Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3733/24.2T8LRS-A.L1-3
Relator: HERMENGARDA DO VALLE-FRIAS
Descritores: LEI DE SAÚDE MENTAL
TRATAMENTO INVOLUNTÁRIO
REVISÃO
SESSÃO CONJUNTA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - A audição do requerido prevista na Lei de Saúde Mental é um dos vértices fundamentais do regime jurídico em questão.
II - Não porque o juiz vá concluir dessa audição o acerto do tratamento administrado, já que ouvirá o requerido do alto da sua sobriedade judiciária, sim, mas sem competências médicas, pois que as não tem.
III - Por isso, não se trata de dar ao juiz a faculdade de opinar sobre competências que não tem.
IV - Trata-se de dar ao requerido a oportunidade de, estando perante um verdadeiro juiz das liberdades, permitir que ele percepcione até que ponto se afigura justa e acertada, em face daquela pessoa concreta, a medida de tratamento que vem proposta [tratamento compulsivo]. E esse direito do requerido, saiba-o ele, ou não, é inalienável.
V - Conquanto se prefigurem algumas possibilidades, desde logo medicamente justificadas, para que audição se faça num ou noutro momento, a realidade é que ela é imposta ao juiz e não constitui uma faculdade de que possa dispor.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 3ª Sec. Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

Relatório
Pelo Juízo Local Criminal de Loures – J 1 – foi proferido despacho de revisão [obrigatória] de internamento que decidiu do seguinte modo:
(…)
O artigo 25.º, da Lei n.º 35/2023, de 21 de julho, que aprova a nova Lei da Saúde Mental, adiante LSM, prevê o regime da revisão da decisão do tratamento involuntário.
A revisão da decisão é obrigatória, independentemente de requerimento, decorridos dois meses sobre o início do tratamento ou sobre a decisão que o tiver mantido (artigo 25.º, n.º 2 da LSM). Para este efeito, o serviço de saúde mental envia ao tribunal, até 10 dias antes da data calculada para a revisão obrigatória, um relatório de avaliação clínico psiquiátrica elaborado por dois psiquiatras, com a colaboração de outros profissionais do respetivo serviço (artigo 25.º, n.º 4 da LSM).
*
A revisão da decisão tem lugar com audição do Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário e dos demais intervenientes - artigo 25.º, n.º 5 da LSM.
**
Veio já o Ministério Público pronunciar-se nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 25.º, n.º 5, da LSM, promovendo a manutenção do tratamento involuntário em ambulatório.
**
Notificado o internando e a seu Il. Defensor, para, querendo, se pronunciarem acerca do teor do Relatório de avaliação clínico-psiquiátrica e, bem assim, quanto à necessidade de realização da diligência prevista no artigo 22.º, n.º 2 da LSM, nada disseram.
**
Ora, atento o teor do relatório de avaliação psiquiátrica que antecede (subscrito por dois profissionais médicos), cujo teor não foi colocado em crise, constata-se manterem-se atuais os pressupostos que determinaram a aplicação da medida de tratamento involuntário em regime ambulatório.
Ademais, é certo que o relatório assinala a existência de perigo para bens jurídicos pessoais e patrimoniais do próprio, recusando-se a fazer a medicação oral.
Termos em que se determina que o internando AA continue sujeito a tratamento involuntário em regime ambulatório, por se manterem inalterados os pressupostos que o determinaram.
No mais, aguardem os autos o decurso do prazo de revisão obrigatória de 2 (dois) meses e oficie ao respetivo Hospital para, até 10 dias antes, enviar um novo relatório de avaliação clínico-psiquiátrica da pessoa em tratamento involuntário, com vista a proceder à revisão da sua situação.
Notifique.
Comunique à Comissão - artigo 38.º, 39.º, n.º 1, alínea e), e 42.º, n.º 1, todos da nova LSM.
(…)
Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…)
1. Os presentes autos tiveram origem comunicação remetida pelo Departamento de Psiquiatria do ..., em ..., através da qual foi informado que AA, que padece de esquizofrenia, com histórico de internamentos compulsivos, em virtude do mesmo evidenciar, em ........2024, actividade alucinatória, humor disfórico, discurso desorganizado e ilógico, ideação persecutória dirigida a terceiros, discurso delirante, períodos de agitação e heteroagressividade, realidade que consubstanciava um risco significativo para a sua integridade física e vida, vide ref.ª 15047766.
2. De salientar que, no seguimento do exposto, foi junto relatório da avaliação clínico-psiquiátrica, nos termos do art.º 33.º, n.º 1 da Lei 35/2023 de 21.07, sendo que, não obstante ter sido promovida o agendamento da realização da diligência de sessão conjunta, foi proferido, em 15.04.2024, o seguinte despacho (vide ref.ª 160598165): “…Em conformidade com a informação constante do Relatório médico de fls., entende-se existir necessidade de efectuar outras diligências prévias à realização da sessão conjunta, pelo que se determina que se:
• Oficie o OPC competente na área de residência do Requerido para que informe sobre eventuais registos/participações de incidentes causados pelo mesmo e remeta cópia do(s) respetivo(s) auto(s).
• Solicite ao Hospital ..., ...e ... que informem se o Requerido tem vindo a ser seguido, clinicamente, por questões de foro psiquiátrico…”.
3. No seguimento do exposto, não foi agendada a realização da diligência de sessão conjunta, sendo que, na sequência da junção de nova avaliação clinico-psiquiátrica, foi informado que AA havia evidenciado, no decorrer do internamento, uma melhoria clinica em virtude de ter sido reposta a terapêutica clinica, razão pela qual substituíram o internamento internamento a que se encontrava sujeito por tratamento involuntário em regime ambulatório, vide ref.ª 15163796, tendo sido proferido, em 08.05.2024, o seguinte despacho:
“…Fls. 28 e ss. – Desde já se consigna que a ora signatária considera que, atento o processado, não haverá necessidade de ocorrer a diligência de sessão conjunta, uma vez que a mesma tem como conditio sine qua non a existência de um requerido(a) internado(a) (cfr. arts. 21º e 22º da N.L.S.M.), o que já não sucede, além de que não permitiria que fosse tomada uma decisão nos moldes previstos no art. 20.º da N.L.S.M.
Acresce que nada obsta a que, em momento posterior e caso o(a) requerido(a) não cumpra o tratamento involuntário em regime ambulatório, venha a ser agendada, então, a sessão conjunta sub judice.
Consta do teor do relatório, junto em fls. 28 e ss, que a pessoa em tratamento involuntário tem 41 anos, com diagnoóstico de esquizofrenia, com vários anos de evolução e múltiplos internamentos psiquiatricos (o último em 2019, no ..., em regime involuntário), por episódios psicóticos decorrentes de descompensação da doença de base e abandono terapêutico. Com a terapêutica instituída apresentou melhoria clínica, apresentando-se à data da alta, estabilizado e sem queixa, apresentando apenas crítica parcial para o estado mórbido e necessidade de tratamento. O internando revela elevado risco de abandono e consequente descompensação clínica, a qual levaria a riscos acrescidos para o próprio, em virtude da sua doença mental, considerando-se, assim, necessária a manutenção de tratamento em regime ambulatório involuntário.
Tudo isto levou a que os médicos tivessem concluído que o tratamento involuntário em regime ambulatório corresponda à terapêutica adequada.
Assim, não constando dos autos qualquer elemento que coloque em causa o propugnado na A.C.- P., determina o Tribunal a substituição do tratamento involuntário em internamento por tratamento involuntário em regime ambulatório, relativamente ao paciente AA, uma vez que estão preenchidos os seus pressupostos, nos termos conjugados do art. 15º, n.º 1, als. a), c) e subalíneas i) e ii) e n.º 3, da N.L.S.M., devendo continuar a ocorrer a revisão prevista no art. 25º (sob a epígrafe “[r]evisão da decisão”) da N.L.S.M., prosseguindo, desse modo, os autos…”, vide ref.ª 160881556.
4. Não obstante o exposto, não foi interposto qualquer recurso, sendo que, até à presente data, e não obstante o disposto na Lei 35/2023 de 21.07, recepcionados os relatórios clinico-psiquiátricos elaborados nos termos do art.º 25.º, n.º 4 da Lei de Saúde Mental, o Meritíssimo Juiz de Direito do Tribunal a quo não procede à realização de audição presencial do “…Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário, da pessoa de confiança, do defensor ou mandatário constituído, de um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento…”, ao invés, notifica, com cópia do supramencionado relatório clinico-psiquiátrico o beneficiário do tratamento involuntário, o seu defensor e a pessoa de confiança daquele, para, querendo, no prazo de 5 dias, se pronunciarem sobre a manutenção do tratamento involuntário em regime ambulatório, no exercício do seu direito de audição, vide despachos datados de 22.08.2024 - ref.ª 161932464 e 23.05.2025 – ref.ª165245221.
5. Após, em virtude de nada ser requerido ou junto, a Meritíssima Juiz de Direito do Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho, em 20.06.2025 (ref.ª 165593359):
“…Ref.ª 16692087 e ref.ª 16725077: – Tomei conhecimento:
DA REVISÃO OBRIGATÓRIA
O artigo 25.º, da Lei n.º 35/2023, de 21 de julho, que aprova a nova Lei da Saúde Mental, adiante LSM, prevê o regime da revisão da decisão do tratamento involuntário. A revisão da decisão é obrigatória, independentemente de requerimento, decorridos dois meses sobre o início do tratamento ou sobre a decisão que o tiver mantido (artigo 25.º, n.º 2 da LSM). Para este efeito, o serviço de saúde mental envia ao tribunal, até 10 dias antes da data calculada para a revisão obrigatória, um relatório de avaliação clínico psiquiátrica elaborado por dois psiquiatras, com a colaboração de outros profissionais do respetivo serviço (artigo 25.º, n.º 4 da LSM).
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A revisão da decisão tem lugar com audição do Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário e dos demais intervenientes - artigo 25.º, n.º 5 da LSM.
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Veio já o Ministério Público pronunciar-se nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 25.º, n.º 5, da LSM, promovendo a manutenção do tratamento involuntário em ambulatório.
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Notificado o internando e a seu Il. Defensor, para, querendo, se pronunciarem acerca do teor do Relatório de avaliação clínico-psiquiátrica e, bem assim, quanto à necessidade de realização da diligência prevista no artigo 22.º, n.º 2 da LSM, nada disseram.
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Ora, atento o teor do relatório de avaliação psiquiátrica que antecede (subscrito por dois profissionais médicos), cujo teor não foi colocado em crise, constata-se manterem-se atuais os pressupostos que determinaram a aplicação da medida de tratamento involuntário em regime ambulatório.
Ademais, é certo que o relatório assinala a existência de perigo para bens jurídicos pessoais e patrimoniais do próprio, recusando-se a fazer a medicação oral.
Termos em que se determina que o internando AA continue sujeito a tratamento involuntário em regime ambulatório, por se manterem inalterados os pressupostos que o determinaram.
No mais, aguardem os autos o decurso do prazo de revisão obrigatória de 2 (dois) meses e oficie ao respetivo Hospital para, até 10 dias antes, enviar um novo relatório de avaliação clínico-psiquiátrica da pessoa em tratamento involuntário, com vista a proceder à revisão da sua situação.
Notifique.
Comunique à Comissão - artigo 38.º, 39.º, n.º 1, alínea e), e 42.º, n.º 1, todos da nova LSM…”.
6. Ora, o Ministério Público não concorda com o teor do supramencionado despacho judicial, uma vez que o mesmo, em nosso entendimento, não só é desprovido de suporte legal, mas também viola o que legalmente se encontra previsto nos art.ºs 25.º ex vi 21.º, n.º 1, 22.º, 27.º ex vi art.º 33.º, todos da Lei 35/2023 de 21.07.
7. Analisados os referidos preceitos legais, em nosso entendimento, não resulta qualquer causa que fundamente a desnecessidade da realização quer da sessão conjunta, quer da diligência de audição prevista no art.º 25.º, n.º 4 da Lei 35/2023 de 21.07, ao invés, verificamos que o tratamento involuntário em regime ambulatório tem subjacente a possibilidade de sujeição do doente a tratamento em regime de internamento, sempre que o requerido deixe de cumprir as condições estabelecidas para o tratamento em ambulatório, mediante comunicação ao tribunal competente.
8. De acrescentar que, em nosso entendimento, o legislador nacional, com a nova Lei de Saúde Mental, além do mais, pretendeu, na realidade, sublinhar e reforçar o regime instituído pela Lei 36/98 de 24.07, no decorrer da qual, o art.º 19.º, n.º 1 dispunha, ao invés da Lei 35/2023 de 21.07, que “…Na sessão conjunta é obrigatória a presença do defensor do internando2 e do Ministério Público…”, sendo que, ao substituir a expressão “internando” ( art.º 19.º, n.º1 Lei 36/98 de 24.07) por “requerido” (art.º 21.º da Lei 35/2023 de 21.07) o legislador pretendeu ultrapassar quaisquer dúvidas ou extinguir práticas judiciárias inadequadas existentes, e por conseguinte, impor, sem qualquer margem para dúvidas, que, em todos os processos de tratamento involuntário, quer o requerido se encontre a beneficiar de tratamento involuntário em regime de internamento ou em regime de ambulatório, teria de ser agendada e realizada a diligência de sessão conjunta.
9. De igual forma, que o art.º 25.º, n.º 4 e n.º 5 da Lei 35/2023 de 21.07, estabelecem, de forma peremptória, que a revisão da decisão “…em lugar com audição do Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário, da pessoa de confiança, do defensor ou mandatário constituído, de um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento…”, sendo que, “…É correspondentemente aplicável à audição prevista no número anterior o disposto no n.º 2 do artigo 22.º, e à decisão de revisão o disposto no artigo 23.º…”.
10. Ora, efectuada uma análise a todas as supramencionadas disposições legais, resulta, em qualquer margem para dúvidas, que a sessão conjunta bem como a diligência de audição com vista à revisão da decisão, consubstanciam diligências obrigatórias do processo de tratamento involuntário, as quais deve preceder a decisão final, sendo que, tal obrigatoriedade existe, quer se trate do processo resultante de internamento de urgência, atenta a remissão do art.º 33.º, n.º 3 da Lei 35/2023 de 21.07, aplicando-se a todas as situações de tratamento involuntário, ou seja, quer o requerido se encontre em internamento ou em ambulatório, vide art.ºs 22.º, n.º 3 e 4, 23.º, n.º 2, al. d) e 33.º, n.º 4, todos da Lei 35/2023 de 21.07.
11. Pelo exposto, consideramos que a não realização da diligência de sessão conjunta, bem como diligência de audição para se proceder à revisão da decisão de manutenção do tratamento involuntário consubstanciam uma nulidade insanável, nos termos do art.º 119.°, alínea d), do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no art.º 37.º, da Lei de Saúde Mental, uma vez que a mesma é obrigatória.
12. De acrescentar que, por força do disposto do art.º 5.º da Lei n.º 35/2023, um dos objetivos da política de saúde mental é promover a titularidade efetiva dos direitos fundamentais das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental e combater o estigma face à doença mental, pelo que, apenas e tão-só através da realização da sessão conjunta tais direitos podem ser, devidamente, acautelados.
13. Assim, consideramos que o despacho recorrido deve ser substituído por outro que determine a realização de diligência de audição para se proceder à revisão da decisão de manutenção do tratamento involuntário, diligência de realização obrigatória, uma vez que apenas mediante a sua realização poderá assegurar-se o respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos requeridos em processos de tratamento involuntário, com a presença obrigatória do defensor ou mandatário constituído e do Ministério Público (cfr. artigos 25.º ex vi 21°, 22°, todos da Nova Lei da Saúde Mental), por forma a acautelar a legalidade do processo e o princípio do contraditório, tendo o Tribunal a quo violado as disposições conjugadas dos artigos 8.º, 14.º, 15.º, 19.º, 20.º, 21.º, 23.º, 27.º, 33.º, n.º 3, da Lei n.º 35/2023 de 21 de Julho (Nova Lei de Saúde Mental), artigo 119.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas., Venerandos Desembargadores, não deixarão de doutamente suprir.
Deve o recurso ser julgado procedente, por provado, e consequentemente, deverá determinada a substituição do despacho proferido em 20.06.2025, por outro que determine a realização/agendamento da diligência de audição com vista à revisão da decisão, nos termos do art.º 25.º ex vi art.ºs 21.º e 22.º, todos da Lei 35/2023 de 21.07.
(…)
O requerido, muito embora notificado, não respondeu ao recurso.
***
O recurso foi admitido, com forma, modo e efeito devidos.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, veio o processo à Conferência.
***
Objecto do recurso
Resulta do disposto conjugadamente nos arts. 402º, 403º e 412º nº 1 do Cód. Proc. Penal que o poder de cognição do Tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o Tribunal está ainda obrigado a decidir todas as questões que sejam de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem a decisão, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 daquele diploma, e dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do mesmo Cód. Proc. Penal, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito, tal como se assentou no Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995 [DR, Iª Série - A de 28.12.1995] e no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência nº 10/2005, de 20.10.2005 [DR, Iª Série - A de 07.12.2005].
Tendo em vista este princípio, averigue-se o caso.
O Ministério Público, nas conclusões do recurso, fixa o objecto de apreciação requerida na circunstância de o despacho recorrido ter sido proferido ao arrepio do formalismo previsto no artigo 25º, nº 5 e nº 6 da Lei nº 35/2023, 21.07, circunstância que, por essa concreta razão, inquinará a decisão que, por isso, deve ser revogada e substituída por despacho que determine a audição do requerido, por ser um direito que tem em face da Lei de Saúde Mental.
***
Fundamentação
O despacho recorrido ficou integralmente transcrito, no que releva para esta apreciação.
Fundamentalmente, está em causa um despacho que mantém uma medida de tratamento involuntário em regime ambulatório do requerido, dando como mantidos os pressupostos da sua determinação, mas sem que o Tribunal a quo tenha esgotado as diligências que a lei prevê para o efeito da decisão de manutenção do referido estado, desde logo, tendo privado o requerido da sua audição, que lhe garante a defesa de direitos fundamentais.
Apreciando.
O requerido AA padece de esquizofrenia, com histórico de internamentos compulsivos, e evidenciava em ........2024, actividade alucinatória, humor disfórico, discurso desorganizado e ilógico, ideação persecutória dirigida a terceiros, discurso delirante, períodos de agitação e hétero agressividade, realidade que consubstanciava um risco significativo para a sua integridade física e vida, necessitando, por isso, de tratamento que, num primeiro momento foi em internamento e que, num segundo momento, mediante avaliação médica especializada, determinou-se passasse a ser de forma ambulatória, ainda que em regime não voluntário, como lhe foi determinado.
Muito embora promovida a sua audição, o Tribunal a quo entendeu não a fazer, num primeiro momento protelando-a com a determinação de diligências que considerou em falta e, num segundo momento, revendo a sua situação, mantendo-a, sem ter realizado tal audição.
Fundamentalmente, o Tribunal a quo considerou que, cessado o internamento, a sessão conjunta de prova deixava de fazer sentido, com audição do requerido, uma vez que estava prevista apenas para casos de efectivo internamento.
Ponto de que discorda o recorrente, defendendo o Ministério Público que o procedimento mantém homogeneidade para além da concreta medida de tratamento vigente, sendo que apenas esta interpretação faz sentido, tanto mais quando a alteração da redacção das normas (arts. 19º e 21º, por exemplo), que deixaram de referir o «internando» para referirem o «requerido» dão disso também expressa indicação.
O que está em causa não é uma mera questão de forma.
Nem o Ministério Público a vê assim, e nem a podemos ver nós, uma vez que a chamada Lei de Saúde Mental constitui um diploma com natureza «para-penal» com alcance mais significativo no âmbito dos chamados direitos, liberdades e garantias.
O que está em causa na referida Lei é, simplificando, garantir que cidadãos portadores de doença ou estado mental não absolutamente saudável possam ser privados da sua liberdade para, em vista ao seu próprio bem e segurança dos demais, serem sujeitos a tratamento.
Quem, dando-se ao prazer da leitura da história, não apenas neste País mas da Europa em geral, que partilha os mesmos princípios humanistas, perceba que em muitos momentos históricos se invocou aparente desnorte mental ou emocional para justificar cárcere e privação de outros direitos, consegue também percepcionar a dimensão, além da médica, que estas questões envolvem.
De facto, muitas vezes na história se alegaram e invocaram perturbações do foro mental (desculpando-se a facilidade de linguagem) para manter fora da participação cívica, social ou só familiar os cidadãos incómodos, circunstância que aproxima esta matéria da essência da tutela da liberdade, do mesmo passo em que a faz depender da concreta e competente e escrutinada avaliação médica.
Este assunto deixou de ser um monólogo e passou a ser um verdadeiro diálogo entre necessidades médicas reconhecidas, cuidados sociais garantidos e liberdades asseguradas.
É este o verdadeiro equilíbrio que evidencia o trabalho desenvolvidos por tão bons juristas que estiveram na base do estudo e concretização da referida Lei e que continuam a trabalhar para melhorar a mesma a cada passo da sua vigência.
A isto alia-se o pendor humanista do Estado, a solidariedade que a Constituição afirma logo à abertura dos seus princípios estruturantes e a necessidade de, provendo o tratamento, garantir que a nenhum cidadão é obliterado o direito a sê-lo por inteiro, podendo manter tal liberdade.
A audição do requerido é, como tal, um dos vértices fundamentais do regime jurídico em questão (Lei de Saúde Mental).
Não porque o juiz vá concluir dessa audição o acerto do tratamento administrado, já que ouvirá o requerido do alto da sua sobriedade judiciária, sim, mas sem competências médicas, pois que as não tem.
Por isso, não se trata de dar ao juiz a faculdade de opinar sobre competências que não tem.
Trata-se de dar ao requerido a oportunidade de, estando perante um verdadeiro juiz das liberdades, permitir que ele percepcione até que ponto se afigura justa e acertada, em face daquela pessoa concreta, a medida de tratamento que vem proposta. E esse direito do requerido, saiba-o ele, ou não, é inalienável.
Conquanto se prefigurem algumas possibilidades, desde logo medicamente justificadas, para que audição se faça num ou noutro momento, a realidade é que ela é imposta ao juiz e não constitui uma faculdade de que possa dispor.
O artº 25º, nº 2 da Lei de Saúde Mental1 determina que a revisão da decisão de tratamento involuntário é obrigatória, independentemente de requerimento, decorridos que sejam dois meses sobre o início do tratamento ou sobre a decisão que o tiver mantido.
Estamos, como tal, no âmbito deste concreto compasso legal.
O nº 2 desse mesmo preceito prevê que o serviço de saúde mental envie ao Tribunal, para esse efeito, e até 10 dias antes da data calculada para a revisão obrigatória, um relatório de avaliação clínico-psiquiátrica elaborado por dois psiquiatras, com a colaboração de outros profissionais do respetivo serviço (veja-se nº 4).
E o nº 5 do mesmo preceito legal determina que a revisão da decisão tenha lugar após audição do Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário, da pessoa de confiança, do Defensor ou Mandatário, de um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento, sendo aplicável à referida audição o disposto no artº 22º, nº 2 da mesma Lei (nº 6, Iª pte), em sessão conjunta de prova.
Sendo que o referido procedimento prevê que as pessoas notificadas e convocadas para a sessão conjunta podem ser ouvidas por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvidas a partir do seu local de trabalho o psiquiatra subscritor do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica e os profissionais do serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência do requerido.
Ou seja, é a própria Lei que, prevendo constrangimentos relativos quer ao processo quer às contingências médicas que possam verificar-se, prevê os meios mais expeditos para a sua realização.
Ora, o artº 5 da referida Lei, quando traça os objectivos da política de saúde mental, prevê na al. a) precisamente que se tem em vista [p]romover a titularidade efetiva dos direitos fundamentais das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental e combater o estigma face à doença mental, não podendo isto significar nada menos do que acima se disse.
Conquanto estejamos no âmbito do tratamento em ambulatório, sendo ele no entanto involuntário ou compulsivo, acresce também o que se impõe no artº 8º como direito especial do requerido, para além do direito a ser informado sobre o devir dos procedimentos, de [p]articipar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito, presencialmente ou por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvido por teleconferência a partir da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental onde se encontre (al. b)) e o direito a [s]er ouvido pelo juiz sempre que possa ser tomada uma decisão que o afete pessoalmente (al. c)).
Como se percebe pelo que antecede, não estão estes direitos na disponibilidade do juiz, podendo concede-los, ou não.
São direitos inerentes à condição do requerido enquanto tal, quer esteja internado ou não, porque a lei não distingue e nem pode o juiz, ao arrepio da Lei, que é especial, distinguir onde nela se não distingue. Desde logo, porque não pode ser o juiz, ou o Tribunal como melhor se diz, a substituir-se à vontade do requerido, apenas porque está ou não internado, uma vez que não estamos perante a necessidade de suprimento de incapacidades quando a lei expressamente as confere ao indivíduo.
A audição do requerido prevista na Lei de Saúde Mental, esteja internado ou não, seja o tratamento a que está sujeito voluntario ou compulsivo, é um direito próprio do requerido que é um cidadão de plenos direitos no âmbito de cuja vida, por razões médicas definidas, o Estado fez incidir uma necessidade de tratamento/acompanhamento.
Assim, como parece de meridiana clareza e absoluta justeza relativamente às normas vigentes, o requerido tem o direito a ser ouvido e a estar presente em sessão conjunta de prova que vise a avaliação do seu estado de saúde mental quando esteja em causa a revisão da medida de tratamento [involuntário] a que está sujeito.
A omissão de tal diligência constitui nulidade, que será insanável, nos termos do disposto pelo artº 119º, al. c) do Cód. Proc. Penal e por via do disposto no artº 37º da Lei de Saúde Mental que manda aplicar aquele primeiro diploma ao que como omisso se configure no segundo.
Estando em causa um direito fundamental do requerido, impõe-se a reparação do vício no mais curto espaço de tempo.
Sendo, pelo exposto supra, de garantir provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.

Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar provido o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, declarando a nulidade do despacho recorrido, ordenar que seja o mesmo substituído por outro que designe data para a realização da sessão conjunta de prova, ouvindo-se para o efeito o Ministério Público, o requerido em tratamento involuntário, pessoa de confiança do mesmo, o Defensor ou Mandatário, um dos médicos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou o psiquiatra responsável pelo tratamento e um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento, sendo certo que a audição pode ser assegurada também através de sistema de comunicação digital de imagem e voz, caso se revele necessário e nos termos do disposto pelos arts. 22º, nº e 25º, ns. 5 e 6 da citada Lei de Saúde Mental.
Não são devidas custas.
Notifique.

Lisboa, 22 de Outubro de 2025
Hermengarda do Valle-Frias
Rui Miguel Teixeira
Carlos Alexandre
Texto processado e revisto.
Redacção sem adesão ao AO
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1. Lei nº 35/2023, de 21 de Julho.