Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1089/22.7PALSB.L1-9
Relator: EDUARDO DE SOUSA PAIVA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
DESISTÊNCIA DA QUEIXA
EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/23/2025
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Sumário (da responsabilidade do Relator):
I. Para a qualificação da conduta como crime de violência doméstica, muito embora não se exija a reiteração, também não o é qualquer ato de agressão, tornando-se necessário que este se revista de gravidade, demonstrada pela crueldade, subjugação ou humilhar por parte do agente, colocando em causa a dignidade da vítima.
II. Tendo havido desistência de queixa, é inútil, e como tal fica prejudicada, a apreciação da impugnação da matéria de facto, quando os factos não provados que o recorrente pretende que passem a provados não permitam, em conjunto com os demais factos provados, a qualificação da conduta do arguido como crime público.
III. Assim, no caso, mesmo que se concluísse que a agressão física foi executada com a mão fechada e que provocou dor na face da ofendida e ainda que o arguido dirigiu à ofendida as expressões injuriosas descritas, não estaríamos perante, nem um crime de violência doméstica, nem um crime de ofensa à integridade física qualificado, mas apenas perante um crime de ofensa à integridade física simples e um crime de injúrias, relativamente aos quais ocorreu válida desistência de queixa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
No processo comum singular nº 1089/22.7PALSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local Criminal de Loures – Juiz 1, por sentença proferida a .../.../2025, o arguido AA foi absolvido da prática de “um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, n.º 1, als. b) e c) e n.ºs 2, al. a), 4 do Código Penal” e de “um crime de crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º, n.º 1, 145º, n.º 1, al. a) e 132º, n.ºs 2, als. b), todos do Código Penal”, e foi homologada “na sequência da convolação dos factos para o crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1, do C.P., a desistência de queixa apresentada e, consequentemente”, foi declarado “extinto o procedimento criminal que sobre o arguido impendia”.
***
Inconformado, o Ministério Público interpôs o presente recurso, apresentando, após aperfeiçoamento, as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso visa, por um lado, impugnar a matéria de facto dada como não provada, uma vez que, atenta a prova produzida, o Ministério Público não concorda que tivessem sido dados como não provados os factos identificados na sentença sob os pontos A., B., D, E., F. e G.
2. Tal desiderato almejado apenas pode ser atingido analisando a prova produzida em audiência, sendo que, para o efeito, será, de seguida, cumprido o ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do Código Processo Penal.
3. Analisada a motivação apresentada na sentença ora recorrida, verifica-se que a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo decidiu que, relativamente às injúrias, alegadamente, proferidas pelo arguido, mais precisamente, os factos dados como não provados e identificados na sentença sob os pontos A., B. e G., as mesmas resultaram como não provados em virtude de, não obstante o arguido não as ter negado, de forma perentória, como efetuou com a agressão, “…no decurso dessa discussão, tanto a ofendida como o arguido, ofenderam-se mutuamente, sendo que, nenhum se recorda dos impropérios proferidos…”.
4. No entanto, analisada, em pormenor, a prova efetuada, mormente as declarações de BB, em sede de audiência de julgamento (audiência de julgamento de ........2025), verifica-se que, ao invés do que consta da sentença ora recorrida, instada, de forma direta, pelo Ministério Público quanto às injúrias sofridas, a vítima afirmou, de forma perentória, num primeiro momento, que, na supramencionada circunstância de tempo e lugar, o arguido apelidou-a “PUTA” e “VACA”, sendo que, num segundo momento, confirmou, de igual forma, que o arguido dirigiu-se-lhe e afirmou “-És a mais barata das mulheres?”, vide minuto 6 e 23 segundos e seguintes da gravação 20250311104115_6327459_2871232 e, para enquadramento, a transcrição efetuada e presente nas motivações do presente recurso.
5. Da mesma forma, a Meritíssima Juiz de Direito do Tribunal a quo considerou não ter ficado provado que a ofendida tivesse sofrido dores na sequência da agressão de que foi vítima (ponto D. dos factos dados como não provados), em virtude de, alegadamente “…a ofendida referiu que não sentiu dores, após a pancada, apenas ficou uma marca…”.
6. No entanto, ouvida com acuidade e atenção as declarações prestadas pela ofendida, verifica-se que a mesma, em momento algum, referiu não ter sentido dores.
7. De salientar que, embora não tenha expressamente dito que sentiu dores, a ofendida atestou que ficou com a cara vermelha na sequência da pancada que sofreu por parte do arguido, vermelhidão essa que foi vislumbrada, de igual forma, minutos depois, pela sua filha, vide minuto 6 e 23 segundos e seguintes da gravação 20250311104115_6327459_2871232 (audiência de julgamento de ........2025), fls. 176 a 196, minuto 05:41 da gravação 20240227111908_96856_4747682 (declarações para memória futura) e a transcrições efetuadas e presentes nas motivações do presente recurso.
8. Ora, resulta das regras da lógica e da experiência comum que, uma bofetada/pancada que marca a cara da ofendida, cuja vermelhidão se mantém por alguns minutos, provoca, necessariamente, dor.
9. Assim, tendo a ofendida afirmado, de forma perentória que, na sequência da agressão que sofreu pelo arguido, ficou com a cara vermelha, consequência física que foi, posteriormente, confirmada e presenciada, pela filha menor desta, não se consegue compreender, como é que a Meritíssima Juiz de Direito do Tribunal a quo, sem nunca a questionar sobre tal realidade, conclui que a mesma não sofreu dores.
10. Conforme anteriormente se adiantou, o Ministério Público não concorda com as conclusões atingidas na decisão proferida em sede de 1.ª Instância, uma vez que, em nosso entendimento, a interpretação das declarações da ofendida e da sua filha pelo Tribunal a quo foi totalmente oposto ao que, na realidade, foi produzido/proferido, ou seja, nas motivações que estiveram na génese dos factos dados como provados a Meritíssima Juiz de Direito do Tribunal recorrido infere, de forma totalmente injustificada, o contrário daquilo que foi, perentoriamente, atestado pelas testemunhas.
11. Não se olvida que devem prevalecer os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, os quais são próprios e intrínsecos nas decisões da 1.ª Instância, no entanto, no caso em apreço, consideramos ter existido um erro grosseiro na apreciação da prova recolhida, uma vez que, da conjugação de todos depoimentos prestados em audiência conjugada com a restante prova produzida e existente nos autos, e as regras da lógica e da experiência comum, outro resultado deveria, necessariamente, ter sido alcançado.
12. Com base nos argumentos anteriormente expendidos, consideramos que deveria ser dado como provada, a seguinte factualidade:
1. O arguido e a vítima BB coabitaram, como se casados um com o outro fossem, no período compreendido entre os anos de ... e ..., quando findaram tal relacionamento amoroso e coabitação.
2. Arguido e vítima são progenitores comuns de CC, nascida em ... de ... de 2012.
3. Por sentença judicial homologatória de ... de ... de 2020, o exercício das responsabilidades parentais pertinentes à menor CC foi regulado no sentido de esta ficar a residir com a mãe.
4. No dia ... de ... de 2022, pelas 08H15, na sequência de acordo prévio nesse sentido com o arguido, a vítima BB, conduzindo seu veículo automóvel, compareceu junto à residência do arguido, sita na ..., com o propósito de recolher a filha comum CC, que aí estivera a privar com seu pai.
5. Nessas circunstâncias, a vítima aparcou seu veículo junto à residência do arguido, tendo este, volvidos alguns momentos, vindo ao seu encontro.
6. Quando a vítima se encontrava sentada ao volante da sua viatura, o arguido iniciou uma discussão com a mesma, em virtude desta ter saído na noite anterior, sendo que, no decorrer desta discussão apelidou-a de “PUTA”, “VACA” e “ÉS A MAIS BARATA DAS MULHERES”.
7. Ato contínuo, no decorrer da referida discussão, prevalecendo-se de o vidro da janela contígua ao banco ocupado pela vítima estar aberto, o arguido, através de tal abertura, desferiu uma pancada na face esquerda da vítima, causando-lhe dores e vermelhidão momentânea na zona atingida.
8. De seguida, o arguido desferiu uma cuspidela em tal vidro.
9. O arguido entrou então na respetiva residência, daí recolhendo a filha comum CC, conduzindo-a ao veículo da vítima.
9. Volvidos alguns momentos, quando a menor CC já entrara em tal veículo, o arguido desferiu um pontapé audível na porta correspondente ao lugar ocupado pela filha de ambos, fazendo com que a vítima ficasse ciente de tal conduta, que sabia idónea e adequada a causar-lhe temor e inquietação.
10. Ao agir da forma descrita, teve o arguido o propósito de humilhar e maltratar a vítima BB, apesar de saber que lhe devia particular respeito e consideração, na qualidade de sua ex-companheira e de mãe de sua filha CC, não se coibindo de assim atuar na presença desta.
11. Para o efeito, não se coibiu o arguido de molestar a integridade física da vítima, o que quis e logrou, bem sabendo que assim procedia contra sua ex-companheira e mãe de sua filha.
12. Para o efeito, não se coibiu o arguido de dirigir à vítima expressões que sabia idóneas e adequadas a atingir a honra e consideração que lhe são devidas.
13. Agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
13. Consequentemente, deveria ser o arguido AA condenado pela prática, a título de autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1, als. b) e c) e n.º 2 al. a) do Código Penal, em concurso aparente com um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.ºs 143º, n.º 1, 145º, n.º 1, al. a), 132º, n.º 2, al. b) do Código Penal e um crime de injúria agravada, p. e p. pelo art.º 184.º ex vi art.º 181.º, n.º 1 e art.º 132.º, n.º 2 al. b), todos do Código Penal.
14. No entanto, caso esse não seja o entendimento do Tribunal da Relação, ou seja, se os factos supramencionados não consubstanciarem a prática de um crime de violência doméstica, realidade que, por mero exercício intelectual se compagina, consideramos que, de igual forma, mal andou o Tribunal a quo ao qualificar a factualidade descrita como um mero crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1 do Código Penal, e, consequentemente, em virtude da desistência de queixa apresentada pela ofendida, absolver o arguido da prática deste ilícito.
15. É entendimento do Ministério Público que a factualidade supramencionada, caso não seja qualificada com sendo a prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1, als. b) e c) e n.º 2 al. a) do Código Penal, deverá ser enquadrada juridicamente como consubstanciando a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.ºs 143º, n.º 1, 145º, n.º 1, al. a), 132º, n.º 2, al. b) do Código Penal.
16. A incriminação agravada das agressões e dos maus tratos conjugais ou relações análogas, encontra-se intimamente interligada com a necessidade de recriminar o crescente aumento da sua prática, pelo que o legislador nacional considerou/entendeu que qualidades ou relações como as descritas no art.º 132.º, n.º 2 do Código Penal agravam potencialmente a censurabilidade ou a perversidade com que o crime é praticado.
17. Não obstante as situações previstas no n.º 2 do art.º 132.º do Código Penal não serem de preenchimento automático, consideramos que para as desqualificar, não basta, como ocorreu na sentença que ora se recorre, que o julgador, de forma genérica, abstrata e infundamentada, conclua que determinada agressão no decorrer de uma relação familiar prevista no supramencionado preceito legal, não reveste uma especial censurabilidade ou perversidade, sob pena de, subverter, de forma totalmente injustificada, a intenção do legislador, o qual, de forma perentória, considerou ser indiciador de tal juízo agravante a existência de laços familiares básicos com a vítima.
18. Em nosso entendimento, o momento, a forma e o local como os factos ora em análise foram executados revelam/evidenciam, sem quaisquer margens para dúvidas, a existência de uma especial censurabilidade ou perversidade da atuação delituosa assumida pelo arguido, tendo em consideração que, no dia ... de ... de 2022, a ofendida deslocou-se até às imediações da residência deste, no cumprimento do exercício das responsabilidades parentais relativamente à filha comum de ambos, sendo que, quando aguardava por esta, no interior da sua viatura automóvel, para a transportar até uma ida ao teatro com outras amigas, circunstância que era do conhecimento do arguido, foi abordada por este, o qual, sem que nada o fizesse prever, iniciou uma discussão com a vítima, única e simplesmente, por esta ter “ousado” sair à noite em data anterior, sem comunicar-lhe ou talvez pedir-lhe autorização, injuriando-a e apelidando-a de “- Puta!”, “-Vaca” e “És a mais barata das mulheres”, agredindo-a, de seguida, introduzindo a sua mão e braço no interior da viatura automóvel da mesma, desferindo-lhe uma pancada com uma das suas mãos na zona da face, cuspindo-lhe, de seguida, para o vidro do carro.
19. Assim, atentos os factos que deveriam ter sido dados como provados, conforme referenciado supra, consideramos que, a não ser condenado pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1, als. b) e c), e n.ºs 2, al. ado Código Penal, deveria o arguido AA ser condenado pela prática, a título de autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.s 143º, n.º 1, 145º, n.º 1, al. a), 132º, n.º 2, al. b) do Código Penal.»
*
O recurso foi admitido com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo.
*
O arguido respondeu, pugnando pela improcedência do recurso e concluindo o seguinte:
«A. O Ministério Público, delimitou a suas alegações, sustentando a existência de Erro no julgamento sobre a matéria de facto e erro na interpretação do direito.
B. Defende que mal andou o Tribunal a quo, quando defendeu que, “às injúrias, alegadamente, proferidas pelo arguido, as mesmas resultaram como não provados em virtude de, não obstante o arguido não as ter negado, de forma peremptória, como efectuou com a agressão, “…no decurso dessa discussão, tanto a, ofendida como o arguido, ofenderam-se mutuamente, sendo que, nenhum se recorda dos impropérios proferidos…”.
C. Para tanto, defende que “em pormenor, a prova efectuada, mormente as declarações de BB, em sede de audiência de julgamento, verifica-se que tal não desiderato descrito na sentença ora recorrida não corresponde ao sucedido, uma vez que, instada, de forma directa, pelo Ministério Público quanto às injúrias sofridas, a vítima afirmou, de forma peremptória, num primeiro momento, que, na supramencionada circunstância de tempo e lugar, o arguido apelidou-a “PUTA” e “VACA”, sendo que, num segundo momento, confirmou, de igual forma, que o arguido dirigiu-se-lhe e afirmou “-És a mais barata das mulheres?”.
D. No entanto, o Arguido não pode apoiar tal pretensão, uma vez que esta não corresponde à verdade e está mal interpretada.
E. Ao analisar detalhadamente as declarações da ofendida, que foram transcritas para os autos pelo Ministério Público, é evidente a discrepância.
F. Das declarações da Ofendida, e transcritas pelo Ministério Público, conclui-se que esta, não consegue precisar em concreto quais as injúrias proferidas, quando a mesma afirma “Procurador: Que nomes feios é que foram ditos? O arguido chamou-lhe alguma coisa? Tem de dizer, este local é o único local em que a senhora pode e deve dizer aquilo que lhe foi dito e não tem quaisquer repercussões sobre isso, o que é que o arguido lhe chamou? Apelidou-a de alguma coisa? Ofendida: Sim, apelidou e eu também, eu depois também tive de Procurador: Mas o que é que…o que é que apelidou-a de quê? Ofendida: Quer que eu diga mesmo? Procurador: Quero. Ofendida: És uma puta, és uma vaca, essas coisas!”
G. Por outro lado, também proferiu injúrias contra o Arguido, ou seja, as injúrias foram mútuas, veja-se que refere: Procurador: E a senhora respondeu-lhe, é isso? Ofendida: Eu respondi-lhe! Procurador: Disse-lhe o que, chamou-lhe nomes também? Ofendida: Também chamei nomes Procurador: Que nomes foram esses? Ofendida: Sei lá, deve ser o mais corrente, filho da puta és tu, és um cabrão, qualquer coisa assim desse género Procurador: Chamaram nomes um ao outro? Ofendida: Sim
H. Em conclusão, e de forma clara e inequívoca, a Ofendida declara que não tem conhecimento sobre quem deu início à discussão, uma vez que ambos estavam visivelmente alterados.
I. Não se pode afirmar com certeza que foi o Arguido quem injuriou a Ofendida em primeiro lugar, considerando que se tratou de uma discussão caracterizada por injúrias mútuas.
J. Veja-se que a Ofendida, afirma, nas declarações trazidas aos autos pelo Ministério Público que: Procurador: Chamaram nomes um ao outro? Ofendida: Sim Procurador: Mas a discussão foi iniciada por si ou pelo arguido? Ou seja, foi a senhora que lhe começou a chamar nomes ou foi o arguido que lhe começou a chamar nomes a si? Ofendida: Se quer que lhe diga, porque foi uma situação que foi espontânea, eu não sei, eu não consigo dizer quem é que começou, não me lembro Procurador: Mas a senhora chateou-se com ele? Ofendida: Eu também estava chateada porque ele não compreendia que a minha filha estava sozinha, estava com os avós, eu não fui negligente, eu não fui para os copos com os meus colegas e deixei a minha filha sozinha, isso não aconteceu.
K. Mais, das declarações da Ofendida, do Arguido, da Menor, do depoimento da testemunha arrolada pelo Arguido, conclui-se que a relação entre ambos, se encontrava munida de discussões, sendo sempre uma relação instável, onde as discussões eram normais e recorrentes.
L. Deste modo, ao contrário do defendido pelo Ministério Público, não merece nenhum reparo os factos dados como provados e não provados pelo Tribunal a quo.
M. Sendo certa a fundamentação do Tribunal a quo, quando afirma que: “Assim, uma vez que a menor em sede declarações para memória futura, bem como a irmã do arguido são perentórias afirmar que a relação é conflituosa e existem sempre ofensas de parte a parte o que leva a que o Tribunal não ignore que tenham sido proferidos alguns insultos pelo arguido, mas também pela ofendida. Sempre se diga que, independentemente de o Tribunal ter formado a convicção de que foram proferidos insultos entre o arguido e a ofendida, a verdade é que não foi passível perceber e delinear que insultos é que foram enunciados. A ofendida indicou alguns insultos que podem ter sido referidos, mas imediatamente salvaguardou que são os comuns e que também respondeu ao arguido.”
N. Por outro lado, defende o Ministério Público que sempre se deveria considerar como provado que a Ofendida sofrera dores com a agressão do Arguido.
O. No entanto, nas suas declarações, a Ofendida não menciona ter sofrido dores.
P. Refere ter ficado com marca no rosto, mas também minimiza a gravidade do ocorrido.
Q. É evidente que a Ofendida, embora não negue a agressão, sugere e afirma, que foi algo muito rápido, e a verdade é que, das suas declarações, não se entende em concreto, quem
foi o responsável pelo início da situação.
R. Veja-se que a mesma, refere: “Procurador: A senhora estava dentro do carro? Houve alguma agressão? Ofendida: Houve, eu dentro do carro, com o vidro semi-aberto e ele assim, braços para um lado, braços para o outro, a empurrarmo-nos um ao outro Procurador: Empurrar-nos um ao outro? A senhora sofreu alguma agressão ou não? A senhora estava dentro do carro. Quem é que introduziu os braços dentro do carro? Ofendida: Foi ele, né? Com a mão. Procurador: Bateu-lhe na cara? Isto só está a ficar gravado a senhora juntou a mão à cara. Ofendida: Sim, sim. Procurador: O que é que aconteceu? Ofendida: Então ele fez assim e depois eu empurrei-o também.
S. Realce-se que refere: “Houve, eu dentro do carro, com o vidro semi-aberto e ele assim, braços para um lado, braços para o outro, a empurrarmo-nos um ao outro”
T. Quando questionada quanto ao tipo de agressão, releva, referindo: Procurador: Ele deu-lhe uma palmada na cara, é isso? Ofendida: Sim, mas não fiquei com sangue, nem nada disso. Procurador: Não é isso que lhe estou a perguntar, o que lhe estou a perguntar é que se ele introduziu a mão dele dentro do seu carro e lhe deu uma bofetada ou foi um murro, foi de mão fechada ou de mão aberta, como é que foi? Ofendida: Isso não me lembro, sei que o vidro estava aberto, mas não foi nada, que eu não fiquei ali a morrer, percebe?.
U. Assim, não assiste razão ao Ministério Público, quando alega e defende que deveria constar dos factos provados que a Ofendida sofrera dores, fruto da agressão.
V. Bem andou o Tribunal a quo, ao defender que “Quanto à pancada que o arguido desferiu não foi possível determinar se a mesma foi com a mãe fechada, porque a ofendida não logrou descrevê-lo e o arguido negou os factos. Ademais, a ofendida referiu que não sentiu dores, após a pancada, apenas ficou uma marca.”
W. Consequência da alteração fáctica proposta pelo Ministério Público, este sustenta que a conduta do arguido, se enquadra no tipo de crime de violência doméstica, conforme previsto no artigo 152.º do Código Penal.
X. No entanto, ao concluir, e tendo em conta as declarações da Ofendida que o Ministério Público transcreve para os autos, é possível inferir a existência de agressões recíprocas.
Y. “E, em situação de agressões recíprocas (seja de que tipo forem), não é atingido o bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, não tendo ocorrido uma relação de domínio ou subjugação e submissão, diminuindo a dignidade da pessoa humana, de um agente sobre o outro.”, lê-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo 169/22.3PFLRS.L1-9.
Z. Na verdade, das declarações da Ofendida, não se extraem elementos probatórios que indiquem que o Arguido exerceu ou exerça sobre esta uma posição de domínio e poder, causando-lhe uma situação de submissão ou perturbando de tal modo, que comprometa a sua dignidade humana.
AA. Mesmo no que diz respeito às expressões utilizadas pelo Arguido em relação à Ofendida, é importante salientar, conforme afirmado pela própria, que foram mútuas, não podem considerar-se ofensivas da honra e da dignidade desta.
BB. O que se pretende afirmar é que o Arguido, ao proferir determinadas palavras que possam ser consideradas ofensivas, agiu no contexto de uma discussão, tendo em conta o tempo e o espaço em que se encontrava, bem como os motivos concretos que o levaram a tal
comportamento.
CC. Em momento algum, o Arguido teve a intenção de causar qualquer tipo de lesão grave, intolerável ou verdadeiramente pesada à vítima, pelo que a sua conduta não pode ser
classificada como crime de violência doméstica.
DD. Aliás, a grande dificuldade da qualificação deste crime está em delimitar os casos em que a conduta é subsumível ao crime de violência doméstica, daqueles em que integra outros tipos de crime, tais como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça, a coação, a perturbação da vida privada, entre outros.
EE. A solução para isso, conforme consta no Acórdão da R.P. de 13/06/2018, proferido no proc. 189/17.0GCOVR.P1 está no conceito de «maus-tratos», sejam eles físicos ou psíquicos onde se lê: “Conforme se escreve Catarina Fernandes - O crime de Violência Doméstica, in Violência Doméstica implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, Manual Multidisciplinar, Centro de Estudos Judiciários, pág. 94, citando Teresa Magalhães, Violência e Abuso – Respostas Simples para Questões Complexas -: «Os maus tratos psíquicos são mais difíceis de caraterizar, porque se pode traduzir numa multiplicidade de comportamentos ativos e omissivos, verbais e não verbais, dirigidos direta ou indiretamente à vitima, que atingem e prejudicam o seu bem-estar psicológico, nomeadamente ameaçar, insultar, humilhar, vexar, desmoralizar, culpabilizar, atemorizar, intimidar, criticar, desprezar, rejeitar, ignorar, discriminar, manipular e exercer chantagem emocional sobre a vítima (…)».
FF. “Os maus tratos psíquicos, abrangem, assim, uma multiplicidade de comportamentos, que podem consistir em humilhações, provocações, ameaças (mesmo, que – como defende Américo Taipa de Carvalho, in ob. cit., pág. 332 – «não configuradoras em si do crime de ameaça»), os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações da liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc.” cfr., entre outros, Ac. da R.E de 08/01/2013, proc. 113/10.0TAVV.E1 e Ac. da RL de 05/07/2016.
GG. Ou seja, o comportamento tem de assumir uma dimensão ou intensidade bastante para poder ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a sua dignidade pessoal.
HH. Face ao exposto, o Arguido não considera que deva haver qualquer alteração aos factos que foram dados como provados e não provados.
II. Reafirma que a enumeração e qualificação dos mesmos, assim como a fundamentação apresentada pelo Tribunal a quo na sua respeitável Sentença, não merecem qualquer reparo.
JJ. Por fim, argumenta-se que não deve haver qualquer alteração relativamente à prova apreciada pelo Tribunal a quo.
KK. Quanto ao Direito e à qualificação jurídica da Sentença, proferida pelo Tribunal a quo, defende o Ministério Público que, sempre se deveria ter condenado o Arguido pela prática do crime ofensa à integridade física qualificada, p.p. pelo Artigo 145.º do Código Penal.
LL. Assenta tal fundamentação, por um lado, pela agressão ter sido praticada contra a ex-companheira, e por outro, porque o momento, a forma e o local de como os factos foram praticados, revestem uma especial censurabilidade e perversidade.
MM. Não podemos desconcordar mais!
NN. Consideramos que o Ministério Público não avaliou de forma adequada as provas apresentadas em Tribunal.
OO. Caso contrário, teria de reconhecer que a situação em questão se resume a uma discussão entre um ex-casal, caracterizada por injúrias e agressões mútuas.
PP. É importante notar que o Juiz, no exercício das suas funções e em conformidade com o princípio da imediação, não conseguiu identificar a presença de uma censurabilidade ou perversidade especial na conduta do Arguido.
QQ. Na verdade, foi a perceção da espontaneidade e veracidade das declarações, tanto do Arguido como, principalmente, da Ofendida, que o juiz, também assentou a sua convicção.
RR. E relembre-se que o Tribunal a quo, enquadrou a conduta do Arguido a um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º do Código Penal, mas não lhe revê especial censurabilidade e perversidade.
SS. O Ministério Público, pretende agora agravar a qualificação, no entanto, não apresenta nos autos, elementos probatórios que fundamentem tal alteração.
TT. Veja-se que, por um lado, não basta, pois, a possível conjugação dos artigos 145.º e 132.º do Código Penal, para aplicação imediata do tipo qualificado das ofensas.
UU. Nem basta, a existência de uma relação entre Arguido e Vítima, para que automaticamente se subsuma ao tipo qualificado.
VV. Necessário é, que da análise da factualidade concreta sempre se consiga, de modo claro e evidente retirar uma especial censurabilidade ou perversidade na conduta e atuação do Arguido, conforme vertido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo 700/13.5GDLLE.E1 “Não basta o facto de a vítima ser cônjuge do agente para que o crime de ofensa à integridade física seja qualificado (arts. 143º, n.º 1,e 145°, n.º l, al. a),com referência ao art. 132°, n.ºs. 1 e 2, al. b),do Código Penal). É necessário conjugar as demais circunstâncias, e verificar se essa conjugação revela especial censurabilidade ou perversidade do agente.”
WW. “A especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor (…), que denota qualidades desvaliosas da sua personalidade” – cf. Comentário Conimbricense do CP, pág. 29.
XX. É importante salientar, que tal episódio não aconteceu na presença da menor, esta não assistiu a qualquer agressão.
YY. Note-se que a vítima minimizou a agressão; embora não a negue, também não a classifica como um comportamento que desvalorize a personalidade do arguido, o que justificaria a sua condenação.
ZZ. Nem tão pouco, defendeu ou tentou demonstrar que a conduta do Arguido fazia parte da sua personalidade, seu modo de ser ou estar.
AAA. Não qualificou a conduta do Arguido como desproporcional à concreta situação,
sempre referido, que estavam ambos chateados, que estavam ambos a discutir.
BBB. Depois, quando questionada, sobre como se sentiu, referiu “senti-me de rastos”, mas não pela agressão em si, mas pela situação da discussão e de não conseguirem alcançar, entre ambos, um ambiente de tranquilidade, o que depois afirma, já existir.
CCC. Assim, o enquadramento jurídico-penal, do Tribunal a quo, tendo em conta os factos dados como provados, não merece qualquer censura, nem alteração.
DDD. Posto isto, e porque nenhum reparo nos merece a Douta Sentença recorrida, pelo que pugnamos pela sua manutenção.»
*
O Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando pela procedência do recurso, aderindo aos fundamentos deste.
*
Foi proferido despacho a efetuar o exame preliminar, mantendo-se o efeito e regime de subida do recurso.
Após os vistos, foram os autos à conferência.
Nada obsta à prolação de acórdão.
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II. OBJETO DO RECURSO
Em conformidade com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J. de 19/10/1995 (in D.R., série I-A, de 28/12/1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Atendendo às conclusões apresentadas, não obstante a sua extensão, as duas únicas questões a apreciar são a impugnação da matéria de facto e a qualificação jurídico penal dos factos, entendendo o Digno Recorrente, em síntese apertada, que os factos dados como não provados devem agora ser dados como provados, que a factualidade provada constitui a prática pelo arguido do crime de violência doméstica (p. e p. pelo artº 152º, n.º 1, als. b) e c) e n.ºs 2, al. a), e 4 do Código Penal) de que vinha acusado ou, ao menos, as agressões físicas que levou a cabo devem ser qualificadas como constituindo a prática (pelo arguido) de um crime de ofensa à integridade física qualificado (p e p. pelos arts 143º, n.º 1, 145º, n.º 1, al. a), 132º, n.º 2, al. b) do Código Penal).
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III. FUNDAMENTAÇÃO
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A) DECISÃO RECORRIDA
A sentença recorrida estabeleceu os seguintes factos provados:
«1. O arguido e a vítima BB coabitaram, como se casados um com o outro fossem, no período compreendido entre os anos de ... e ..., quando findaram tal relacionamento amoroso e coabitação.
2. Arguido e vítima são progenitores comuns de CC, nascida em ... de ... de 2012.
3. Por sentença judicial homologatória de ... de ... de 2020, o exercício das responsabilidades parentais pertinentes à menor CC foi regulado no sentido de esta ficar a residir com a mãe.
4. No dia ... de ... de 2022, pelas 08H15, na sequência de acordo prévio nesse sentido com o arguido, a vítima BB, conduzindo seu veículo automóvel, compareceu junto à residência do arguido, sita na ..., com o propósito de recolher a filha comum CC, que aí estivera a privar com seu pai.
5. Nessas circunstâncias, a vítima aparcou seu veículo junto à residência do arguido, tendo este, volvidos alguns momentos, vindo ao seu encontro.
6. Ato contínuo, prevalecendo-se de o vidro da janela contígua ao banco ocupado pela vítima estar aberto, o arguido, através de tal abertura, desferiu uma pancada com a mão na face esquerda da vítima, causando-lhe vermelhidão momentânea na zona atingida.
7. Ato contínuo, o arguido desferiu uma cuspidela em tal vidro.
8. O arguido entrou então na respetiva residência, daí recolhendo a filha comum CC, conduzindo-a ao veículo da vítima.
9. Volvidos alguns momentos, quando a menor CC já entrara em tal veículo, o arguido desferiu um pontapé audível na porta correspondente ao lugar ocupado pela filha;
10. Para o efeito, não se coibiu o arguido de molestar a integridade física da vítima, o que quis e logrou, bem sabendo que assim procedia contra sua ex-companheira e mãe de sua filha.
11. Agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
(…)»
*
A sentença recorrida estabeleceu os seguintes factos não provados:
«A. Então, quando a vítima estava ainda sentada ao volante de tal viatura, o arguido apodou-a de “SUA PUTA BARATA”.
B. A vítima fechou então tal janela, momento em que o arguido lhe declarou “NOJENTA, ÉS A MAIS BARATA DAS MULHERES”.
C. A pancada descrita em 6. foi desferida pelo arguido com a mão fechada;
D. Em consequência da pancada referida em 6. a vítima sentiu dores;
E. Ao praticar o facto elencado em 9. o arguido fez menção que a vítima ficasse ciente de tal conduta, que sabia idónea e adequada a causar-lhe temor e inquietação.
F. Ao agir da forma descrita, teve o arguido o propósito de humilhar e maltratar a vítima BB, apesar de saber que lhe devia particular respeito e consideração, na qualidade de sua ex-companheira e de mãe de sua filha CC, não se coibindo de assim atuar na presença desta.
G. Para o efeito, não se coibiu o arguido de dirigir à vítima expressões que sabia idóneas e adequadas a atingir a honra e consideração que lhe são devidas.
(…)»
*
A sentença recorrida fundamentou a decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:
«(…)
O Arguido em sede de declarações negou os factos que podiam consubstanciar a prática de um ilícito criminal, pelo que as mesmas não podem ser valoradas e tidas em consideração quando se trata de definir se este praticou ou não os factos. Sendo que, o arguido não negou que existiu uma discussão naquela data com a ofendida BB e que trocaram “galhardetes” entre si, ou seja, afirmando que pode ter apelidado a ofendida de alguns nomes, mas que esta também o fez. No mais, negou.
O Tribunal para prova do facto n.º 1, 8 e 15 atendeu às declarações do arguido e ofendida BB, os quais quanto a este aspeto foram coerentes, claros e coincidentes, pelo que mereceram a credibilidade.
No que diz respeito ao facto de o arguido e da ofendida serem os progenitores de CC e quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais (factos nºs 2 e 3) o Tribunal firmou a sua convicção com base no teor do assento de nascimento (cfr. fls. 165-166).
Os factos nºs 4 e 5 foram confirmados pelo arguido e pela ofendida BB, ambos referiram que a ofendida se deslocou a casa do arguido para ir buscar a filha de ambos, CC, uma vez que esta ia ao Teatro com uma amiga.
No que concerne ao facto elencado em 6., o Tribunal atendeu ao depoimento da ofendida BB que afirmou que tinha de certeza o vidro aberto, porque estava a fumar. Ademais, acabou por referir que assim que o arguido se aproximou dela iniciaram uma discussão, na qual este a confrontou com o facto de a menor ter ficado durante a noite com os avós e não com o pai, uma vez que estava estipulado no acordo que era o fim de semana em que a menor ficava com o progenitor.
No decurso dessa discussão, tanto a ofendida como o arguido, ofenderam-se mutuamente, sendo que, nenhum se recorda dos impropérios proferidos. Contudo, a ofendida acrescentou que entraram em confrontos físicos, que existiram empurrões entre um e outro, porém, esta estava dentro do carro e o arguido na rua.
Mais, a ofendida referiu que o arguido acabou por lhe tocar na face do lado esquerdo e que ficou com a face vermelha. Complementarmente, atendeu-se às declarações para memória futura da menor1 , a qual afirmou que, naquele dia, viu a sua mãe, aqui ofendida com uma mancha na face e que presenciou algumas chamadas entre a mãe e as amigas, nas quais a ofendida referia que tinha sido atingida na face pelo arguido. Aliás a menor referiu que ficou preocupada e questionou a progenitora sobre o que teria acontecido, porque a viu bastante alterada.
No que diz respeito ao facto n.º 7, o Tribunal atendeu às declarações para memória futura da menor, a qual afirma que viu uma cuspidela no vidro da mãe, aqui ofendida. No que a este conspecto diz respeito a ofendida afirmou que o arguido cuspiu, mas não sabe em que direção é que o fez, que terá sido direcionado para o carro, porém, o discurso da ofendida foi sempre no sentido de justificar e branquear os comportamentos do arguido, assumindo muitas vezes a responsabilidade pelo comportamento do arguido. Contudo, sempre se diga que a menor, em sede de declarações para memória futura, depôs com credibilidade e nada indica nos autos que a mesma tenha apresentado uma versão dos factos fantasiosa.
O Tribunal atendeu ainda às declarações da menor para prova do facto n.º 9, a qual referiu que quando estava no carro com a ofendida, do lado do pendura, puxou a porta com força e o arguido deu um pontapé na porta e posteriormente este dirigiu-se para sua casa. Ora, esta versão contraria a posição assumida pelo arguido, o qual referiu que apenas fechou a porta com força. A ofendida acabou por corroborar a versão da menor, inicialmente referiu que o arguido apenas fechou a porta com força, mas acabou por confirmar que o arguido deu um pontapé na porta, mas não ficou marca.
Por conseguinte, em relação ao elemento subjetivo (no ponto 10. e 11.), o juízo de convicção firmado pelo Tribunal assentou na verificação conjugada dos factos em apreço. A convicção do Tribunal quanto ao facto elencado em 12. formou-se com base nas declarações do arguido e tendo em conta que não resultou dos autos qualquer elemento que as colocasse em causa quanto a este elemento. Quanto aos antecedentes criminais atendeu-se ao teor do certificado do registo criminal a fls. 277/V (facto 13.).
A convicção do Tribunal quanto ao facto elencado em 14. formou-se com base nas declarações da ofendida BB e tendo em conta que não resultou dos autos qualquer elemento que as colocasse em causa quanto a este elemento.
*
No que diz respeito aos factos considerados como não provados entendeu-se que não foi produzida prova em sentido diverso.
Além da ofendida e do arguido, o Tribunal atendeu também às declarações de memória futura e da testemunha DD, irmã do arguido, porém, quanto ao objeto do processo não tinha conhecimento direto, mas o Tribunal considerou o seu depoimento, uma vez que corroborou o que foi afirmado pela menor, quando refere que a relação entre os seus progenitores é conflituosa e que o cerne das discussões são as responsabilidades parentais e o cumprimento do acordo estabelecido nessa sede.
Assim, uma vez que a menor em sede declarações para memória futura, bem como a irmã do arguido são perentórias afirmar que a relação é conflituosa e existem sempre ofensas de parte a parte o que leva a que o Tribunal não ignore que tenham sido proferidos alguns insultos pelo arguido, mas também pela ofendida. Sempre se diga que, independentemente de o Tribunal ter formado a convicção de que foram proferidos insultos entre o arguido e a ofendida, a verdade é que não foi passível perceber e delinear que insultos é que foram enunciados. A ofendida indicou alguns insultos que podem ter sido referidos, mas imediatamente salvaguardou que são os comuns e que também respondeu ao arguido. Nesse sentido, considerou-se como não provados os factos A., B., F. e G.
Quanto à pancada que o arguido desferiu não foi possível determinar se a mesma foi com a mão fechada, porque a ofendida não logrou descrevê-lo e o arguido negou os factos. Ademais, a ofendida referiu que não sentiu dores, após a pancada, apenas ficou uma marca. Com efeito, considerou-se como não provados os factos elencados em C. e D.
No que concerne ao facto elencado em E. considerou-se como não provado face à ausência de prova. Aliás, percebeu-se pela postura do arguido e das declarações da ofendida que existia um conflito entre ambos e que naquele dia em concreto aquele encontrava-se exaltado e para libertar toda a sua frustração acabou por pontapear o automóvel da ofendida.»
***
B) APRECIAÇÃO DO RECURSO
Conforme acima enunciado, face às “conclusões” do Digno Recorrente, importa apreciar da impugnação da matéria de facto, quanto aos factos dados como não provados e a da sua qualificação jurídico penal.
Recorde-se que o arguido vinha acusado da prática de um crime de violência doméstica, sendo-lhe imputada uma agressão física, expressões injuriosas e que tinha atuado com o propósito de maltratar e humilhar a ofendida.
A decisão recorrida considerou provada a agressão, mas não provado que que foi efetuada com a mão fechada e que tenha causado dor à ofendida. Considerou também não provadas as expressões injuriosas, bem como que o arguido tenha querido maltratar ou humilhar a ofendida.
Pretende o recorrente que, com a alteração da matéria de facto, o novo conjunto fatual provado passe a permitir a conclusão de que o arguido cometeu um crime de violência doméstica ou, ao menos, que a agressão física praticada pelo arguido seja qualificada como crime de ofensa à integridade física qualificada. Assim, a natureza pública de qualquer um destes crimes impossibilitaria a extinção do procedimento criminal por desistência de queixa, com a consequente condenação do arguido.
Quanto à impugnação da matéria de facto, o recorrente apenas indica meios de prova que, na sua perspetiva, impunham decisão diversa quanto à ocorrência e conteúdo das expressões injuriosas e quanto ao facto de a ofendida ter sofrido dor com a agressão, mas não o faz quanto ao facto de a agressão ter sido com a mão fechada, nem quanto à intenção do arguido de maltratar ou humilhar a ofendida.
E se é verdade que a ofendida, no seu depoimento, relatou ter o arguido lhe dirigido as expressões ofensivas que constavam da acusação e o Tribunal recorrido deu como não provado, o que poderia levar à conclusão de que ocorreu erro de julgamento, nesta parte, não é menos verdade que, o aditamento aos factos provados da ocorrência de tais ofensas verbais, por si só não permite qualificar a globalidade da conduta do arguido como integradora do crime de violência doméstica, como adiante melhor explicaremos.
As referidas expressões, a considerarem-se provadas, por apenas permitirem a qualificação da conduta do arguido como crime de injúrias, não poderiam levar à condenação deste, uma vez que, atenta a natureza deste crime, a desistência de queixa apresentada (e não só – mas também a falta de acusação particular nos crimes de natureza particular) e homologada impediria a responsabilização criminal do arguido.
De igual modo, o considerar-se não provado que a ofendida sentiu dor com a agressão, face às consequências desta, nomeadamente que deixou marca na zona atingida, constitui uma conclusão desconforme às regras da experiência comum, o que poderia levar à procedência, nesta parte, da impugnação da matéria de facto.
Contudo, o facto de a ofendida ter sentido dor em consequência da agressão (palmada na face) não permitiria, por si só, qualificar a globalidade da conduta do arguido como integradora do crime de violência doméstica, nem tão-pouco considerar como qualificado o crime de ofensa à integridade física, como adiante melhor veremos.
Já quanto aos factos não provados de (1) a agressão ter sido com a mão fechada e de (2) ter o arguido atuado com o propósito de maltratar e humilhar a ofendida, nem sequer foi indicada qualquer prova que impunha decisão diversa. E quando assim é, o recurso interposto sobre a matéria de facto deve ser rejeitado, por o recorrente não ter cumprido integralmente os respetivos ónus legais.
Efetivamente, nos termos do artº 412º, nº 3 do Código de Processo Penal, quando o recorrente impugne a matéria de facto, pretendendo o seu reexame, deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa (e, se for o caso, as provas que devem ser renovadas). E, quando a prova tiver sido gravada, como ocorre no caso em apreciação, o recorrente deve indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Ora, quanto aos dois referidos factos não provados (a agressão ter sido praticada com a mão fechada e o arguido ter atuado com o propósito de maltratar e humilhar a ofendida), o recorrente não cumpriu integralmente os referidos requisitos legais.
“O incumprimento das formalidades impostas pelo artº 412º, nºs 3 e 4, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso” (Ac. RE de 09/01/2018, relatado por Ana Brito, in dgsi.pt).
No caso e relativamente aos dois referidos factos, o recorrente não indicou as concretas provas que impunham decisão diversa, e muito menos por referência aos períodos temporais da gravação dos depoimentos prestados relativos a tais factos.
O recorrente, ao não cumprir o ónus estabelecido pelo artº 412º, nºs 3, als a) e b), e 4 do Código de Processo Penal, deixa, quanto aos dois referidos factos, o recurso sem objeto, na parte relativa à reapreciação da prova gravada, nos termos definidos por lei para a cognição deste fundamento de recurso.
No que concerne à qualificação jurídica penal dos factos provados, mesmo que se concluísse que a agressão física foi executada com a mão fechada e que provocou dor na face da ofendida e ainda que o arguido dirigiu à ofendida as expressões injuriosas “SUA PUTA BARATA” e “NOJENTA, ÉS A MAIS BARATA DAS MULHERES”, não estaríamos perante, nem um crime de violência doméstica, nem um crime de ofensa à integridade física seria qualificado.
Pretende o recorrente que a conduta do arguido seja qualificada como “crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1, als. b) e c), e n.ºs 2, al. a) do Código Penal”.
Não tendo, nem a agressão nem as injúrias, sido praticadas na presença da filha menor de arguido e ofendida, afastado fica, desde logo, o preenchimento da qualificativa prevista no citado nº 2, al. a).
Vejamos então porque é que a factualidade em apreciação não integra os elementos típicos do crime de violência doméstica previsto e punido nos termos do artº 152º, nº 1, alíneas b) e c) do Código Penal, como pretendia o recorrente.
Nos termos desta norma, “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns”, a cônjuge ou ex-cônjuge, unido de facto ou com quem assim tenha vivido ou a progenitor de filho comum, “é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”.
Da expressão “de modo reiterado ou não” resulta ter deixado de ser elemento do tipo a reiteração das condutas previstas nesta norma, pondo-se termo a uma querela doutrinária e jurisprudencial que dividia quem exigia a reiteração, por um lado, e quem a dispensava.
Porém, como bem se refere no Acórdão do TRE de 25/03/2010 (proferido no processo nº 345/07.9PAENT.E1, relatado por Correia Pinto, consultável in dgsi.pt) com a atual configuração do crime de violência doméstica, efetuada pela Lei nº 59/2007, não se pretendeu integrar neste crime “todo e qualquer ato de agressão entre cônjuges ou ex-cônjuges, de modo a que deixe de ser configurável, entre tais intervenientes, a incriminação do artigo 143º do Código Penal”.
Contudo, e como igualmente se assinala no referido Acórdão, “não se exigindo comportamentos reiterados” para o cometimento do crime de violência doméstica é necessário um “comportamento que se possa qualificar como maus tratos, o que não ocorre com qualquer agressão; ou seja, a configuração do crime pressupõe a existência de maus tratos físicos e psíquicos, ainda que praticados de uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, traduzindo, nomeadamente, atos de crueldade, insensibilidade ou vingança da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação”.
Em idêntico sentido se pronunciou o Acórdão do STJ de 02/10/2024 (proferido no processo nº 156/23.4GBVNG.P1.S1, relatado por Antero Luís e acessível em júris.stj.pt), segundo o qual no “crime de violência doméstica um único ato, ainda que isolado, é passível de preencher o tipo, desde que essa ação seja apta a colocar em causa, de forma intolerável, a dignidade da vítima ou a sua liberdade de determinação”.
Como esclarece Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal, em anotação do artº 152º), estamos perante “um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima”, sendo que “o tipo objetivo inclui as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal”.
A norma protege também relações familiares pretéritas, ao prever que a vítima possa ser ex-cônjuge ou pessoa que tenha vivido em união de facto com o agente.
Como assinala Paulo Pinto de Albuquerque (in obra e local acima citados), os “maus tratos físicos” correspondem nomeadamente ao crime de ofensa à integridade física simples enquanto que os “maus tratos psíquicos” correspondem designadamente aos crimes de ameaça, coação, difamação e injurias.
No caso em apreciação, os factos praticados pelo arguido (mesmo considerando que a agressão foi com a mão fechada e que causou dor, bem como que ocorreram as injúrias) não se revestem de especial gravidade, não foram praticados com elevada agressividade (como ocorreria, por exemplo, se as agressões consistissem em múltiplos atos, fossem praticadas com determinados objetos contundentes ou duros, ou a força empregue fosse tal que a região atingida não ficasse apenas com vermelhidão, mas ocorresse ferida e consequentemente sangramento, fratura óssea ou quebra de dentes), nem demonstram ou sequer indiciam ter o arguido atuado de forma cruel ou para humilhar a vítima.
Estamos, assim, perante condutas apenas qualificáveis como crime de ofensa à integridade física e como crime de injúrias, sendo o primeiro enquadrável apenas no tipo doloso simples previsto e punido pelo artº 143º do Código Penal.
Defendia o recorrente que a ofensa à integridade física levada a cabo pelo arguido fosse qualificada, nos termos do artº 145º, nºs 1, al. a), e 2, por referência à alínea b) do nº 2 do artº 132º do Código Penal, por a vítima e o arguido terem vivido em união de facto.
Acontece porém que, a ocorrência da referida circunstância não qualifica, por si só e automaticamente, a ofensa corporal, tornando-se ainda necessário que se conclua que a ofensa foi praticada “em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente”, ou que a referida circunstância, no caso e no concreto contexto em que as agressões foram praticadas, revela efetivamente especial censurabilidade da conduta ou especial perversidade do agente.
O exemplo-padrão aqui em causa não se verifica, assim, de forma automática, com o simples facto de arguido e vítima terem vivido em união de facto. Com efeito, a especial maior culpa subjacente a esta circunstância qualificativa exige a verificação de circunstâncias reveladores de, por virtude da tal anterior relação, o agente revelou, nomeadamente, uma maior energia criminosa que o levou a superar a maior ligação e intimidade que o ligou no passado à vítima, do que se estivesse a agredir uma outra qualquer pessoa.
No caso concreto, quer pela agressão em si (apenas uma pancada dada com a mão do arguido na face da vítima), quer num contexto de discussão/divergência entre ambos em que foi praticada, e perante a ausência de outros factos concretos, não podemos qualificar a conduta do arguido como ferida de especial censurabilidade ou perversidade, nem tal resulta do facto de terem vivido em união de facto.
Vale por dizer que, mesmo com a alteração da decisão da matéria de facto provada, a qualificação jurídica dos factos e a consequente decisão final tomada pela primeira instância sempre se manteriam.
Termos em que, improcede o recurso interposto.
***
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordamos em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, a douta sentença recorrida.
Sem custas.
*
Lisboa, 23 de outubro de 2025.
Eduardo de Sousa Paiva
Marlene Fortuna
Ana Marisa Arnêdo (vencida conforme declaração de voto que segue)

Declaração de voto de vencida
Discordo da decisão e dos seus fundamentos.
Teria julgado integralmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, pela seguinte ordem de razões:
Em face das conclusões recursivas, as questões a apreciar são os invocados erros de julgamento do Tribunal a quo quanto à matéria de facto e relativamente à matéria de direito, este último concretamente na parte atinente à subsunção jurídico-penal.
A maioria que fez vencimento, decidiu, em abreviada síntese, considerar prejudicado/inútil o conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto, fundada na asseveração de que mesmo a dar-se como assente a matéria de facto reclamada pelo recorrente nunca esta seria subsumível ao crime de violência doméstica e/ou ao crime de ofensa à integridade física qualificada.
Todavia, perante a facticidade que o recorrente reclama seja dada por assente, descrita na acusação e no corroborativo despacho de pronúncia, afigura-se que tal juízo de absoluta inutilidade não pode, de todo, colher. Isto é, não está em causa situação em que, independentemente da decisão quanto à impugnação da matéria de facto, se teria sempre e irremediavelmente que concluir que não estavam preenchidos os elementos do crime de violência doméstica (imputado na acusação e, reitera-se, objecto de um despacho de pronúncia)1 nem do apontado, a título subsidiário pelo recorrente, crime de ofensa à integridade física qualificada.
Por outro lado, não se vislumbra, como imputado na posição que fez vencimento, que o recorrente tenha incumprido (ainda que parcialmente) algum dos ónus a que alude o art. 412º, n.º 3 do C.P.P.2 É que, desde logo, o recorrente não peticiona que seja dado como assente que a agressão foi perpetrada com mão fechada e o facto conclusivo o arguido actuou com o propósito de maltratar a vítima, por natureza e definição, resultará provado em função da resposta a dar à (demais) factualidade concreta.
Vale por dizer que, não me assolam dúvidas quanto à obrigatoriedade de se proceder ao conhecimento efectivo do invocado erro de julgamento quanto à matéria de facto.
E se é certo, decorrente do princípio da livre apreciação da prova e como pacificamente aceite na jurisprudência, que o Tribunal de recurso só em casos excepcionais poderá cambiar a decisão trazida da instância, revisitada a prova em crise - declarações prestadas pela vítima e pela menor (filha da vítima e do arguido) – na situação em apreço, salvo o devido respeito, ter-se-á de concluir que a Sra. Juíza do Tribunal a quo incorreu em patente erro na apreciação da prova.
Na verdade, ao contrário do consignado na motivação da sentença revidenda, tal qual conclui o recorrente Ministério Público:
i. «(…) analisada, em pormenor, a prova efetuada, mormente as declarações de BB, em sede de audiência de julgamento, verifica-se que, ao invés do que consta da sentença ora recorrida, instada, de forma direta, pelo Ministério Público quanto às injúrias sofridas, a vítima afirmou, de forma perentória, num primeiro momento, que, na supramencionada circunstância de tempo e lugar, o arguido apelidou-a de “PUTA” e “VACA”, sendo que, num segundo momento, confirmou, de igual forma, que o arguido afirmou “-És a mais barata das mulheres?”;
ii. (…) ouvidas com acuidade e atenção as declarações prestadas pela ofendida, verifica-se que a mesma, em momento algum, referiu não ter sentido dores, e embora não tenha expressamente dito que sentiu dores, a ofendida atestou que ficou com a cara vermelha na sequência da pancada que sofreu por parte do arguido, vermelhidão essa que foi vislumbrada, de igual forma, minutos depois, pela sua filha;
iii. (…) resulta das regras da lógica e da experiência comum que uma bofetada/pancada que marca a cara da ofendida, cuja vermelhidão se mantém por alguns minutos, provoca, necessariamente, dor».
Em suma, na evidente procedência do recurso na parte respeitante à impugnação ampla da matéria de facto, teria dado como assente a seguinte materialidade:
1. O arguido e a vítima BB coabitaram, como se casados um com o outro fossem, no período compreendido entre os anos de ... e ..., quando findaram tal relacionamento amoroso e coabitação.
2. Arguido e vítima são progenitores comuns de CC, nascida em ... de ... de 2012.
3. Por sentença judicial homologatória de ... de ... de 2020, o exercício das responsabilidades parentais pertinentes à menor CC foi regulado no sentido de esta ficar a residir com a mãe.
4. No dia ... de ... de 2022, pelas 08H15, na sequência de acordo prévio nesse sentido com o arguido, a vítima BB, conduzindo seu veículo automóvel, compareceu junto à residência do arguido, sita na ..., com o propósito de recolher a filha comum CC, que aí estivera a privar com seu pai.
5. Nessas circunstâncias, a vítima aparcou seu veículo junto à residência do arguido, tendo este, volvidos alguns momentos, vindo ao seu encontro.
6. Quando a vítima se encontrava sentada ao volante da sua viatura, o arguido iniciou uma discussão com a mesma, em virtude de esta ter saído na noite anterior, sendo que, no decorrer desta discussão apelidou-a de “PUTA”, “VACA” e “ÉS A MAIS BARATA DAS MULHERES”.
7. Ato contínuo, no decorrer da referida discussão, prevalecendo-se de o vidro da janela contígua ao banco ocupado pela vítima estar aberto, o arguido, através de tal abertura, desferiu uma pancada na face esquerda da vítima, causando-lhe dores e vermelhidão momentânea na zona atingida.
8. De seguida, o arguido desferiu uma cuspidela em tal vidro.
9. O arguido entrou então na respetiva residência, daí recolhendo a filha comum CC, conduzindo-a ao veículo da vítima.
9. Volvidos alguns momentos, quando a menor CC já entrara em tal veículo, o arguido desferiu um pontapé audível na porta correspondente ao lugar ocupado pela filha de ambos, fazendo com que a vítima ficasse ciente de tal conduta, que sabia idónea e adequada a causar-lhe temor e inquietação.
10. Ao agir da forma descrita, teve o arguido o propósito de humilhar e maltratar a vítima BB, apesar de saber que lhe devia particular respeito e consideração, na qualidade de sua ex-companheira e de mãe de sua filha CC, não se coibindo de assim atuar na presença desta.
11. Para o efeito, não se coibiu o arguido de molestar a integridade física da vítima, o que quis e logrou, bem sabendo que assim procedia contra sua ex-companheira e mãe de sua filha.
12. Para o efeito, não se coibiu o arguido de dirigir à vítima expressões que sabia idóneas e adequadas a atingir a honra e consideração que lhe são devidas.
13. Agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
Em jeito de súmula, constata-se que o comportamento delituoso, global e do ponto de vista objectivo, assumiu a seguinte dinâmica: a vítima deslocou-se até às imediações da residência do arguido no cumprimento do exercício das responsabilidades parentais relativamente à filha de ambos; quando aguardava pela filha, no interior da sua viatura automóvel, foi abordada por aquele que iniciou uma discussão, por a vítima ter saído na noite anterior, apelidando-a de «Puta», «Vaca» e dizendo-lhe «És a mais barata das mulheres»; de seguida agrediu-a, introduzindo a mão e braço no interior da viatura automóvel, desferindo-lhe uma pancada com uma das mãos na zona da face e cuspiu para o vidro do carro; finalmente, quando a menor CC já entrara no veículo, o arguido desferiu, ainda, um pontapé audível na porta correspondente ao lugar ocupado pela filha de ambos.
No que concerne ao enquadramento jurídico-penal de tal matéria factual, dir-se-á, preliminarmente, também em sentido contrário ao que fez vencimento3, que os factos ocorreram (ainda que parcialmente) na presença da filha menor. Na verdade, conforme resulta do pacífico ponto 11, o arguido, quando a menor CC já entrara no veículo, desferiu um pontapé audível na porta correspondente ao lugar ocupado pela filha, fazendo com que a vítima ficasse ciente de tal conduta, que sabia idónea e adequada a causar-lhe temor e inquietação.
Feito este esclarecimento, ante a facticidade atrás elencada, afigura-se que, inolvidavelmente, mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de violência doméstica, p. e p. pelo art.152º, n.º 1, als. b) e c), n.º 2, al. a) e 4 do Código Penal, pelo qual o arguido foi acusado e pronunciado.
Na verdade, como vem sendo reiterado na jurisprudência, o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica tem natureza complexa, multifacetada e apresenta-se ontologicamente conectado com o núcleo de vínculos que se estabelecem no âmbito familiar e doméstico e na tutela das inerentes relações de confiança4.
Como já se referia no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 2 de Julho de 2013, proferido no processo n.º 738/12.0 GBABF.E1, in www.dgsi.pt. «O tipo abrange as situações de violência familiar reveladoras de um abuso de poder nas relações afectivas, degradante da integridade pessoal da vítima. Tutela-se a integridade da pessoa em determinada relação afectiva (…) Esta necessidade de protecção perdura e intensifica-se até nas situações de ruptura».
Ou seja, o tipo legal não convoca, necessariamente, uma especial intensidade ou gravidade da conduta5.
Como enfaticamente concluiu a Sra. Juíza de Instrução que proferiu o despacho de pronúncia «(…) apelidar a mãe dos filhos de “puta, barata (…)”, ou cuspir e pontapear o veículo na qual se faz transportar, juntamente com a filha menor, ou ainda desferir-lhe uma pancada no rosto, nestas circunstâncias, relembrando que se trata de um ex. casal, que contactava no contexto de cumprimento das suas responsabilidades parentais, e na frente da filha comum, constituirá, à luz do senso comum, reflectindo as convicções generalizadas da sociedade, actos paradigmáticos de diminuição, desprezo, desejo de humilhar e especial desconsideração da vítima».
Constando da sentença recorrida as condições pessoais do arguido e da vítima, restaria, em alinhamento com a posição que sustento, determinar a pena a aplicar ao arguido6 e a quantia a atribuir à vítima, ao abrigo do preceituado artigo 82.º-A do C.P.P.7
Consabidamente, ante a sua imensa proliferação, os crimes de violência doméstica reclamam, por veementes razões de prevenção geral, rigor punitivo. Tanto assim é que, a par da consciencialização e da censura comunitária - nacional e internacional - a jurisprudência tem vindo, progressivamente, a realçar, neste espectro, as fortíssimas exigências de prevenção geral.
Na economia que se impõe a uma declaração de voto de vencida, a este título acrescentarei somente que, sopesados o concreto comportamento delitivo, as condições pessoais do arguido, em especial a ausência de condenações registadas, e as da vítima, em vista do disposto nos art. 40º, 71º e 50º, n.º 1 todos do C.P. e 82º A do C.P.P., teria concluído pela aplicação de uma pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e pela atribuição à vítima, a título de reparação, da quantia de €2.000,00 (dois mil euros).
Ana Marisa Arnêdo
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1. Por maioria de razão e à semelhança do que se verifica a respeito da inadmissibilidade legal de rejeição da acusação e/ou da prolação de despacho de não pronúncia quando a qualificação jurídica dos factos, embora controversa, é ainda defensável, segundo as várias soluções plausíveis de direito. A respeito, os Acórdãos dos Tribunais da Relação do Porto de 11/7/2012, proc. n.º 1087/11.6PCMTS.P1, de Lisboa de 18/10/2017, proc. n.º 1212/15.8PBAMD.L1-3 e de 24/10/2024, processo n.º 8526/19.6T9LSB-A.L1, todos in www.dgsi.pt., e Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, pág. 644.
2. Ficou a respeito consignado, nomeadamente, que: «Ora, quanto aos dois referidos factos não provados (a agressão ter sido praticada com a mão fechada e o arguido ter atuado com o propósito de maltratar e humilhar a ofendida), o recorrente não cumpriu integralmente os referidos requisitos legais» e «No caso e relativamente aos dois referidos factos, o recorrente não indicou as concretas provas que impunham decisão diversa, e muito menos por referência aos períodos temporais da gravação dos depoimentos prestados relativos a tais factos».
3. Asseverou a posição que fez vencimento: «Não tendo, nem a agressão nem as injúrias, sido praticadas na presença da filha menor de arguido e ofendida, afastado fica, desde logo, o preenchimento da qualificativa prevista no citado nº 2, al. a)».
4. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos dos Tribunais da Relação de Guimarães de 14/9/2020, processo n.º 302/19.2PABCL.G1, de 9/11/2020, processo n.º 308/19.IPBBGC.G1, de Coimbra de 10/11/2021, processo n.º 110/17.5GASAT.C2, de 18/5/2022, processo n.º 924/19.1PBLRA.C1 e de Lisboa de 13/01/2022, processo n.º 68/21.6PALSB.L1-9 e de 16/3/2022, processo n.º 7528/13.0TDLSB.L3-3.
5. Por assim ser, não me revejo, de todo em todo, nas seguintes afirmações da posição que fez vencimento: «No caso em apreciação, os factos praticados pelo arguido (mesmo considerando que a agressão foi com a mão fechada e que causou dor, bem como que ocorreram as injúrias) não se revestem de especial gravidade, não foram praticados com elevada agressividade (como ocorreria, por exemplo, se as agressões consistissem em múltiplos atos, fossem praticadas com determinados objetos contundentes ou duros, ou a força empregue fosse tal que a região atingida não ficasse apenas com vermelhidão, mas ocorresse ferida e consequentemente sangramento, fratura óssea ou quebra de dentes), nem demonstram ou sequer indiciam ter o arguido atuado de forma cruel ou para humilhar a vítima» e/ou «que estamos assim, perante condutas, apenas qualificáveis como crime de ofensa à integridade física e como crime de injúrias, sendo o primeiro enquadrável apenas no tipo doloso simples previsto e punido pelo artº 143º do Código Penal».
6. AUJ do S.T.J. n.º 4/2016, D.R. I Série, 22/2/2016.
7. A vítima, como ficou consignado na sentença recorrida, não se opôs ao eventual arbitramento.