Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ADEODATO BROTAS | ||
Descritores: | CONTRATO DE ARRENDAMENTO RESOLUÇÃO USO PARA FIM DIVERSO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | Sumário (artº 663º nº 7 do CPC) 1-As circunstâncias fundamentadoras da resolução do contrato inserem-se na relação jurídica duradoura de arrendamento, por isso, mesmo aos contratos anteriormente celebrados, é aplicável a Lei Nova (Lei 31/2012), quando os fundamentos da resolução do contrato ocorram na vigência dessa Lei Nova (artº 12º nº 2, 2ª parte, do CC). 2- Somente se pode considerar lícito o uso do locado para fim diverso, para efeitos do artº 1083º nº 2, al. c) do CC, desde que: i)- Esse uso corresponda, estritamente, ao exercício de uma actividade íntima e funcionalmente ligada à actividade clausulada; ii)- Que, não tenha sido excluída pelo contrato; e, iii)- Seja de presumir a sua não exclusão por um locador normal colocado na situação do senhorio. 3- A utilização da sobreloja do locado para exposições de artes plásticas, leituras encenadas, concertos e exploração do café/bar, quando o contrato de arrendamento estipula que “…é destinada somente a negócio de livraria e de mobiliário escolar e, por isso, nenhum outro uso ou destino lhe será dado sem o consentimento escrito dos senhorios, reconhecido por notário”, consubstancia um uso do locado para fim diverso daquele a que se destina e, por conseguinte, insere-se na previsão da alínea c) do nº 2 do artº 1083º do CC. 4-O corpo do nº 2 do artº 1083º do CC é auto-suficiente: abrange qualquer eventualidade que integre um incumprimento objectivo do contrato cuja gravidade ou consequências torne inexigível a manutenção do contrato. Já as cinco alíneas do nº 2 do artº 1083º correspondem a situações típicas de incumprimento aptas a preencher o quantum necessário de gravidade e de consequências para ditar a inexigibilidade da manutenção do contrato. 5- O uso para fim diverso tem um conteúdo negativo tão forte que a sua gravidade dispensa a demonstração da “gravidade e consequências que torne inexigível a manutenção do contrato”, facultando ao senhorio a respectiva resolução; tanto mais que o legislador, na reforma de 2012 do RAU (Lei 31/2012), acrescentou expressamente ao corpo da al. c) do nº 2, a expressão “…ainda que a alteração do uso não implique maior desgaste ou desvalorização para o prédio”, eliminando, na prática, a necessidade de verificação de uma situação de “gravidade” ou “consequências” que tornem inexigível, para o senhorio, a manutenção do arrendamento. 6- À luz da boa fé, que rege a celebração e a execução dos contratos, não é exigível ao senhorio ter de “suportar” a manutenção/continuação de um arrendamento em que o inquilino passou a exercer actividade diversa daquela que foi estipulada e, que o próprio contrato excluía. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes desembargadores que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa: I-RELATÓRIO 1-Critalfran, SA, AA e, BB, instauraram acção declarativa, com processo comum, contra, Augusto Sá da Costa, Lda, pedindo: - A declaração de resolução do contrato de arrendamento e a condenação da ré a desocupar o locado entregando-o livre de pessoas e bens; - Condenação da ré no pagamento de quantia monetária, desde a resolução do contrato até à entrega efectiva, em valor correspondente ao da renda actualizada. Alegaram, em síntese, que são proprietárias e senhorias do imóvel que constitui o locado em questão nos autos, o qual foi arrendado à Ré pelos ante proprietários, em 17/07/1942, com destinando, exclusivamente, aos negócios de livraria e de mobiliário escolar, não lhe podendo ser dado outro destino sem consentimento escrito dos senhorios; em Novembro de 2022, tomaram conhecimento de que a ré, sem o consentimento das senhorias, se dedica no locado às actividades de venda de vários bens, como azulejos, antiguidades, objectos de decoração e mobiliário, entre outros, e que tem vindo a explorar uma galeria de arte, realizando eventos regulares no espaço e, ainda, vem mantendo em funcionamento um café/pastelaria, tudo no piso superior do locado, com entrada pela Rua 1, enquanto que a livraria está confinada ao rés-do-chão, com entrada pela Rua 2; que este circunstancialismo fáctico constitui fundamento para a resolução do contrato e subsequente despejo, do que interpelaram a ré, em 14/12/2022, com fundamento que as actividades descritas não se enquadram no conceito de livraria e constituem uso diverso do locado dos permitidos no contrato e, solicitaram a entrega do locado até 31/12/2022. Invocam os artºs 1038º, al. c) e 1083º nº 2, al. c) do CC. 2- Citada, a ré contestou. Impugna parcialmente a matéria de facto, referindo que os livros dentro das vitrines fotografadas foram delas retirados no início de 2020. Invoca que a utilização da “sobreloja” para realização de eventos culturais, que são amplamente divulgados, incluindo na comunicação social, acontecem desde 2016, constituindo uma actividade conexa e complementar, relativamente à principal, que sempre foi de livraria e, tem por finalidade atrair público; sendo certo que a ré é, e sempre foi, uma instituição cultural de referência na cidade de Lisboa, tendo esta realidade constituído um esforço, à semelhança de outras livrarias, para estimular a presença de clientes no estabelecimento e, assim, potenciar o crescimento do negócio de venda de livros. Para além disso, alegou que as autoras há muito que têm conhecimento desta realidade, pelo que a propositura desta acção configura um abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium. As autoras tinham conhecimento que o modelo de actividade da ré foi implementado no âmbito do plano de insolvência da ré, que foi amplamente publicitado e decidiram instauração da acção de despejo quando tomaram conhecimento da aprovação do plano, sendo que anteriormente, enquanto a ré exercia actividade como Massa Insolvente, nada disseram nem manifestaram qualquer desacordo. Que a vontade das partes ao celebrar o contrato há mais de 80 anos tem de ser interpretada actualisticamente em termos de as livrarias levarem a cabo todo um conjunto de eventos e actividades culturais e artísticas que estejam em estrita ligação com os livros. 3- Designada data para audiência prévia nela as partes requereram a suspensão da instância, com vista a conciliação, que foi deferida. Frustrada a conciliação foi elaborado despacho saneador, indicado o objecto do litígio e os temas de prova. 4- Em 10/02/2025 realizou-se a audiência final e, com data de 17/02/2025 foi proferida sentença, com o seguinte teor decisório: “III. DECISÃO Pelo exposto, o Tribunal julga a presente acção improcedente, por não provada, e, em consequência, decide absolver a Ré de todos os pedidos contra si formulados na acção. Custas pelas Autoras.” 5- Inconformadas, as autoras interpuseram o presente recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES: 1.ª A decisão prolatada pelo Tribunal Recorrido não resultou de uma apreciação imparcial da prova produzida nos autos e do direito aplicável, mas, sim, de um (i) preconceito do julgador quanto à verdadeira vontade das Recorrentes e de (ii) um pré-julgamento quanto ao mérito do litígio, confessados pelo próprio Tribunal a quo antes da audiência final, que conduziram a uma sentença manifestamente parcial. 2.ª Assim, a posição assumida pelo Tribunal a quo nos presentes autos culminou com a decisão de que, no caso do arrendamento, para livraria e venda de mobiliário escolar, de um locado com dois pisos (de áreas semelhantes), destinar a totalidade de um desses pisos a exploração de um café/restaurante e de uma galeria de arte não consiste num uso diverso do locado. 3.ª O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, nos pontos 5 a 7 dos Factos Provados e no ponto a) dos Factos Não Provados, ao ter não julgado assente que as Recorrentes só tiveram conhecimento do uso do locado para um fim diverso em finais de 2022, conforme resulta das regras do ónus da prova (que cabia à Recorrida) e da prova testemunhal produzida (testemunha CC). 4.ª Verifica-se um erro de julgamento, quanto nos pontos 5 a 7 dos Factos Provados e ao ponto a) dos Factos Não Provados, no sentido de o Tribunal a quo ter julgado que, no âmbito da apreciação da situação de abuso de direito, cabia às Recorrentes fazer prova de que não autorizaram ou consentiram tacitamente no uso diverso do locado, uma vez que se trata de uma exceção (perentória) e, por conseguinte, o ónus da prova sobre quem a invoca – que, no presente caso, é a Recorrida. 5.ª A jurisprudência afirma que “sendo o abuso do direito matéria de excepção peremptória impende sobre a Requerida que a invoca o ónus da prova dos factos que integram os respectivos pressupostos” (Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 20/12/2019, Processo n.º 02824/18.3BEBRG, Relatora ISABEL COSTA, disponível em Acórdão de 2019-12-20 (Processo nº 02824/18.3BEBRG) | DR. 6.ª Impugna-se o Ponto 9. dos Factos Provados constante da Sentença ora recorrida, na medida em que resulta da prova documental junta aos autos que não se encontram quaisquer livros em exposição no piso superior do locado. 7.ª A Sentença padece de erro de julgamento, quanto à matéria de facto, quanto ao Ponto 15. dos Factos Provados, dado que se trata de conclusão de Direito e porque resulta da prova documental e do Facto Provado 8. da Sentença que o restaurante/café tem um fim totalmente distinto da livraria, impugnando-se a Sentença nestes termos. 8.ª Verifica-se um erro de julgamento ao ter sido considerado, no Facto Provado 22., como assente, a atribuição do estatuto de Loja com História à livraria explorada pela Recorrida, na medida em que a atribuição do estatuto de Loja com História não avalia a relação contratual entre o inquilino titular do respetivo estabelecimento e o(s) seu(s) senhorio(s), nem tal estatuto permite ao inquilino do respetivo estabelecimento contornar as regras legais e contratuais do arrendamento, pelo que se deverá proceder à revogação do Ponto 22 dos Factos Provados. 9.ª As Recorrentes impugnam o julgamento da matéria de facto, uma vez que, em face da prova documental (nomeadamente do Doc. 3 junto com a Contestação da Recorrida de 20/10/2023), deverá ser considerado assente que as Recorrentes se opuseram, antes de a Recorrente conferir uso diverso do locado, a tal uso diverso. 10.ª A afetação, pela Recorrida, do segundo andar do locado para a exploração de uma galeria de arte e restaurante/café, constitui um uso do locado diverso do fim contratualmente permitido, pelo que a Sentença padece de erro de julgamento de Direito, por violação das normas constantes do artigo 1038.º, alínea c), e artigo 1083.º, n.º 2, alínea c), do Código Civil. 11.ª O Tribunal de 1.ª instância incorreu em erro de julgamento de Direito ao não ter considerado que se verificava um uso do locado para fim diverso que, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 1083.º do Código Civil, concedia às Recorrentes o direito à resolução do contrato de arrendamento. 12.ª A Sentença ora recorrida padece de erro de julgamento de Direito ao não ter sido considerado na mesma que o incumprimento contratual, por parte da Recorrida, ao usar o locado para fim diverso do contratualmente previsto, torna inexigível a manutenção do contrato de arrendamento, nos termos previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 1083.º do Código Civil, conforme defende a doutrina - “O desvio do uso contende com o 1038.º, c) e com o 1067.º/2. É seguramente muito grave: invade a ordem dominial, implica a quebra da confiança e traduz um risco potencial para a coisa. As consequências não relevam, para mais após a reforma de 2012. A resolução procede mesmo quando o desvio do uso seja pequeno ou reversível” (cf. Januário da Costa Gomes / Cláudia Madaleno, Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, [s.l.], Almedina, 2014, p. 238). 13.ª Não se verifica uma atuação em abuso de direito por parte das Recorrentes uma vez que estas sempre se opuseram à exploração de atividades económicas distintas de livraria no locado, conforme resulta dos factos a considerar assentes em resultado da impugnação da matéria de facto ora aduzida. 14.ª Reconhece a jurisprudência que “Constando do contrato escrito de arrendamento que não pode haver mudança de uso do arrendado nem sublocação sem autorização escrita do senhorio notarialmente reconhecida, cabe ao arrendatário o ónus da prova dessa autorização, que só pode acontecer pela prova da existência dessa autorização escrita.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/04/1993, Processo n.º 0066981, Relator HUGO BARATA, disponível em Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa). 15.ª Improcede a exceção de abuso de direito que o Tribunal julgou verificada contra as Recorrentes porque a Recorrida não formou (nem podia ter formado), com base na atuação das Recorrentes, uma situação de confiança no sentido de poder usar o locado para um fim diverso daquele que foi contratualmente acordado. 16.ª Não se encontram reunidos os pressupostos de aplicação do instituto do abuso de direito, concluindo-se, por conseguinte, que o Tribunal Recorrido incorreu em erro de julgamento da matéria de Direito - por violação da norma contida no artigo 334.º do Código Civil - ao ter considerada reunida a exceção de abuso de direito, e, por conseguinte, a Sentença deverá ser revogada neste ponto. 17.ª O Tribunal ad quem deverá proferir decisão judicial que reconheça o direito à resolução do contrato às Recorrentes e, deste modo, determinar a condenação da ora Recorrida nos pedidos da Recorrentes. NESTES TERMOS, deve a Sentença proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa a 17 de fevereiro de 2025, Ref.ª 42713966, ser revogada, sendo condenada a Recorrida nos pedidos. 6- A ré/recorrida contra-alegou, formulando as seguintes CONCLUSÕES: A) As AA., ora Recorrentes, interpuseram recurso da douta decisão proferida nos presentes autos baseando-o, essencialmente, no facto de, no entender destas, a decisão proferida pelo Tribunal a quo não ter resultado de uma “apreciação imparcial da prova produzida nos autos e do direito aplicável, mas sim, de um (i) preconceito do julgador quanto à verdadeira vontade das Recorrentes e de (ii) um pré-julgamento quanto ao mérito do litígio (…)”. B) No entanto, não lhes assiste razão, como adiante se irá demonstrar. C) Na verdade, não existe qualquer fundamento legal para considerar que não existiu uma apreciação imparcial da prova produzida nos autos e do direito aplicável, mas, sim, um preconceito do julgador quanto à verdadeira vontade das Recorrentes, uma vez que a Meritíssima Juíza, no âmbito do exercício das suas competências tem o dever de promover a composição do litígio bem como a conciliação entre as partes antes do início da audiência de julgamento, conforme o fez. D) Em nenhum momento a Meritíssima Juíza adoptou uma posição, que não tivesse em vista a justa e correcta apreciação dos factos, documentos e elementos que foram carreados para os autos, tendo proferido a sua decisão com base na análise critica da prova que foi produzida pelas partes. E) Por outro lado, entendem as Recorrentes que houve um erro de julgamento nos pontos 5 a 7 dos factos provados e no ponto a) dos Factos não provados, ao ter sido não julgado assente que as Recorrentes só tiveram conhecimento do uso do locado para um fim diverso em finais de 2022. F) Foi objectivo principal das Recorrentes, tentarem provar que, durante quase 10 anos, não tinham conhecimento do que a R., ora Recorrida, tinha à venda no seu estabelecimento aberto ao público desde as 9.30h até à meia noite, durante todos os dias do ano, o que não lograram fazer. G) De facto, não é concebível que as AA. não tivessem tomado conhecimento desde a data de reabertura do estabelecimento de tudo o que a R, (ainda enquanto massa insolvente, conseguiu recuperar esse espaço que se encontrava degradado), vendia e fazia no estabelecimento, quando a sua reabertura foi marcada por uma exposição amplamente divulgada que esteve patente ao público durante três (3) meses. H) Aliás, resulta provado pela conjugação do ponto 13 e ponto 14 da Douta Sentença, que os eventos culturais organizados pela Ré no locado eram anunciados publicamente e noticiados pela comunicação social desde 2016. I) Importa, aliás, referir que no Doc. 11 junto com a P.I. pelas Recorrentes, a R. menciona uma exposição ocorrida em 2016, que teve a presença do Sr. Presidente da República que dela falou aos órgãos de comunicação social, conforme adiante melhor se explica. J) É, por isso, manifestamente inverosímil a versão das Recorrentes, de que por si ou através de pessoas suas conhecidas, só tenham conhecimento em Novembro de 2022 do que ocorria no locado. K) Por tal motivo, é mais do que legítimo assumir que, a Ré logrou provar de que não corresponde à verdade que as Autoras apenas tivessem conhecimento da forma como a R. está a exercer a sua actividade de comércio de livraria em Novembro de 2022, dado que essa informação é um facto notório e público, nunca tendo manifestado qualquer desacordo a esse respeito. L) Pelo que, alegar um pretenso direito à resolução do contrato de arrendamento por um uso diferente do locado, constitui abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, sobretudo por estar em causa um plano de insolvência e recuperação da livraria (vd. ponto 20 dos factos provados da Douta Sentença). M) Importa, igualmente referir que, conforme resulta do ponto 19 da Douta Sentença, a Ré encontra-se a exercer a sua actividade dentro de um conceito actual de “negócio de livraria”. N) Antes ainda da análise das razões invocadas pelas Recorrentes para considerarem que houve um erro de julgamento nos pontos 5 a 7 dos factos provados da Douta Sentença, importa esclarecer que nas suas alegações as Recorrentes utilizam premissas que não correspondem à verdade dos factos, para alicerçar as suas conclusões. O) Por outro lado, não podemos esquecer que o Contrato de Arrendamento remonta ao ano de 1943, em que o contexto histórico, político, social e cultural dessa época era completamente diferente da atualidade, sendo esta diferença de realidades, salvo o devido respeito e melhor entendimento, crucial para o enquadramento jurídico da situação em análise nos presentes autos. P) As Recorrentes insistem, também, em usar a expressão “novos estabelecimentos que não tem qualquer correspondência com a realidade. Q) Ou seja, no presente recurso, as Recorrentes “moldam” alguns dos factos e trazem outros novos, que não correspondem à realidade de modo, nem se encontram provados para tentar justificar as suas pretensões, não justificáveis. R) Por último, os Recorrentes tentaram ainda encontrar justificação para o que não lograram provar durante a audiência de julgamento. S) Com efeito, salvo o devido respeito e melhor entendimento, a verdade, é que o Tribunal a quo fez uma correcta interpretação quer dos factos quer das provas produzidas. T) No que respeita especificamente aos factos dados como provados que as Recorrentes entendem que devem ser alterados deverá dizer-se que, quanto aos factos 5 e 7, resulta evidente que não há qualquer motivo para a alteração pretendida pelas Recorrentes. U) A actividade da Recorrida, conforme esta explicou na sua contestação, tem sido publicamente divulgada desde que os actuais gerentes de início na qualidade de gestores do estabelecimento, lhe deram uma nova dinâmica para tentar a sua recuperação. V) O estabelecimento da Recorrida situa-se no Chiado muito perto da “Brasileira” e está aberto ao público todos os dias entre as 9h30m e as 00h, pelo que não é de todo credível que as Recorrentes não tenham tomado conhecimento da atualização promovida pelos gestores do estabelecimento da atividade de comércio de livraria a que a Recorrida se dedica. W) Acresce que, uma das comproprietárias do prédio, a Critalfran S.A., tem a sua actividade no mesmo edifício onde se situa o estabelecimento da Recorrida. X) Também não é credível que as Recorrentes tenham vivido alheadas das notícias, da divulgação dos eventos e do espaço em si aberto ao público todos os dias da semana até às 00h. Y) Do atrás exposto, dúvidas não podem restar que as Recorrentes tinham conhecimento do plano de insolvência e do respectivo conteúdo no qual se encontra explicado qual o âmbito do “negócio de livraria” que a Recorrida se propõe desenvolver. Z) Por tal motivo se, na qualidade de senhorios, pretendiam reclamar do conteúdo do Plano de Insolvência, deveriam ter manifestado tal posição no próprio Processo de Insolvência para que a questão pudesse ser analisada antes da aprovação e homologação do Plano nos termos do qual a Recorrida se comprometeu ao pagamento, em prestações mensais, das dívidas à Autoridade Tributária, Segurança Social e aos trabalhadores, entre outras, reclamadas no Processo de Insolvência. AA) Salvo o devido respeito e melhor entendimento, é entendimento da Recorrida que se encontra demonstrado que não merece qualquer censura a redação dada pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo aos factos 5 a 7 da matéria provada, bem como à redacção do facto dado como não provado na Douta Sentença. BB) Referem-se, ainda, as Recorrentes ao ponto 9 dos factos provados alegando não ser verdade que existem livros na sobreloja logo contrariado pelo facto de reconhecerem que os livros lá estão (n.º 42 das alegações) conforme também retratado por fotografia junta pela R. na sua contestação, pelo que salvo o devido respeito e melhor entendimento, não há qualquer motivo para revogar o ponto 9 dos factos provados. CC) Quanto ao ponto 15 dos factos provados o mesmo reproduz um facto alegado pela R. que esta provou pelo que se deverá manter, sendo certo que as Recorrentes insistem em ignorar a existência das escadas que fazem a ligação entre o rés-do- chão e a sobreloja, através das quais as pessoas circulam no espaço livremente. DD) Por essa razão, não faz qualquer sentido o n.º 50 das alegações pois, em parte alguma ficou provado não haver ligação entre a sobreloja onde está instalado o café e o rés-do-chão onde se encontra a maior parte dos livros à venda, antes pelo contrário, conforme se pode verificar pela leitura do ponto 21 dos factos provados da Douta Sentença. EE) Quanto ao ponto 22 dos factos provados, é evidente que o mesmo deve ser mantido. FF) A atribuição da distinção “Loja com História” é conferida a estabelecimentos que a Câmara Municipal de Lisboa considera que se mantêm na cidade, respeitando as características que lhes conferem identidade há dezenas de anos, como é o caso da R., assim, a atribuição de tal distinção é a prova de que o negócio de livraria que a R. exerce, de forma atualizada, é reconhecido pela Câmara Municipal de Lisboa como obedecendo aos critérios legais para haver uma continuidade da atividade exercida. GG) Resulta assim evidente que não existe qualquer razão para que a matéria de facto dado como provada e não provada na douta sentença recorrida seja alterada. HH) Perante a constatação da ausência de fundamentos para a alteração da matéria de facto considerada provada e não provada nos presentes autos, importa analisar as razões pelas quais as Recorrentes pretendem ver alterada a douta decisão recorrida no que respeita à aplicação do direito aos factos provados. II) Dos documentos juntos aos autos, dos factos admitidos por acordo, bem como dos depoimentos das testemunhas ouvidos em audiência de julgamento, ficou pacificamente demonstrado, que a actividade complementar que a R. desenvolve no locado destina-se a incentivar a conversa acerca de livros e dos assuntos nele contidos, bem como a proporcionar um espaço onde os clientes da livraria possam ler um livro que tiram de uma prateleira, cujo conteúdo queiram conhecer (vd. Ponto 15, 16, 17, 18, 19.º dos factos provados na Douta Sentença). JJ) Numa consulta ao motor de busca Google, introduzindo a expressão “conceito actual de negócio de livraria”, a primeira resposta dada pela inteligência artificial (IA) refere o seguinte: “o conceito actual de negócio de livraria vai além da venda de livros, transformando-se em espaços culturais e de convívio. As livrarias modernas incluem cafés, áreas de leitura, eventos culturais (…)”. Acrescenta ainda que: “além dos livros, as livrarias vendem artigos de papelaria, presentes, brinquedos, jogos (…)”. KK) Esta constatação da evolução do conceito de negócio de livraria foi também, claramente, referido ao Tribunal pelas testemunhas da Ré, DD e EE, tendo esta última testemunha referido o exemplo da conhecida Livraria Bertrand, situada do lado oposto da Rua 2, na qual existe um café com entrada interior ao fundo das salas onde se encontram os livros e entrada exterior, directamente pela Rua 3, uma vez que, tal e qual como a R. a Livraria Bertrand está situada numa esquina com acesso por duas ruas. LL) A evolução ocorrida nos últimos 80 (oitenta) anos na sociedade, nos negócios e na forma como eles são exercidos não pode ser ignorada, sendo inquestionável que o que se entendia por negócio de livraria em 1943 e o que se entende por negócio de livraria em 2025 sofreu alterações consideráveis, existindo na maior parte dos casos actividades complementares e conexas à venda dos livros, sem que a atividade principal tenha sido alterada ou posta em causa, conforme é o caso. MM) Em 2025, as livrarias apresentam-se como verdadeiros centros de cultura que englobam as várias manifestações artístico-culturais e é indubitavelmente da relação entre os livros e a arte e a cultura a que a douta sentença recorrida se refere, sendo certo que oficinas de reparação de automóveis, clínicas veterinárias e escritórios de advogados não se enquadram no conceito de actividades culturais, estando, consequentemente, fora do conceito de negócio de livraria. NN) Importa ainda deixar claro que a palavra “galeria” se refere a um tipo específico de espaço com características arquitectónicas próprias onde, entre outras coisas, se podem realizar exposições de vários tipos e onde, também, se podem realizar tertúlias, eventos culturais ou outros. Este tipo de “galeria” pode situar-se em livrarias, museus, instalações municipais destinadas à divulgação da cultura e da arte, entre outros. E é este o tipo de “galeria” que existe no estabelecimento da Ré. OO) Ao contrário do que as Recorrentes querem fazer crer, não se trata de uma “galeria de arte” tal como são entendidas as galerias de arte comerciais que representam artistas e se dedicam exclusivamente à compra e venda de obras de arte. Em tais galerias de arte é impensável a realização de concertos, tertúlias ou espectáculos teatrais uma vez que estas não pretendem ser polos de cultura, desenvolvendo, pura e simplesmente, uma actividade comercial. PP) Por tudo quanto atrás se deixa exposto, salvo o devido respeito e melhor entendimento, é evidente que não houve qualquer alteração do fim do Contrato de Arrendamento continuando a R. a exercer no locado o negócio de livraria na conceção que, atualmente, o negócio de livraria tem pelo que não existe qualquer incumprimento contratual. QQ) Aliás, no próprio despacho da Camara Municipal de Lisboa, é assente que a Livraria Sá da Costa é um polo cultural de Lisboa, desde os anos 60, com a existência de tertúlias e atividades culturais, atividades essas que nunca foram postas em causa durante estes 60 anos, fosse por quem fosse, muito menos pelos Recorrentes. RR) Ainda que assim se não entendesse (o que apenas como mera hipótese de raciocínio, sem conceder, se coloca,) sempre teria que se considerar que as actividades de café e eventos culturais são actividades complementares da actividade principal de venda de livros, na sua concepção actual, sendo que esta representa praticamente toda a actividade desenvolvida pela Ré. SS) O desenvolvimento de actividades complementares não representa qualquer alteração ao fim do arrendamento, uma vez que a actividade para a qual o arrendamento foi celebrado continua a ser a actividade desenvolvida no locado não havendo por isso, também neste caso, nenhum incumprimento contratual, que torne inexigível a manutenção deste arrendamento por parte das Autoras. TT) A este respeito diz o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Janeiro de 2007: “Não se verifica o fundamento de resolução do contrato de arrendamento previsto no art. 64º/1, alínea b) do RAU – usar o arrendatário o prédio arrendado para fim ou ramo de negócio diverso daquele ou daqueles a que se destina – quando o arrendatário ali exerce uma actividade que que embora diversa da prevista no contrato, é com ela conexa, e aquela continua a ser exercida no local; II – Para efeitos de caducidade da acção de resolução do contrato de arrendamento, o fundamento da alínea b), do nº 1, art. 64º, tem a natureza de facto continuado ou duradouro; III – Age com abuso de direito o senhorio que, conhecendo há 25 anos o facto de o inquilino destinar o prédio arrendado a fim diferente do previsto no contrato, sem nunca se ter oposto, intenta ao fim daqueles anos acção de despejo fundada no uso do prédio arrendado para fim diverso daquele a que segundo o contrato se destina. (F.L) UU) E ainda o Acórdão da Relação de Évora datado de 13 de Dezembro de 2025 em www. dgsi: “II – Não existe fundamento de resolução do contrato de arrendamento para comércio ou indústria, se o locatário continua a exercer a actividade prevista no contrato, tendo acrescentado, todavia, outra que seja conexa ou instrumental da primitiva”. VV) Destarte, porque assim e conforme o predito, é entendimento da Recorrida que a Douta Sentença não merece qualquer censura, devendo manter-se no todo, aqui posta em crise pelas Recorrente. *** II-FUNDMENTAÇÃO. 1-Objecto do Recurso. 1-É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC) e, ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida. Assim, em face das conclusões apresentadas pelas recorrentes, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir: a)- A Impugnação da Matéria de Facto; b)- A revogação da sentença, com a consequente procedência da acção. *** 2- Matéria de Facto. É a seguinte a matéria de facto decidida pela 1ªinstância: -Factos Provados: 1. As Autoras são proprietárias do prédio urbano sito em Lisboa, na Rua 2 nºs 100 a 102. 2. Por contrato datado de 17.07.1942, os antecessores das Autoras na propriedade deste prédio entregaram em arrendamento à Ré, que tomou, a loja com entrada pelo nº 100 da Rua 2 1 com a petição inicial. 3. Dispõe a cláusula segunda do contrato de arrendamento que «a citada loja é destinada somente a negócio de livraria e de mobiliário escolar e, por isso, nenhum outro uso ou destino lhe será dado sem consentimento escrito dos senhorios, reconhecido por notário». 4. A renda mensal do locado era, em 2023, de € 2.240,30. 5. Em data não apurada, as Autoras tomaram conhecimento de que a Ré vende no seu estabelecimento vários tipos de objectos, nomeadamente, azulejos, mapas, esculturas (bustos), medalhas, porta-livros, globos, pesa-papéis. 6. Em data não concretamente apurada, as Autoras também tomaram conhecimento de que a Ré se encontrava a explorar, no locado, uma galeria de arte, onde mantém uma exposição permanente de obras de arte, nomeadamente, pinturas e desenhos, realizando eventos regulares no espaço. 7. Paralelamente às actividades referidas em 5. e 6., a Ré tem mantido no locado em funcionamento, também, um café/pastelaria. 8. Tanto a galeria de arte como o café/pastelaria têm acesso ao público pela Rua 1, sendo que o acesso à livraria se faz pela Rua 2. 9. A livraria ocupa o rés-do-chão do locado, enquanto que a galeria de arte e o café ocupam o primeiro piso, apesar de, neste último, também se encontrarem livros em exposição. 10. A Ré não comunicou às Autoras que iria iniciar estas últimas actividades no locado. 11. As Autoras remeteram à Ré, que recebeu, com conhecimento à “Massa Insolvente de Augusto Sá da Costa, Lda. A/C Sra. Dra. FF, Administradora Judicial”, a carta, datada de 02.12.2022, com o assunto “Resolução do Contrato de Arrendamento da Loja sita na Rua 2”, na qual comunicaram à Ré a resolução do contrato de arrendamento com efeitos a 31.12.2022 – cf. doc. 10 junto com a petição inicial. 12. A Ré respondeu às Autoras por carta datada de 09.01.2023, que estas receberam, na qual expõe os motivos pelos quais considerou que a resolução do contrato pretendida pelas senhorias carecia de fundamento legal – cf. doc. 11 junto com a petição inicial. 13. A utilização da “sobreloja” para a realização de eventos culturais, entre os quais exposições de artes plásticas, leituras encenadas e concertos, acontece desde 2016, quando a Ré, ainda enquanto massa insolvente, conseguiu recuperar esse espaço, que se encontrava degradado. 14. Os eventos culturais organizados pela Ré no locado têm sido anunciados publicamente e noticiados pela comunicação social. 15. O espaço de restauração no estabelecimento da Ré denomina-se “Sá da Costa Café” é destinado a incentivar a conversa acerca de livros e dos assuntos nele contidos, bem como a proporcionar um espaço onde os clientes da livraria possam ler um livro que tiram de uma prateleira, cujo conteúdo queiram conhecer melhor. 16. A Ré sempre desenvolveu actividades culturais no seu estabelecimento, nomeadamente, tertúlias, e sempre vendeu livros novos e em segunda mão. 17. Muitos dos objectos vendidos pela Ré no estabelecimento têm uma relação com os livros que estão à venda. 18. As exposições de obras de artes plásticas vêm frequentemente acompanhadas por catálogos editados em parceria que são vendidos durante as exposições e depois destas, e às quais dão visibilidade. 19. O negócio de livraria, tal como hoje é desenvolvido, é caracterizado pela diversidade, no sentido de transformar o respectivo estabelecimento num polo cultural destinado à divulgação dos livros comercializados e à atracção de clientes. 20. A abrangência do conceito de livraria à exploração de um espaço de restauração e à abertura de uma galeria de arte, bem como o seu desenvolvimento conjunto, esteve na base do projecto de recuperação da Ré no âmbito do seu processo de insolvência e está prevista no plano de insolvência, em vigor – cf. doc. 3 junto com a contestação. 21. Os pisos do estabelecimento estão ligados entre si por escada interior. 22. A Ré adquiriu o estatuto de “Loja com História” no passado dia 5 de Fevereiro de 2025, juntamente com a “Livraria Buchholz”. * -Factos Não Provados: a) que as Autoras só tomaram conhecimento em finais de Novembro de 2022 que a Ré passou a ter à venda na livraria outros objectos para além de livros (artigo 5º da p.i.). *** 3- As Questões Enunciadas 3.1- Impugnação da Matéria de Facto. As autoras/apelantes impugnam a decisão da 1ª instância sobre a matéria de factos quanto aos pontos 5, 6, 7, 9, 15 e 22 dos factos provados e, alínea a) dos factos não provados e, pretendem seja aditado um outro facto aos factos provados. Em síntese, invocam deficiente apreciação dos meios de prova. Vejamos cada uma dessas impugnações. -Pontos 5, 6 e 7 dos factos provados e alínea a) dos factos não provados. Entendem as apelantes que devia ter sido dado como provado que apenas tiveram conhecimento, em finais de 2022, do uso diverso do locado que a ré/apelada passou a realizar. Para o efeito, baseiam-se no depoimento da testemunha CC que, segundo sintetizam, conheceu essa situação de uso do locado para fim diverso, em final de 2022 quando, a convite de uma amiga, pintora, foi visitar uma exposição de pintura na Galeria de Arte Sá da Costa. A ré/apelada pugna pela manutenção da decisão da 1ª instância sobre esses pontos de facto, argumentando não ser verosímil que as autoras não tivessem conhecimento da existência da Galeria de Arte, quando a mesma foi inaugurada em 2016 e a sua actividade amplamente divulgada nos meios de comunicação social. A 1ª instância, quanto aos pontos 5, 6 e 7, referiu tratar-se de factualidade alegada na petição inicial e não impugnada; e, para dar como não provado o ponto a), mencionou ter “ponderado criticamente o depoimento da única testemunha arrolada pelas autoras…que foi pouco credível na parte referente ao conhecimento pelas rés, da actual situação da Livraria Sá da Costa…porque vindas de alguém que, pelo menos indirectamente, tem óbvio interesse na causa… e atendendo à circunstância de o estabelecimento se situar numa zona central e nobilíssima da cidade, com grande exposição, não se afigurando plausível, à luz das regras da experiência, que a testemunha – para mais, arquitecta e filha de uma das senhorias – não tivesse atentado no facto de, a dado momento (vários anos antes de 2022, ano referenciado pela testemunha), o sobrepiso do locado (até aí tendo albergado arquivo e escritório) ter sido limpo e arranjado, com uso amplo para a exposição de quadros e outras obras de arte plástica, tendo esta galeria sido amplamente divulgada nas redes sociais, como a própria testemunha reconhece. Por outro lado, a testemunha revelou algum empenho na enfatização da circunstância de este uso do sobrepiso, para além de carecer de autorizações/licenciamentos por o edifício, de arquitectura pombalina, ser classificado, poder colocar em risco a segurança de todo o imóvel;” Cumpre apreciar. Ouvido integralmente o depoimento da testemunha CC – de resto, ouviram-se integralmente os depoimentos desta e das testemunhas DD, EE e GG – confirma-se que a transcrição que as apelantes fazem na sua alegação corresponde ao que foi dito pela testemunha. Disse ela, no essencial, em síntese, quanto à matéria de facto ora em discussão, que: - Só veio a descobrir, recentemente, que existe outro piso, com entrada pela Rua 1 e que é uma Galeria de Arte e tem “uma espécie de café/bar” com cozinha que foi colocada por cima da escada; é um pequeno bar com máquina de café, frigoríficos, instalações sanitárias e, uma sala grande, à esquerda, onde estão afixadas telas e quadros; a sala grande é polivalente e além da Galeria, dão aulas de ioga; que foi uma amiga, HH, que é artista/pintora, que a convidou, em 2022, para ir ver uma exposição na Galeria Sá da Costa e ela (testemunha) ficou admirada; isso aconteceu em 2022, talvez em Setembro/Outubro; disse à mãe e ambas ficaram preocupadas. Pois bem, do teor deste depoimento resulta que nada é dito quanto ao momento do conhecimento, do uso diferente do locado, pelas outras senhorias: a tia da testemunha, BB e, Critalfran, SA. E, o facto em causa refere-se ao momento do conhecimento pelas Autoras e não somente à co-autora AA, mãe da testemunha. A ser assim, teremos de concluir como fez a 1ª instância: as Autoras tiveram conhecimento do uso diferente do locado em momento, ou data não apurada. A esta vista, não vemos fundamento para alterar a decisão da 1ª instância quanto aos pontos 5, 6 e 7 dos factos provados e alínea a) dos factos não provados. - Ponto 9 dos factos provados. Entendem as autoras/apelantes que a parte final do ponto 9 dos factos provados, “…também se encontram livros em exposição.” Deve ser dada como não provada, porque nas reportagens fotográficas e videográficas juntas não existe prova da existência de livros em exposição. A ré/apelada defende que deve manter-se a parte final do ponto 9 porque, dos documentos fotográficos que juntou com a contestação, resulta provada a exposição de livros na sobreloja. Vejamos. Dos elementos fotográficos juntos pelas autoras com a petição inicial não resulta qualquer exposição de livros na sobre loja. Porém, do documento 4 junto com a contestação é possível verificar uma estante com livros, no piso da Galeria. Igualmente no ficheiro vídeo (doc. 1) junto pela própria co-autora Critalfran SA, no seu requerimento probatório de 08/07/2024, bem como do documento 4 (fotografia) junta com esse requerimento, é possível constatar a existência de uma estante com livros (a mesma estante que surge na fotografia junta como documento 4 da contestação). Por seu turno, a testemunha DD referiu no seu depoimento que no espaço de cafetaria também se vendem livros. Igualmente a testemunha EE mencionou que na Galeria também se vendem livros. Em face destes elementos de prova somos a entender não existir fundamento para eliminar o trecho final do ponto 9 dos factos provados. - Ponto 15 dos factos provados. As apelantes/autoras defendem que o ponto 15 dos factos provados deve considerar-se não provado, argumentando que se trata de uma conclusão e não de um facto; e, além disso, afirmam que o espaço do 1º piso é totalmente ocupado pela galeria e pelo restaurante conforme retiram dos elementos fotográficos juntos com a petição inicial e com o requerimento de 08/07/2024. A ré/apelada, por sua vez, entende que deve ser mantido o facto 15 dos factos provados. Vejamos. Recordemos o texto do ponto 15 dos factos provados: “15. O espaço de restauração no estabelecimento da Ré denomina-se “Sá da Costa Café” é destinado a incentivar a conversa acerca de livros e dos assuntos nele contidos, bem como a proporcionar um espaço onde os clientes da livraria possam ler um livro que tiram de uma prateleira, cujo conteúdo queiram conhecer melhor.” Pois bem, como nos parece fácil de perceber, o ponto 15 dos factos provado não constitui uma conclusão. Trata-se, antes, de um conjunto de factos concretos, susceptíveis de constatação e de percepção. O primeiro trecho do ponto 15, “O espaço de restauração no estabelecimento da Ré denomina-se “Sá da Costa Café…”, é um facto real, material e concreto que nada tem de conclusivo. O mesmo se diga em relação ao segundo segmento do ponto 15: que o espaço (Sá da Costa Café) “…é destinado a incentivar a conversa acerca de livros e dos assuntos nele contidos, bem como a proporcionar um espaço onde os clientes da livraria possam ler um livro que tiram de uma prateleira, cujo conteúdo queiram conhecer melhor.”. Não se trata de meras conclusões sobre um conjunto de factos nem de juízos de valor. Nem, tão pouco, se trata de juízos de valor ou que encerram valorações ou conclusões jurídicas. Por outro lado, essa factualidade foi confirmada pela testemunha DD que referiu essa finalidade do espaço de Café. A testemunha EE mencionou a finalidade da criação daquele espaço, referindo que teve em vista que os clientes estejam o maior tempo possível na livraria, para estimular a actividade desta. Assim sendo, não se altera o ponto 15 dos factos provados. - Ponto 22 dos factos provados. Entendem as apelantes que o ponto 22 deve ser desconsiderado por ser irrelevante para a apreciação do litígio. Apreciando. Recorde-se a redacção do ponto 22 dos factos provados: “22. A Ré adquiriu o estatuto de “Loja com História” no passado dia 5 de Fevereiro de 2025, juntamente com a “Livraria Buchholz”. A 1ª instância deu esse facto como provado baseando-se no documento junto pela ré no seu requerimento de 10/02/2025 e, da informação pública constante do Portal de Informações da Câmara Municipal de Lisboa. E, a 1ª instância deu relevância jurídica a esse facto, conforme decorre do trecho da sentença em que é dito: “Em suma, da prova produzida, resultou fora de qualquer dúvida que as mencionadas actividades, longe de serem diversas, autónomas, relativamente à actividade a que o locado se destina, são, sim, dependentes, complementares e vocacionadas, essencialmente, para potenciar e desenvolver o comércio de livros a que a Ré se dedica, tendo constituído alicerce fundamental para a recuperação económica da sociedade após a situação de insolvência, sendo do conhecimento público e beneficiando de reconhecimento institucional (de que é concludente exemplo a atribuição da classificação “Loja com História”)”. Se essa argumentação é de manter, ou não, constitui questão jurídica, a apreciar no mérito do recurso. A esta vista, mantém-se o ponto 22 dos factos provados. -Aditamento de um outro pronto aos factos provados. Finalmente, defendem as apelantes/autoras que deve ser considerado provado que “A ré sabia que as autoras se opuseram, antes de a ré conferir uso diverso do locado, a tal uso.” Argumentam que esse facto foi confessado no Plano de Insolvência da ré onde, além do mais, consta “Na sequência, em 2013 da não aprovação do primeiro plano de recuperação apresentado e perante a impossibilidade de proceder à venda do património da insolvente, constituído essencialmente pelos direitos ao trespasse e arrendamento dos estabelecimentos sitos na Rua 2 – uma vez que todos os interessados pretendiam mudar de ramo de actividade e os senhorios dos locados não o permitiam” A ré, por sua vez, opõe-se ao aditamento desse facto, referindo que o que foi afirmado pela ré era que as autoras não permitiam uma mudança de ramo de actividade o que pressupunha a cessação do negócio de livraria; e refere que a testemunha DD esclareceu essa informação constante do Plano de Insolvência. Vejamos. Em primeiro lugar, poderão as narrativas constantes do Plano de Insolvência da ré, relacionadas com o decurso/desenvolvimento do Processo de Insolvência, considerar-se como uma confissão, perante as autoras, que de A ré sabia que as autoras se opuseram, antes de a ré conferir uso diverso do locado, a tal uso? Afigura-se-nos que a resposta a esta questão é dada pela norma do artº 358º nº 4 do CC que se afigura clara: a confissão extrajudicial feita a terceiro é apreciada livremente pelo tribunal. A doutrina nacional é unânime sobre a interpretação desse normativo. Vaz Serra (Provas – Direito Probatório Material, BMJ 111, pág. 21) a propósito da confissão dirigida a terceiro, escreveu “Se a declaração é feita a terceiro, não deve ser havida como confissão, mas apenas como elemento de prova (testemunho) a apreciar livremente pelo tribunal.” Manuel Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, pág. 256) disse “…a confissão extrajudicial só vincula o confitente (e a través dele o juiz) quando é dirigida à parte interessada ou seu representante, se for feita a terceiro, o juiz apreciá-la-á livremente. É a doutrina corrente (Guilherme Moreira, Coviello Andriolli, Alberto dos Reis, etc.)”. Pires de Lima e Antunes varela (CC Anotado, Vol. I, 3ª edição 1982, pág. 316) escrevem, a propósito da declaração confessória feita por escrito dirigido a terceiro que, nesse caso “…o valor probatório da confissão é apreciado livremente pelo tribunal.”. Lebre de Freitas, defende, na sua tese de doutoramento (A Confissão no Direito Probatório, e, depois sintetizada na anotação ao artº 358º do CC (Código Civil Anotado, Vol. I, 2017, AAVV, coordenação de Ana Prata, pág. 358) que “…a confissão judicial a que falte o requisito da direcção à parte contrária, está sujeita à livre apreciação do julgador.”. Igualmente, ultimamente, Luís Pires de Sousa (Direito Probatório Material, 3ª edição, 2023, pág. 107 e segs.) alinha no mesmo sentido. No caso dos autos, a frase em questão é retirada do ponto 1.3 (fls. 5) do Plano de Insolvência da ré, relativa à “Situação actual da insolvente” e, no qual é constatado que, no anterior Plano de Insolvência, que não foi aprovado em 2013, os interessados em adquirir o “Direito ao Trespasse e Arrendamento” do locado pretendia mudar o ramo de actividade e os senhorios do locado não o permitiam. Ou seja, aquela frase é relativa a uma fase anterior do processo de insolvência da ré e, aquela “declaração”, rectius, aquela narrativa dos factos passados não é dirigidas às autoras. Por isso, à luz do artº 358º nº 4 do CC, é apreciada livremente pelo tribunal. E isto para não entrar na discussão de saber se a insolvente tem capacidade para “confessar” (sobre a questão, veja-se Lebre de Feitas (A Confissão no Direito Probatório, pág. 66 e segs.) Ora, a testemunha DD, quando confrontada com aquele documento, esclareceu que se trata de referência a outros interessados no espaço, contactados pela Administradora da Insolvência, que pretendiam ficar com o espaço mas destinado a outras actividades (deu exemplo da Wells), que nada tinham a ver com a actividade de livreiro. Acrescente-se que esse facto não foi alegado pelas autoras. À luz do que se expôs, conclui-se não haver fundamento para aditar aos factos provados, um novo ponto. Em suma: improcede, totalmente, a impugnação da matéria de facto. *** 3.2- A revogação da sentença, com a consequente procedência da acção. As autoras/apelantes discordam do entendimento e enquadramento jurídico feito pela 1ª instância na sentença, quando argumenta que “…as novas actividades longe de serem diversas, autónomas, relativamente à actividade a que o locado se destina, são, sim, dependentes, complementares e vocacionadas, essencialmente para desenvolver o comércio de livros a que a ré se dedica.”. Defendem que as novas actividades exercidas no locado - galeria de arte e café/bar - não são acessórias ou instrumentais da venda de livros e mobiliário escolar, únicas actividades contratualmente permitidas no locado, com exclusão de quaisquer outras. Concluem que no locado se verifica um uso diverso daquele a que contratualmente se destina, o que se enquadra na previsão do artº 1083º, nº 2, al. c) do CC, constituindo um incumprimento contratual que confere a faculdade de resolução do contrato de arrendamento. Mais defendem que não se verifica a excepção de abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, mencionado na sentença, porque não é imputada às autoras qualquer comportamento contraditório com o que anteriormente tiveram, dado que nunca aceitaram ou toleraram o uso diverso do locado nem se mostra provada uma situação de confiança adquirida pela ré na utilização do locado para fim diverso. A ré, por seu lado, pugna pela improcedência do recurso, concordando com o entendimento da 1ª instância de considerar que a Galeria de Arte e o Café/Bar são actividades complementares da actividade principal de venda de livros e, por isso, não representam qualquer alteração ao fim do arrendamento, inexistindo, assim, qualquer incumprimento contratual que torne inexigível a manutenção do arrendamento. Vejamos, então, como decidir o litígio, o que implicará abordar as seguintes questões: a)- Síntese da fundamentação da decisão da 1ª instância; b)- A letra do contrato de arrendamento; c)- Breve resenha da evolução histórica das normas relativas ao uso do locado para fim diverso; d)-Aplicação da Lei no tempo e a determinação da norma a aplicar ao caso dos autos; e)- Subsunção dos factos à norma legal aplicável; f)- A solução jurídica do caso; g)- Consequências da solução jurídica quanto aos pedidos. Analisemos. 3.2.1- Síntese da fundamentação da decisão da 1ª instância A sentença da 1ª instância, para julgar a acção improcedente, baseou-se no essencial, na seguinte argumentação: “…da prova produzida, resultou fora de qualquer dúvida que as mencionadas actividades, longe de serem diversas, autónomas, relativamente à actividade a que o locado se destina, são, sim, dependentes, complementares e vocacionadas, essencialmente, para potenciar e desenvolver o comércio de livros a que a Ré se dedica, tendo constituído alicerce fundamental para a recuperação económica da sociedade após a situação de insolvência, sendo do conhecimento público e beneficiando de reconhecimento institucional (de que é concludente exemplo a atribuição da classificação “Loja com História”). A segunda, das conclusões mencionadas acima, é que esta factualidade – que, como vimos, a Ré acabou por não pôr em causa na acção; pelo contrário, admitiu-a desde o início (ainda que de forma mais ou menos implícita) – não constitui, nem um uso diverso do locado, nem, muito menos, ainda que configurasse um incumprimento do contrato, coloca em causa a permanência do vínculo entre as partes e, portanto, a vigência do arrendamento. Dito de outra forma: a factualidade invocada pelas Autoras como causa de resolução do contrato e consequente despejo dificilmente teria a virtualidade (independentemente da prova) de preencher o conceito normativo contemplado no artigo 1083º, nº 2 do Código Civil, ou seja, esse circunstancialismo tornar inexigível, para o senhorio, a manutenção do contrato. Não há, portanto, fundamento para a resolução do contrato nem qualquer das circunstâncias supra aludidas torna inexigível a manutenção deste arrendamento por parte do senhorio, o que se impõe decidir sem necessidade de outros considerandos. Aliás, a posição das Autoras, no estrito sentido da obtenção do despejo com base neste circunstancialismo e face à ausência de prova quanto à alegação de que apenas tardiamente (pouco tempo antes da propositura da acção) teriam tomado conhecimento daquela pretenso uso diverso do locado, constituiria, a proceder, uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, pois que obteriam agora o despejo com base num circunstancialismo que durante anos, se não autorizou, pelo menos, tolerou.” Será assim? 3.2.2- A letra do contrato de arrendamento. O contrato de arrendamento em questão foi celebrado, por escritura pública, no dia 17/07/1942, nele se ajustando, simultaneamente, um contrato de trespasse, entre II e, JJ, relativamente ao “estabelecimento de quinquilharia” denominado Casa Bernard, que se situava no actual locado; e, um contrato de arrendamento (em causa nos autos), entre JJ, na qualidade de inquilino e, KK e LL, em representação de seu marido, na qualidade de senhorios. No parágrafo 2º do contrato de arrendamento foi estipulado; “A citada loja é destinada somente a negócio de livraria e de mobiliário escolar e, por isso, nenhum outro uso ou destino lhe será dado sem o consentimento escrito dos senhorios, reconhecido por notário.” E foi acrescentado no parágrafo 7º: “A sociedade inquilina não poderá fazer leilões na loja arrendada sem autorização escrita dos senhorios e reconhecida por notário.” 3.2.3- Breve resenha da evolução histórica das normas relativas ao uso do locado para fim diverso. Á data da celebração do contrato de arrendamento em causa – 17/07/1942 - vigorava a Lei nº 1662, de 04/09/2024 (Diário do Governo, I série, nº 200) que tinha vindo regular certos aspectos do arrendamento de prédios urbanos, designadamente no que concernia às acções de despejo e, estabelecia, no seu artº 5º, §7º que: “…poderão ser intentadas e prosseguir acções de despejo quando, sendo o prédio arrendado para comércio ou indústria, for aplicado a fins ilícitos ou desonestos ou a ramo de comércio ou indústria diverso do expressamente estipulado no contrato; Quer dizer, na data em que foi celebrado o contrato de arrendamento, a aplicação do locado a ramo de comércio diverso do expressamente estipulado no contrato de arrendamento, era fundamento para acção de despejo. De resto, anteriormente à Lei nº 1662, também o Decreto nº 5 411, de 17/04/1919, previa, no seu artº 21º, nº 2, que: “O senhorio poderá, contudo, despedir o arrendatário, antes do arrendamento acabar, nos casos seguintes: “Se o arrendatário usar do prédio para fim diverso daquele para que foi arrendado ou, na falta de convenção, daquele que lhe é próprio;” Saliente-se que mais anteriormente ainda, no Código de Seabra (Carta de Lei de 01/07/1867), no seu artº 1607º, o uso do locado para fim diverso daquele para que foi arrendado constituía, a par da falta de pagamento de rendas, as duas únicas causas de “despedimento do arrendatário.” Entretanto, posteriormente à referida Lei 1662, com a publicação do Código Civil de 1966 (DL 47344, de 25/11), os casos de resolução do contrato de arrendamento por banda do senhorio, passaram a constar da “lista taxativa” do artº 1093º que, na sua alínea b) do nº 1 determinava: “1- O senhorio só pode resolver o contrato: Se (o arrendatário) usar ou consentir que outrem use o prédio arrendado para fim ou ramo de negócio diverso daquele ou daqueles a que se destina;” Mais tarde, o DL 321-B/90, de 15/10, aprovou o Regime do Arrendamento Urbano (RAU) e, no seu artº 3 revogou, além do mais, as normas dos artºs 1083º a 1120º do CC, sendo que no seu artº 64º (RAU), passou a enunciar, nas diversas alíneas do seu nº 1, os casos taxativos em que “O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário (se o inquilino): “a)- (…); “b)- Usar ou consentir que outrem use o prédio arrendado para fim ou ramo de negócio diverso daquele ou daqueles a que se destina;” Mais tarde, pela Lei 6/2006, de 27/02, foi aprovado o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) que, no seu artº 3º repôs em vigor os artºs 1064º a 1113º do CC, conferindo-lhes algumas alterações de redacção, o que levou a que o artº 1083º passasse a prever os “Fundamentos da resolução”, tanto pelo senhorio como pelo inquilino, estabelecendo: “1 - Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte. 2 - É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio: a) (…); b) (…): c) O uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina;” Ultimamente, a Lei 31/2012, de 14/08, veio alterar diversas normas do NRAU e do CC sendo que, no que tange ao arº 1083º nº 2, al. c), conferiu a seguinte redacção: “-O uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina, ainda que a alteração do uso não implique maior desgaste ou desvalorização para o prédio;” E é esta a versão que actualmente vigora no que respeita à resolução do contrato de arrendamento, pelo senhorio, quando o arrendatário use o locado para fim diverso daquele a que se destina. Pois bem, desta breve resenha histórica pode retirar-se que o legislador, desde o Código de Seabra até a actualidade, sempre considerou como fundamento para a resolução do contrato de arrendamento a circunstância de o inquilino usar o locado para fim ou ramo diverso do que foi estabelecido contratualmente. 3.2.4- A aplicação da lei no tempo. Vimos que à data da celebração do contrato (17/07/1942) vigorava a Lei nº 1662, de 04/09/2024 que estabelecia, no seu artº 5º, §7º, que: “…poderão ser intentadas e prosseguir acções de despejo quando, sendo o prédio arrendado para comércio ou indústria, for aplicado a fins ilícitos ou desonestos ou a ramo de comércio ou indústria diverso do expressamente estipulado no contrato; Verificámos as diversas alterações legislativas, ocorridas desde então sendo, a última, levada a cabo pela Lei 31/2012, de 14/08, que conferiu nova redacção ao artº 1083º, nº 2, al. c) do CC, enunciando ser fundamento para a resolução do contrato de arrendamento “…o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio: “-O uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina, ainda que a alteração do uso não implique maior desgaste ou desvalorização para o prédio;” No ponto 13 dos factos provados apurou-se a utilização da sobreloja para exposições de artes plásticas, leituras encenadas e concertos acontece desde 2016 e, a exploração do café/bar, embora não se tenha apurado quando tenha tido início, admite-se que possa ter ocorrido desde então. Portanto, estamos perante uma situação em que o contrato de arrendamento é de 1942, altura em que vigorava a Lei 1662 e, os factos invocados pelas senhorias ocorreram na vigência do NRAU na redacção da Lei 31/2012. Que lei aplicar? O artº 12º do CC responde à questão. É conhecida a letra desse preceito legal com epígrafe “Aplicação das leis no tempo. Princípio geral”: “1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retractiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. 2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.” O nº 1 do preceito presume que, em princípio, as leis não têm aplicação rectroactiva, apenas se aplicando às situações ocorridas após a sua entrada em vigor. Porém, o nº 2 prevê que as leis podem conter parcelas de retroactividade, distinguindo entre situações jurídicas de execução duradoura, como é o caso de um contrato de arrendamento e, situações jurídicas de execução instantânea, como sucede com uma compra e venda. Nas situações jurídicas de execução duradoura é necessário separar o passado do futuro, o passado, pertence à Lei Antiga; o futuro pertence ao domínio da lei nova. Ora, a primeira parte do nº 2 do artº 12º, reporta-se às condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou seus efeitos: aplica-se em caso de dúvida, a lei vigente no momento da sua ocorrência. A segunda parte do nº 2 do mesmo preceito, reporta-se ao conteúdo de relações jurídicas que subsistam à data da entrada em vigor da Lei Nova e dispõe que se aplicará a Lei Nova se abstrair dos factos que lhe deram origem. Ou seja, o conteúdo objectivo de qualquer relação ou situação jurídica duradoura, constituída no tempo da Lei Antiga, se se prolongar para além da entrada em vigor da Lei Nova pode, a partir do início da vigência desta, ser modificado por esta Lei Nova (Para outros desenvolvimentos, Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 25ª reimpressão, 2018, págs. 233 e segs.; Freitas do Amaral, CC anotado, AAVV, coord. Ana Prata, vol. I, 2017, pág. 30 e segs.); Santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, 9ª edição, 2018, pág. 388 e segs.) No caso, como vimos, os fundamentos da resolução do contrato de arrendamento foram muito alterados pela Lei 6/2006 e, parcialmente alterados/explicitados, pela Lei 31/2012. Ora, como é sabido, as circunstâncias fundamentadoras da resolução do contrato inserem-se na relação jurídica duradouras de arrendamento. Por isso, mesmo aos contratos anteriores, é aplicável esta Lei Nova (Lei 31/2012) quando os fundamentos da resolução do contrato ocorram na vigência desta Lei Nova. Quer dizer “no âmbito do contrato de arrendamento, aos fundamentos resolutivos ocorridos e completados no domínio de lei anterior aplica-se a lei então vigente; mas, aos fundamentos resolutivos iniciados na vigência da lei anterior que se prolonguem para o domínio da lei nova – sem que o senhorio tenha até então suscitado a resolução do contrato será de aplicar a nova lei, o NRAU;” (TRL, de 12/07/2012, (Conceição Saavedra); vide ainda TRL, de 12/05/2011 (Márcia Portela), ambos em www.dgsi.pt). Finalmente, releva ainda o artº 59º do NRAU que, sob epígrafe “Aplicação no tempo”, refere expressamente que “O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”. Normas transitórias essas que constam do artº 26º do NRAU e nelas não figura referência à resolução do contrato pelo senhorio. Em suma: à situação dos autos é aplicável o artº 1083º nº 2, al. c) do CC, na redacção dada pela Lei 31/2012. 3.2.5- Subsunção dos factos à norma legal aplicável. Como vimos acima, o artº 1083º nº 2, al. c) do CC, na redacção dada pela Lei 31/2012, é aplicável ao caso dos autos e, determina que: “2- É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio: “c) O uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina, ainda que a alteração do uso não implique maior desgaste ou desvalorização para o prédio;” Do preceito retira-se que o incumprimento objectivo dos deveres contratuais ou legais constitui o primeiro fundamento do direito de resolução. O segundo fundamento, consiste na gravidade do incumprimento e verifica-se quando a conduta em causa entra em oposição clara com os valores do arrendamento ou com a legítima confiança do senhorio. O problema que tem vindo a ser debatido na doutrina e na jurisprudência respeita à relação entre o corpo do nº 2 – “É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio;” – com as diversas alíneas deste número. Assim, sem necessidade de desenvolvimentos que aqui não se justificam e seguindo a lição de Januário Gomes/Cláudia Madaleno (Leis do Arrendamento Anotadas, AAVV, coord. Menezes Cordeiro, 2014, pág. 233 e segs.) refere-se que, em síntese, mencionam: -Teoria da interação: o preenchimento das alíneas seria, por si só, insuficiente para justificar a resolução pelo senhorio, sendo ainda necessário demonstrar que o comportamento previsto nalguma delas assumiria uma gravidade ou consequência que tornassem inexigível a manutenção do contrato; -Teoria da independência: defende que o preenchimento de alguma das alíneas do artº 1083º nº 2 permite, por si só a resolução, ficando o senhorio dispensado de provar a gravidade ou as consequências mencionadas no preceito; -Teoria da Presunção: entende que perante a verificação de um facto integrado nalguma das alíneas do artº 1083º nº 2, se presumiria a inexigibilidade da continuação do contrato; -Teoria da Ponderação Móvel: defende que as diversas alíneas solicitam, em grau diverso, as exigências do corpo do artº 1083 nº 2. Januário Gomes/Cláudia Madaleno (Leis do Arrendamento…cit., pág. 234) concordam com esta última posição e esclarecem que o corpo do nº 2 do artº 1083º é auto-suficiente: abrange qualquer eventualidade que integre um incumprimento objectivo do contrato cuja gravidade ou consequências torne inexigível a manutenção do contrato. Já as cinco alíneas do nº 2 do artº 1083º correspondem a situações típicas de incumprimento aptas a preencher o quantum necessário de gravidade e de consequências para ditar a inexigibilidade. Essas alíneas auxiliam o intérprete-aplicador a melhor entender o corpo do nº 2, uma vez que constituem exemplos normativos relevantes. O nº 2 e as diversas alíneas aplicam-se em conjunto, mas o grau de densidade de cada uma dessas alíneas é diverso, considerando que o alinhamento das alíneas vai no sentido de grau de uma densidade crescente: a violação das regras de higiene, tem uma densidade mínima, devendo ponderar-se a sua gravidade ou consequências; a utilização contrária à ordem pública ou bons costumes é, apriori, grave e a ponderação é menor; o uso para fim diverso (al. c)), o não-uso (al. d)) e a cessão não autorizada (al. e)) têm um conteúdo valorativo crescente tão negativo que, a sua gravidade se torna apriorística. Em termos práticos quando o locador demonstre factos integrativos de alguma das alíneas do nº 2 do artº 1083º, infere-se, à partida, um suficiente grau de gravidade ou de consequências, cabendo ao arrendatário, opositor alegar factos e prová-los que permitam ao julgador minimizar o juízo daí resultante. E referem estes autores, em relação à al. c) do nº 2, que o uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina, com o acrescento operado pela Lei 31/2012 – “…ainda que a alteração do uso não implique maior desgaste ou desvalorização do prédio” – “É seguramente muito grave: invade a ordem dominial, implica a quebra de confiança e traduz um risco potencial para a coisa. As consequências não relevam, para mais após a reforma de 2012. A resolução procede mesmo que quando o desvio do uso seja pequeno seja reversível. A passagem pelo artº 1083º nº 2 surge como mera cautela.” (AA e ob. cit., pág. 238). No caso dos autos, ficou demonstrado que a ré passou a explorar uma galeria de arte onde se mantém exposição permanente de obras de arte, nomeadamente pinturas e desenhos, realiza leituras encenadas, concertos, eventos que são regulares no espaço e, tem em funcionamento no locado um café/pastelaria. Sabe-se que, no contrato, as partes estipularam que: “A citada loja é destinada somente a negócio de livraria e de mobiliário escolar e, por isso, nenhum outro uso ou destino lhe será dado sem o consentimento escrito dos senhorios, reconhecido por notário.” A questão que se coloca é a de saber se, a prática daquelas “novas” actividades não podem considerar-se uso diverso, como fez a 1ª instância, argumentando, como se viu, com base no teor do Plano de Insolvência da ré, que: “…as mencionadas actividades, longe de serem diversas, autónomas, relativamente à actividade a que o locado se destina, são, sim, dependentes, complementares e vocacionadas, essencialmente, para potenciar e desenvolver o comércio de livros a que a Ré se dedica, … não constitui, nem um uso diverso do locado, nem, muito menos, ainda que configurasse um incumprimento do contrato, coloca em causa a permanência do vínculo entre as partes e, portanto, a vigência do arrendamento…” Será assim? O problema consiste em saber se e em que medida o exercício de uma actividade que não cabe, de todo, no teor da estipulação do contrato relativa ao destino do prédio arrendado pode deixar de ficar sob a alçada do artº 1083º nº 2, al. c) do CC. Não é uniforme o entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre o limite do que deve entender-se por uso diverso. Assim, alguma doutrina e jurisprudência, defendem a chamada teoria do acessório. Em termos simples, os partidários desta teoria defendem que podem ser exercidas cumulativamente com a actividade principal actividades acessórias ou instrumentais da mesma que a venham complementar (Cf. Entre outros, Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 6ª edição, 2013, pág. 146). Esta tese, de há longo tempo, tem vindo a ser fortemente criticada pela larga maioria da doutrina (Cf. Vasco da Gama Lobo Xavier, Ano 116, nº 3710, pág. 157; Sá Carneiro de Figueiredo, ROA, ano 39, vol. II, Mai/Ago., 1979, pág. 345 e segs.; Rodrigues Bastos, Dos Contratos em Especial, II, 1974, págs. 115 e segs.; Januário Gomes, Arrendamentos Comerciais, 2ª edição, pág. 229.; David Magalhães, A Resolução do Contrato de Arrendamento Urbano, 2009, pág. 253 e segs.; Fernando Gravato Morais, Novo Regime de Arrendamento Comercial, 2006, pág. 111 e segs.) No fundo, como salienta Vasco da Gama Lobo Xavier (RLJ 116, nº 3710, pág. 158) aquela doutrina baseia-se, no essencial, no princípio acessorium sequitur principal e define, como tendo carácter principal ou acessório apenas em atenção ao volume maior ou menor da facturação do arrendatário; ou, na natureza, por algum modo conexa, com o comércio ou indústria principal (ou até complementar relativamente ao comércio ou industrial principal). E acrescenta aquele Professor “Não basta, pois, que uma actividade tenha carácter acessório em relação àqueloutra que no texto do contrato se prevê, para que o seu exercício fique fora do alcance do artº 1093º nº 1, al. b) (então em vigor). O que não significa que em certos casos não seja lícito ao arrendatário explorar, em via secundária, um ramo de negócio que, embora diverso do literalmente fixado na estipulação em causa, apresente com este uma determinada conexão. Só que isto sucederá apenas quando uma interpretação adequada mostre ter a cláusula um alcance mais lato do que a corresponde ao seu teor literal. Assim, se as circunstâncias permitirem inferir, à luz da razoabilidade e da boa fé, que o locador, autorizando expressamente a exploração, no prédio arrendado de um determinado ramo de negócio, podia e devia contar com o exercício adicional de uma outra actividade – o qual, portanto, se tem de entender que autorizou, efectivamente também, embora de modo implícito.” (RLJ, Ano 116, nº 3710, pág. 159). (sublinhados nossos). E continua este Professor “…a conexão entre actividades comerciais ou industriais…que permitirá sejam interpretadas pelo modo descrito as estipulações do contrato de arrendamento pertence, normalmente, a um de dois tipos. O primeiro, respeita às actividades ligadas por uma relação de instrumentalidade necessária (ou quase necessária): será, assim, licita a prática de uma actividade que se mostre indispensável ou de todo o ponto conveniente para que no prédio arrendado se possa exercer, em boas condições, o ramo de negócio literalmente permitido. O segundo refere-se às actividades que, segundo os usos comuns, acompanham a exploração de dada modalidade de comércio ou de indústria. Não basta que seja vulgar, que seja frequente, que, por exemplo, os estabelecimentos destinados a um ramo de comércio definido pela venda ao público de certos artigos vendam ainda outros de diferente natureza. Cumpre que esse seja o caso normal, a regra…que se esteja perante uma prática constante…” (RLJ, Ano 116, nº 3710, pág. 160 e, nº 3711, pág. 179). Aragão Seia (Arrendamento Urbano, 6ª edição, 2002, pág. 403) concorda com esta posição defendida por Lobo Xavier, mencionando o citado estudo e, referindo “…compreende-se nesta fórmula muitas actividades ligadas ao fim ou ao ramo do negócio expressamente autorizado no contrato quer por acessoriedade (conexão), quer por instrumentalidade (necessária ou quase necessária), quer por habitualidade notória, do conhecimento geral, desde que o exercício destas não possa qualificar-se como fim ou negócio diverso do contratado.” No mesmo sentido, Pedro Soares Martinez (Da Cessação do Contrato, 2005, pág. 340 nota 683) que transcreve trechos da posição de Aragão Seia. Igualmente, Januário Gomes (Arrendamentos Comerciais, 2ª edição, págs. 229 e segs) onde faz expressa referência à posição de Lobo Xavier, transcrevendo trechos dessa posição e menciona que nada impede que o arrendatário desenvolva actividades não enunciadas no contrato, desde que se encontrem numa relação de instrumentalidade necessária, sendo por isso indispensáveis, ou que, segundo os usos comuns, acompanham a exploração de uma determinada modalidade de comércio. E escreve “…A dúvida levanta-se em relação às actividades cujo exercício não é abrangido pelo “fim ou ramo do negócio” clausulado (…) O facto da legislação arrendatícia (…) atribuir uma especial gravidade às violações previstas na alínea b) do nº 1 do artº 64 do RAU e o facto de o fazer sem adjectivações que permitam, de algum modo “travar” o raciocínio conclusivo, leva-nos a inferir que nesses casos haverá motivo para a resolução do contrato. As excepções a esta conclusão terão de resultar, nos termos gerais do princípio da boa fé (…)”, podendo verificar-se quanto ao “…exercício de uma actividade íntima e funcionalmente ligada à actividade clausulada que, não tendo sido excluídas pelo contrato, seja de presumir a sua não exclusão por um locador normal colocado na situação do senhorio.” (A. e ob. cit., pág. 230) – sublinhados nossos. Também David Magalhães (A Resolução do Contrato de Arrendamento Urbano, 2009, pág. 249 e segs.) tem o mesmo entendimento, citado a supra mencionada opinião de Lobo Xavier e, acrescenta, “Não deixa de se verificar uma mudança de fim ou ramo do negócio quando, não tendo o fim convencionado sido substituído por outro, este lhe é adicionado (…) É de considerar que se está dentro do perímetro do ramo de negócio convencionado no contrato quando o senhorio, segundo os ditames da boa fé (…) pudesse ou devesse contar com a prática de certos actos pelo arrendatário ainda que não compreendido pelo teor literal do negócio…” Sá Carneiro de Figueiredo (Contrato de Arrendamento – Resolução – Fim ou Ramo de Negócio Diverso, ROA, ano 39, Vol. II, Mai./Ago., 1979, pág. 343 e segs, em comentário concordante com o acórdão do STJ, de 26/03/1976 (Proc. 65 939, BMJ, 255, pág. 140) defende que “…a causa de resolução prevista no artº 1093º nº 1, al. b), não respeita àqueles ramos do negócio que, por necessários, ou intimamente ligados ao ramo autorizado, não são contratualmente excluídos pelo senhorio, nem seja de presumir que o fosse.” E, concordando com a decisão do STJ, acrescenta que este aresto “…definiu um critério de interpretação que, além de mais razoável e equilibrado, respeita à vontade das partes e o significado próprio da proibição legal.” (pág. 348). Recorde-se que no sumário desse acórdão (STJ, de 26/03/1976, BMJ, 225, pág. 140) foi escrito: “II- A locução “ramo de negócio diverso” usada na al. b) do nº 1 do artº 1093º do Código Civil não abrange o negócio que por necessário ou intimamente ligado, não foi contratualmente excluído nem seja de presumir essa exclusão.” Destes ensinamentos poderemos concluir que: somente será lícito o uso do locado para fim diverso, para efeitos do artº 1083º nº 2, al. c) do CC, desde que: i)- Esse uso corresponda, estritamente, ao exercício de uma actividade íntima e funcionalmente ligada à actividade clausulada; ii)- Que, não tendo sido excluída pelo contrato; e, iii)- Seja de presumir a sua não exclusão por um locador normal colocado na situação do senhorio. Regressemos ao caso dos autos. Recorde-se que na cláusula 2 do contrato foi estipulado: “A citada loja é destinada somente a negócio de livraria e de mobiliário escolar e, por isso, nenhum outro uso ou destino lhe será dado sem o consentimento escrito dos senhorios, reconhecido por notário.” Apurou-se, dos factos provados, a utilização da sobreloja para exposições de artes plásticas, leituras encenadas e concertos, acontece desde 2016; e a exploração do café/bar, embora não se tenha apurado quando tenha tido início, admite-se que possa ter ocorrido desde então. Pois bem, da comparação daquela cláusula contratual com esta factualidade é fácil concluir que: a) - As actividades de galerista de artes plásticas, leituras encenadas, concertos e exploração de café/bar não podem considerar-se actividades íntima e funcionalmente ligadas às actividades de venda de livros e mobiliário escolar; b) - As actividades de galerista de artes plásticas, leituras encenadas, concertos e exploração de café/bar devem considerar-se excluídas pelo contrato dado que nele, perentória e expressamente, se excluíram quaisquer actividades que não o negócio de livraria e venda de mobiliário escolar; c) – O uso do advérbio de modo “somente” e a locução “nenhum outro uso ou destino lhe será dado” excluem a possibilidade de interpretação de uma autorização implícita do senhorio para a prática daquelas actividades de galerista de artes plásticas, leituras encenadas, concertos e exploração de café/bar. A circunstância do exercício daquelas actividade estar previsto no Plano de Insolvência – Ponto 2. Conteúdo do Plano de Insolvência (fls. 9 do doc. 3 junto com a contestação – que diz: “Na sobreloja da Rua 2 foi criado um espaço para eventos, exposições, conferências, semanas temáticas, espectáculos teatrais e serões musicais. Irá brevemente incluir um espaço para bar de apoio à Livraria e às restantes actividades que ali se venham a desenvolver o qual permitirá não só atrair mais pessoas ao espaço como promover a venda dos livros, nomeadamente o livro de culinária acima referido, através da venda de produtos confeccionados com base em receitas do mencionado livro. Este espaço permitirá, igualmente, a realização de serões culturais, tertúlias e outro tipo de partilhas de ideias como também foi tradição da Sá da Costa.” - em nada altera as conclusões a que chegamos de as novas actividades não poderem considerar-se actividades íntima e funcionalmente ligadas às actividades de venda de livros e mobiliário escolar. Na verdade, são actividades que podem ter relevância económica para a actividade da ré e para a sua recuperação enquanto empresa, permitindo-lhe outras fontes de receita, mas que, funcionalmente, não podem ter-se como intimamente ligadas ou funcionalmente conexas com a actividade de livraria e venda de mobiliário escolar. Note-se que a aprovação do Plano de Insolvência não tem por efeito afectar, rectius, modificar o conteúdo do contrato de arrendamento quanto ao fim contratualmente estipulado. Com efeito, em termos simples pode dizer-se que o Plano de Insolvência é relativo e visa regular a satisfação dos créditos sobre a massa insolvente e a responsabilidade do devedor depois de findo o processo de insolvência (artº 192º nº 1 do CIRE); e o conteúdo do Plano reporta-se à situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor; o modo de pagamento aos credores (artº 195º do CIRE); e, mesmo no que respeita às providências específicas quanto às sociedades comerciais nada se prevê quanto à alteração “forçada” de contratos de arrendamento (artº 198º do CIRE); de resto, a sentença de homologação do Plano de Insolvência apenas confere eficácia a quaisquer actos ou negócios jurídicos previstos no Plano de Insolvência, desde que constem no processo, por escrito, as necessárias declarações de terceiros e de credores (artº 217º do CIRE). Note-se que não foi alegado que as senhorias tenham consentido na alteração, rectius, aditamento daquelas novas actividades. 3.2.6 - A solução jurídica do caso. À vista do que se expôs, facilmente se conclui que a ré, ao passar a exercer no locado “novas” actividades, desrespeitou/incumpriu o contrato de arrendamento caindo, desse modo, sob a alçada do artº 1083º nº 2, al. c) do CC: uso do locado para fim diverso daquele a que se destina. O uso do locado para fim diverso daquele a que se destina faculta ao senhorio o direito de obter a resolução do contrato. Essa resolução é decretada judicialmente, “nos termos da lei de processo” (artº 1084º nº 1 do CC). Como vimos acima, seguindo a lição de Januário Gomes/Cláudia Madaleno, o corpo do nº 2 do artº 1083º do CC é auto-suficiente, constituindo uma cláusula geral que abrange qualquer eventualidade que integre um incumprimento objectivo do contrato cuja gravidade ou consequências torne inexigível a manutenção do contrato. Já as cinco alíneas do nº 2 do artº 1083º correspondem a situações típicas de incumprimento aptas a preencher o quantum necessário de gravidade e de consequências para ditar a inexigibilidade. Essas alíneas auxiliam o intérprete-aplicador a melhor entender o corpo do nº 2, uma vez que constituem exemplos normativos relevantes. O nº 2 e as diversas alíneas aplicam-se em conjunto, mas o grau de densidade de cada uma dessas alíneas é diverso, considerando que o alinhamento das alíneas vai no sentido de grau de uma densidade crescente: a violação das regras de higiene, tem uma densidade mínima, devendo ponderar-se a sua gravidade ou consequências; a utilização contrária à ordem pública ou bons costumes é, apriori, grave e a ponderação é menor; o uso para fim diverso (al. c)), o não-uso (al. d)) e a cessão não autorizada (al. e)) têm um conteúdo valorativo crescente tão negativo que, a sua gravidade se torna apriorística. Em termos práticos quando o locador demonstre factos integrativos de alguma das alíneas do nº 2 do artº 1083º, infere-se, à partida, um suficiente grau de gravidade ou de consequências, cabendo ao arrendatário, opositor alegar factos e prová-los que permitam ao julgador minimizar o juízo daí resultante. E referem estes autores, em relação à al. c) do nº 2, que o uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina, com o acrescento operado pela Lei 31/2012 – “…ainda que a alteração do uso não implique maior desgaste ou desvalorização do prédio” – “É seguramente muito grave: invade a ordem dominial, implica a quebra de confiança e traduz um risco potencial para a coisa. As consequências não relevam, para mais após a reforma de 2012. A resolução procede mesmo que quando o desvio do uso seja pequeno seja reversível. A passagem pelo artº 1083º nº 2 surge como mera cautela.” (AA e ob. cit., pág. 238). Concordamos com este entendimento, tanto mais que o legislador, na reforma de 2012 do RAU (Lei 31/2012) acrescentou expressamente ao corpo da al. c) do nº 2, a expressão “…ainda que a alteração do uso não implique maior desgaste ou desvalorização para o prédio.”, eliminando, na prática, a necessidade de verificação de uma situação de “gravidade” ou “consequências” que tornem inexigível, para o senhorio, a manutenção do arrendamento. Aliás, é necessário compreender que o corpo do nº 2 tanto é aplicável no caso de a acção de resolução do contrato de arrendamento ser instaurada pelo inquilino, como pelo senhorio e, as alíneas a) a e) do nº 2 são e aplicação exclusiva aos senhorios. Daí que como referem Januário Gomes/Cláudia Madaleno, o alinhamento das alíneas vai no sentido de grau de uma densidade crescente e, no caso de uso para fim diverso, não uso ou a cessão não autorizada têm um conteúdo negativo tão forte que a sua gravidade dispensa a demonstração da “gravidade e consequências que torne inexigível a manutenção do contrato”. Objectivamente, à luz da boa fé, que rege a celebração e a execução dos contratos, pensamos não ser exigível ao senhorio ter de “suportar” a manutenção/continuação de um arrendamento em que o inquilino passou a exercer actividade diversa daquela que foi estipulada e, que o próprio contrato excluía. Diferentemente, porém, as situações em que não estão previstas nas alíneas do nº 2 do artº 1083º do CC, e que constituem violação dos deveres do inquilino, referidas no artº 1038º do CC, que podem levar o senhorio a peticionar a resolução do contrato, como, por exemplo, uma pintura pelo inquilino de cores berrantes das paredes externas do locado, a recusa de facultar ao senhorio o exame do locado, a utilização imprudente do locado, obstaculizar reparações urgentes no locado, não avisar o senhorio de ocorrência de vícios da coisa, ameaça de algum perigo, ou que terceiros se arrogam de direitos em relação ao locado. A esta luz somos a concluir que procede a pretensão das autoras de resolução do contrato de arrendamento. Uma última nota. A 1ª instância, em obiter dictum, mencionou que “…a posição das Autoras, no estrito sentido da obtenção do despejo com base neste circunstancialismo e face à ausência de prova quanto à alegação de que apenas tardiamente (pouco tempo antes da propositura da acção) teriam tomado conhecimento daquele pretenso uso diverso do locado, constituiria, a proceder, uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, pois que obteriam agora o despejo com base num circunstancialismo que durante anos, se não autorizou, pelo menos, tolerou.” Salvo o devido respeito, não podemos concordar com estas considerações, por duas razões muito simples: Primeira: importa distinguir o venire contra factum proprium da supressio. A proibição do venire contra factum proprium, baseia-se na máxima de a ninguém ser permitido agir contra o seu próprio acto. À partida, ela exprime a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assuma comportamentos contraditórios. Baseia-se na ideia de boa fé e no princípio da tutela da confiança: o agente fica adstrito a não contradizer o que primeiro disse ou fez. Apenas em circunstâncias especiais o direito proíbe o venire; uma dessas circunstâncias ocorre nas situações em que é criada uma aparência jurídica em termos tais que suscita a confiança das pessoas. A confiança digna de tutela radica em algo objectivo: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura. Para que a conduta em causa possa ser considerada em relação à criação de confiança é preciso que ela, directa ou indirectamente, revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro. A supressio, por sua vez, enquanto modalidade do abuso do direito, reporta-se a uma situação em que uma posição de direito subjectivo que não foi exercida, em determinadas circunstâncias, e por um certo lapso de tempo, determina que não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa fé (Cf. Menezes Cordeiro, Tratado, I, Parte Geral, tomo IV, pág. 313). Traduz uma forma de tutela da confiança do beneficiário, perante a inacção do titular do direito. Afasta-se do venire contra factum proprium por este ter como pressuposto uma actuação positiva e a supressio ter na sua génese uma omissão (Cf. Menezes Cordeiro, Tratado, I, tomo IV, cit., pág. 323, lição que de perto seguimos). Desta breve distinção, parece-nos fácil perceber que a supressio pressupõe uma omissão de actução, enquanto o venire contra factum proprium pressupõe uma acção. No caso dos autos, a 1ª instância qualificou um suposto conhecimento, pelas senhorias, da situação de alteração do fim do locado para concluir que nada fizeram anteriormente e que agora pretendem o despejo. Se isso tivesse acontecido – e não se provou esse conhecimento anterior pelas senhorias nem a omissão de actuação – tratar-se-ia de um caso de supressio. Segunda: ambas as mencionadas modalidades de abuso do direito têm como pressuposto/requisito a criação de uma situação de confiança em que não haverá acto contrário ao praticado anteriormente ou acto contrário à falta de actuação anterior. No caso, não se provou, de resto nem foi alegada, a situação de confiança da ré digna de tutela. Em síntese, não há abuso do direito por bandas das senhorias. 3.2.7- Consequências da solução jurídica quanto aos pedidos. Do que se expôs resulta que há fundamento para a resolução do contrato de arrendamento e, por conseguinte, para condenar a ré a restituir o locado, nos termos do que resulta dos artºs 1038º al. i) e 1087º do CC. Devolução essa do locado que se torna exigível no prazo de um mês após o trânsito em julgado da decisão de resolução do contrato (artº 1087º do CC). Igualmente, há fundamento para condenar a ré a pagar o valor mensal correspondente ao da renda, até à efectiva entrega do locado (artº 1045º nº 1 do CC). A esta vista conclui-se que a acção procede totalmente e, por consequência impõe-se revogar a sentença sob impugnação. *** III- DECISÃO. Em face do exposto, acordam os juízes desembargadores que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso procedente e, por conseguinte, revogam a sentença sob impugnação e, em consequência: a) - Declaram resolvido o contrato de arrendamento; b) -Determinam a entrega do locado livre e devoluto, sendo exigível a restituição, decorrido um mês após o trânsito em julgado da decisão de resolução do contrato; c)- Condenam a ré a pagar, mensalmente, o valor correspondente ao da renda, até à entrega efectiva do locado. Custas, na 1ª instância e na instância de recurso, pela ré. Lisboa, 11/09/2025 Adeodato Brotas Anabela Calafate Elsa Torres e Melo |