Sentença de Julgado de Paz
Processo: 208/2005-JP
Relator: PAULA PORTUGAL
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVEL - CRIME DE DIFAMAÇÃO
Data da sentença: 06/23/2005
Julgado de Paz de : VILA NOVA DE GAIA
Decisão Texto Integral: SENTENÇA


I – Identificação das partes
Demandante: A, residente na Rua ..........., Vila Nova de Gaia;
Demandado: B, residente na Rua ..............., Vila Nova de Gaia.

II – Objecto do litígio
A Demandante veio propor contra o Demandado, a presente acção declarativa destinada a apreciar o pedido de indemnização cível emergente da prática de um crime de difamação, enquadrada na alínea c) do n.º 2 do Art.º 9º da Lei n.º 78/2001 de 13 de Julho, pedindo a condenação deste a pagar-lhe uma indemnização por danos não patrimoniais, no montante de € 3.000,00 (três mil euros), acrescida das custas e demais encargos.

Alegou, para tanto e em síntese, que Demandante e Demandado são casados entre si, encontrando-se separados de facto; que o Demandado tem vindo a afirmar que a Demandante teve uma relação amorosa com outro homem, referindo que esta permitia que entrasse frequentemente na casa do casal, comentando com vizinhos, com uma fotografia de um homem nu no quarto de banho da casa do casal, lançando sobre ela a suspeita de ser seu amante, o que confirmou na Contestação que apresentou no procedimento cautelar de alimentos provisórios proposto pela Demandante que correu termos no Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Gaia, onde juntou a supra referida fotografia de um individuo que a Demandante desconhece totalmente, lançando sobre esta tal calúnia, ofendendo-a na sua honra e consideração, atingindo dessa forma o seu bom nome e reputação; que se sente nervosa, magoada e revoltada, e ofendida gravemente na sua dignidade, sentindo vergonha de tais imputações que lhe são feitas pelo Demandado, nomeadamente perante pessoas amigas e/ou conhecidas, sentindo-se vexada, humilhada e incomodada, com o seu sistema nervoso alterado, o que a deixa muitas vezes inquieta e ansiosa, chegando mesmo a perder o sono.
Juntou documentos.
O Demandado foi regularmente citado, tendo apresentado Contestação, onde pugna pela improcedência da presente acção, alegando em síntese que, o único intuito da Demandante é extorquir-lhe dinheiro; que é uma pessoa só e doente; que o procedimento cautelar referido pela Demandante, terminou por transacção, homologada e transitada em julgado, valendo como sentença e tornando-se inatacável; que nunca comentou com terceiros o que quer que fosse quanto à presença de um homem estranho e nu na sua casa, pois até se envergonharia de comentar semelhante facto.

O Demandado faltou à Sessão de Pré-Mediação, não tendo justificado a sua falta, pelo que foi designada Audiência de Julgamento.

Questões a resolver:
Basicamente, importa aferir se se têm por verificados em relação ao Demandado os pressupostos de responsabilidade civil geradores da obrigação de indemnizar emergentes, in casu, da prática de um crime de difamação e em caso afirmativo, se a Demandante sofreu danos não patrimoniais correspondentes ao montante peticionado.

O Julgado de Paz é competente em razão da matéria, do território e do valor.
O processo não enferma nulidades que o invalidem totalmente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras excepções, nulidades ou quaisquer questões prévias que cumpra conhecer.

Procedeu-se ao Julgamento com observância das legalidades formais como da acta se infere.
Cumpre apreciar e decidir.

III – Fundamentação
Da prova carreada para os autos, resultaram provados os seguintes factos:
A) Demandante e Demandado são casados entre si, encontrando-se separados de facto;
B) Na Contestação que apresentou no procedimento cautelar de alimentos provisórios proposto pela Demandante que correu termos no Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Gaia, o Demandado juntou a fotografia de um individuo aparentemente nu supostamente no quarto de banho da habitação do casal.

Motivação dos factos provados:
Para dar como provados os factos supra descritos, o Tribunal fundou a sua convicção na confissão do Demandado expressa na sua contestação, bem como no doc. de fls. 4 a 12.

Não foi provado que:

I. O Demandado tem vindo a afirmar que a Demandante teve uma relação amorosa com outro homem, referindo que esta permitia que entrasse frequentemente na casa do casal, comentando com vizinhos, com uma fotografia de um homem nu no quarto de banho da casa do casal, lançando sobre ela a suspeita de ser seu amante, o que a faz sentir vergonha nomeadamente perante pessoas amigas e ou conhecidas, sentindo-se vexada, humilhada e incomodada, com o seu sistema nervoso alterado, inquieta e ansiosa, chegando mesmo a perder o sono.

Motivação dos factos não provados
Tal facto resultou não provado em virtude da ausência de mobilização probatória para o sustentar.
Na verdade,
Todas as testemunhas arroladas declararam que nunca chegaram a ver as tais fotografias, tendo sido a Demandante que lhes falou da sua existência nos autos do Procedimento Cautelar e que nunca ouviram o Demandado dizer publicamente que a mulher lhe era infiel.

IV – Do Direito

Iniciaram-se os presentes autos com o requerimento da Demandante que imputava ao Demandado a prática de factos susceptíveis de integrarem, em abstracto, a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo Art.º 180º do Código Penal.

Pratica o crime de difamação, nos termos do n.º 1 do referido Artigo, “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo...”.
Sendo certo que o Julgado de Paz não tem competência para condenar em sede criminal, o pedido de indemnização cível decorrente da prática de certos crimes, nomeadamente, do crime de difamação, que se insere nas competências do Julgado de Paz – alínea c) do n.º 2 do art.º 9º, da Lei n.º 78/2001 de 13 de Julho - não obstante não ser deduzido no processo penal respectivo, já que a instauração no Julgado de Paz de uma acção deste jaez, pressupõe que o Demandante prescinda da apresentação de uma participação criminal ou a desistência da mesma, tem como causa de pedir a prática de um crime.

“A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”, conforme dispõe o Artigo 129º do Código Penal.

Por seu lado, diz o Art.º 483º do C. Civil, que, “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Daqui decorre que são elementos constitutivos da responsabilidade civil extracontratual: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, só surgindo o dever de indemnizar quando, cumulativamente, se verifiquem tais requisitos.

No caso vertente, a Demandante não logrou provar, sendo certo que era a esta que cabia esse ónus - Art.º 342º do Código Civil – ter o Demandado vindo a afirmar que aquela teve uma relação amorosa com outro homem, que permitia que entrasse frequentemente na casa do casal, comentando com vizinhos, com uma fotografia de um homem nu no quarto de banho do casal, lançando sobre ela a suspeita de ser seu amante, antes, da prova produzida apurou-se que todas as testemunhas arroladas tomaram conhecimento de tais fotografias pela boca da própria Demandante.
Resultou sim provado a junção pelo Demandado aos autos do Procedimento Cautelar de Alimentos Provisórios instaurado contra si pela Demandante, que correu termos no Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Gaia, da supra referida fotografia, providência essa que terminou por transacção.
Estamos, pois, perante uma situação de eventual prática do crime de difamação em articulado processual.

No entanto, o Demandado terá agido ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude prevista no art.º 31º, n.º 2, al. b), do C. Penal, no exercício de um direito, o direito de defesa.
Na verdade, se ele alegadamente encontrou as fotografias em casa e tinha razões para criar suspeitas de um envolvimento extraconjugal da Demandante, tinha direito de o provar.
Ora, se a Demandante queria provar que tais suspeitas eram descabidas, deveria ter optado por deixar o processo prosseguir porque era ali o sítio próprio para se discutir se tal era ou não verdade.
Ao ter travado o processo, aceitando uma transacção, a Demandante não quis mais discutir o problema, pelo que a sua atitude nestes autos consubstancia um verdadeiro “venire contra factum proprium”, aqui, concretamente, sob a forma de “suppressio” – o direito que não foi exercido em certas condições não pode mais sê-lo - logo, uma forma de abuso do direito, proibida pela ordem jurídica.

Aliás,
circunstância não despicienda é o facto de que um processo judicial se apresenta, por vezes, como um combate legalizado entre partes, sob a arbitragem de um terceiro imparcial.
Aqui, no calor da contenda, admitem-se alegações e imputações inadmissíveis em situação diversa, desde que as mesmas se possam enquadrar no direito à justa defesa da causa e atentas as circunstâncias em que as mesmas foram proferidas, se em animus defendendi e não em animus difamandi. No caso vertente, cremos que tal fotografia e expressões que a suportam não possuem dignidade bastante para responsabilizar criminalmente o Demandado, na medida em que as mesmas não revestem a objectividade suficiente para considerar o facto como criminoso e por se considerar afastado o elemento subjectivo do tipo de ilícito, o dolo.
De facto, sendo tal imputação indispensável à defesa da causa, não é ilícita – n.º 3 do art.º 154º do C. Processo Civil.

De qualquer modo, sendo elemento determinante da prática do facto previsto no art.º 180º do C. Penal – “Quem dirigindo-se a terceiros…” – fica-nos a dúvida, se o Juiz e os Tribunais em geral, poderão ser considerados terceiros para efeitos da prática de um crime de difamação. Até que ponto a exigência legal da intervenção de terceiros se pode compaginar com o âmbito restrito de um processo judicial…

Assim sendo, estando o Demandado absolvido da prática de um facto ilícito que a lei configura como crime, é evidente que o mesmo não pode ser condenada a pagar à Demandante o montante peticionado a título de indemnização por danos não patrimoniais.

V – Decisão

Face a quanto antecede, julgo improcedente a presente acção, e, por consequência, absolvo do pedido o Demandado.

Declaro a Demandante como parte vencida, correndo as custas por sua conta com o correspondente reembolso ao Demandado, em conformidade com os Artigos 8º e 9º da Portaria n.º 1456/2001 de 28 de Dezembro.
Registe. Notifique.

Vila Nova de Gaia, 23 de Junho de 2005
A Juiz de Paz
(Paula Portugal)

Processado por computador Art.º 138º/5 do C.P.C.
Revisto pelo Signatário.
Julgado de Paz de Vila Nova de Gaia