Sentença de Julgado de Paz
Processo: 194/2008-JP
Relator: DULCE NASCIMENTO
Descritores: RECONVENÇÃO - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE OFICINA
Data da sentença: 10/06/2008
Julgado de Paz de : SANTA MARIA DA FEIRA
Decisão Texto Integral: SENTENÇA
I – IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES
Demandante: A
Demandado: B
Mandatário: C
II – OBJECTO DO LITÍGIO
O Demandante intentou a presente acção pedindo a condenação do Demandado a pagar a quantia de € 953,48 (novecentos e cinquenta e três euros e quarenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento, porquanto, no exercício da sua actividade de Chapeiro de automóveis, prestou um serviço de reparação, no automóvel do Demandado, estando este reparado desde Janeiro de 2008, no qual realizou trabalhos de bate-chapa e pintura, tendo fornecido materiais. Apesar das insistências, o Demandado não pagou, a quantia devida pelos serviços prestados.
Procedeu-se à citação do Demandado, que contestou e formulou pedido reconvencional. O Demandado, reconhece que em Dezembro de 2007 solicitou a reparação da sua viatura ao Demandante, tendo este, aquando da reparação, tido um acidente no qual derramou um líquido corrosivo na frente esquerda do interior da viatura, queimando tapetes, tablier, cablagens e pintura. Face à ausência de resposta e/ou solução, em finais de Fevereiro de 2008, o Demandado levou a viatura para outra oficina para efectuar a reparação e informou o Demandante dos custos da mesma, tendo exigido o pagamento dos prejuízos causados, ou a compensação entre aquilo que teria de pagar pela reparação inicialmente acordada e os referidos danos. Para reparar a sua viatura o Demandado despendeu a quantia de € 516,62 (quinhentos e dezasseis euros e sessenta e dois cêntimos) e sofreu um dano de imobilização no valor de € 500 (quinhentos euros), resultando num crédito no valor global de € 1.016,62 (mil e dezasseis euros e sessenta e dois cêntimos), que deve ser compensado pelo crédito excedente a favor do Demandado no valor de € 63,14 (sessenta e três euros e catorze cêntimos).
O Demandante apenas em Julho de 2008 apresentou a respectiva factura da reparação, com data de 10/04/2008. Perante esta interpelação o Demandado voltou a exigir ao Demandante a compensação dos valores, negando o valor da factura apresentada pelo Demandante por não corresponder aos serviços prestados, bem como nela constarem materiais que não foram aplicados na viatura e os preços ai referidos estarem manifestamente inflacionados.
III - TRAMITAÇÃO:
As partes não aderiram à Mediação.
Notificado da contestação com pedido reconvencional o Demandante não respondeu à mesma.
III - DA ADMISSIBILIDADE DO PEDIDO RECONVENCIONAL:
Nos presentes autos, o Demandado deduziu contestação, com reconvenção, pedindo a condenação do Demandante ao pagamento do crédito correspondente à compensação entre o que o Demandado teria de pagar e os danos causados pelo Demandante acrescido dos prejuízos pela imobilização da viatura.
Nos termos do nº 1, do artigo 48º, da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, a reconvenção é excepcionalmente admitida, apenas “quando o Demandado se propõe obter a compensação ou tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida”.
Na sua contestação com reconvenção o Demandado alega defeitos e danos sofridos, directamente relacionados com a prestação de serviços cujo pagamento lhe é exigido. Nos termos do artigo 847.º do Código Civil, é admissível a figura jurídica da compensação, quando se reúnam todos os requisitos aí enumerados, sendo discutível se processualmente se aplica o regime da reconvenção ou da excepção peremptória. A solução maioritária, da doutrina e jurisprudência vai no sentido de considerar a compensação como excepção peremptória e apenas ao excesso se aplicaria o regime da reconvenção.
Invocando, por um lado, uma compensação directa e, por outro, alegados prejuízos pela imobilização da viatura, pôr-se-ão dúvidas sobre se estes constituem um crédito. Isto é, em virtude de encontrar-se por provar e liquidar, se obedecerá à noção de crédito para efeitos de operar a compensação. A jurisprudência dominante vai no sentido de que a “ lei não exige que o crédito que o devedor pretende ver compensado com a sua dívida esteja definido e contido em título executivo; mas importa que a sua existência possa ser averiguada e decidida pelo Tribunal no processo onde é invocado” (acórdão de 02/07/85 do STJ, processo 073052), situação que se afigura possível nos presentes autos.
O Demandante atribuiu à acção o valor de € 953,48 e o Demandado €1.016,62 ao pedido reconvencional, sendo o valor desta superior ao daquela, a reconvenção é admissível, nos termos deduzidos.
Além da reconvenção, o Juiz conhece oficiosamente da conformidade do valor da causa, competindo-lhe fixar seu o valor, nos termos do disposto no artigo 2º da LJP e dos n.º 1 e 2 do artigo 315º do CPC, por remissão do artigo 63º da LJP, o que faz, nos seguintes termos:
Os Julgados de Paz têm competência em razão do valor até ao limite de € 5.000 (artigo 8.º, da LPJ e n.º 1, do artigo 24.º, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, com a redacção dada pelo DL 303/2007 de 24.08). Face ao exposto, admite-se o pedido reconvencional por se tratar de uma situação de compensação, prevista e admitida no n.º 1, do artigo 48º da LJP, fixando-se o valor da presente acção em € 1.970,10 (mil novecentos e setenta euros e um cêntimo).
Verificando-se os pressupostos processuais de regularidade e validade da instância, não existindo outras questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa, cumpre apreciar e decidir:
IV – FUNDAMENTAÇÃO
Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 484º, do CPC, aplicável por remissão do artigo 63º da LJP, “Se a resolução da causa revestir manifesta simplicidade a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado”.
Da prova produzida (documental e testemunhal), constatou-se que o Demandante, em Dezembro de 2007, no exercício da sua actividade e a pedido do Demandado, procedeu ao fornecimento de material e reparação do automóvel deste, estando o mesmo reparado desde Janeiro de 2008. O fornecimento dos materiais e a reparação do automóvel foi prestado, pelo Demandante ao Demandado tendo aquele tido um acidente, aquando da reparação da viatura, que causou danos no interior frente, lado esquerdo, da mesma. Estes factos consideram-se admitidos por acordo das partes.
O fornecimento do material e reparação da viatura, do Demandado pelo Demandante, importaram na quantia de 953,48€ (novecentos e cinquenta e três euros e quarenta e oito cêntimos), correspondente à factura emitida pelo Demandante, identificada com o n.º 756 e datada de 10.04.2008 (fl. 6), a qual não foi aceite pelo Demandado, conforme resulta de carta datada de 03.07.2008 (fls. 20).
Não resultou provado que os serviços e materiais, descritos na factura a fls. 6, não tenham sido praticados e aplicados na viatura em causa, nem que os preços foram manifestamente inflacionados.
Quanto ao pedido reconvencional, resultou provado que, o Demandado interpelou o Demandante para proceder à reparação dos danos, sem resposta, decidido em finais de Fevereiro de 2008, retirar a viatura daquela oficina, e colocar a mesma, a reparar numa terceira oficina, onde despendeu a quantia de 516,62€ (quinhentos e dezasseis euros e sessenta e dois cêntimos), correspondente às facturas identificadas com os n.º 135 datada de 27.02.2008 (fl. 15) e n.º 1224 datada de 18.04.2008 (fls. 16).
Ficou provado que o Demandado utilizava diariamente a viatura em causa no exercício da sua profissão, tendo durante o período em que ficou privado desse uso se visto forçado a recorrer, designadamente, à testemunha D, que lhe emprestou o seu carro variadas vezes. Situação que se verificou durante cerca de um mês e meio. Contudo, não resultou provado o valor dos alegados prejuízos do Demandado pela imobilização da viatura.
Os depoimentos das testemunhas, E e F, não mereceram a credibilidade do tribunal, por terem demonstrando não ter conhecimento directo e pessoal da factualidade sobre a qual depunham. Quanto aos depoimentos das restantes testemunhas, as mesmas mereceram a credibilidade do tribunal, por terem deposto de modo imparcial e credível, demonstrando ter conhecimento directo e pessoal da factualidade sobre a qual depunham.
Para fixação dos factos provados concorreram os depoimentos testemunhais e os documentos juntos aos autos. A fixação da matéria fáctica dada como não provada resultou da ausência de mobilização probatória credível, que permitisse ao Tribunal aferir da veracidade dos factos, após a análise dos documentos juntos e da inquirição das testemunhas apresentadas.
IV - O Direito:
A relação material controvertida da presente acção consiste num contrato de prestação de serviços de natureza comercial, com fornecimento de materiais, na modalidade de empreitada, nos termos dos artigos 1154º, 1155º e 1207º do Código Civil, aplicáveis por remissão do artigo 63º da LJP, por via do qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço. Dispõe o artigo 883º, por remissão do n.º 1 do artigo 1211º do Código Civil, que vale como preço contratual o que o Demandante normalmente praticar.
Nos presentes autos, ficou provado que o Demandante prestou serviços de Chapeiro, com fornecimento de materiais, a pedido do Demandado, o qual não efectuou o pagamento do respectivo preço, tendo denunciado defeitos e reclamado a reparação de danos provocados pelo Demandante, aquando da reparação e no exercício da sua actividade, solicitando a sua eliminação ou a redução do preço.
Dispõem os artigos 1220º, 1221º e 1222º do Código Civil, que tendo o Demandado denunciado os defeitos da prestação de serviço e danos, solicitado a eliminação dos mesmos ou a redução do preço, encontra-se afastado o regime de presunção da culpa previsto no artigo 798º do mesmo diploma.
Face ao exposto, e porque não foi feita prova em sentido diverso, entende-se nesta parte condenar o Demandado a pagar ao Demandante o preço pelo serviço prestado no valor de € 953,48 (novecentos e cinquenta e três euros e quarenta e oito cêntimos). Contudo, considerando que no exercício da sua actividade, o Demandante causou danos na viatura do Demandante, os quais confessou, é o mesmo obrigado a repará-los nos termos do disposto no artigo 493º do Código Civil.
Assim, em virtude dos danos causados pelo Demandante na viatura, aquando da reparação da mesma, acidente por si assumido, o Demandado, após cerca de um mês e meio para aquele solucionar o problema, por sua iniciativa, levantou a viatura e recorreu a outra oficina alegando, nomeadamente, urgência no solucionamento da questão, face aos transtornos causados, resolvendo o problema de forma efectiva, alegando dispor de um crédito em relação ao Demandante que pretende ver compensado.
A compensação, como meio de extinção das obrigações, traduz-se no exercício de um direito potestativo, cujos efeitos se produzem na esfera jurídica da outra parte, mesmo sem o seu consentimento ou contra a sua vontade. No entanto, para que a compensação possa funcionar, é necessário, desde logo, que haja reciprocidade dos créditos, como dispõe o n.º 1 do artigo 847º do Código Civil, ou seja, que duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, versando ainda os pressupostos da compensação, na validade, exigibilidade, fungibilidade do objecto das obrigações, existência e validade do crédito principal.
Face ao exposto, sendo o Demandante responsável pelo pagamento dos danos por si causados na viatura do Demandado, aquando da sua reparação, opera a compensação de créditos.
Quanto aos prejuízos pela imobilização da viatura, pela consequente privação de uso, o Demandado logrou provar que se encontrou privado do uso da viatura pelo período de cerca de um mês e meio.
O dano de privação de uso de veículo consubstancia-se na impossibilidade da utilização do mesmo para os fins a que habitualmente era afecto, quaisquer que seja a sua natureza, pelo que se perante a nova circunstância de não ter veículo para a prática dos actos, que outrora eram efectuados com o mesmo, o lesado fica onerado com alteração da sua rotina diária para atingir os mesmos resultados.
Neste sentido, decidiu a Relação do Porto (Ac. RP, 10.02.2000, BMJ, 494, p. 396), que "são ressarcíveis, como danos de natureza não patrimonial, os transtornos e incómodos resultantes da privação prolongada do uso do veículo, tais como a necessidade de levantar mais cedo para ir para o trabalho e o regresso mais tardio a casa". Termos em que, sempre se dirá que se encontra justificada a obrigação de indemnizar nos termos do artigo 496º n.º 1 do Código Civil, por se encontrar indiciada a existência de gravidade objectiva determinante de tutela jurídica.
Não ficou provado o dano concreto decorrente da privação de uso do veículo. Contudo, uma testemunha referiu que durante o período de imobilização, a viatura fez bastante falta ao Demandado para a sua vida de trabalho normal, tendo chegado a emprestar-lhe a sua várias vezes. Assim, apesar de não se provar o dano em termos concretos, a questão está em saber se, em face das circunstâncias, se mostra equitativamente adequado o peticionado pela Demandante.
No Acórdão da Relação de Évora de 15-1-2004 (Proc. n.º 2070/03), entendeu-se que “1) Segundo as regras da experiência comum, a privação do uso dum veículo comporta um prejuízo efectivo na esfera jurídica do lesado, correspondente à perda temporária dos poderes de uso e fruição. 2) A privação do uso dum veículo, em consequência duma conduta ilícita e culposa do lesante, deve constituir, em si, uma dano susceptível de indemnização, através de restituição por equivalente, nos termos do artigo 566.º do Código Civil, se necessário, com recurso à equidade.” (sumário retirado de Temas de responsabilidade Civil, tomo I, Juiz Desembargador António Santos Abrantes Geraldes, Almedina, 2005).
A matéria provada esclarece que o Demandado exerce a profissão de Mecânico, utilizando a viatura em causa, diariamente, no exercício da sua profissão, e esclarece que durante o período em que esteve privado da mesma (cerca de um mês e meio), pediu pelo menos um veículo emprestado para fazer face às suas necessidades profissionais.
Ora, o simples uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano, citando para esse feito o Acórdão do STJ, de 09.05.1996 (in BMJ, n.º 457, pag. 325), tendo o Demandado ficado privado das faculdades do direito de propriedade do veículo.
Neste sentido, entendeu-se que: “a) A mera privação do uso de um veículo automóvel constitui um ilícito por impedir o proprietário de gozar de modo pleno e exclusivo os direitos de uso, fruição e disposição, nos termos do artigo 1305º do Código Civil. b) Só há lugar à aplicação do nº3 do artigo 566º do Código Civil, quando, embora alegados os danos, não foi possível calcular o respectivo valor em dinheiro. c) A privação do uso do veículo automóvel não basta, "quo tale", para fundar a obrigação de indemnizar se não se alegarem e provarem danos por ela causados”, citando o Acórdão do STJ de 08.06.2006, (no processo n.º 06A1497, identificado com o numero SJ200606080014971, http://www.dgsi.pt).
Face ao exposto, não sendo possível a restituição natural nos termos do artigo 562.º do Código de Processo Civil, nem determinado o valor exacto dos danos, opera o n.º 3, do artigo 566.º do Código Civil, nos termos do qual o Tribunal Julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.
Em face de todas as circunstâncias, entende este tribunal fixar equitativamente em € 250 (duzentos e cinquenta euros) o valor de privação de uso, correspondente ao período de um mês e meio, pois o veículo era utilizado, diariamente, pelo seu proprietário no uso da sua profissão, bem como tendo presente que o Demandado teve de recorrer a um veículo emprestado não podendo usufruir das utilidades decorrentes do uso do veículo, devido ao acto ilícito e culposo do Demandante.
Nos termos expostos, o Demandante é responsável pelos danos causados ao Demandado, nos termos dos artigos 483.º, 487.º, 562.º, 563.º e 566.º, todos do Código Civil, condenando-se parcialmente o Demandante no pedido de indemnização a título de privação de uso do veículo.
O Demandante pede ainda juros de mora, em virtude da não efectivação atempada da prestação devida, reclamando juros à taxa legal desde a citação. Contudo, tendo o Demandado denunciado os defeitos e os danos causados pelo Demandante, não reparados, em tempo, operou-se uma excepção de não cumprimento do contrato nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 1211º e artigo 428º do Código Civil, verificando-se a faculdade do Demandante recusar a sua prestação enquanto o Demandado não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo. Termos em que o Demandado não se constituiu em mora com a citação.
V – Decisão:
Face a quanto antecede, julgo parcialmente provada e procedente a presente acção, declarando a compensação recíproca de créditos do Demandante e Demandado até ao limite do crédito do segundo, por consequência, condeno o Demandante a reconhecer o direito à compensação levada a efeito pelo Demandado no valor de €766,62 (setecentos e sessenta e seis euros e sessenta e dois cêntimos) e condeno ainda, o Demandado a pagar ao Demandante o montante de €186,86 (cento e oitenta e seis euros e oitenta e seis cêntimos. Custas por ambas as partes e já liquidadas.
A sentença (processada em computador, revista e impressa pela signatária - artigo 18º da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho) foi proferida, explicada e notificada às partes nos termos do artigo 60º, da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, que ficaram cientes de tudo quanto antecede.
Registe.
Julgado de Paz de Santa Maria da Feira, em 6 de Outubro de 2008
A Juiz de Paz
(Dulce Nascimento)