Sentença de Julgado de Paz
Processo: 46/2008-JP
Relator: LUÍS FILIPE GUERRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
Data da sentença: 12/31/2008
Julgado de Paz de : PORTO
Decisão Texto Integral: SENTENÇA
A, com os demais sinais nos autos, propôs a presente acção declarativa contra B, ao abrigo do artigo 9º, nº 1 h) da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 4.445,00 €, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, desde a citação até ao integral pagamento.
Alegou, para tanto e em síntese, que é proprietário de todas as quatro fracções de um prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito no concelho de Santa Maria da Feira, tendo, nessa qualidade, celebrado com a demandada, um contrato de seguro na modalidade de multirriscos/habitação, titulado pela apólice nº x, que cobria, entre outros, os danos causados por tempestades, inundações e danos por água, sendo certo que, entre os dias 23 e 24 de Outubro de 2006 (a referência ao mês de Novembro na petição inicial decorreu de mero lapso de escrita, como se constatou no decurso da audiência de julgamento), ocorreu uma inundação no seu imóvel acima identificado, por efeito de transbordo do respectivo depósito de água, decorrente de avaria na bóia do mesmo, a qual lhe causou danos diversos que computa no valor do seu pedido.
Para prova dos factos por si alegados, o demandante juntou doze documentos (fls. 15 a 70).
Regularmente citada (cfr. fls. 87), a demandada apresentou contestação, recusando estar obrigado a indemnizar o demandante, por entender que os danos verificados estão fora do âmbito de protecção do respectivo contrato de seguro e alegando em suma que, aquando da peritagem, realizada em 5 de Dezembro de 2006, a laje do forro do telhado estava completamente seca, apresentando bastante acumulação de pó, designadamente junto ao depósito de água, e que este não tinha sistema de escoamento de água em caso de avaria, pelo que, a haver danos decorrentes da causa alegada pelo demandante, este terá contribuído para os mesmos, sendo certo, em qualquer caso, que a sua liquidação é exagerada.
Para prova dos factos por si alegados, a demandada juntou oito documentos (fls. 97 a 116).
Não se realizou pré-mediação, dado que a demandada renunciou tacitamente à mesma, pelo que o processo seguiu para julgamento, tendo-se realizado a respectiva audiência com observância do formalismo legal.
O Julgado de Paz é competente em razão do objecto, da matéria, do território e do valor (artigos 6º; 9º, nº 1 h); 12º, nº 1 e 8º, respectivamente, da Lei nº 78/2001 de 13 de Julho).
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há excepções, nulidades ou quaisquer questões prévias de que cumpra conhecer.
FACTOS PROVADOS:
1. O demandante, em comum com a sua mulher, C, é o dono e legítimo possuidor de um prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, composto por cave, rés-do-chão e primeiro andar, sito no concelho de Santa Maria da Feira;
2. O demandante celebrou com a demandada, um contrato de seguro na modalidade de Multirriscos/Habitação VIP, titulado pela apólice nº x, com uma cobertura base que garante, entre outros, os riscos decorrentes de tempestades, inundações e danos por água.
3. Na manhã do dia 24 de Outubro de 2006, o demandante foi alertado para a entrada de água no tecto da parte comum das duas fracções, “A” e “B”, situadas ao nível do 1º andar, tendo vindo a constatar que a cozinha desta última tinha água no tecto e no chão, o mesmo acontecendo no corredor e sala de jantar dessa mesma fracção, bem como nas escadas e na cozinha da fracção “A”.
4. Na altura, o demandante supôs que se tratava de uma infiltração de água por efeito do temporal havido na véspera e, nessa conformidade, participou a ocorrência ao seu mediador de seguros, D, na pessoa do E.
5. Na noite do mesmo dia, pese embora o tempo ter estado seco, o demandante deparou-se com o escorrimento abundante de água pelos tectos da cozinha, corredor e sala de jantar da fracção “B”, tecto e corredor da fracção “A” e tecto e paredes interiores da escadaria.
6. Em face disso e para tentar solucionar o problema, o demandante chamou a sua casa, num dos dias seguintes, um técnico especializado, o qual foi ao sótão verificar o depósito de água e constatou que a bomba que puxava água para o mesmo estava a funcionar sem parar, por avaria da respectiva bóia.
7. Por conseguinte, a água tinha transbordado e continuava a escorrer para o chão e daí para a parte inferior do edifício, pelas paredes abaixo.
8. O referido técnico procedeu, então, à substituição da bóia do depósito de água, tendo solucionado o problema e feito cessar a inundação.
9. Em consequência do sucedido, as paredes da escadaria interior do edifício, incluindo o hall de entrada, bem como algumas paredes da fracção “B”, e o rodapé em madeira de um e outra, ficaram danificados e a carecer de reparação.
10. Para proceder à reparação destes danos, é necessário gastar a quantia de 2.750,00 €, acrescida do IVA à taxa legal.
11. Além disso, três carpetes do demandante molharam-se e, depois de secas, ficaram manchadas.
12. A demandada enviou ao local um perito independente cerca de mês e meio depois do sinistro, o qual entendeu não ser possível responsabilizar a mesma pelos prejuízos alegados pelo demandante.
13. O depósito não possui qualquer sistema de escoamento de água em caso de avaria.
14. Aquando da peritagem, a laje do sótão encontrava-se seca e com pó acumulado.
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a boa decisão da causa.
CONVICÇÃO PROBATÓRIA
Os factos provados resultaram da ponderação cuidadosa dos diversos depoimentos prestados, designadamente da testemunha F, no que respeita aos factos 3, 4 e 11, de G, quanto aos factos 6 a 8 e 13; H, em relação aos factos 5 e 9 a 11; I, no que respeita aos factos 12 e 14; e J, quanto aos factos 12 a 14, sendo certo que os mesmos só foram valorados positivamente quanto a essa matéria, não parecendo suficientemente convincentes em relação a outros factos. Quanto ao mais, foram determinantes os documentos apresentados por demandante e demandada (com excepção do documento 4B, junto com a petição inicial), bem como o acordo das partes, nomeadamente quanto aos factos 1, 2 e 4.
DO DIREITO:
De acordo com o Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, que entra amanhã em vigor (mas que pode desde já servir-nos de referência), “por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.
O contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual, tendo a lei carácter supletivo, pelo que é o respectivo clausulado que delimita os direitos e obrigações das partes.
No caso dos autos, o demandante e a demandada celebraram um contrato de seguro de multi-riscos habitação que, entre outros, garante os danos por água (cfr. artigo 3º das respectivas condições gerais), entendendo-se estes como os provenientes, súbita e imprevisivelmente, de rotura, defeito, entupimento ou transbordamento da rede interna de distribuição de água e esgotos do edifício (cfr. artigo 7º, nº 4 das mesmas condições gerais).
Portanto, verificando-se danos por água, a demandada obrigou-se a pagar ao demandante uma quantia indemnizatória que lhe permita ressarcir-se dos prejuízos sofridos, até ao limite de 400,000 €, no caso do edifício, e de 43.300,00 €, no caso do recheio da habitação, como decorre das condições particulares do respectivo contrato de seguro, constantes de fls. 27 dos autos.
Na situação em apreço, houve um transbordo de água por efeito da avaria de um componente da rede interna de distribuição de água, neste caso a bóia do depósito, tal como decorre dos factos provados.
Assim sendo, não há dúvida de que o risco em causa está coberto pelo contrato de seguro estabelecido entre demandante e demandada.
A demandada declinou a sua responsabilidade, alegando nomeadamente que os danos invocados pelo demandante não decorriam da referida avaria, já que, se assim fosse, a laje do sótão em que estava apoiado o depósito tinha que apresentar sinais de humidade, aquando da realização da peritagem. Porém, esse facto, constituindo porventura um indício significativo, não é por si só decisivo, atendendo ao tempo decorrido entre a ocorrência do sinistro e a data da peritagem. Por outro lado, também não é decisivo o facto do perito ter encontrado muita água empoçada na cave da habitação do demandado cuja origem não podia ser explicada pelo referido transbordo do depósito, uma vez que este não é incompatível nem exclui a entrada de água das chuvas para o piso inferior do imóvel por efeito de intempéries, tal como pareceu ao mesmo ter acontecido. De resto, a prova produzida e considerada decisiva a este respeito, mormente o testemunho do técnico que reparou a bóia do depósito, apontou em sentido diverso da tese da demandada.
Assim, estando estabelecido o nexo de causalidade entre o facto aleatório previsto no contrato e os danos verificados, tal como decorre da matéria de facto provada, a demandada tem a obrigação contratual de indemnizar o demandante.
Os danos sofridos pelo demandante têm uma parte líquida e outra que não foi possível quantificar. Com efeito, o valor das carpetes deterioradas em virtude do contacto com a água não ficou provado, pelo que não foi possível tão-pouco liquidar o respectivo prejuízo, tanto mais que também não se provou a extensão e a intensidade da deterioração nem que as mesmas tenham ido para o lixo.
Do mesmo modo, não se provaram quaisquer outros danos, designadamente ao nível do soalho da garrafeira ou dos móveis do demandante.
Por outro lado, o depósito de água não tinha sistema de escoamento em caso de avaria (o chamado “tubo ladrão”), sendo certo que o mesmo é normal e aconselhável, justamente para evitar este tipo de ocorrências, segundo explicaram as testemunhas conhecedoras desta matéria.
A demandada entende haver aqui, por força dessa falha, culpa do lesado, com repercussão na repartição de responsabilidades pelas consequências do sinistro (cfr. artigo 570º do Código Civil).
Mas a questão não é assim tão simples. A demandada teria certamente razão se o demandante soubesse da falha acima aludida e a tivesse ocultado ou omitido à primeira na altura da celebração do contrato de seguro. Se isso tivesse acontecido, poder-se-ia equacionar uma solução semelhante àquela que preconiza o artigo 26º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, acima citado. Porém, esse facto não foi alegado nem demonstrado.
Assim sendo, a relevância que possa ter a inexistência do referido “tubo ladrão”, no plano jurídico (já que no plano fáctico essa relevância é evidente), tem que ser aferida em face do princípio da boa fé (artigo 762º, nº 2 do Código Civil). Ora, a este respeito, há dois factos que chamam a atenção: em primeiro lugar, a existência ou não de sistema de escoamento não parece ter condicionado a vontade de contratar da demandada, pelo que esta assumiu o risco inerente ao contrato de seguro celebrado, independentemente da verificação de tal facto; e, em segundo lugar, a demandada não propôs ao demandante, posteriormente à ocorrência do sinistro, a alteração do contrato ou a cessação do mesmo em virtude da falta do referido sistema de escoamento - pelo menos tanto quanto foi possível apurar em face da matéria de facto carreada para os autos - conformando-se com a mesma.
Deste modo, a nosso ver, a demandada não se pode prevalecer do facto acima aludido para fazer diminuir a sua obrigação de indemnização.
DECISÃO:
Nestes termos, julgo a presente acção parcialmente procedente e provada e, por via disso, condeno a demandada a pagar ao demandante a quantia indemnizatória de 3.300,00 € (três mil e trezentos euros), IVA incluído, acrescida do montante que vier a ser liquidado oportunamente respeitante à deterioração dos tapetes deste último (cfr. artigo 661º, nº 2 do CPC), bem como dos juros moratórios, à taxa legal, desde a citação até ao efectivo e integral pagamento.
Custas por demandante e demandada na proporção do respectivo decaimento, fixando-se as mesmas em 20% para o demandante e em 80% para a demandada.
Porto, 31 de Dezembro de 2008
O Juiz de Paz,
Luís Filipe Guerra