SENTENÇA
RELATÓRIO:
A demandante, A, com sede no x, instaurou a ação declarativa de condenação contra o demandado, B, residente no x, o que faz ao abrigo do ar.º9, n.º1, alínea I) da L.J.P.
Para tanto alega em síntese que no âmbito da sua atividade comercial vendeu ao demandado diversos materiais, conforme resulta das faturas que junta, que também foram entregues ao demandado, o qual devia ter liquidado 10 dias após a receção da mercadoria. Posteriormente, entregou alguns bens e procedeu ao pagamento parcial da mercadoria, deixando por liquidar a quantia de 1.616,11€ e não obstante ter sido instado para o fazer. Conclui pedindo que seja condenado no pagamento da quantia de 1.616,11€, acrescida dos juros mora vencidos na quantia de 183,90€ e nos demais vincendos. Junta 14 documentos.
O demandado regularmente citado, contesta atempadamente. Alega que nada deve, de facto adquiriu material mas pagou-o a pronto e recebeu os recibos. Para além disso, verifica que o material que alegadamente lhe terá sido vendido dará para instalar em 6 moradias, ora não sendo ele construtor, nem empreiteiro não teria necessidade de tanto material, pois apenas possui uma. Conclui pela improcedência da ação.
A demandante regularmente notificada responde. Alega que o demandado é seu cliente desde 2011, ignorando a sua profissão, nem o número de moradias que terá. No entanto, tinha por hábito contatar um funcionário da demandada e era ele ou a esposa que levavam pessoalmente o material, daí não haver guias de transporte. Para além disso, os seus pagamentos nem sempre foram a pronto pagamento, daí o cheque que juntamos no requerimento inicial, como meio de pagamento por conta da quantia devida. Toda a situação é bem conhecida do demandado que procurava um desconto para efetuar a liquidação integral da divida. Conclui pela improcedência da exceção e procedência da ação. Juntando 1 documento.
TRAMITAÇÃO:
Não se realizou sessão de pré mediação por recusa do demandado.
O Tribunal é competente em razão do território, do valor e da matéria.
As partes dispõem de personalidade e capacidade judiciária.
O processo está isento de nulidades que o invalidem na sua totalidade.
AUDIENCIA DE JULGAMENTO:
Foi iniciada dando cumprimento ao art.º 26, n.º1 da LJP, sem contudo obter consenso entre as partes. Seguindo-se para produção de prova com a junção de um documento pela demandante e audição de algumas testemunhas. Na segunda sessão passou-se a audição da última testemunha, utilizando interprete, e breves alegações finais, tudo conforme atas de fls.79 a 82 e 84 a 85.
-FUNDAMENTAÇÃO-
I- FACTO ASSENTE (Por Acordo):
a)Que a demandante, dedica-se, entre outras coisas, ao comércio de equipamentos domésticos, industriais e materiais elétricos e prestação de serviços na área da assistência técnica, instalações elétricas, instalação de gás, de AVA, e de energias renováveis.
II-FACTOS PROVADOS:
1)Que as partes estabeleceram relações comerciais entre 2011 a 2013.
2)Que no decurso destas, o demandado requisitou vários materiais elétricos.
3)Que o fez pessoalmente e telefonicamente.
4)Que, habitualmente, era a esposa do demandado que ia buscar o material.
5)Que a demandante entregava-lhe as respectivas faturas.
6)Que a esposa do demandado e ele próprio, pagaram alguma mercadoria.
7)O que fez por meio de cheque e multibanco.
8)Que o demandado devolveu vários materiais elétricos.
9)Que a demandante emitiu notas de crédito.
10)Que o demandado em 2013 reclamou a demandante do preço peticionado.
11)Que o demandado emitiu a favor da demandante um cheque na quantia de 1.000€.
12)Que o demandado não é construtor civil.
13)Que o material adquirido pelo demandado foi aplicado na recuperação de uma casa antiga.
14)Que as facturas nunca foram assinadas pelo demandado.
15)Que o demandado adquiriu mais material, que pagou de imediato.
16)Que a demandante elaborou internamente a conta corrente daquele.
17)Que identificava o demandado pelo número de cliente.
MOTIVAÇÃO:
O Tribunal fundamentou a decisão na análise crítica de toda a documentação junta, servindo estes para prova dos factos: 1, 14.
O depoimento da testemunha, C, por ter sido esclarecedor e isento foi valorado, explicando a intervenção que teve no negócio, servindo de prova aos factos: 1,2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9.
O depoimento prestado por D, que foi ouvido na qualidade de sócio da demandante, relevando nas explicações prestadas acerca da contabilidade da demandante, nomeadamente acerca do programa que possui, na identificação do cliente, na emissão das notas de crédito e ainda na conversa que teve com o demandado, sendo um depoimento credível, pelo que serviu de prova aos factos: 1, 10, 11, 15, 16, 17.
Posteriormente, foi confrontado com algumas facturas, não conseguindo explicar cabalmente as discrepâncias verificadas.
A testemunha, E, na qualidade de encarregado da obra do demandado, confirmou o local onde os serviços foram efetuados, quem encomendava os materiais e quem os apresentava na obra, pelo que relevou nestes aspetos servindo de prova aos factos: 12 e 13.
A mulher do demandado, F, explicou qual a sua intervenção no negócio, limitando-se a deslocar-se ao estabelecimento da demandada para ir buscar material, levando as facturas que entregava ao demandado e o material que depositava na obra que estavam a realizar. Confirmou também que uma vez foi com o demandado ao estabelecimento da demandante para esclarecerem a questão da divida, na qual ocorreu uma troca de palavras desagradáveis entre ambos. Embora não sendo um depoimento completamente isento relevou nos aspetos referidos, servindo de prova aos factos: 2, 4, 5, 6, 8, 10, 12, 13 e 15.
Por fim, o demandado prestou o seu depoimento, que por ser coincidente na maioria com o das restantes testemunhas foi valorado precisamente nesses aspetos.
Não se provou mais qualquer facto com interesse para a causa, nomeadamente qual o material vendido que fora efetivamente devolvido e as quantias, ainda, em divida.
II-DO DIREITO:
O caso em análise refere-se ao incumprimento do contrato de compra e venda, que tem por objeto materiais elétricos, sendo regulado pelos art.º 874 e sgs do C.C.
Questões em análise: ocorreu ou não o incumprimento do negócio, quantia em divida.
Note-se que a prova do incumprimento da obrigação é da responsabilidade da demandante, nos termos do art.º 342, n.º1 do C.C.
A compra e venda é um negócio jurídico de natureza obrigacional que consiste na transmissão da propriedade de uma coisa ou de outro direito, mediante o pagamento de um preço (art.º874 do C.C.).
Este negócio jurídico gera obrigações reciprocas para as partes contratantes, do que deriva dois tipos destintos de efeitos, um de natureza obrigacional, o pagamento do preço pelo bem adquirido; e dois de natureza real, a transmissão da propriedade e a entrega da coisa (art.º 879 do C.C.).
Quanto ao efeito de natureza real a transferência da propriedade, de acordo com o art.º 408, n.º1 do C.C. dá-se por mero efeito da celebração do contrato.
No que respeita a celebração do negócio, em si mesmo, e atendendo ao objeto do negócio em causa, materiais elétricos, a lei não exige que seja celebrado por qualquer forma específica (art.º 219 e 875, á contrario do C.C.), pelo que bastará o mero encontro convergente de vontades para que se considere o negócio realizado.
No caso concreto estamos no âmbito de uma relação comercial que existiu, entre as partes, durante alguns anos, e no decurso desta as partes ganharam uma certa confiança, o que também motivou alguma proximidade de relações, ainda que se mantivessem a nível profissional, mas fez com que se descurassem algumas formalidades, como passamos em análise.
Embora ficasse provado que o demandado não é profissional do ramo da construção civil, também resultou provado que se dedica, entre outros negócios, a recuperar imóveis para os colocar no mercado do turismo, e foi no âmbito desta atividade que, entre o ano de 2011 e meados de 2012, intensificou a relação comercial com a demandante.
De acordo com os factos provados era habitualmente o demandado que efetuava as encomendas de mercadorias á demandante. Porém, muitas das vezes era a mulher dele que as ia buscar, o que fazia junto ao balcão comercial da demandante, sendo normalmente atendida pelo mesmo funcionário (C), que entregava a mercadoria pedida e lhe entregava as respetivas faturas.
Resultou, igualmente, provado que a esposa do demandado nem sabia bem o que por vezes ia buscar, não confirmando a mercadoria que levantava. Posteriormente entregava a mercadoria na obra e as faturas ao demandado, o que demonstra existir alguma confiança na demandante, como assim o confirmou.
A emissão de fatura é apenas um indício de prova da existência do negócio, atendendo ao motivo que está subjacente á sua emissão, sendo a demandante sujeito de IVA.
Todavia, a simples emissão de uma fatura não significa que tenha, ou não, ocorrido o pagamento da mercadoria adquirida. Desta apenas se retira uma conclusão a emissão da fatura e a obrigação de entregar ao Estado a correspondente taxa/imposto que recai sobre a transação efetuada (art.º 29, n.º1 alínea b) do CIVA).
Porém, também, não faz sentido que em época de crise económica, uma sociedade comercial emita uma fatura sem que tenha ocorrido o negócio que lhe está subjacente, devido á obrigação legal que sob ela impende.
No caso em apreço, e por falta de tempo do demandado, algo que confessou nas declarações que prestou em sede de audiência, ocorreu algum descontrole sobre a faturação da mercadoria recebida, umas vezes a mais, outras vezes a errada, o que originou a devolução de alguma mercadoria.
È certo que também não identifica, em concreto, que mercadoria devolveu, mas também é certo que a demandada emitiu algumas notas de crédito a favor dele, conforme documentos juntos, de fls. 17 a 20, o que mais uma vez revela alguma desorganização na contabilidade pessoal deste.
A nota de crédito é um documento retificativo da fatura, quando a operação tenha sido alterada ou por qualquer motivo, tenha ocorrido a devolução de bens (art.º 36, n.º3 do CIVA).
No entanto, e quanto á emissão das notas de crédito a favor do demandado há algumas observações pertinentes a fazer, uma vez que são anteriores á entrada em vigor do D.L. 197/2012, que alterou o regime do CIVA, passando agora a ser mais rigorosos quanto aos elementos que deve expressamente conter as notas de crédito.
Conforme se apurou a demandante internamente elaborou, para efeitos de faturação pessoal, a conta corrente do demandado, na qual lançava os movimento que fazia, créditos e débitos, documentos que juntou em audiência de julgamento.
Pela análise dos mesmos pode-se constatar que o demandado efetivamente adquiriu mais material do que aquele que agora é reclamado o pagamento, o que se verifica pela rubrica, débito. Tendo efetivamente pago a maioria do material adquirido, o que fez por multibanco ou cheque.
Porém, ocorreram devoluções de várias mercadorias e aí perderam um pouco o “fio á meada”, pois a esposa deixava o material, que como ela o admitiu, nem sabia bem as quantidades do que devolvia, e não lhe era entregue de imediato a nota de crédito (o que resultou provado pelos depoimentos das testemunhas C e F), o que lhes dificultava verificar o saldo da conta corrente.
Posteriormente, em data que não se apurou, a demandante enviou-lhe um extrato da conta, o que motivou que o demandado entregasse um cheque para pagamento de algum material, mas mesmo assim a quantia (1.000€) não deu para satisfazer a totalidade da divida, sendo imputada nas faturas vencidas mais antigas (art.º 784, n.º1 do C.C.).
Como é evidente ninguém emite um cheque quando sabe que nada deve, o que evidencia o conhecimento daquele de que existia mercadoria que ainda não fora totalmente liquidada, mesmo no caso concreto de existir a necessidade de as partes procederem ao acerto de contas (saldo).
Todavia, também se verifica alguns erros crassos nas notas de crédito apresentadas, o que foi detetado pelo demandado e só aí veio reclamar da quantia peticionada, o que resulta da admissão do sócio da demandante, D e do depoimento da testemunha F.
Por um lado, não é apresentada uma das faturas que supostamente terá originado um dos créditos do demandado. Para além disso, e pela análise das referidas notas de crédito emitidas contrapondo com as respetivas faturas pode-se constatar que há material, supostamente, devolvido que não pertence á fatura indicada e também há material que é devolvido em quantidade superior á que fora adquirida, factos constantes das facturas juntas a fls. 9, 10, 13 e 14 e notas de crédito a fls. 18 e 19.
Ora daqui se conclui que a contabilidade da demandante também não seria das melhores, o que deu azo a desconfianças do próprio demandado, como ambas as partes o admitem, o que fez azedar as relações entre ambos.
De facto, devido á falta de rigor contabilístico não é possível concluir se o material entregue, como ambas as partes o admitem, foi efetivamente aquele que foi creditado ou se foi outro, pelo que a quantia creditada, embora seja um ponto a favor do demandado pode, também, não refletir a quantia real a ser creditada.
De facto as dúvidas existentes não permitem concluir que o demandado deva efetivamente a quantia peticionada, o que conforme inicialmente se referiu era uma prova da competência da demandante, motivo pelo qual se entende improceder a ação.
DECISÃO:
Nos termos expostos, julga-se a ação improcedente, e em consequência absolve-se o demandado do pedido.
CUSTAS:
São da responsabilidade da demandante devendo efetuar o pagamento da quantia de 35€ (trinta e cinco euros) num dos 3 dias úteis subsequentes a receção da notificação da presente sentença, sob pena de incorrer na sobretaxa de 10€ (dez euros) por cada dia de atraso no efetivo cumprimento desta obrigação legal, sujeitando-se ainda a eventual execução (art.º 8 e 10 da Portaria n.º 1456/2001 de 28/12, com as alterações da Portaria n.º 209/2005 de 24/02).
Proceda-se ao reembolso do demandado, nos termos do art.º 9 da referida Portaria.
Funchal, 21 de fevereiro de 2014
A Juíza de Paz
(redigido e revisto pela signatária, art.º131, n.º5 do C.P.C.)
(Margarida Simplício)