Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2140/24.1T8LSB.L1-2
Relator: PAULO FERNANDES DA SILVA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ACÇÕES AO PORTADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. A competência material do Tribunal deve ser aferida em função do quadro legal aplicável, bem como do pedido e causa de pedir decorrentes da petição inicial e, pois, conforme a relação jurídica controvertida configurada pelo A.
II. Nos termos do artigo 128.º, n.º 1, alínea c), da LOSJ «[c]ompete aos juízos de comércio preparar e julgar as ações relativas ao exercício de direitos sociais».
III. Estão ali em causa litígios referentes a situações jurídicas que reclamam a aplicação de direito societário, não tão-só reportados a direitos dos sócios de sociedades comerciais.
IV. Os Juízos de Comércio são os competentes para uma ação de reivindicação de ações ao portador, pois tal ação reclama a aplicação de direito específico das sociedades comerciais, designadamente da Lei n.º 15/2017, de 03.05, e respetiva regulamentação, o Decreto-Lei n.º 123/2017, de 25.09.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I.
RELATÓRIO.
Neste processo comum de declaração, distribuído no Juízo Central Cível de Lisboa, em que é A. AA e são BB e CC, o A. veio pedir:
i. A declaração do A. como titular de 37.349.735 ações, com o valor nominal de um cêntimo cada, da SPETI – Sociedade de Exploração e Gestão de Hotéis, S.A.;
ii. A condenação dos RR. a entregar tais ações ao A.
Como fundamento do seu pedido, o A. alegou, em suma, que é titular de 37.349.735 ações ao portador da SPETI, as quais foram subtraídas e apropriadas pelos RR., contra a vontade do A. e sem o seu conhecimento.
Os RR. contestaram, alegando, em suma, que adquiram as ações em causa em 10.10.2014, por contrato de compra e venda, termos em que concluíram pedindo que a ação seja julgada improcedente, por não provada, e os RR. absolvidos do pedido.
As partes juntaram diversos documentos.
O A. pediu a condenação dos RR. como litigante de má-fé e os RR. contestaram tal pretensão e pediram a respetiva absolvição.
O Juízo Central Cível de Lisboa ouviu as partes quanto à sua eventual incompetência material, tendo o A. considerado tal Juízo competente para a ação e os RR. deferido a competência aos Juízos de Comércio, concluindo pela sua absolvição da instância.
Entretanto, aquele mesmo Juízo Central proferiu decisão nos seguintes termos, na parte que aqui releva:
«(…)
De acordo com o artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ, compete aos juízos de comércio, preparar e julgar, as acções relativas ao exercício de direitos sociais.
Ora, analisando de forma conjugada os pedidos formalmente deduzidos na presente acção e os factos alegados para sustentar o direito que o Autor se propõe fazer declarar a título principal, resulta que o Autor pretende, perante terceiros e da própria sociedade, demonstrar que é “proprietário” das acções (valores mobiliários), sendo que pretende assim exercer judicialmente o direito social ao averbamento/registo das acções da sociedade junto desta (porquanto as mesmas já não lhe serão entregues por já não serem ao portador).
Assim, o direito ao averbamento/registo das acções da sociedade junto desta corresponde inequivocamente ao exercício de um direito social.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, importa afirmar a incompetência absoluta, em razão da matéria, deste Juízo Central Cível para conhecer e decidir do peticionado pelo Autor no âmbito da presente acção, por estarmos efectivamente perante uma acção relativa ao exercício de direitos sociais, nos termos e para efeitos do artigo 128.º, alínea c), da LOSJ, para a qual é materialmente competente o Juízo de Comércio.
C – DECISÃO
Pelo exposto, considerando as normas citadas e considerações expandidas, julgo procedente a excepção dilatória de competência absoluta – em razão da matéria, declarando que este Juízo Central Cível de Lisboa é incompetente em razão da matéria para a resolução deste litígio e consequentemente absolve-se os Réus da instância, nos termos dos artigos 96.º; 97.º, n.º 1; 98.º; 99.º; 278.º, n.º 1, alínea a); 576.º, n.º 1 e n.º 2; 577.º, alínea a) e 578.º, todos do Código de Processo Civil.
Inconformado com tal decisão, dela recorreu o A., a qual apresentou as seguintes conclusões:
«1. O Digníssimo Tribunal a quo decidiu pela incompetência do Juízo Central Cível para conhecer da presente ação, nos termos dos artigos 96.º alínea a), 97.º, n.º 1, 98.º, 99.º, 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.º 1 e n.º 2, 577.º, alínea a) e 578.º do CPC, porquanto considerou procedente a exceção dilatória de competência absoluta em razão da matéria.
2. Não obstante, não pode o Recorrente concordar com os fundamentos que sustentam a decisão proferida pelo Tribunal a quo porquanto são manifestos os vícios, quer na apreciação dos factos, quer na subsunção da lei aplicável, de que enferma a decisão recorrida.
3. Com efeito, o Tribunal a quo formulou um juízo incorreto relativamente à natureza dos pedidos apresentados que, por sua vez, motivou a sua conclusão incorreta no que respeita à competência dos juízos cíveis para o julgamento dos mesmos.
4. Ora, da análise conjugada dos pedidos formulados pelo Autor, é possível concluir que estes se resumem, única e exclusivamente: por um lado, ao pedido da sua declaração como titular das ações em questão sobre a SPETI, ou seja, exigir judicialmente do detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade em consonância com o disposto na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 1311.º do CC; e por outro, ao pedido de condenação dos Réus na entrega das respetivas ações sobre a SPETI, isto é, a consequente restituição do bem que lhe pertence, nos termos da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 1311.º do CC.
5. Por outro lado, os factos alegados pelo Autor na sua petição inicial resumem-se aos seguintes:
− Em 2012, o Autor era titular de 37.349.735 ações ao portador da Sociedade SPETI e era membro do conselho de administração desde 2014, participando nas assembleias gerais e reuniões da empresa.
− O Autor foi progressivamente excluído das assembleias gerais e reuniões do conselho de administração, apesar de ser administrador e acionista, sendo as desculpas dadas pelos Réus suspeitas.
− O Autor tentou aceder às suas ações, que estavam guardadas no cofre da Sociedade, mas foi impedido pelos Réus, desconhecendo se as ações ainda se encontravam lá.
− O Autor descobriu que a Sociedade procedeu à conversão das ações representativas do seu capital em nominativas, em 2017.
− O Autor era administrador da sociedade e não esteve presente na reunião do conselho de administração, nem deliberou ou aprovou a conversão das acções.
− No entanto, os Réus registaram-se como os únicos acionistas da SPETI no Registo Central do Beneficiário Efetivo, com metade do capital social cada.
− O Autor não praticou nenhum ato de disposição a favor dos Réus das ações das quais é titular.
− Os Réus apropriaram-se das ações do Autor de forma ilícita, sem seu consentimento, e sem qualquer compensação e contra a sua vontade.
− Os Réus aproveitaram a conversão das ações para as fazerem suas, tendo atuado na alegada assembleia geral de 2022 e perante o registo comercial e o registo central do beneficiário efetivo como se fossem os verdadeiros e legítimos acionistas da SPETI.
6. Pelo que, face ao conteúdo dos pedidos formulados, como ainda dos factos alegados e que fundamentam a sua pretensão, demonstra-se evidente que a presente ação representa uma ação de reivindicação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1311.º do CC - facto que é acolhido pela própria decisão recorrida.
7. A ação de reivindicação constitui um meio processual destinado a afirmar o direito de propriedade e a garantir a restituição de um bem ao seu legítimo titular, sempre que este se veja privado da sua posse por outrem sem fundamento legítimo.
8. A causa de pedir nesta ação assenta, assim, no direito de propriedade, sendo que o seu objetivo final é a obtenção de uma decisão judicial que reconheça esse direito e imponha a restituição do bem ao proprietário, assegurando a tutela jurisdicional da posse legítima.
9. Neste sentido, e como refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23.09.2021, Processo n.º 5334/17.2T8FNC.L1-2: “A acção de reivindicação caracteriza-se por na mesma se integrarem dois distintos pedidos: por um lado, o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio) e, por outro, a restituição da coisa (condemnatio), sendo que o esquema da reivindicação apenas se preenche com a prossecução de tais finalidades, ainda que, conforme pacificamente aceite, a primeira finalidade, e o pedido correspondente, se possa considerar como implícito no pedido de restituição da coisa ;” (negrito e sublinhado nosso)
10. Veio, no entanto, o Tribunal a quo reconhecer que, não obstante a ação intentada pelo Recorrente se enquadrar como uma ação de reivindicação, nos termos do artigo 1311.º do CC, ainda assim o Recorrente pretendia exercer judicialmente o direito social ao averbamento/registo das ações da sociedade junto desta e que tal direito corresponde ao exercício de um direito social.
11. Considerando, em consequência, que, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ, a presente ação se enquadrava no âmbito do direito societário e, concludentemente, que a competência para o seu julgamento pertencia aos Juízos de Comércio.
12. Contudo, tal entendimento não se vislumbra minimamente correto, uma vez que o Tribunal a quo parte de um pressuposto incorreto ao considerar que o pedido formulado pelo Recorrente corresponde ao exercício de um direito social porque supostamente este pretende exercer o “averbamento/registo das ações da sociedade junto destas”.
13. Quando, na verdade, o direito ao averbamento ou registo das ações não é objeto da presente ação.
14. Na realidade, o objeto da presente ação é somente a declaração do direito de propriedade do Recorrente e a consequente restituição das ações que se encontram na posse dos Recorridos!
15. Sucede, pois, que o Recorrente não formula qualquer pedido dirigido à sociedade para que esta proceda ao averbamento/registo das ações, sendo que o se pretende é, única e exclusivamente, o reconhecimento do direito de propriedade do Recorrente e a condenação dos Recorridos à restituição das ações ilicitamente esbulhadas.
16. De facto, a pretensão do Recorrente não se enquadra no âmbito de um pedido de averbamento ou registo das ações, conforme previsto nos artigos 1061.º a 1063.º do CPC, ou, de todo o modo, no exercício de um direito social.
17. A regularização da situação registal não é, pois, o objeto da ação, mas sim uma consequência da procedência da mesma.
18. Ou seja, a ação tem como objetivo o reconhecimento do direito de propriedade do Recorrente sobre as ações, sendo a regularização do registo apenas uma consequência subsequente a essa decisão.
19. A regularização do registo só ocorrerá, pois, após a restituição das ações, sendo um efeito secundário da decisão favorável ao Recorrente, nos termos da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 1311.º do Código Civil.
20. Cabe, portanto, averiguar sobre a competência dos Juízos de Comércio para, à luz dos pedidos formulados e da matéria de facto subjacente à pretensão do Autor, julgar a presente causa, sendo que, na nossa doutrina e jurisprudência, a competência material dos tribunais é aferida em função da relação material controvertida como configurada na petição inicial apresentada pelo seu Autor no confronto com o respetivo pedido e causa de pedir.
21. Ora, a competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, está regulada pelos artigos 65.º do Código de Processo Civil (CPC) e 80.º, n.º 2, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), sendo que, nos termos destes dispositivos, os juízos especializados, entre os quais se incluem os juízos do comércio, possuem as competências expressamente previstas no artigo 128.º da LOSJ.
22. Sendo assim, para que a presente ação seja da competência do juízo do comércio, é necessário que o seu objeto se enquadre nas competências definidas pelas alíneas desse artigo.
23. Pelo contrário e caso se verifique que o objeto da ação não se subsume às competências dos juízos especializados, nomeadamente os juízos do comércio, a competência residual recairá sobre os juízos cíveis, conforme estabelecido pelos artigos 117.º, n.º 1 e 130.º, n.º 1 da LOSJ.
24. Cabendo, portanto, analisar se, atentos os pedidos formulados pelo Recorrente, assim como os factos alegados para sustentar a pretensão e ainda o objeto da presente ação – uma ação de reivindicação – a mesma se integra no âmbito das alíneas do artigo 128.º, n.º 1 da LOSJ e, mais concretamente, da alínea c), do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ.
25. Como refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17.09.2009, Processo n.º 23/08.1TYLSB.L1-6: “Os direitos sociais (…) não são todos os que genericamente poderiam ser classificados como direitos exercidos pelos sócios, mas sim os correspondentes aos direitos que provêm da relação social, ou seja, da relação da sociedade com o sócio” (negrito nosso).
26. Sendo que, em suma, na determinação do sentido e alcance da alínea c) do art.º 128.º da LOSJ, deverá considerar-se que a competência dos tribunais de comércio se prende com questões relacionadas com a atividade das sociedades.
27. Ora, no presente caso, e conforme previamente referido, estamos perante uma ação de reivindicação, como, aliás, a decisão recorrida igualmente – e bem - admite.
28. Nestes termos, e como refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 02.10.2018, Processo n.º 3652/17.9T8FAR.E1: “Com efeito, nos termos do disposto no art.º 581.º, n.º 4, 2.ª parte, do CPC, nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real - no que constitui a consagração legal da teoria da substanciação. Adentro das acções reais, a reivindicação é uma acção específica que se caracteriza pela pretensão de ver efectivado o direito à entrega de uma coisa, com fundamento no direito de propriedade sobre ela. (…) O pedido de reconhecimento do direito de propriedade que se invoca não é mais do que o mero antecedente ou pressuposto do pedido de restituição, o que significa ser um só, do ponto de vista substancial ou material, que não formal, o pedido. Com isto se significa que há apenas uma cumulação aparente de pedidos - o de reconhecimento do direito de propriedade invocado (formal) e o de entrega da coisa sobre que incide (substancial ou material)” (negrito nosso).
29. Pelo que daqui se extraí que a ação de reivindicação é uma ação de natureza real (e não societária), uma vez que o seu fundamento jurídico reside no direito de propriedade do Autor sobre as ações em causa e não em qualquer questão da vida da sociedade ou direito social.
30. Com efeito, e apesar da natureza societária subjacente ao direito de propriedade do Autor, ora Recorrente, a presente ação tem como objeto exclusivamente a reivindicação de um bem, com fundamento no direito de propriedade sobre o mesmo.
31. Motivo pelo qual, a questão central não envolve, pois, a relação entre os acionistas ou a sociedade, mas sim a titularidade e a restituição das ações que pertencem ao Autor e que lhe foram indevidamente subtraídas.
32. A circunstância de o direito de propriedade em questão incidir sobre ações da SPETI, S.A. não determina, assim, que a competência para julgar a ação seja dos juízos do comércio.
33. Isto porque, o direito de reivindicação que o Recorrente procura exercer não está relacionado com a atividade da sociedade ou com a proteção de interesses sociais da mesma, mas sim com o reconhecimento e a restituição de um direito de propriedade, tanto que a figura da ação de reivindicação não encontra assento legal nem na lei societária, nem no contrato de sociedade, mas sim no Código Civil.
34. Pelo que, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo na decisão recorrida, não emanando qualquer exercício de direitos sociais da causa de pedir e dos pedidos do Autor, não se pode afirmar que a presente ação se destina ao exercício de um direito social.
35. Com efeito, e conforme refere igualmente o Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 26.09.2013, Processo n.º 12/10: “Ora, não há no ETAF uma norma que atribua competência à jurisdição administrativa para o conhecimento de ações de reivindicação (‘vide’, a propósito, o seu art. 4°). Solução que bem se compreende, pois o que nelas essencialmente se discute é a questão, puramente de direito privado, de saber se o direito real invocado pelo ‘dominus’ existe e é oponível ao réu, por forma a tirar a detenção da coisa” (negrito e sublinhado nosso).
36. De modo semelhante, nunca poderia haver uma norma que atribuísse competência aos juízos de comércio para o conhecimento de ações de reivindicação, uma vez que em qualquer ação de reivindicação o que se discute é essencialmente uma questão puramente de direito privado: saber se o direito real invocado pelo ‘dominus’ existe e é oponível ao réu, por forma a reconhecer e devolver-lhe a coisa.
37. A ação não se fundamenta, pois, em normas de caráter societário, mas sim no exercício de um direito real de propriedade, razão pela qual não se justifica a competência dos juízos de comércio.
38. Assim sendo, e à luz do enquadramento jurídico e normativo apresentado, bem como do acervo fático constante da petição inicial, e considerando a realidade em que surgem as pretensões do Recorrente, é evidente que a presente causa envolve exclusivamente normas de direito civil.
39. Como tal, não se poderá considerar que se encontram verificados os requisitos necessários para atribuir competência ao Juízo de Comércio com base no exercício de direitos sociais, uma vez que o litígio não envolve questões registais nem o exercício de qualquer direito social.
40. Por conseguinte, não é possível considerar que os juízos de comércio sejam materialmente competentes para o julgamento da presente ação, porquanto o reconhecimento do direito de propriedade do Recorrente e a subsequente condenação dos Réus à entrega das ações não se enquadram na alínea c) do artigo 128.º, n.º 1, da LOSJ.
41. Nestes termos, deverá o presente recurso de Apelação ser julgado totalmente procedente e, em consequência, revogada a decisão recorrida.
Nestes termos e nos mais de Direito, que V. Exas. mui doutamente suprirão, requer-se que seja o presente recurso considerado procedente por provado e, em consequência, revogada a decisão recorrida, sendo substituída por outra que considere o Tribunal a quo competente para conhecer o presente litígio, determinando-se a baixa do processo à 1.ª instância para prosseguir a tramitação.
Ao julgardes assim, Venerandos Juízes Desembargadores, estareis, uma vez mais, a fazer JUSTIÇA!».
Os RR. contra-alegaram, sustentando a manutenção da decisão recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre ora apreciar a decidir.
II.
OBJETO DO RECURSO.
Atento o disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPCivil, as conclusões do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões que devam oficiosamente ser apreciadas e decididas por este Tribunal da Relação.
Nestes termos, atentas as conclusões deduzidas pelo Recorrente, não havendo questões de conhecimento oficioso, está em causa tão-só apreciar e decidir da competência material para a presente ação.
Vejamos.
III.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
A factualidade a considerar na motivação de direito é a que consta do relatório deste acórdão que aqui se dá por integralmente reproduzida.
IV.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Em causa está a competência material para a presente ação.
1. A competência material do Tribunal deve ser aferida em função do quadro legal aplicável, bem como do pedido e causa de pedir decorrentes da petição inicial e, pois, conforme a relação jurídica controvertida configurada pelo autor.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, volume I, edição de 2020, página 130, em anotação ao artigo 96.º, «[a] competência absoluta do tribunal, máxime a competência em razão da matéria, é aferida através do confronto entre as normas que a definem e o teor da petição inicial, com destaque para o pedido e a causa de pedir (…)»
No mesmo sentido, refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.05.2023, processo n.º 28193/20.3T8LSB-A.L1.S1, «Doutrina e Jurisprudência aceitam, pacificamente, que a competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional, sendo que para se fixar a competência dos tribunais em razão da matéria, impõe-se atentar à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante.
2. No que aqui releva, o artigo 128.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 62/2013, de 26.08, Lei da Organização do Sistema de Justiça dispõe que «[c]ompete aos juízos de comércio preparar e julgar as ações relativas ao exercício de direitos sociais».
Em causa estão litígios referentes a situações jurídicas que reclamam a aplicação de direito societário, não tão-só reportados aos direitos dos sócios de sociedades comerciais.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.02.2022, processo n.º 1044/21.4T8LRA-A.C1.S1, «[a] criação dos juízos do comércio foi orientada pelo objetivo de melhorar a administração da justiça quando os conflitos emergem de aspetos específicos do direito comercial, incluindo o direito das sociedades comerciais, não existindo quaisquer razões que justifiquem que apenas os direitos dos sócios e não quaisquer outros que emergem da aplicação de normas que regem especificamente as sociedades comerciais possam beneficiar de uma apreciação e tratamento tecnicamente especializado».
«Daí que, pese embora a noção jurídica societária de direitos sociais surja, por vezes, no direito substantivo, reportada aos direitos dos sócios (…), essa expressão utilizada pelo legislador na alínea c), do n.º 1, do artigo 128.º, da LOSJ, não deva ser equiparada, para efeito de determinação da competência dos tribunais de comércio, a direitos dos sócios, mas sim a direitos específicos do regime do direito das sociedades, competindo àqueles tribunais decidir os litígios emergentes de relações jurídicas conformadas pela legislação que especificamente rege as sociedades comerciais, designadamente o Código das Sociedades Comerciais (…)».
«Relativamente à aplicação do direito societário, não é compreensível atribuir aos tribunais especializados para apreciar as questões comerciais, competência para julgar exclusivamente as ações onde estivesse em discussão direitos dos sócios, excluindo os demais litígios tendo por tema o regime das sociedades comerciais, não se vislumbrando qualquer razão que justifique essa distinção. Tal posição restritiva traça, arbitrariamente, uma linha de fronteira artificial no interior de uma matéria com um espaço próprio, não havendo razões para imputar o desenho dessa linha ao legislador (…)».
No mesmo sentido refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.10.2022, processo n.º 4583/21.3T8VNF-B.G1.S1, «(…) a expressão “direitos sociais” (constante da alínea c) do art. 128.º/1 da LOSJ) não equivale ou corresponde a “direitos dos sócios”, devendo entender-se que, quando em tal alínea se fala em “ações relativas ao exercício de direitos sociais”, se está a pensar e a referir às ações que emergem do regime jurídico das sociedades comerciais, se está a pensar e a referir às ações em que estão em causa e são invocados os direitos sociais emergentes de tal regime jurídico, sendo que podem ser titulares de tais direitos sociais quer os sócios, quer a sociedade, quer os credores sociais quer mesmo terceiros».
3. Na situação vertente.
O A./Recorrente pretende que judicialmente seja declarada a sua titularidade quanto a ações da SPETI, uma sociedade anónima, e a restituição de tais ações.
Para tanto alega, em resumo, ser titular de ações ao portador da SPETI, referindo que as mesmas foram subtraídas e apropriadas pelos RR., igualmente sócios da SPETI, contra a sua vontade e sem o seu conhecimento.
Estamos, pois, perante uma ação de reivindicação de ações, que constituem valores mobiliários, o que, no fundo, se reconduz a apurar se o A./Recorrente é ou não sócio da SPETI, situação que reclama a aplicação de direito específico das sociedades comerciais, designadamente da Lei n.º 15/2017, de 03.05, e respetiva regulamentação, o Decreto-Lei n.º 123/2017, de 25.09.
A especificidade de tal regime justifica que o litígio seja dirimido por jurisdição para tal particularmente competente, o Juízo de Comércio, tendo sido com esse escopo que se procedeu à criação de tal Juízo.
Com o devido respeito, na esteira dos referidos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2022, não se subscreve a jurisprudência citada pelo Recorrente, pois a mesma não considera os objetivos que presidiram à criação dos Juízos de Comércio: melhorar a administração da Justiça em matérias que reclamem a aplicação específica do direito comercial, nelas incluindo designadamente o direito das sociedades comerciais, conferindo a tais matérias um tratamento técnico especializado.
Nestes termos e em conformidade com o disposto nos artigos 96.º, alínea a), 97.º, n.ºs 1 e 2, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, n.º 1, alínea a), por verificada no caso a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal recorrido, os RR. devem ser absolvidos da instância, conforme decidido por aquele Tribunal, cuja decisão importa, assim, manter nos seus precisos termos.
Improcede, pois, o recurso.
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* *
Segundo o disposto nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil e 1.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais, o recurso é considerado um «processo autónomo» para efeito de custas processuais, sendo que a decisão que julgue o recurso «condena em custas a parte que a elas houver dado causa», entendendo-se «que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção que o for».
Ora, in casu improcede a pretensão do Recorrente, termos em que este deve suportar as custas do recurso.

V. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo integralmente a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 11 de setembro de 2025
Paulo Fernandes da Silva
João Paulo
António Moreira