Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
602/21.1PBMTA.L1-3
Relator: RUI MIGUEL TEIXEIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Sumário (da responsabilidade do Relator):
- A impugnação ampla da matéria de facto não pressupõe a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
- No que respeita à fixação da medida da pena desde que a decisão tomada haja levado em consideração os elementos que a Lei determina necessários à fixação da pena há uma liberdade do Tribunal (seja singular, seja colectivo) para decidir o quantum da pena.
- Desde que este “quantum” esteja dentro de valores que se reputem correctos ante a normalidade da vida (no fundo de acordo com as regras da experiência as quais incluem, claro está, a jurisprudência) não devem os Tribunais Superiores intervir mesmo que se possa conceber que pessoas diferentes decidiriam de forma diferente sem que tal decisão estivesse, por sua vez, errada.
- Trata-se de uma alea que existe no sistema legal e que assegura, por via da mesma, que cada caso é um caso e tratado como tal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
Interpõem recurso da decisão proferida pelo tribunal Colectivo do Juízo Central Criminal de Almada - Juiz 4 – do Tribunal da Comarca de Lisboa mediante a qual foi condenado o arguido AA, filho de BB e de CC, nascido a ...-...-1966, natural da ..., casado, titular do cartão de cidadão n.º …, residente na ..., concelho da ..., pela prática de 288 (duzentos e oitenta e oito) crimes de abuso sexual de menores dependentes agravado, sendo 126 (cento e vinte e seis) previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º 1, 171.º, n.º 1 e n.º 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na redacção da Lei n.º 103/2015, de 24/08 (factos ocorridos entre ...-...-2019 e ...-...-2020) e 162 (cento e sessenta e dois) previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º 1, alínea a), 171.º, n.º 1 e n.º 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na redacção da Lei n.º 40/2020, de 18 de Agosto, nas penas parcelares de 2 (dois) anos de prisão por cada um deles e, em cúmulo jurídico, na pena única de pena unitária de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, o próprio arguido e o Ministério Público.
Após alegações concluiu o arguido agora recorrente:
“1- Considerando que o Recorrente vem impugnar a decisão sobre a matéria de facto, em cumprimento, nomeadamente dos requisitos previstos no nº 3 e respectivas alíneas e nº 4 do artigo 412º, do Código de Processo Penal, impondo-se ao Tribunal ad quem apurar pela análise das passagens indicadas pela Recorrente e outras que tiver por necessárias à boa decisão da causa de declarações e depoimentos prestados, se ocorreu erro de julgamento relativamente aos pontos de facto que o Recorrente especificará como incorrectamente julgados e que são os seguintes: 4), 5), 6), 7), 6), 7), 8), 9) e 10) da matéria dada como provada.
2- Todos os factos constantes daqueles pontos foram dados como provados, factos que no entender do Recorrente e que pelo cotejo das passagens das declarações e depoimentos transcritos e melhor constantes das motivações supra para as quais se remete para os devidos e legais efeitos, foram incorrectamente julgados;
3- O tribunal a quo considerou provado que:
“4.º Desde dia não concretamente apurado, mas pelo menos desde ... de ... de 2019 até ... de ... de 2021, tendo a ofendida entre os 15 e os 17 anos de idade, que o seu tio, o arguido, no interior da residência referida, aproveitando que a sua mulher DD se encontrava a trabalhar, ou os seus filhos estarem a dormir ou ausentes, praticava os actos que seguidamente se descrevem (4.º da pronúncia).”
4-No que concerne ao facto n.º4 julgado provado pelo Douto Tribunal a quo, o mesmo teve em consideração o ano lectivo ...1.../2020 da ofendida, que se iniciou entre ... (cf. Despacho n.º 5754-A/2019, DR II Série, de 18-06-019) admitindo-se não ser possível aferir, com segurança, se tais factos terão ocorrido desde o início do ano civil, tendo por provado, por mais favorável ao arguido, que tal conduta se iniciou apenas na parte final do ano, no primeiro período do ano escolar, último do ano civil (facto provado 4.º) e ainda no depoimento da ofendida do qual resultou que desde o seu início até à sua saída de casa os factos ocorreram sempre, à excepção de no próprio mês da saída, teve-se, pelos mesmos fundamentos, por provado que os factos ocorreram apenas até ao final de ... (factos provados 4.º e 6.º).
5-Contudo e de acordo com as declarações prestadas pela ofendida na Polícia Judiciaria -Ponto 19 e 20 - a primeira vez ocorreu, alegadamente, numa noite de Verão no ano de ... e em sede declarações memória futura indicou ter sido no ano de ..., não concretizando o mês, apenas que estava em aulas, sendo por isso manifestamente vago.
A este propósito vide as declarações prestadas pela ofendida para memória futura em .../.../2022:
00:12:46 Juiz de instrução (…) quando começou?
00:12:47 Ofendida- ....
00:13:00 Juiz de instrução-Quando começou?
00:13:05 Ofendida-Acho que era de aulas…, não?
A este propósito vide as declarações prestadas na ... .../.../2021:
Ponto 19 e 20:
“primeiros episódios sexualmente abusivos por parte do seu tio AA no ano de ... e no verão. Descreve que o primeiro contato sexual ocorreu em uma noite de verão”
6-O que demonstra existir contradição nos depoimentos prestados pela ofendida, não existindo uma única prova nos presentes autos, à excepção das declarações para memória futura da ofendida, acerca da data de início dos alegados comportamentos por parte do arguido, podendo, até por hipótese, a ofendida caso assim o entendesse indicar o ano ....
7-Além disso, é de salientar que o arguido era o primeiro a sair de casa, saia pelas 6H30 e só regressava pelas 20H00, sendo por isso pouco provável o mesmo se encontrar em casa e a mulher a trabalhar ou os filhos a dormir ou estarem ausentes, pois havia sempre gente em casa.A este propósito vide as declarações do arguido em sede de audiência de julgamento em .../.../2024:
39:47 EE: (…) saio de casa as 6h30 e volto a casa 19H00/20H00/21H00 e depois apanho
trabalho sábado e domingo….
40:17 Juíza (…) quanto à DD, como eram os horários dela?
40:38 EE - os horários dela, entrava juntamente com a FF, saia de casa 7h45, 7H30 para ir para a escola.
8-De acordo com o acórdão em apreço, apresentou-se mais credível e lógico para o Tribunal a quo que o Recorrente se terá aproveitado das ausências dos restantes elementos do agregado familiar para praticar os factos de que foi condenado.
9- Com efeito, não se vislumbra nos autos que a Recorrente tenha adoptado tais comportamentos.
10. Assim o tribunal a quo devia ter julgado como não provado o ponto n.º 4 constante do acórdão ora objecto do recurso, o qual para efeitos da al.a) do nº3 do artigo 412.º do CPP foi incorrectamente julgado.
11-O tribunal a quo considerou provado que:
“6.º A partir de ..., aquando do primeiro confinamento o arguido passou a ir ao encontro da ofendida, no quarto daquela, pelo menos três vezes por semana, durante a noite e também de manhã, abeirando-se da mesma, já não se limitando a tocar-lhe nas mamas e na vagina por baixo da roupa, introduzindo-lhe os dedos na vagina, mas também encostando-lhe o pénis na vagina (6.º e 9.º da pronúncia).”
12-Quanto ao facto n.ºb6 provado pelo Douto Tribunal a quo, o mesmo teve em consideração, mais uma vez o depoimento da ofendida, tendo a testemunha referido que ocorriam “quase diariamente”. Acresce que o Tribunal considerou o carácter dúbio de tal expressão tendo concluído que ocorreram mais do que duas vezes por semana, e considerou tal facto provado, à luz do princípio in dubio pro reo, que ocorreram pelo menos três vezes por semana (facto provado 6.º).”
13-Salvo o devido respeito, tal conclusão do tribunal a quo vem contrariar o depoimento prestado pela ofendida em sede de declarações para memoria futura, tendo a mesma indicado que, a partir de ..., em pleno confinamento, a periodicidade passou a ser quase diária, à noite e de manhã, e não três vezes por semana. A este propósito vide o depoimento prestado pela ofendida em sede de declarações para memoria futura em .../.../2022:
00:13:48 Juiz de instrução- (…) em ... era 2 vezes a volta disso, normalmente 2 vezes bem. Em 2020, passou a ser quase todos os dias. Este 2020 foi o princípio do meio no fim.?
0:14:12 Ofendida-Foi mais ou menos na época em que estávamos de isolamento… do confinamento.
00:14:37 Juiz de instrução-(…)a e continuou sempre a ser à noite?
00:14:40 Ofendida-Não, então passou a ser dia também… de manhã.
00:14:46 Juiz de instrução - Aqui agora parece que não, não havia gente que lá em casa durante o dia vais ter que acordar, não é? Devia haver.
00:14:53 Ofendida-Costumam estar no quarto, ou então era de manhã, não estavam acordados ainda.
(..)
00:15:01 Ofendida- Não muito cedo, mas como costumam acordar tarde e eu acordava sempre mais cedo do que tinha que limpar a casa e lavar a loiça ….essas.
14-Além disso, é do conhecimento geral, que durante o confinamento as pessoas ficaram retidas em casa, saindo apenas para o trabalho, escola, supermercado e farmácia, permanecendo por isso mais tempo do que o habitual em casa.
15-In casu, o agregado familiar da ofendida era significativamente numeroso, composto por oito pessoas incluindo a ofendida, o que não nos parece verosímil que tal tenha acontecido com a casa cheia e com a periocidade considerada provada pelo tribunal, tendo inclusivamente o arguido se ausentado para a ... em 2020 e ..., conforme comprovativos juntos aos autos. A este propósito vide as declarações do arguido em sede de audiência de julgamento em .../.../2024:
14:00 EE -Eh Pá, somos 7 com ela 8 (…)
14:06- Toda a gente, toda a gente, todos os membros da família têm chave de casa?
14:11 EE: todos têm chave
(…)
23:39 EE: (...) durante o covid fui para a ... (…) fui em 2020 e em ...(...) porque
morreu minha mãe (…)
16. Assim o tribunal a quo devia ter julgado como não provado o ponto n.º 6 constante do acordão ora objecto do recurso, o qual para efeitos da al.a) do nº3 do artigo 412.º do CPP foi incorrectamente julgado.
17- O tribunal a quo considerou provados que:
5.º Em dias não concretamente apurados, com uma frequência de pelo menos duas vezes por semana, preferencialmente à noite, dirigia-se ao quarto da ofendida, contiguo à cozinha, abeirava-se da mesma que se encontrava a dormir, deitada na parte inferior do beliche, e julgando-a a dormir, sempre por baixo da roupa, tocava-lhe nas mamas, apalpando-as, bem como na vagina, esfregando-lhe os dedos na vagina e aí introduzindo-os (5.º da pronúncia).
7.º Para o efeito referido, o arguido despia as calças da ofendida, retirava o seu pénis para fora e encostava-o à vagina da ofendida, não o introduzindo porque esta virava-se de lado, levantava-se ou pedia-lhe expressamente para não o fazer (7.º da pronúncia).
8.º Em data não concretamente apurada, após o início do confinamento, pelos menos em duas ocasiões distintas em que a tia DD lhe pediu que varresse o quarto desta, sendo que, a ofendida entrou no referido quarto, onde o arguido se encontrava deitado na cama, e enquanto varria, o arguido puxou-a para a cama, colocou-a em cima de si, esfregando o seu corpo no corpo da ofendida, por cima da roupa (8.º da pronúncia).
9.º A ofendida inicialmente não reagia às investidas do arguido, simulando que estava a dormir, sendo que outras vezes mexia-se, virando-se de lado, ou abrindo os olhos, manifestando assim o seu desconforto, desagrado e discordância com a conduta do arguido, ou simplesmente pedindo-lhe que parasse, sendo que por vezes o arguido cessava de imediato a sua intenção, e outras vezes ainda insistia novamente (10.º da pronúncia).
10.º A ofendida nunca contou à tia GG o sucedido com receio que não acreditasse em si e a mandasse de volta para a ... (11.º da pronúncia).
18-Quanto aos factos n.º5, 7, 8, 9 e 10 provados pelo Douto Tribunal a quo, não foram especificados quais os elementos probatórios que estiveram subjacentes na convicção do Tribunal.
19-Quanto ao facto 10.º, é de estranhar que a DD nunca tenha comentado com ninguém, incluindo a tia, acerca dos alegados comportamentos do arguido, pois se o seu receio era voltar para a ..., isso seria certamente um alívio para a ofendida, pois seria uma forma de acabar com tal sofrimento, indo ao reencontro da sua família na ..., pelo que não se não se compreende tal receio.
20-Quanto aos factos 5.º e 7.º provados pelo Douto Tribunal a quo, é também de estranhar que, a ser verdade, a ofendida durante as alegadas investidas do tio, não tenha fugido ou ou gritado, e ninguém se tenha apercebido, até porque como resulta dos seus depoimentos em momento algum a mesma foi amarrada, tendo total liberdade de movimentos. A este propósito vide o depoimento prestado pela ofendida em sede de declarações para memoria futura em .../.../2022:
00:16:38 Juiz de instrução E o que é que fazias nessas alturas?
00:16:45 Ofendida- eu dizia que não… ou me levantava às vezes, abria os olhos e ele parava.
00:16:54 Juiz de instrução- então nas outras vezes …..não era assim…
00:16:57 Juiz de instrução- Mantinhas os olhos fechados e ele pensava que tu estavas a dormir para ele pensar que tu estavas a dormir.
21-Assim o tribunal a quo devia ter julgado como não provados os pontos n.º 5º, 7º, 8º, 9º e 10º constantes do acórdão ora objecto do recurso, o qual para efeitos da al.a) do nº3 do artigo 412.º do CPP foi incorrectamente julgado.
22- O Tribunal a quo entendeu que as declarações do arguido não mereciam qualquer credibilidade na parte em que o mesmo negou os factos, por falta de coerência interna quando conjugada com a demais prova.
23- Entendeu ainda que não seria plausível que a ofendida ficcionasse acusações desta gravidade quando lhe bastaria esperar um mês para atingir a maioridade sim, mas a autonomia financeira não.
24-Outra razão apontada pelo tribunal foi quando o arguido questionado pelas razões pelas quais a mulher lhe sugeriu que a filha HH dormisse consigo depois da mulher se levantar, não logrou apresentar uma explicação plausível até porque, na altura, nem sabia sequer se alguém tinha efectivamente entrado no quarto ou estava a sonhar.
25-Ora, foi exactamente esse o motivo da mulher do arguido ter sugerido que a filha mais nova fosse dormir com este.
26-Por último, quando questionado pelo motivo pelo qual a DD tinha repetido tais condutas após a ter a repreendido pela primeira vez acabou por não contar à mulher o que se passava, disse que na última ocasião, assustou de tal modo a sobrinha que tal comportamento não se repetiu mais, o que, mais uma vez, não explica porque não tenha contado nada à mulher no primeiro momento em que a jovem entrou no seu quarto.
27-A razão pela qual o arguido não terá contado à mulher foi porque ficou convencido que a ofendida não voltaria a ter tais comportamentos.
28-Além disso, o tribunal teve em consideração o facto do arguido ter tentado influenciar a sua mulher na decisão de prestar ou não depoimento diante do tribunal, não sendo plausível que lhe ocultasse tais comportamentos da sobrinha apenas para responsabilidade limitada manter a tranquilidade familiar, pelo que entendeu existir falta de credibilidade nas suas declarações.
29-Ora com o devido respeito, o arguido apenas pediu à mulher para prestar depoimento, atendendo que a mesma terá ficado indecisa, aquando da advertência de poder recusar-se a prestar depoimento por ser mulher do arguido, não tendo o arguido intenção de pressionar a sua mulher a prestar depoimento, até que por que a mesma acabou por se recusar.
30-Entendeu o Tribunal a quo que a ofendida, DD, teve um relato escorreito e sereno dos factos, cuja credibilidade resultou dos pormenores com que descreveu os actos alegadamente praticados pelo arguido e pelas emoções demonstradas quando pediu ajuda a II, e psicóloga que a atendeu (documentadas no relatório de folhas 381) e que se demonstram inteiramente compatíveis com a vivência da realidade que narrou, tendo contudo existido contradições nos depoimentos prestados pela mesma.
31-O tribunal teve ainda em consideração a entrevista pericial, DD, na qual terá apresentado alteração no comportamento não verbal com activação emocional quando foram abordados os factos que deram origem a este processo, e “sintomas compatíveis com um quadro de perturbação de stresse pós-traumático, de nível elevado (relacionado com as experiências de natureza sexual de que terá sido vítima, que a própria descreve como “abuso”) que se repercutem de forma significativa na funcionalidade da examinanda (e.g. vivência da sexualidade, evitamento, hipervigilância)”(cf. Relatório pericial de folhas 131-135).
32-Não se podendo concluir, na óptica do Recorrente, que exista um nexo de causalidade do quadro perturbação de stresse pós-traumático com a situação em apreço, desconhecendo-se o histórico clinico da ofendida.
33.Acresce que o tribunal teve em consideração a mensagem de folhas 45, remetida pela filha do arguido, JJ, à prima, na qual esta refere que a HH lhe contou “o que ela viu”, pedia-lhe desculpa pelo sucedido e lhe dizia que precisava saber exactamente o que se havia passado e que “a pessoa que o fez é que está a arranjar problemas, não tu”.
34-Ora com o devido respeito a referida mensagem é vaga, ambígua e obscura, pois nada concretiza, nem especifica, podendo se enquadrar uma multiplicidade de situações, dando margem para podermos imaginar o que quisermos
35-Razão pela qual tal mensagem não pode resultar como prova firme, bastante e segura para permitir concluir com segurança e sem margem para dúvidas factos de que o Recorrente foi condenado.
36-O Tribunal a quo ponderou todos estes elementos, concluindo pela verosimilhança e credibilidade do depoimento de DD, sendo que a circunstância de o arguido ser quem saía de casa mais cedo e, bem assim, a de se encontrarem sempre pessoas em casa não é susceptível de o pôr em crise.
37-Em relação à primeira, a DD contextualizou parte dos factos de manhã, enquanto apenas o arguido e a própria estavam acordados.
38-Relativamente à segunda, a presença de outros membros do agregado não era inibidora da acção do arguido pois o mesmo foi, inclusivamente, surpreendido numa ocasião pela sua filha HH junto do beliche de DD, a falar “em cima” da jovem.
39-No tocante à mensagem print junta aos autos de fls. 45 enviada pela testemunha KK para a ofendida, em sede de audiência de julgamento, a testemunha JJ quis prestar depoimento tendo explicado ao tribunal que não tinha tido conhecimento directo dos factos, mas somente daquilo que lhe foi transmitido pela sua irmã mais nova FF.
40-Com efeito, a valoração do depoimento das testemunhas de ouvir dizer depende da observância de certos procedimentos que visam a assegurar o contraditório nos depoimentos das testemunhas.
41-Ressalvadas as excepções previstas na parte final do nº 1 do artigo. 129.º, o depoimento indirecto só pode ser valorado como meio de prova, se o juiz proceder à sua confirmação através da audição das pessoas a quem a testemunha ouviu dizer.
42-Devendo tal depoimento indirecto ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o respectivo depoimento directo, quando prestado, tudo conforme a livre apreciação e as regras da experiência comum.
43-Ora se a pessoa determinada de quem se ouviu dizer se recusar validamente a depor, in casu, FF, não se mostra, pois, verificado o pressuposto de que depende a validade do depoimento indirecto da testemunha, o que significa que o mesmo não poderia servir para formar a convicção do tribunal a quo quanto ao facto provado em questão. O depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova e ser valorado pelo tribunal.
44-Neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do processo n.º 155/13.4PBLMG.C1 de 10-12-2014.
45- Em face do que antecede, devem os factos 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º e 10º serem julgados como não provados por não ter sido produzida prova suficiente.
46-Todos os factos constantes daqueles pontos foram dados como provados pelo Tribunal a quo, factos que no entender do Recorrente e que pelo cotejo das passagens das declarações e depoimentos transcritos e melhor constantes das motivações supra para as quais se remete para os devidos e legais efeitos, foram incorrectamente julgados.
47-Pelo que é evidente a insuficiência probatória para a decisão da matéria de facto provada.
48-.Pelo exposto, o tribunal a quo, condenando a recorrente, violou ainda o principio do “in dubio pro reo” consagrado no artigo 32.º, n.º2 da CRP, o qual devia ter sido interpretado e aplicado no sentido da sua absolvição.
49-.O principio “in dubio pro reo” pretende garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos do facto típico e ilícito que a suporta, assim como, do dolo ou negligencia do seu autor.
50-.Da lista de factos considerados provados não detectamos um único que demonstre o preenchimento dos elementos do crime que a arguida foi condenada.
51-É antes uma construção, aparentemente, lógico dedutiva, completamente desfasada.
52-É, pois, patente a insuficiência da matéria de facto provada para a incriminação imputada à arguida – alínea a), do nº 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
53-Podemos ainda afirmar que existe de facto um erro notório na apreciação da prova – alínea c), do n.º 2, do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, sendo profundamente injusta e infundada a condenação aplicada à Recorrente, violando-se assim aquilo que são as mais elementares regras da administração da justiça.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. Mui doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência:
absolvido o Arguido AA da prática de 288 (duzentos e oitenta e oito) crimes de abuso sexual de menores dependentes agravado, sendo 126 (cento e vinte e seis) previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º 1, 171.º, n.º 1 e n.º 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na redacção da Lei n.º 103/2015, de 24/08 (factos ocorridos entre ...-...-2019 e ...-...-2020) e 162 (cento e sessenta e dois) previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º 1, alínea a), 171.º, n.º 1 e n.º 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na redacção da Lei n.º 40/2020, de 18 de Agosto, nas penas parcelares de 2 (dois) anos de prisão por cada um deles, bem como, do pagamento da quantia de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) a DD.
Fazendo-se assim a tão costumada JUSTIÇA!”
Ao assim recorrido veio responder o Ministério Público sustentando, em síntese conclusiva que:
“1. O recorrente invoca, no essencial, o erro de julgamento, por o tribunal recorrido não ter dado como provados os factos que levaram à condenação do arguido, apesar de, em seu entender, de parte deles não ter sido feita prova bastante em julgamento.
2. No entanto, da análise do Acórdão ora posta em crise, resulta que, para além da indicação dos meios de prova que alicerçaram a convicção do Tribunal, o Colectivo filtrou, em suma, criteriosa e ponderadamente todos os meios de prova.
3. E tendo aquelas sido valoradas positivamente pelo Tribunal recorrido no âmbito da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, no sentido de que inexiste dúvida sobre se o arguido praticou os crimes pelos quais veio a ser condenado, está, deste modo, afastada a existência de qualquer vício ou a violação do princípio “in dúbio pro reo”.
4. Face ao exposto, entendo não se mostrarem violados quaisquer dispositivos legais, devendo, por isso, o negar-se provimento ao recurso.”
Já o Ministério Público interpôs, como referido, recurso da decisão final formulando as seguintes conclusões:
1. O arguido foi condenado em penas parcelares e numa pena unitária fixadas ligeiramente acima do respectivos limites mínimos correspondentes ás respectivas molduras abstractamente previstas.
2. Com efeito, apesar de expressamente enunciadas na decisão recorrida determinadas circunstâncias (a intensidade do dolo e da ilicitude, as elevadas necessidades de prevenção geral), estas não se reflectiram efectivamente como factores de ponderação na determinação concreta das aludidas penas.
3. Mas também no que respeita á fixação da pena única o Tribunal recorrido não atentou a todas as circunstâncias que os factos revelam, avaliados globalmente e em relação com a personalidade do agente, conforme decorre do disposto no art.º 77.º, do Código Penal.
4. Assim e desde logo, não foi ponderada a ausência de postura de contrição por parte do arguido susceptível de denotar um qualquer processo de interiorização do desvalor da sua conduta.
5. Nem a total indiferença que o arguido revelou pelo impacto do seu comportamento violento e cruel na esfera pessoal da vítima, tendo em conta a duração dos abusos e o respectivo modo de execução.
6. Termos em que, por violação do disposto no art.ºs 40.º, 71.º e 77.º, do Código Penal, deverá ser revogada a decisão recorrida, condenando-se o arguido em penas (parcelares e unitária) fixadas perto do patamar intermédio das referidas molduras”
Nestes termos, e noutros que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao recurso ora apresentado, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-se por outra que condene o arguido nos termos propugnados na motivação.
V. Exas., contudo, com mais elevada prudência, decidirão como for de JUSTIÇA!”
O arguido não respondeu.
Subidos os autos a este Tribunal nestes teve vista a Exmª Procuradora Geral Adjunta a qual emitiu parecer no sentido de ser o recurso interposto pelo arguido julgado improcedente pelas razões constantes da resposta apresentada e procedente o recurso do Ministério Público pelas razões constantes da respectiva motivação.
Os autos foram a vistos e à conferência.
*
II – Do âmbito do recurso e da decisão recorrida
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do Código do Processo Penal).
No caso concreto, analisadas as conclusões recursais as questões a decidir são:
No tocante ao recurso do arguido:
a. A alteração da matéria de facto;
b. A questão da verificação dos vícios do artº 410º nº 2 als. a) e c) do C.P.P..
c. A questão da aplicação do princípio in dubio pro reu.
No tocante ao recurso do Ministério Público:
a. A questão da medida da pena.
É a seguinte a factualidade dada como assente e não assente na decisão recorrida, bem como a respectiva motivação:
“1.º DD, de nacionalidade ..., nascida em ...-...-2003, é filha de LL e MM, encontrando-se a residir em ... desde ... (1.º da pronúncia).
2.º A ofendida residiu com a tia paterna GG, o marido desta, o ora arguido AA, e os cinco filhos de ambos, na ..., até ... (2.º da pronúncia).
3.º Tal ocorreu após o falecimento do seu progenitor a ofendida ficou entregue à guarda e cuidados da tia paterna e do respectivo marido, ora arguido, que eram quem provia ao seu sustento, bem-estar e formação (3.º da pronúncia).
4.º Desde dia não concretamente apurado, mas pelo menos desde ... de ... de 2019 até ... de ... de 2021, tendo a ofendida entre os 15 e os 17 anos de idade, que o seu tio, o arguido, no interior da residência referida, aproveitando que a sua mulher DD se encontrava a trabalhar, ou os seus filhos estarem a dormir ou ausentes, praticava os actos que seguidamente se descrevem (4.º da pronúncia).
5.º Em dias não concretamente apurados, com uma frequência de pelo menos duas vezes por semana, preferencialmente à noite, dirigia-se ao quarto da ofendida, contiguo à cozinha, abeirava-se da mesma que se encontrava a dormir, deitada na parte inferior do beliche, e julgando-a a dormir, sempre por baixo da roupa, tocava-lhe nas mamas, apalpando-as, bem como na vagina, esfregando-lhe os dedos na vagina e aí introduzindo-os (5.º da pronúncia).
6.º A partir de ..., aquando do primeiro confinamento o arguido passou a ir ao encontro da ofendida, no quarto daquela, pelo menos três vezes por semana, durante a noite e também de manhã, abeirando-se da mesma, já não se limitando a tocar-lhe nas mamas e na vagina por baixo da roupa, introduzindo-lhe os dedos na vagina, mas também encostando-lhe o pénis na vagina (6.º e 9.º da pronúncia).
7.º Para o efeito referido, o arguido despia as calças da ofendida, retirava o seu pénis para fora e encostava-o à vagina da ofendida, não o introduzindo porque esta virava-se de lado, levantava-se ou pedia-lhe expressamente para não o fazer (7.º da pronúncia).
8.º Em data não concretamente apurada, após o início do confinamento, pelos menos em duas ocasiões distintas em que a tia DD lhe pediu que varresse o quarto desta, sendo que, a ofendida entrou no referido quarto, onde o arguido se encontrava deitado na cama, e enquanto varria, o arguido puxou-a para a cama, colocou-a em cima de si, esfregando o seu corpo no corpo da ofendida, por cima da roupa (8.º da pronúncia).
9.º A ofendida inicialmente não reagia às investidas do arguido, simulando que estava a dormir, sendo que outras vezes mexia-se, virando-se de lado, ou abrindo os olhos, manifestando assim o seu desconforto, desagrado e discordância com a conduta do arguido, ou simplesmente pedindo-lhe que parasse, sendo que por vezes o arguido cessava de imediato a sua intenção, e outras vezes ainda insistia novamente (10.º da pronúncia).
10.º A ofendida nunca contou à tia DD o sucedido com receio que não acreditasse em si e a mandasse de volta para a ... (11.º da pronúncia).
11.º O arguido era perfeitamente sabedor da idade da sua sobrinha, a ora ofendida DD, aproveitando-se da situação familiar estreita que possuía com a mesma, com quem convivia habitualmente no mesmo núcleo familiar, sabendo bem que tinha a especial obrigação de a proteger, contudo não se coibiu de agir do modo descrito, o que logrou (12.º da pronúncia).
12.º Ao actuar como actuou, o arguido bem sabia que atentava contra a autodeterminação sexual da sua sobrinha DD, pondo em perigo o livre e normal desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual (13.º da pronúncia).
13.º Em todas as situações descritas, o arguido tinha perfeito conhecimento de que era maior e que DD era uma jovem com idade entre os 15 e os 17 anos, conforme a ocasião (14.º da pronúncia).
14.º Mais sabia ainda o arguido que ao partilhar residência e dia-a-dia com a ofendida, em virtude de ser marido da tia paterna desta, partilhando com aquela os cuidados de alimentação, habitação, saúde e educação de DD, tendo-se estabelecido entre ambos uma relação de confiança, cuidado e autoridade, que a ofendida o via como seu cuidador e responsável, do qual era dependente económica e emocionalmente, circunstâncias das quais se aproveitou fazendo-se valer do ascendente que tinha sobre esta (15.º da pronúncia).
15.º O arguido actuou sempre das formas supra descritas, visando a sua satisfação sexual e ímpetos libidinosos, bem sabendo que, ao agir dessa forma, atentava contra o normal desenvolvimento sexual de DD, obrigando-a a praticar e a tolerar actos dessa natureza, designadamente o toque nas suas mamas e vagina, com os seus dedos, a introdução dos seus dedos na mesma e das tentativas de introdução do seu pénis erecto na vagina, causando-lhe dessa forma dor e sofrimento (16.º da pronúncia).
16.º O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção concretizada de satisfazer os seus instintos libidinosos, com o que sabia violar os valores da liberdade e a autodeterminação sexuais, designadamente os da ofendida DD, atenta a sua idade, de 15/17 anos, que o arguido bem conhecia (17.º da pronúncia).
17.º O arguido tinha perfeito conhecimento que o seu comportamento era proibido e punido por lei (18.º da pronúncia).
Das condições pessoais e socioeconómicas do arguido e antecedentes criminais:
18.º À data dos factos, AA residia com o cônjuge, GG, os cincos filhos do casal, com idades compreendidas entre os 14 e os 27 anos, e a ofendida.
19.º O agregado familiar do arguido residia num apartamento de tipologia T3 na zona do ..., com condições satisfatórias de acomodação.
20.º A zona habitacional é descrita pelo arguido como sendo problemática, pese embora mantenha um relacionamento cordial com a sua comunidade vicinal.
21.º Os dois filhos mais velhos do arguido autonomizaram-se, tendo constituído agregados próprios, tendo o arguido passado a residir com o cônjuge e com os três filhos mais novos em um apartamento da mesma tipologia na zona do ..., com melhores condições de acomodação que a sua habitação anterior.
22.º À data dos factos, o arguido, com o 11.º ano de escolaridade, trabalhava na área da construção civil, como trabalhador independente, com actividade aberta, auferindo mensalmente o ordenado mínimo nacional.
23.º O cônjuge trabalhava como ... e recebia cerca de 600 euros mensais. O filho mais velho trabalhava na construção civil e recebia valores variáveis, estimados em pelo menos 600 euros mensais. Os outros elementos do agregado eram estudantes.
24.º Actualmente, o arguido mantém actividade laboral regular na construção civil, auferindo de cerca de 900 euros mensais, aos quais acrescem valores variáveis, não estimados, de trabalhos pontuais que realiza.
25.º O cônjuge mantém a actividade anteriormente referida auferindo de cerca de 900 euros mensais. Os filhos do casal que residem com os mesmos ainda se encontram dependentes do arguido e do cônjuge, embora dois deles tenham terminado as suas formações escolares/profissionais e se encontram a efectuar procura de trabalho.
26.º O agregado suporta o pagamento de cerca de 400 euros de renda, e valor similar relativo a despesas de alimentação, água, electricidade e telecomunicações.
27.º O arguido suporta ainda pagamentos mensais relativamente a dívidas dos montantes de cerca de 400 euros (Segurança Social); cerca de 600 euros (Fisco) e cerca de 1.600 (Banca), reputando, não obstante, a sua situação económica estável e suficiente para satisfação das suas necessidades.
28.º No que concerne a questões de intimidade, o arguido e o cônjuge, avaliaram a existência, ao longo do tempo, de uma vivência gratificante.
29.º O arguido iniciou a vida sexual com 17 anos, com uma namorada dentro da sua faixa etária. Manteve outros dois relacionamentos íntimos, que também considerou terem sido gratificantes.
30.º Do certificado de registo criminal relativo ao arguido não contam quaisquer condenações.
Mais se provou que:
31.º O arguido deslocou-se à ... e aí permaneceu entre ...-...-2018 e ...-...-2019, entre ...-...-2021 e ...-...-2021 e entre ...-...-2021 e ...-...-2021.
b) Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa não se provou que:
a. A conduta descrita tenha decorrido em período anterior a ... de ... de 2019 até e (data) posterior a ... de ... de 2021.
b. A partir de ... os factos ocorreram quase diariamente
c. Os comportamentos do arguido ocorreram pelo menos cinco vezes por semana até ..., data em que a ofendida deixou de residir na morada indicada (9.º da pronúncia).
Não existem outros factos não provados ou a provar com relevo para a decisão.
(…)
Na formação da sua convicção, o Tribunal atendeu aos meios de prova disponíveis, atentando nos dados objectivos fornecidos pelos documentos dos autos e fazendo uma análise das declarações e depoimentos prestados.
Deste modo, toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica das provas (cf. artigo 127.º do Código de Processo Penal).
Desde logo, teve-se em consideração às declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento.
O arguido negou genericamente os factos que lhe foram imputados, imputando à sua sobrinha DD comportamentos desadequados. Concretamente, começou por referir que numa ocasião, quando estava no seu quarto, ouviu um ruído estranho, e pareceu-lhe ter visto alguém, mas até pensou que estava a sonhar. Depois disso, estando igualmente no quarto, ouviu um ruído e surpreendeu a sua sobrinha naquela divisão, tendo-a questionado sobre os motivos da sua presença ali e aquela respondido estar à procura de luvas. Foi depois destas situações que ocorreu um dos episódios. Encontrava-se no quarto, deitado na cama, e a sua sobrinha entrou, desligou a luz e atirou-se, vestida, para cima de si. Na ocasião, disse-lhe que não repetisse tal conduta e que iria contar à tia, sua mulher, o sucedido, e a mandariam para a ..., tendo a sobrinha se limitado a responder “não sei”. Um segundo episódio, ocorreu passados uns tempos, em que a sobrinha lhe pediu dinheiro (cerca de € 10/€ 20). Quando ia buscá-lo, a sobrinha deitou-se na cama dela e quando lhe ia entregar o dinheiro, aquela puxou pela mão do próprio para pô-la no sexo dela. A última vez ocorreu numa ocasião em que a foi chamar, pois a mulher estava à espera de ambos para entregar-lhes carne de um leitão. A mesma recusou ir e acabou por ir ao encontro da mulher sozinho. Depois de voltar a casa, foi lavar as mãos e, ao sair da casa de banho, deparou-se com a sobrinha deitada no beliche onde habitualmente dormia, sem roupa. Repreendeu-a com dureza, assustando-a, nunca mais tendo a sobrinha repetido tais comportamentos. O arguido descreveu as dinâmicas e rotinas familiares à data, referindo que nunca estava sozinho em casa com a sobrinha; que habitualmente é o primeiro a sair de casa para trabalhar, pelas seis e meia, regressando entre as dezanove e as vinte horas; descreveu ainda as características do local onde a sobrinha dormia, concretizando tratar-se de beliche existente num quarto com acesso à cozinha, sem porta, razão pela qual não poderia praticar os factos que lhe são imputados; esclareceu ainda que por vezes a filha HH dormia com DD; que, no primeiro momento, quando percepcionou que alguém poderia ter entrado no seu quarto e contou à mulher, esta sugeriu que, quando saísse, a filha HH dormisse consigo. Mais referiu que, no período em que a sobrinha residiu com o agregado, deslocou-se três vezes à ..., tendo numa delas permanecido naquele país quatro meses (em ...1.../2019); e noutras duas vezes, quinze e dez dias (2020 e ...).
DD, em sede de depoimento prestado nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, descreveu as circunstâncias em que integrou o agregado familiar dos tios; a relação familiar entre si e o arguido, período de vivência em comum, a dependência deste; e concretizou os comportamentos sexuais do arguido para consigo; localizando-os no tempo e no espaço. A este respeito, referiu que a partir de ..., em data de que não se lembra, mas situou em período escolar, o tio começou a ter comportamentos consigo que a desagradavam, conduta que continuou, excepto no mês em que saiu de casa dos tios. Quanto à periodicidade de tais comportamentos, esclareceu que, desde o início até ao primeiro confinamento (em ...), ocorriam duas vezes por semana e, após a partir daquele momento, ocorriam quase diariamente. No atinente à natureza dos actos praticados pelo tio em concreto, descreveu-os, referindo que desde a primeira ocasião, o arguido apalpava-lhe as mamas e mexia na sua vagina, por baixo da roupa, esfregando-a e introduzia pelo menos um dedo (não sabe mais), no seu interior; também se deitava em cima de si, permanecendo a própria de barriga para cima; Ao referir-se ao período pós-confinamento, disse ainda que sentia o pénis do arguido encostado à sua vagina, mas nunca no seu interior. Explicitou que para tal efeito, o arguido despia-a, e depois tirava o próprio pénis para fora das calças. Estes factos ocorriam quando estava na sua cama, inicialmente de noite, mas depois também de manhã antes dos demais acordarem, sendo que a própria estava acordada neste período por ser quem se levantava mais cedo para fazer as lides domésticas. Apenas em duas ocasiões ocorreram no quarto do arguido, onde a testemunha se deslocou para varrer, circunstâncias em que o arguido, estando deitado, acabou por puxá-la e pô-la em cima de si, esfregando-a por cima dele enquanto ambos estavam vestidos. Descreveu ainda as suas reacções ao comportamento do arguido. Por último, referiu que a sua prima mais nova, HH, em ..., tendo vindo à cozinha fazer algo, viu o arguido em cima de si a tentar penetrá-la e, apesar de a princípio não ter feito nada, depois foi falar com a irmã mais velha, KK. Esta falou consigo, por mensagem, e pediu desculpa e disse que se quisesse que falasse com a NN, que era a irmã mais velha.
No que respeita ao depoimento de II, assistente social em exercício de funções na escola que, à data, a ofendida frequentava, enunciou as características da jovem como aluna, reputando-a como “exemplar”. Referiu as circunstâncias em que a mesma lhe pediu apoio psicológico por andar a ter crises de ansiedade, tendo-lhe pedido para identificar as causas, ao que a jovem reagiu chorando, desviando os olhos para baixo, nada conseguindo verbalizar, razões pelas quais a encaminhou para a psicóloga escolar. Enunciou ainda as diligências por si realizadas após ter tido conhecimento, através da referida psicóloga, de que a jovem teria sido vítima de abuso sexual, designadamente acompanhamento da mesma à esquadra. OO, directora de turma de DD quando esta frequentou o 8.º ano, ao chegar a ..., enunciou as circunstâncias em que a jovem veio para este país e depois integrou o agregado familiar da tia, que se demonstrava uma pessoa interessada no percurso da sobrinha. Referiu nunca se ter apercebido de particulares ansiedades e, se tivesse, tê-las-ia certamente atribuído ao contexto familiar da jovem que tinha acabado de mudar de país para acompanhar o pai na doença deste e que, entretanto, veio a morrer.
JJ, filha do arguido e prima da ofendida, prestou depoimento no âmbito do qual descreveu as rotinas da casa e quotidiano de cada um dos membros do agregado; esclareceu que a sua irmã HH lhe comunicou ter-se apercebido de algo entre o pai e a prima, designadamente que surpreendeu o pai de ambas muito perto da prima, junto do beliche, mais especificamente a falar “em cima” da DD. Ao contar-lhe isto, a irmã estava muito nervosa. Esperou pela irmã NN, conversaram entre si sobre o assunto e disse a NN que falasse com a prima. Ouvida PP, negou que lhe tivesse sido contado algo específico, referindo que aquelas apenas lhe pediram que falasse com a prima, pois KK tê-la-ia visto a chorar e, neste seguimento, abordou a prima, disponibilizando-se a ouvi-la se ela quisesse desabafar, nada tendo sido dito por esta. Também descreveu as rotinas do agregado familiar.
Ponderando todos os elementos probatórios acima referidos, conjugados com o relatório pericial de folhas 131 a 135 e mensagem cuja impressão se mostra junta a folhas 45, dúvidas não subsistiram ao tribunal quanto aos factos dados por provados nos moldes em que o foram.
Com efeito, não podem merecer credibilidade as declarações do arguido na parte em que nega os factos, não só por falta de coerência interna, mas também quando conjugadas com a demais prova.
Primeiramente, quanto à falta de coerência interna, questionado pelo motivo pelo qual a sobrinha lhe atribui a prática de tais factos, limitou-se a referir que aquela, em determinada ocasião, lhe disse “já não sou virgem” e que queria autonomizar-se e sair de casa. Ora, a jovem atingiria a maioridade cerca de um mês após a data em que veio a sair de casa, não sendo plausível que ficcionasse acusações desta gravidade quando lhe bastaria esperar um mês para reger a sua pessoa. Também questionado pelas razoes pelas quais a mulher lhe sugeriu que a filha HH dormisse consigo depois da mulher se levantar, não logrou apresentar uma explicação plausível até porque, na altura, nem sabia sequer se alguém tinha efectivamente entrado no quarto ou estava a sonhar. Por último, quando questionado pelo motivo pelo qual tendo DD, nas suas palavras, repetido tais condutas após a ter a repreendido pela primeira vez acabou por não contar à mulher o que se passava, disse que na última ocasião, assustou de tal modo a sobrinha que tal comportamento não se repetiu mais, o que, mais uma vez, não explica porque não tenha contado nada à mulher no primeiro momento em que a jovem entrou no seu quarto. De resto, o arguido tem uma personalidade vincada, revelada, desde logo, no modo como não se coibiu de tentar influenciar a sua mulher na decisão de prestar ou não depoimento diante do tribunal, não sendo plausível que lhe ocultasse tais comportamentos da sobrinha apenas para manter a tranquilidade familiar.
Tais incoerências apontam desde logo para a falta de credibilidade das declarações.
Mas, além disto, as mesmas demonstram-se frontalmente infirmadas pelo relato, escorreito e sereno, que DD dos factos, cuja credibilidade resulta não só dos pormenores com que descreveu os actos praticados pelo arguido – e que como tal se deram por provados – mas também das emoções por si demonstradas quando pediu ajuda a II, e bem assim demonstradas perante a psicóloga que a atendeu (documentadas no relatório de folhas 381) e que se demonstram inteiramente compatíveis com a vivência da realidade que narrou.
De resto, em contexto de entrevista pericial, DD também apresentou alteração do comportamento não verbal com activação emocional quando foram abordados os factos que deram origem a este processo, e “sintomas compatíveis com um quadro de perturbação de stresse pós-traumático, de nível elevado (relacionado com as experiências de natureza sexual de que terá sido vítima, que a própria descreve como “abuso”) que se repercutem de forma significativa na funcionalidade da examinanda (e.g. vivência da sexualidade, evitamento, hipervigilância)”(cf. relatório pericial de folhas 131-135).
Além do exposto, não pode olvidar-se a mensagem cuja impressão de demonstra junta a folhas 45, remetida pela filha do arguido, KK, à prima, na qual esta refere que HH lhe contou “o que ela viu”, pedia-lhe desculpa pelo sucedido e lhe dizia que precisava saber exactamente o que se havia passado e que “a pessoa que o fez é que está a arranjar problemas, não tu”.
Todos estes elementos ponderados, levaram-nos a concluir pela verosimilhança e credibilidade do depoimento de DD, sendo que a circunstância de o arguido ser quem saía de casa mais cedo e, bem assim, a de se encontrarem sempre pessoas em casa não é susceptível de o pôr em crise. Em relação à primeira, demonstra-se totalmente consonante já que DD contextualizou parte dos factos de manhã, enquanto apenas o arguido e a própria estavam acordados. Relativamente à segunda, a presença de outros membros do agregado não era inibidora da acção do arguido pois o mesmo foi, inclusivamente, surpreendido numa ocasião pela sua filha HH junto do beliche de DD, a falar “em cima” da jovem.
Perante a contextualização temporal realizada por DD, e considerando que o ano lectivo ...1.../2020 se iniciou entre ... (cf. Despacho n.º 5754-A/..., DR II Série, de ...-...-01) admitindo-se não ser possível aferir, com segurança, se tais factos terão ocorrido desde o início do ano civil, teve-se por provado, por mais favorável ao arguido, que tal conduta se iniciou apenas na parte final do ano, no primeiro período do ano escolar, último do ano civil (facto provado 4.º). Tendo resultado do depoimento que desde o seu início até à sua saída de casa os factos ocorreram sempre, à excepção de no próprio mês da saída, teve-se, pelos mesmos fundamentos, por provado que os factos ocorreram apenas até ao final de ... (factos provados 4.º e 6.º).
Quanto à periodicidade, o depoimento foi inequívoco quanto à verificada até ao confinamento, mas já não o foi a partir dessa data, tendo a testemunha referido que ocorriam “quase diariamente”. Considerando o carácter dúbio de tal expressão, e não podendo deixar de ter-se por certa a verificação de um aumento da frequência de tais condutas, concluindo-se que ocorreram mais do que duas vezes por semana, teve-se por provado, à luz do princípio in dubio pro reo, que ocorreram pelo menos três vezes por semana (facto provado 6.º).
A prova dos factos relativos à data de nascimento de DD extrai-se da cópia do seu passaporte cuja junção aos autos se determinou.
No atinente aos motivos pelos quais a jovem nunca relatou o sucedido à tia, atendeu-se também ao depoimento da própria.
Quanto às condições pessoais e socioeconómicas do arguido, atendeu-se ao relatório elaborado pela DGRSP e junto a folhas 286-288, com as precisões realizadas pelo próprio em audiência de julgamento. A ausência de antecedentes criminais encontra-se certificada nos autos.
Por último, a factualidade atinente às deslocações do arguido à ... resultou da valoração das declarações do próprio, cuja credibilidade não foi infirmada a este próprio.
A decisão relativa aos factos não provados resultou da contextualização temporal dos factos realizada por DD e já referida a propósito dos factos dados por provados.”
*
III – Da análise dos fundamentos do recurso
Como é sabido, e resulta do disposto nos artº 368º e 369º ex-vi artº 424º nº 2 , todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto, e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e depois dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do Código do Processo Penal.
Por fim, das questões relativas à matéria de Direito.
Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas pelos recorrentes.
Como referido a primeira questão a tratar é a da impugnação da matéria de facto.
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: uma, através dos vícios previstos no artigo 410.°, n.º 2, do Código do Processo Penal; a outra através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.°, n.º 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No segundo caso a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nº 3 e 4 do artº. 412.° do Código do Processo Penal.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.”
O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto "não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, e o tribunal de recurso em matéria de exame crítico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas".(cfr. Ac STJ 7/6/06, proc. 06P763, www.dgsi.pt ).
De facto, "o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal "a quo" tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si "
Assim, a impugnação ampla da matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.°, n.3, do C.P.Penal:
«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ªinstância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.° do C.P.P.).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412° do C.P.P (…)” ( Ac. RC de 3/10/00, CJ., ano 2000, t. IV, pág. 28).
Analisando, quer as motivações, quer as conclusões de recurso, constatamos que, na impugnação que fez, o recorrente não obedeceu, na totalidade da mesma a estes requisitos.
Na verdade há que distinguir entre a impugnação feita ao ponto 4) dos factos provados e a impugnação feita aos pontos 5), 6), 7), 6), 7), 8), 9) e 10).
Vejamos, pois.
No que tange ao 4) o recorrente identifica-o e refere que o Tribunal mal andou na delimitação temporal dos factos e explica porquê: porque nas declarações para memória futura a ofendida refere que o sucedido aconteceu numa época de aulas e nas declarações perante a P.J. referiu que a primeira vez ocorreu numa noite de ....
Nesta parte diremos que nenhuma contradição existe.
Em primeiro lugar as declarações prestadas perante um órgão de polícia criminal em fase de inquérito não valem como prova em audiência como claramente resulta do disposto no artº 356º nº 2 al. b) e 5 do C.P.P.. Assim, se as declarações não podem ser usadas em audiência, não podem igualmente ser usadas em sede recursal para alterar factos dados como assentes.
Mas e a latere se dirá que o Verão começa todos os anos entre 20 e ... (com o fim da Primavera) e termina entre 22 e ... (dando início ao Outono), o que é facto notório, donde, ainda assim, os factos podem ter ocorrido em época de aulas e no Verão.
Assim, não há que alterar o ponto 4).
Questão diferente é a dos demais pontos de facto impugnados.
Como dissemos supra no recurso não se buscam outras convicções, mas sim saber se a convicção plasmada na decisão se mostra correcta ante a prova produzida e as regras que regem a seriação da prova.
No caso concreto, como se alcança das conclusões 15, 16, 19, 20, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 29, 34, 35, 36 e 37 tudo o que o recorrente pretendeu foi impor a este Tribunal a sua visão da factualidade e a sua convicção olvidando a existência de uma outra, a do Tribunal.
Ora quanto a esta (a factualidade tida por assente pelo Tribunal e a sua fundamentação) tem o recorrente de demonstrar estar errada não se bastando com a apresentação com uma outra (ainda que possível) visão dos factos.
O que se compreende pelo facto de o recurso não ser um novo julgamento mas um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada, sendo certo que a apreciação da prova no julgamento realizado em primeira instância beneficiou de claras vantagens de que o tribunal de recurso não dispõe (a imediação e a oralidade), constituindo uma manifesta impossibilidade que a segunda instância se substitua, por inteiro, ao tribunal recorrido, através de um novo julgamento.
E tanto basta para que improcede a impugnação quanto a estes pontos da matéria de facto.
Salienta-se ainda (porque referido em sede de conclusões), designadamente nas conclusões 31 e 32 que não é verdade que a prova pericial não haja estabelecido o nexo entre a conduta do arguido e a existência de quadro perturbação de stresse pós-traumático como ressalta no relatório pericial de folhas 131-135 e evidenciado na fundamentação.
No que tange às conclusões 40 a 44 e em especifico em relação à mensagem há que esclarecer que uma coisa é o depoimento indirecto ou de ouvir dizer e outra questão é a existência de prova documental obtida por via de quem não quis depor.
No caso concreto, o depoimento de JJ não poderá ser admitido naquilo que ouviu dizer à irmã FF por esta se haver recusado a depor como bem salienta o recorrente. Contudo, o documento (mensagem print de fls. 45) pode e deve ser livremente apreciada mesmo que seja (e é) uma mensagem enviada por FF à irmã KK pois que o documento não consubstancia um depoimento mas sim uma mensagem obtida de forma válida.
O recorrente invoca, nas conclusões 47 e 52, a insuficiência probatória para a decisão da matéria de facto provada mas dever-se-á atentar que a menção a “insuficiência probatória para a decisão da matéria de facto” não é reportada ao vício a que alude o artº 410º nº 2 al. a) do C.P.P., vício respeitante ao texto da decisão, mas sim ao facto do recorrente, pelas razões invocadas nas conclusões anteriores àquela, entender que não existe prova capaz de sustentar a condenação.
O mesmo se dirá em relação ao erro notório na apreciação da prova invocado na conclusão 53. O que o recorrente invoca não é o vício do artº 410º nº 2 al. c) do C.P.P., embora o mencione.
Na verdade, como dissemos no processo 996/20.6PULSB.L1 desta 3ª secção em que foi relator o aqui relator, “para verificação da sua ocorrência, o tribunal de recurso deverá apreciar se do texto da decisão recorrida (ou seja, sem recurso a qualquer outro elemento externo – declarações, depoimentos, etc.), por si só ou conjugada com as regras de experiência comum e de uma forma tão patente que não escape à observação do homem médio, decorre, no caso previsto na al. c) do nº2 do artº 410 do C.P. Penal (erro notório na apreciação da prova), que se retirou de um facto provado uma conclusão logicamente inaceitável, ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras de experiência comum; se deu como assente algo notoriamente errado; se violaram as regras da prova vinculada, as regras da experiência; as legis artis ou o tribunal se afastou, sem fundamento, dos juízos dos peritos.”
Desde já vamos adiantar que no que respeita ao vício de erro notório na apreciação da prova, o recorrente não demonstra a sua verificação.
De facto, é patente que o arguido não está de acordo com a convicção alcançada pelo tribunal “a quo”, no que respeita aos factos que deu como provados terem por si sido cometidos.
Sucede, todavia, que não é fundamento de recurso a mera circunstância de algum dos intervenientes discordar da convicção alcançada pelo julgador, por a sua própria ser diversa. Pese embora seja direito que lhe assiste (ter a sua pessoal convicção a propósito dos factos), a verdade é que só existirá o vício referido se for flagrante, manifesto, que a convicção do julgador se mostra erroneamente alcançada. A circunstância de outra poder ser essa convicção não determina a existência de erro, pois o mesmo só ocorrerá, se for óbvio, patente e inquestionável que se mostra erroneamente fundada, isto é, se não se mostrar cumprido o disposto no artº 127 do C.P. Penal.”
Improcede, pois, este segmento recursal.
No que tange à violação do princípio in dubio pro reu (conclusão 48) temos de dizer que o recorrente está equivocado.
Na verdade, e ao contrário do alegado, o princípio in dubio pro reu não “pretende garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos do facto típico e ilícito que a suporta”. O referido princípio, como salientado no processo 2421/19.6PBFUN.L1, desta 3ª secção e em que foi relator o aqui relator, “(…) corresponde a uma regra de decisão (e não de interpretação dos factos ou da prova), através da qual, após produção da prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, que tem de ser razoável e insuperável sobre a realidade dos factos, o juiz deva decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável. Ou seja, exige se que no espírito do julgador tivesse de subsistir uma dúvida positiva e invencível, efectivamente impeditiva da convicção do tribunal, depois de esgotado todo o iter probatório e feito o exame crítico de todas as provas, sobre a verificação, ou não, dos factos integradores de um crime ou relevantes para a pena.”
No caso concreto, não é invocável o princípio in dubio pro reo, atenta a determinante prova produzida e que fundamentou a decisão da matéria de facto provada, sendo que, no caso em apreço, o tribunal a quo não teve, correctamente, qualquer dúvida quanto à veracidade dos factos dados como provados, nem deveria ter tido tal dúvida.
Assim, temos por completamente assente a factualidade constante da decisão recorrida e julgamos, em consequência, improcedente o recurso apresentado pelo arguido.
No que tange ao recurso do Ministério Público
Tem sido posição constante desta Relação e secção que “a apreciação das penas fixadas pela 1ª Instância, a intervenção dos Tribunais de 2ª Instância deve ser parcimoniosa e seguir a jurisprudência exposta, quanto à intervenção do STJ, conforme Ac. do mesmo Tribunal Superior de 27.05.2009, relatado por Raul Borges, in www.dgsi.pt ,proc. 09P0484, no qual se considera: "... A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que "no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada". (No mesmo sentido, Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 197, § 255).
Assim, só em caso de desproporcionalidade na sua fixação ou necessidade de correcção dos critérios de determinação da pena concreta, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, deverá intervir o Tribunal de 2ª Instância alterando o quantum da pena concreta. Caso contrário, isto é, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir corrigindo/alterando o que não padece de qualquer vício.
De tal resulta que, se a pena fixada na decisão recorrida, em todas as suas componentes, ainda se revelar proporcionada e se mostrar determinada no quadro dos princípios e normas legais e constitucionais aplicáveis, não deverá ser objecto de qualquer correcção por parte do Tribunal da Relação.”
Ora, lidos os factos assentes, cotejados estes com o disposto no artº 71º do Código Penal não vislumbramos onde é que o Tribunal a quo desrespeitou os comandos legais em termos de fixação de penas.
Na verdade, o recorrente limita-se, nesta parte a referir que “apesar de expressamente enunciadas na decisão recorrida determinadas circunstâncias (a intensidade do dolo e da ilicitude, as elevadas necessidades de prevenção geral), estas não se reflectiram efectivamente como factores de ponderação na determinação concreta das aludidas penas”
Em se de motivação considera: “como bem se salienta na decisão recorrida, as necessidades de prevenção geral positiva são muito elevadas e o dolo é intenso, assim como a ilicitude.
Efectivamente, o dolo é directo, reiterado e prolongado no tempo.
O concreto modo de actuação do arguido revela acentuada ilicitude, quer do ponto de vista do desvalor da acção, quer da danosidade do resultado, pela repercussão nefasta na saúde física e mental da vítima resultante dos crimes cometidos e revela, no carácter do arguido, características de personalidade muito desvaliosas e censuráveis.
Daqui se pode, pois, sem esforço, concluir que, se enunciaram na decisão recorrida considerações que não se reflectiram efectivamente como factores de ponderação na fixação das penas parcelares, cuja dosimetria concreta se revela bastante aquém do adequado, quer em face das exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, quer em face do elevado grau da culpa do arguido, a justificar um quantum concreto fixado perto do patamar intermédio da respectiva moldura.”
Ora, o que a acontece é que o recorrente não diz porquê é que entende que a decisão claudica. É certo que refere que na sua opinião os factores tidos em consideração deveriam pesar mais do que pesaram o que levaria a uma pena mais substancial mas, relembramos nós, a fixação de penas não é uma ciência exacta. Não existem tabelas ou “penometros”. Existem juízes e existe liberdade de decisão. Desde que a decisão tomada haja levado em consideração os elementos que a Lei determina necessários à fixação da pena há uma liberdade do Tribunal (seja singular, seja colectivo) para decidir o quantum da pena.
Desde que este “quantum” esteja dentro de valores que se reputem correctos ante a normalidade da vida (no fundo de acordo com as regras da experiência as quais incluem, claro está, a jurisprudência) não devem os Tribunais Superiores intervir mesmo que se possa conceber que pessoas diferentes decidiriam de forma diferente sem que tal decisão estivesse, por sua vez, errada.
Trata-se de uma alea que existe no sistema legal e que assegura, por via da mesma, que cada caso é um caso e tratado como tal.
Só, repete-se, se a pena encontrada for desconforme ás regras da experiência e aos ditames da Lei é que é de alterar e este não é o caso.
Quanto ao cúmulo o recorrente adita, no entanto, outras razões referindo que “não foi ponderada a ausência de postura de contrição por parte do arguido susceptível de denotar um qualquer processo de interiorização do desvalor da sua conduta, nem a total indiferença que o arguido revelou pelo impacto do seu comportamento violento e cruel na esfera pessoal da vítima, tendo em conta a duração dos abusos e o respectivo modo de execução”
Ora, o primeiro dos argumentos não tem sustentação.
Na verdade, o arguido clama-se inocente pelo que nunca poderia ter uma postura de contrição. A contrição, o assumir erros ou condutas erradas é, seguramente, uma atenuante da pena mas o inverso, a não assumpção da conduta errada, não constitui uma agravante. O facto de nada assumir não prejudica o arguido. O assumir sim.
Nada tendo assumido de nada beneficiou pelo que o tribunal não poderia considerar (como não considerou) este factor.
No que tange á total indiferença que o arguido revelou pelo impacto do seu comportamento violento e cruel na esfera pessoal da vítima, tendo em conta a duração dos abusos e o respectivo modo de execução tratam-se de factos que não estão provados e o Ministério Público não recorreu para os ver aditados pelo que não podem ser considerados.
Assim, improcede o recurso do Ministério Público.
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IV – Dispositivo
Por todo o exposto, acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em manter na íntegra o acórdão recorrido, julgando improcedentes os recursos apresentados.
Custas pelo arguido que se fixam em 3,5 (três e meia) U.C.
Não são devidas custas pelo Ministério Público.
Notifique.
Acórdão elaborado pelo 1º signatário em processador de texto que o reviu integralmente sendo assinado pelo próprio e pelas Venerandas Juízes Adjuntas.

Lisboa e Tribunal da Relação, 22 de Outubro de 2025
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira
Ana Rita Loja
Joaquim Jorge da Cruz