Caso tenha alguma dúvida sobre a matéria, a mesma deverá ser remetida ao Conselho Deontológico e disciplina da Ordem dos Médicos Dentistas.”
7. Segundo a Demandada, o demandante carece de colocar novas coroas, cada uma no valor de 500,00 €;
8. Custo que a demandada se recusa a assumir;
9. Os atuais sócios da demandada (XXXXX, Lda, XXXX e XXXXX) adquiriram esta sociedade por aquisição de todas as quotas em 1 de junho de 2021;
10. São sujeitos passivos deste negócio os anteriores sócios, XXXX, XXXX e XXXXX;
11. O demandante apareceu na clínica da demandada em 08-06-2022, foi atendido pela médica atual dessa clínica, Drª XXXXX, e solicitou que as coroas fossem apertadas porque estavam algo soltas;
12. O serviço foi efetuado, foi emitido recibo nº 19248 de 08-06-2022,
13. o demandante pagou, e não fez qualquer reclamação;
14. Voltou a comparecer na clínica em 04-01-2023, foi de novo atendido pela mesma médica, e de novo pagou a consulta sem fazer qualquer reclamação;
15. Voltou a comparecer em 21-02-2023, foi atendido pela mesma médica e de novo pagou a consulta sem fazer qualquer reclamação;
16. O demandante foi avisado pela médica em 04.01.2023 que uma das coroas estava partida e teria que ser substituída;
Por falta de mobilidade probatória ou prova minimamente credível e suscetível de convencer o Tribunal da pertinente factualidade não resultaram provados quaisquer outros factos, com interesse para a decisão da causa, nomeadamente:
a) Os implantes começaram logo a dar problemas nos primeiros meses, desapertando ou apanhando folga constantemente com o passar do tempo;
b) Problemas esses que foram de imediato reportados à Demandada aquando do seu surgimento, que os reconheceu e assumiu;
c) Por referência ao facto provado nº 4 que as intervenções da demandada foram sempre sem qualquer custo para o demandante;
d) O Demandante foi informado pela Demandada que esta deixaria de suportar as intervenções aos implantes;
e) O Demandante apresentou reclamação junto da ERS – Entidade Reguladora da Saúde, com o seguinte teor: “Efetuei a colocação de dois implantes no dente 36 e 46 em 2017, os implantes começaram a dar problemas logo nos primeiros meses, problemas esses reportados a clínica e tratados pela mesma. A clínica foi vendida e a atual direção recusa se a assumir os problemas. De realçar que a clínica possuir a mesma denominação assim como o mesmo número fiscal.”
f) Por referência ao facto provado nº 16 que o demandante tenha sido avisado na consulta de 21.02.2023.
A convicção do Tribunal relativamente à factualidade supra descrita resulta da conjugação ponderada dos documentos juntos aos autos pelo demandante e pela demandada, que não foram objeto de impugnação e da prova testemunhal, tendo em conta o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 607º, nº 5 do CPC, aplicável subsidiariamente por força do disposto no artigo 63º da Lei nº 78/2001, de 13 de julho e no artigo 396º do Código Civil (CC).
Concretizando, os factos provados nº 1, 2 e 3 resultaram do acordo das partes e da prova documental (certidão permanente da demandada de fls. 24 a 30, faturas VD A/8093, de 12-03-2018 e VD A/9624, de 27-09-2018 – fls. 47 e 48).
O facto nº 4 resultou da prova testemunhal apresentada pelas partes, XXXXX e XXXX que referiram que o demandante realizou as colocações dos implantes na clínica demandada e que foi acompanhado por tal clínica nas consultas posteriores. Tal factualidade resultou espelhada na listagem de tratamentos junta aos autos (fls. 71 a 81).
O facto nº 5 resultou da conjugação da prova documental e testemunhal apresentada pela demandada: da certidão permanente de fls. 26 resulta que a transmissão das quotas sociais foi registada em 01.06.2021, das declarações da testemunha Dra. XXXX e da listagem de tratamentos resulta que o demandante foi consultado, após aquela transmissão, em 08.06.2022, 04.01.2023 e 21.03.2023.
O facto nº 6 resultou da prova documental de fls. 8 - missiva dirigida pela demandada ao demandante, com data de 28.03.2023.
Os factos nº 7 e 8 resultaram das declarações da testemunha apresentada pela demandada, a qual referiu que o demandante apresenta fratura nos dois pilares, o que requer substituição; a testemunha referiu ainda que fez uma “atenção” no orçamento que deu ao demandante, de €500 cada coroa, explicando que teriam de pedir o material compatível com o que foi colocado na boca do demandante, pois normalmente não trabalham com aquele, esclarecendo que seria possível fazer a intervenção na clínica da demandada. A testemunha, com o seu depoimento contrariou o alegado pela demandada em sede de contestação, nomeadamente que não deu ao demandante qualquer orçamento e que referiu que não faria a substituição das coroas, nem que fosse de vontade e por conta do demandante, porque não trabalha com o material que foi instalado na sua boca, nem a clínica com a atual gerência compra esse material.
Relativamente à demandada não assumir o custo da substituição dos dois pilares fraturados, a testemunha explicou que o trabalho de colocação dos implantes parece-lhe ter sido bem feito pela anterior Colega, “mas as coisas partem com o tempo e o desgaste”, realçando o lapso temporal entre a colocação e a deteção da fratura – 2017/2023; questionada sobre quando ocorreu a fratura, a testemunha referiu que não pode afirmar com certeza, mas se já existisse na consulta anterior a janeiro de 2023 era passível de ser vista (porque exterior) e certamente teria sido registada pelo médico.
A testemunha evidenciou os registos clínicos do demandante os quais apontam para um problema de bruxismo que considera ser causa potencial de fratura dos pilares e da contenção superior detetada por si em momento anterior, em junho de 2022; a testemunha referiu desconhecer se o demandante substituiu a contenção superior que se encontrava partida; tal como acentuou, por referência à listagem de tratamentos de fls. 71 a 81 a existência de uma consulta no ano de 2019 (12.12.2019), em 2020 duas consultas, em 22.01.2020 e 29.04.2020, e, após, somente em 08.06.2022.
Por outro lado, sobre o funcionamento e responsabilidade da demandada, a testemunha referiu que os médicos que exercem funções na clínica da demandada não são funcionários da mesma e têm de ser um seguro, sendo exclusivamente responsáveis pelos atos médicos que praticam, dizendo que existe um contrato de prestação de serviços (não escrito) entre o médico e o paciente. Explicou que o médico só usa as instalações da clínica e recebe parte do que o paciente paga à clínica, facto que não é do conhecimento do paciente.
Questionada sobre quem passa a fatura, referiu ser a clínica, segundo as instruções fornecidas pelo respetivo médico.
Os factos nº 9 e 10 resultaram da prova documental: Certidão Permanente de Registo Comercial da demandada (fls. 24 a 30).
Os factos nº 11, 12, 13, 14, 15 e 16 resultaram das declarações da testemunha, a médica dentista Dra. XXXX, e dos documentos de fls. 31 a 33 – recibos referentes às consultas de 08.06.2022, 04.01.2023 e 21.02.2023.
Quanto aos factos não provados:
Alínea a), b), c) e d): por ausência de prova. O demandante, além de ter alegado genericamente os problemas nos implantes apresentou, para prova de tais factos, a testemunha XXXXX que, igualmente de forma muito genérica, referiu que os implantes não ficaram bem, desapertavam-se, o que causava dores ao demandante principalmente quando comia, chegando mesmo a parte de cima (coroa) a sair. Foi igualmente analisada a prova documental junta aos autos pela demandada, a pedido do demandante: o processo clínico, nomeadamente a listagem dos tratamentos realizados pelo demandante. De fls. 77 e seguintes é possível verificar que o primeiro implante foi colocado em 4 de janeiro de 2017 e em 17.01.17 teve consulta havendo a anotação “tudo ok”; em fevereiro 2017 o demandante teve nova consulta, sendo que após, o demandante desmarcou 8 consultas, até colocação do segundo implante em abril de 2017. Após a colocação do segundo implante, existem registos entre maio de 2017 e julho de 2018 de consultas relacionadas com os implantes; no ano de 2019 um registo em 12 dezembro de 2019 e em 22 janeiro de 2020 uma consulta com a anotação “vamos subst parafuso”. A substituição ocorreu em abril de 2020, após duas anotações de consultas desmarcadas pelo demandante. Após a substituição do parafuso em 04.2020, existem três registos de consulta em 08.06.2022, em 04.01.2023 e 21.03.2023. Ou seja, após a substituição do parafuso em 04.2020 apenas existe registo de consulta 26 meses depois, o que naturalmente é indício de que o demandante não sentiu necessidade de recorrer aos serviços da demandada para “apertar” os implantes, usando a terminologia do demandante no RI. Após 04.2020 tais implantes foram apertados novamente em 06.2022 (fls. 81).
Acresce que, foi ouvida a testemunha XXXX, médica dentista, que explicou que é natural os implantes sofrerem oscilações com a mastigação, o que requer um ajustamento, em média de 6 em 6 meses, também para limpeza. Mais referiu que nos trabalhos que executa e nos implantes que coloca as consultas para apertar o parafuso são gratuitas durante cerca de 1 a 2 anos e com uma periodicidade de 6 em 6 meses.
Ou seja, da conjugação de tais elementos o Tribunal ficou convencido de que a necessidade de “apertar os parafusos dos implantes” é uma situação habitual, resultado das oscilações da mastigação; aquela necessidade pode, como explicou a testemunha XXXX, ser mais acentuada nos casos de pacientes que padeçam de bruxismo, como é o caso do demandante. Mais, como no caso do demandante houve substituição do parafuso, ainda que se considere que o parafuso inicial padecia de algum defeito e terá provocado uma necessidade mais recorrente de ser apertado, como alegou o demandante, tal situação, após a substituição, terá ficado resolvida, já que, como dissemos, o demandante esteve 26 meses sem recorrer aos serviços da demandada após a substituição do parafuso. De igual modo, não ficou o Tribunal convencido de que as fraturas verificadas na consulta de 04.01.2023 (e que determinam o pedido do demandante formulado contra a aqui demandada) são resultado ou estão de algum modo relacionadas com a alegada folga ou desaperto do parafuso.
Por outro lado, dos elementos que constam nos autos não foi possível concluir que as intervenções que estão registadas na listagem de tratamentos foram efetuadas sem custo para o demandante. Se é certo que a sua maioria não apresenta qualquer valor registado no campo “preço”, não foi possível concluir que a falta de anotação signifique que foram gratuitas. Efetivamente, nas últimas três consultas, já com a médica Dra. XXXX (fls. 81), nada consta no campo preço e, da análise das declarações da testemunha e da prova documental de fls. 31, 32 e 33 (recibos nº 19248, 20762 e 21293), resultou que foi cobrado o valor de cerca de €20,00 em cada consulta. Razão pela qual não foi dado como provado que a demandada tenha informado o demandante que “deixaria de suportar as intervenções nos implantes”, pois nada nos autos foi carreado que permitisse concluir que as três intervenções realizadas pela demandada, já com a nova direção, foram sem custos para o demandante.
Alínea e): por ausência de prova - da comunicação de fls. 8 junta pelo demandante e dirigida pela demandada ao demandante (facto provado nº 6) percebe-se que é uma resposta a alguma reclamação do demandante, mas o demandante não apresentou prova da reclamação que fez, a quem a dirigiu e do respetivo teor.
Alínea f): da listagem de tratamentos resulta que o demandante foi avisado na consulta de 04.01.2023, conforme anotação (fls. 81), o que foi corroborado pela testemunha apresentada pela demandada que referiu que na consulta de janeiro de 2023 o parafuso estava desapertado novamente e verificou que o pilar estava fraturado; tirou fotos e enviou para o representante da marca que confirmou a fratura; comunicou ao demandante a necessidade de substituição e, na consulta seguinte, em 21.03.2023 voltou a alertar o demandante das consequências do pilar fraturado (tal como registou – fls. 81).
III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Está em causa nos presentes autos apurar a responsabilidade civil da Demandada e, em consequência, a sua declaração como “responsável pela não conformidade dos implantes colocados, ainda que esse trabalho tenha sido realizado pela antiga gerência e direção clínica, antes da alegada venda, e bem assim, condenada a assumir a responsabilidade pelo tratamento e reparação do defeito dos implantes, nomeadamente com a colocação de novas coroas, (…), ou, em alternativa, a pagar ao Demandante a título de indemnização, a quantia de 1000,00 € (mil euros), para que este realize esse mesmo procedimento noutra clínica à sua escolha”.
Atendendo à configuração dada pelo demandante está em causa o apuramento da eventual responsabilidade civil da demandada, enquanto sociedade/clínica onde foi efetuada a intervenção que, na tese do demandante, foi realizada defeituosamente e lhe causou os danos que pretende ver ressarcidos.
A questão da responsabilidade médica e da caracterização da obrigação a cargo do médico que executa o serviço médico tem sido amplamente debatida na doutrina e jurisprudência. Atendendo a que as decisões no Julgado de Paz devem conter uma sucinta fundamentação (artigo 60º, nº 1, al. c) da LJP), escusamo-nos de aqui elencar as várias orientações a respeito (bem espelhadas no Ac. Do Tribunal da Relação do Porto de 17.06.2014). Seguindo de perto o entendimento exposto em tal aresto, hoje, doutrina e jurisprudência convergem no sentido de que a atuação do médico perante o doente/paciente pode, nuns casos, reconduzir-se às obrigações de meios e, noutros, às obrigações de resultado e que a respetiva responsabilidade deverá, umas vezes, ser aferida no quadro da responsabilidade extracontratual e, noutras, no da responsabilidade contratual. Quanto a este último ponto, predomina o entendimento de que a regra é a da responsabilidade contratual do médico, constituindo a responsabilidade extracontratual a excepção e apenas possível nos casos em que o médico atue em situações de urgência, em que inexiste acordo/consentimento do doente à sua atuação/intervenção.
Menos controversa tem sido a solução da questão da responsabilidade da clínica onde o médico exerce a sua atividade e onde levou a cabo os atos que podem estar na base da sua responsabilidade. A responsabilidade daquela [circunscrita à medicina exercida no sector privado] vem sendo radicada no disposto no art.º 800º do Código Civil (CC), mais concretamente na parte final do seu nº 1, com referência ao concreto contrato que o doente/paciente em causa tenha celebrado com o médico e a clínica (citado Ac. Rel. Porto de 17.06.2014). Em face do artigo 800.º do Código Civil não é necessária a verificação da relação de dependência prevista no artigo 500.º do Código Civil, bastando a verificação de um vínculo contratual quer entre a clínica/hospital privado e o médico e/ou entre o médico e os seus auxiliares para que os primeiros respondam apenas com culpa dos últimos, assente que estejam reunidos os pressupostos da responsabilidade civil.
É entendimento maioritário da jurisprudência que, quando a prestação do serviço de saúde tiver sido objeto, de algum modo, de negociação entre o prestador de serviço (médico ou instituição prestadora de cuidados de saúde) e o paciente, impõe-se reconduzir o não cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação assumida pelo prestador ao instituto da responsabilidade contratual, nos termos dos artigos 798º e seguintes do Código Civil, sem prejuízo de eventual concurso deste título de responsabilidade com a responsabilidade delitual (cf. Ac. Rel. Porto 15.06.2022).
Face à matéria dada como provada (factos nº 2 e 3), o demandante recorreu aos serviços da demandada, que se dedica à prestação de serviços médicos dentários e para o efeito tem clínica aberta em Cantanhede, para colocação de dois implantes dentários, pelos quais pagou a quantia de 2080,00€ (1040,00€ por cada implante), pelo que, o presente litígio situa-se no domínio da responsabilidade contratual. Está em causa a prestação de um serviço de saúde que, segundo o demandante, foi cumprido pela demandada, defeituosamente (sendo irrelevante para a apreciação do pedido do demandante o facto de a demandada ter, após a prestação do serviço, alterado os seus órgãos sociais e direção clínica, por efeito da transmissão das quotas – tal facto não exclui automaticamente a responsabilidade da demandada, como declarou o seu legal representante, quando foram ouvidas as partes no início da Audiência de Julgamento).
Qualquer que seja o ponto vista sobre o qual se encare (responsabilidade contratual ou extracontratual), para o paciente ser ressarcido, sempre terão de se mostrar reunidos os pressupostos da responsabilidade civil (artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil), que são: a) um facto voluntário b) a ilicitude desse facto; c) a culpa, definida como a censurabilidade da conduta do agente pela ordem jurídica; d) a ocorrência de um dano; e) o nexo de causalidade entre o facto e o prejuízo, apelando-se à teoria da causalidade adequada, segundo a qual o facto há-de ser, em concreto, causa necessária do evento danoso e, ao mesmo tempo, terá de ser, em abstrato, adequado a causar tais danos.
No domínio da responsabilidade contratual, o lesado não tem que provar a culpa do agente pois a mesma presume-se, nos termos do nº 1 do art.º 799º do CC, mas tem que fazer prova dos outros pressupostos, em conformidade com o prescrito no nº 1 do art.º 342º do CC.
No caso concreto, o demandante não demandou a médica que realizou as intervenções de colocação dos implantes dentários na Clínica Demandada. Contudo, há que apreciar a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil em relação à médica que executou a intervenção, atendendo a que a responsabilidade da aqui demandada será apurada com base no citado art.º 800º do CC - a demandada pode responder pela eventual prestação defeituosa da médica dentista, realizada no quadro da sua oferta ao público de serviços médicos (facto provado nº 2), como se tais atos tivessem sido por si praticados.
Para a definição do conteúdo da prestação a cargo do médico, na responsabilidade civil contratual decorrente do incumprimento de um contrato de prestação de serviços médicos (sem regulamentação legal típica, incluído na categoria genérica dos contratos de prestação de serviços - artigo 1154.º do CC – e subordinado às regras supletivas do contrato de mandato, com as devidas adaptações – artigo 1156.º do CC), para além do que conste de concretas cláusulas contratuais acordadas, há que recorrer ao que consta dos regulamentos deontológicos próprios, a começar pelo Regulamento de Deontologia Médica da Ordem dos Médicos (Diário da República, 2.ª série, n.º 139, de 21/07/2016).
O artigo 5.º deste Regulamento assinala que “o médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo sempre com correcção e delicadeza, no intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano”.
Por outro lado, tem ainda de ser considerado o Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas (Regulamento n.º 515/2019, publicado na 2.ª série do Diário da República, n.º 115, de 18 de junho), cujo artigo 8.º dispõe: “1. O médico dentista deve exercer a sua profissão de acordo com as leges artis, com respeito pelo direito à saúde das pessoas e da comunidade; 2. O médico dentista deve exercer as suas funções agindo com correção e delicadeza, professando o superior interesse do doente, assegurando a prestação dos melhores cuidados de saúde oral possíveis; 5. O médico dentista é responsabilizado pela prestação desadequada de atos médicos dentários, quando perante as circunstâncias concretas do caso, lhe era objetivamente exigível a atuação de forma diversa e, mesmo que o doente tenha consentido ou insistido nessa forma de tratamento”.
Ora bem, relativamente aos dois primeiros pressupostos da responsabilidade civil (o facto ilícito), “a ilicitude da actividade do médico será afirmada se concluirmos que a mesma se consubstancia numa violação das leges artis impostas a um profissional prudente da respectiva categoria ou especialidade”, sem necessidade de “aquilatar se, na execução ou inobservância dos deveres que lhe são exigíveis, o médico actuou com a diligência, cuidado ou prudência impostos a um profissional medianamente diligente, zeloso e cuidadoso, uma vez que tal juízo terá lugar a nível da culpa. No fundo, a ilicitude traduz-se numa desconformidade objectiva face aos comandos da ordem jurídica e a culpa num juízo de censurabilidade subjectiva à conduta desviante do lesante/devedor” (Filipe Albuquerque Matos, citado no Ac. Da Rel. Porto 17.06.2014).
Como resulta da matéria provada (factos nº 3, 7, 16) foram colocados em 2017 dois implantes dentários ao demandante, carecendo hoje de substituição das coroas por fratura detetada em 2023. Por sua vez, não resultou provado que os implantes começaram logo a dar problemas nos primeiros meses, desapertando ou apanhando folga constantemente com o passar do tempo (alínea a); como melhor explicamos supra no tópico “fundamentação fáctica”, o Tribunal ficou convencido que é habitual a necessidade de “apertar o parafuso” após a colocação dos implantes, pelo facto de estes sofrerem oscilações decorrentes da mastigação, e não foram carreados aos auto elementos que nos permitissem concluir que as fraturas verificadas na consulta de 04.01.2023 (e que determinam o pedido do demandante formulado contra a aqui demandada) são resultado ou estão de algum modo relacionadas com a alegada folga ou desaperto do parafuso e dos implantes colocados em 2017. Tampouco foi alegado (e consequentemente provado) que o material colocado na boca do demandante padecesse de algum defeito ou desconformidade.
Efetivamente, da matéria dada como provada não resulta que a atuação da médica dentista que colocou os implantes e acompanhou o demandante tenha sido ilícita ou sequer que tenha executado deficientemente aquela colocação. Por conseguinte, terá de se considerar não verificado os pressupostos (cumulativos) da responsabilidade civil, improcedendo o pedido formulado pelo demandante contra a demandada, já que a responsabilidade desta estaria dependente da verificação do incumprimento contratual da médica que realizou, nas suas instalações, o ato médico em causa. O demandante não provou que existe um defeito ou desconformidade entre o que foi praticado na clínica da demandada e o que deveria ter sido.
Face ao exposto, há que concluir, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, pela improcedência da presente ação e consequente absolvição da Demandada dos pedidos formulados.
IV. DECISÃO
Face ao que antecede e às disposições legais aplicáveis, julgo a ação improcedente por não provada e, por via disso, absolvo a Demandada dos pedidos contra si formulados pelo Demandante.
As custas, no montante de €70,00 (setenta euros), serão a suportar pelo Demandante, o qual deverá efetuar o pagamento num dos 3 dias úteis subsequentes ao conhecimento da presente decisão, sob pena de incorrer numa sobretaxa de € 10,00 por cada dia de atraso no cumprimento dessa obrigação. (Artigos 527.º, do Código de Processo Civil - aplicável ex vi artigo 63.º da Lei 78/2001, de 13 de julho, com a redação da Lei 54/2013 de 31 de julho - e artigos 1º al. b) e nº 3 e 3º nº 4 da Portaria n.º 342/2019, de 01 de outubro). * Registe.***
Cantanhede, 16 de janeiro de 2024
A Juíza de Paz Processado por meios informáticos e
revisto pela signatária. Verso em branco.
(art.º 18º da LJ |