Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
385/13.9SFLSB.L1-3
Relator: MÁRIO PEDRO M.A.S. MEIRELES
Descritores: AMNISTIA
LEI Nº 38-A/23 DE 02.08
CUMPRIMENTO DE PENA
OBRIGAÇÕES
REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. É sólido o entendimento jurisprudencial segundo o qual a interpretação das normas que ao longo (da história) do nosso (luso) processo legislativo vieram instituir medidas de excepção através das quais se decidiu extinguir ou o procedimento criminal ou as consequências decorrentes da prática de factos ilícitos deverá ser feita de forma estrita ou literal, fazendo coincidir o espírito do legislador com o que deixou escrito na(s) norma(s) que elaborou.
II. A determinação do cumprimento efectivo da pena de prisão que havia sido perdoada, devido ao não pagamento do montante indemnizatório constante da decisão condenatória, é uma decorrência directa da obrigação essencial a que os tribunais estão sujeitos: ao cumprimento da lei.
III. A Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023) não dá margem para a apreciação das condições concretas de cada condenado para proceder ao cumprimento das obrigações inerentes ao cumprimento da pena (e para beneficiarem da clemência), pelo que nenhuma obrigação processual emerge que obrigue à sua audição prévia ao abrigo do disposto no art. 61.º, n.º 1, al. b) do CPP, donde não se mostra praticada a nulidade prevista no 119.º, al. c) do mesmo diploma.
IV. O regime de permanência na habitação, enquanto pena de substituição da pena de prisão, apenas pode ser decidida no momento da prolação da sentença e não já enquanto incidente na sua execução.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que compõem a 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

Processo n.º 385/13.9SFLSB
Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz 2
I. Relatório
Nos presentes autos foi proferido o seguinte despacho:
Req. de 19.05.2025, sob a refª 42862968:
Tomei conhecimento da posição assumida pelo condenado AA relativamente ao não cumprimento da obrigação a que o perdão de pena oportunamente concedido se mostra condicionado e, bem assim, da inconstitucionalidade ali invocada relativamente à Lei nº 38-A/2023, de 02.08.
O Digno Procurador da República pugna pela revogação do perdão oportunamente concedido a AA, nos termos do disposto no artº 8º, nº 1 da Lei nº 38-A/2023 de 02.08 e, em consequência, se determine a execução da pena de prisão ainda não cumprida – cfr. Promoção de 20.05.2025, sob a refª 445510484.
O condenado refere não ter reunido condições económicas para fazer face ao pagamento da indemnização a que foi condenado sendo que após ter sido colocado em liberdade tem procurado activamente trabalho.
Conclui pugnando pela inconstitucionalidade da Lei da Amnistia e, caso assim se não entenda e lhe venha a ser revogado o perdão que possa cumprir o ano de prisão em regime de permanência na sua habitação.
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
Da invocada inconstitucionalidade da condição prevista no art. 8º da Lei nº 38-A/2023, de 02.08 (Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude – LAJMJ)
Seguindo de perto o Ac. do TRP de 25.09.2024:
“O arguido recorrente suscitou ainda a inconstitucionalidade do art. 8º da Lei nº 38-A/2023 de 02-08 por considerar que a condição resolutiva prevista no tocante ao pagamento, no prazo de 90 dias, da indemnização arbitrada viola o princípio da igualdade, visto que que não permite distinguir os arguidos de fraca condição económica daqueles que possuem plena capacidade de pagar a indemnização arbitrada, levando, assim, a que, na prática, um arguido pobre não possa beneficiar em pé de igualdade de perdão da pena como um arguido com plena capacidade financeira.
Dispõe o art. 13º da C.R.P. que:
(Princípio da igualdade)
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
No entanto, o tratamento diferenciado de um determinado conjunto de pessoas só será violador do princípio da igualdade quando o mesmo se mostre arbitrário, destituído de racionalidade e de um fundamento materialmente justificado.
É nessa acepção que a jurisprudência do Tribunal Constitucional vem interpretando o sentido e alcance de tal princípio, enfatizando que igualdade perante a lei, e na lei, não significa igualitarismo.
Assim se esclareceu no Acórdão n.º 488/2008 do Tribunal Constitucional (Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues), do qual, pela sua clareza, se transcreve o seguinte excerto:
O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, “razoável, racional e objectivamente fundadas”, sob pena de, assim não sucedendo, “estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes”, no ponderar do citado Acórdão nº 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J.C.VIEIRA DE ANDRADE – Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).
Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como “princípio negativo de controlo” ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por exemplo, os Acórdãos nºs. 157/88, publicado no Diário da República, I Série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados nºs. 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial (“tertium comparationis”). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminando o arbítrio (cfr., a este propósito, GOMES CANOTILHO, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, pág. 327; ALVES CORREIA, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; Acórdão nº 330/93).
Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cfr. GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; ALVES CORREIA, ob. cit., pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da "diferença" de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.
“[...] O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte, diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente, os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 213 e ss., GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, pp. 564-5, e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, p.125 e ss.]”.
E, concretamente, pronunciando-se sobre a constitucionalidade de semelhante condição suscitada a propósito da Lei n.º 29/99 de 12 de Maio (Lei que estabelece perdão genérico e amnistia de certas infracções), no acórdão nº 488/2008, de 07-10-2008 (Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues), consignou-se que:
«Ora, a imposição da analisada condição resolutiva não se afigura destituída de fundamento material ou racional bastante, de modo algum podendo ser tida como medida irrazoável ou arbitrária.
A indemnização encontra a sua justificação na prática do crime. É a prática do acto ilícito criminalmente que constitui causa ou fundamento jurídico da condenação do arguido no pagamento da indemnização ao ofendido.
Nesta medida, ela é também um efeito jurídico da prática do crime, tal como o é a condenação na pena criminal.
É claro que a pena visa satisfazer, essencialmente, interesses do Estado, de reconstituição da paz jurídica entre a comunidade social e o criminoso, conseguida através de medida funcionalizada para a prevenção geral e para a sua ressocialização, e que a indemnização pretende “reparar um dano” provocado ao ofendido, procurando reconstituir a situação que existiria se não fora a verificação do “evento que obriga à indemnização” (cf. art.ºs 483.º e 562.º do Código Civil).
Nesta perspectiva, trata-se de efeitos jurídicos autónomos.
Só que a condenação em indemnização não deixa de corresponder a uma concreta decorrência, ainda, da ilicitude (criminal) do facto praticado e de reacção do sistema jurídico, aqui, em protecção ou favor do lesado.
Ela mantém uma conexão íntima com a prática do crime.
(…)
Nessa medida, bem se compreende que o órgão competente (Assembleia da República) do titular do poder de clemência e, simultaneamente, do “ius puniendi” – o Estado – possa considerar que a paz jurídica só ficará, em caso de perdão de pena, totalmente satisfeita se o condenado também em indemnização pela prática do crime reparar efectivamente o dano provocado ao lesado.
Sendo o perdão uma medida de clemência que extingue, total ou parcialmente, a pena do crime pelo qual o arguido foi condenado, mas não extinguindo a ilicitude criminal e a ilicitude civil dos factos praticados, bem se justifica que o legislador da clemência, dentro da sua discricionariedade ponderativa de todos os bens jurídicos ofendidos (penais e civis) entenda não ser ela de conceder quando existam efeitos civis indemnizatórios que tornam ainda presente a necessidade de paz jurídica com o lesado.
Existe, pois, razão material bastante para justificar a irrelevação, na concessão da graça do perdão genérico, da situação económica em que se encontra o seu beneficiário.
Não se verifica, por isso, a violação do princípio da igualdade.
E também não ocorre a alegada violação do art.º 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP.
Na verdade, a sujeição da concessão do perdão à condição resolutiva de pagamento da indemnização em que foi condenado, dentro de certo prazo, não contende com qualquer direito, liberdade ou garantia fundamental de que o mesmo sentenciado seja titular que caiba na previsão dos referidos preceitos.
Mas independentemente disso, acresce que o condicionamento se mostra feito de forma geral e abstracta, aplicando-se a todos os abrangidos pelo perdão que tenham sido também condenados no pagamento de indemnização ao lesado, e que o mesmo tem fundamento material.»
Seguindo este entendimento, e ainda a propósito do art. 5º nº 1 da Lei nº 29/99, de 12-05, pronunciou-se o Acórdão do S.T.J. de 14-12-2005, proferido no Processo nº 3561/03-03, (Relator: Conselheiro Oliveira Mendes), citado por Cruz Bucho [Ibidem, pág. 32], cujo sumário transcrevemos parcialmente:
«IV - A concessão de perdão subordinada à condição resolutiva prevista no art. 5.º, n.º 1, da Lei 29/99, de 12-05, não viola o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado - art. 13.° da CRP.
V - Na verdade, a referida condição está directamente relacionada com o mal do crime, tendo em vista a sua reparação ou compensação, pelo que é ditada por razões de justiça e de política criminal, condição que, por isso, não pode deixar de se considerar plenamente justificada, de acordo com os princípios gerais de direito; a lei limita-se a exigir ao condenado, para que beneficie do perdão genérico, que restitua aquilo com que criminosamente se locupletou ou que compense o lesado dos prejuízos criminosamente causados».
Aliás, é também neste mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09-01-2024, proferido no Processo n.º 75/20.6GCGMR-K.G1:
«Todavia, uma lei de amnistia que condiciona o perdão ao pagamento da indemnização em que o arguido já havia sido condenado a pagar dentro de certo período de tempo não viola a nosso ver – e como infra veremos também no entendimento do Tribunal Constitucional – o princípio da igualdade porquanto a norma em causa visa um universo de arguidos nas mesmas condições (terem sido condenados também no pagamento de uma indemnização) e visa salvaguardar os legítimos e concorrentes interesses das vítimas.
Afirma, contudo, o arguido que dentro desse universo de condenados, nem todos têm a mesma capacidade económica e, portanto, sujeitar todos os condenados a efectuar um pagamento dentro de tão curto espaço de tempo – 90 dias – é na prática discriminar os arguidos de fraca condição económica.
Salvo o devido respeito, não concordamos com esta leitura pelo simples facto de que as leis de amnistia e perdão, bem como de indulto, são, como vimos supra, leis excepcionais que se inserem numa prerrogativa do Estado, as chamadas leis de graça.
Como leis excepcionais que são, podem ser condicionadas pelo legislador que, procurando prosseguir em determinado momento, por ocasião, por exemplo, da vinda de um Papa a Portugal, ou em virtude das Jornadas Mundiais de Juventude, aliviar certos condenados, contudo não pode esquecer-se dos fins das penas e dos princípios do sistema penal implementado.
Ora, essa prorrogativa traduz uma benesse – uma graça – concedida ao condenado que não pode ser concretizada a qualquer custo, mas, antes, deve ser mitigada com os interesses das vítimas, bem como da política criminal vigente, mormente no que tange às exigências de prevenção especial pois, se o perdão levar a que, no futuro, o arguido entenda ser possível continuar numa vida dedicada ao crime porque, na prática, “o crime compensa” pois nem sequer teve de ressarcir o ofendido para poder beneficiar do perdão, então esse perdão não está conforme com os princípios basilares e estruturantes do sistema penal português.
Nestes termos, sufragando o entendimento vertido nos arestos citados, afigurando-se-nos, por desnecessárias, quaisquer considerações adicionais, não se vislumbra a invocada inconstitucionalidade do art. 8º da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto.
E, pelas considerações acima expostas, também não ocorre a alegada violação de quaisquer princípios político-criminais, constitucionalmente consagrados, designadamente, os das finalidades das penas, da necessidade, proporcionalidade e da subsidiariedade da pena de prisão, invocados pelo recorrente.
Na verdade, a sujeição da concessão do perdão à condição resolutiva de pagamento da indemnização em que o arguido foi também condenado, dentro de certo prazo, não contende com qualquer direito, liberdade ou garantia fundamental de que o mesmo seja titular”.
Face ao exposto, julga-se improcedente a invocada inconstitucionalidade da condição prevista no artº 8º da Lei nº 38-A/2023, de 02.08.
Com relevância para a decisão a proferir resulta dos autos que:
- por acórdão de 18.09.2015 (cfr. fls. 220 a 249), transitado em julgado em 05.06.2016 (cfr. fls. 312) AA foi condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida e de um crime de ofensa à integridade física, na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão, cuja execução foi declarada suspensa por igual período de tempo com regime de prova;
- por despacho de 08.06.2022, sob a refª 416539655, foi revogada a suspensão da execução de tal pena única de prisão e determinado o cumprimento efectivo daquela, o qual foi confirmado por Acórdão do TRL de 09.11.2022;
- por despacho de 16.10.2023, nos termos do disposto nos artºs 3º; 4º e 7º, este último a contrario, todos da Lei nº 38-A/2023, de 02.08, foi declarado perdoado 1 (um) ano de prisão à pena de prisão que oportunamente havia sido aplicada ao condenado AA e, nos termos do disposto no artº 8º daquela, condicionado às condições resolutivas ali previstas, a saber:
a) o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada;
b) pagar a indemnização de € 18 500 ao ofendido e a quantia peticionada pelo BB (fls. 248), caso não o tenha feito, nos 90 dias imediatos à notificação do mesmo para tal efeito (n.ºs 2 e 3 do artº 8º da aludida Lei), sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artº 8º daquela em que se considera satisfeita a condição referida no n.º 2 caso o titular do direito de indemnização ou reparação não declare que não foi indemnizado ou reparado;
- o demandante CC, notificado para esclarecer se lhe havia sido paga a quantia arbitrada, silenciou embora o próprio condenado admita não o ter feito;
- o demandante BB informou não lhe ter sido paga a indemnização arbitrada nos presentes autos - cfr. Req. de 03.04.2025, sob a refª 42463489.
Aqui chegados, cumpre referir que, no que ora releva, preceituam os artºs 1º, 2º e 3º da Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (LAJMJ):
- artº 1º, sob a epígrafe “Objeto”: “A presente lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”.
- artº 2º, sob a epígrafe “Âmbito”:
“1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º
2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:
a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5.º;
b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º”.
- artº 3º, sob a epígrafe “Perdão de penas”:
“1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.
(…)“.
- artº 8º, sob a epígrafe “Condições resolutivas”:
“1 - O perdão a que se refere a presente lei é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada.
2 - O perdão é concedido sob condição resolutiva de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado.
3 - A condição referida no número anterior deve ser cumprida nos 90 dias imediatos à notificação do condenado para o efeito.
4 - Considera-se satisfeita a condição referida no n.º 2 caso o titular do direito de indemnização ou reparação não declare que não foi indemnizado ou reparado.
5 - Quando o titular do direito de indemnização ou da reparação for desconhecido, não for encontrado ou ocorrer outro motivo justificado, considera-se satisfeita a condição referida no n.º 2 se a reparação consistir no pagamento de quantia determinada e o respetivo montante for depositado à ordem do tribunal”.
Ora, o perdão de um ano de prisão aplicado ao condenado foi-lhe concedido no âmbito do disposto no art 3º, nºs 1 e 4 da Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (LAJMJ) sendo que o mesmo foi concedido sob a condição prevista no artº 8º, nº 2 a qual aquele não cumpriu, nem sequer para além do prazo que lhe foi fixado para tal, ao invés do que tinha assumido aquando da sua audição.
Ora, a aplicação das condições previstas no artº 8º da Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (LAJMJ) opera de forma obrigatória e automática e, por força de tal, a aplicação do aludido perdão, implicitamente, abarca a condição do não pagamento da quantia em que o beneficiário também tenha sido condenado no prazo fixado – cfr. Ac TRC de 25.10.2006 a propósito da Lei nº 29/99, de 12 de Maio disponível in www.dgsi.pt.
Assim, tal como já aconteceu noutras Leis de Amnistia anteriores, o legislador na Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (LAJMJ), em nome da necessidade de proteção das vítimas dos crimes, voltou a prever a sujeição do perdão concedido à condição de pagar a indemnização em que o arguido foi condenado e, no que concerne à revogação do perdão concedido por verificação da condição prevista no artº 8º, nº 2, ou seja, não pagamento da indemnização ou reparação do lesado a que o beneficiário também tenha sido condenado, não importa indagar das condições de vida do condenado a fim de se concluir se tinha ou não possibilidades de efectuar o pagamento da indemnização fixada no prazo definido pois que tal Lei não prevê tal exigência.
Acresce que, conforme constitui jurisprudência reiterada e consolidada, o direito de graça assume uma natureza excepcional e que, como tal, não comporta aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva devendo as normas que o enformam ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas – neste sentido, cfr. AUJ do STJ nº 2/2023, de 01.02.2023 que se pronunciou sobre o artº 2º da Lei nº 9/2020, de 10 de abril in DR nº 23/2023, série I, de 01.02.2023 e, entre outros, os Acs. do TRP de 24.01.2024; do TRE de 16.12.2023 e do TRG de 06.02.2024, todos eles prolatados já na vigência e a respeito da Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude.
Além disso, citamos o que se disse no Ac. do TRC de 25.10.2006, a propósito da Lei 29/99, de 12 de Maio, onde se pode ler:
“Como já acima referimos a condição resolutiva opera de forma obrigatória e automática.
Os tribunais estão impedidos de, verificada a condição resolutiva, recusar a revogação do perdão, num determinado caso concreto, com base em juízos sobre a inconveniência (na consideração, designadamente, dos fins das penas) da revogação (Ac RE nº 1334/04-1 em dgsi.pt).
Desta forma, sendo a revogação do perdão obrigatória e automática, não tem razão o recorrente quando sustenta que devia ter sido ponderada a culpa do agente na verificação da condição resolutiva.
A revogação do perdão não se pauta pelos critérios da determinação da medida da pena. A exigência de ponderação da culpa do agente na verificação da condição resolutiva de reparação ao lesado não são aqui aplicáveis, por se tratar de exigência não prevista na Lei 29/99. Na verdade, não se está aqui perante uma decisão em que releve a ponderação da culpa do agente (como, por exemplo, na revogação da suspensão da execução da pena).
O legislador tratou de forma igual o que é essencialmente igual. As dificuldades económicas que o agente possa ter ou qualquer outro facto que o impossibilite de pagar a indemnização, preexistem á Lei nº 29/99, não é esta Lei que as gera ou potencia. Aliás se não tivesse sido decretado perdão genérico o recorrente teria que cumprir a pena de prisão na sua totalidade. Esta Lei veio beneficiar o arguido, perdoando um ano da pena de prisão. Mas o legislador, além do benefício que quis dar aos arguidos, procurou não esquecer as vítimas, muitas vezes esquecidas. Assim, para acautelar os interesses das vítimas condicionou o perdão ao pagamento da indemnização”:
Deste modo, no caso da revogação do perdão pela prática do não pagamento da indemnização ou reparação, não importa indagar das condições de vida do condenado a fim de averiguar e concluir se tinha ou não possibilidade de efectuar o referido pagamento pois que aquela tem como pressuposto formal o não pagamento da indemnização arbitrada, no prazo de 90 dias imediatos à notificação que para o efeito foi feita ao condenado e cuja verificação importa obrigatoriamente a revogação automática do perdão.
Não olvidemos que “a amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições que nelas não venham expressas, estando vedada qualquer aplicação analógica a interpretação extensiva” - cfr. Cruz Bucho no Estudo «Amnistia e perdão (Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto): Seis meses depois (elementos de estudo), pág. 36, disponível, em texto integral na página do Tribunal da Relação de Guimarães – https://www.dgsi.pt.
Tendo o perdão por fonte uma lei, é esta que define o seu âmbito, a sua eficácia e termos de concessão, apresentando-se a sua aplicação como imperativa- ope legis- estando ali prescritas as condições em que a revogação do perdão se opera, de forma obrigatória e automática, não dependendo de normas respeitantes à falta de cumprimento das condições de suspensão da pena, do artigo 55º, al. d) do Código Penal.
Mais se refira que é manifesto, atenta a letra da lei, que quando o beneficiário do perdão haja sido condenado ao pagamento de indeminização ou reparação, o perdão fica dependente de aquele, no prazo ali estipulado, de 90 dias, efectuar o pagamento da indemnização ou reparação, sob pena de ver revogado o perdão, como sucede in casu. Esta é a única interpretação, atenta a natureza da lei, a fazer, isto é, a interpretação declarativa (as normas devem ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas), pelo que, uma vez que a Lei nº 38-A/2023, de 02/08, não possuiu norma idêntica ao artº 5º, nº 7, da lei de perdão genérico de penas e amnistia de pequenas infrações 29/99, de 12.05, forçoso é que se conclua pela improrrogabilidade do prazo de 90 dias, que o beneficiário tem para cumprir a condição para beneficiar do perdão previsto na lei n.º 38-A/2023, de 02/08.
De igual modo, a situação em apreço não é similar à suspensão da execução da pena de prisão, convocada pelo recorrente, pelo que, não se impõe, nem importa indagar das condições de vida do condenado, a fim de concluir se tinha ou não possibilidade de efetuar o referido pagamento – cfr., neste sentido, Pedro José Esteves Brito in “Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, Julgar Online, agosto 2023, pág. 42, pois que a revogação do perdão não depende da verificação dos pressupostos referentes à suspensão de execução da pena de prisão, quer para a sua aplicação, quer para a sua revogação, nem se orienta pelos critérios de determinação da medida da pena.
O perdão concedido é automaticamente revogado, por força da lei – ope legis – por incumprimento da referida condição resolutiva, como vem sendo decidido pelos nossos tribunais superiores a propósito de outras situações de perdão sujeitas à mesma condição.
Pode ler-se no Ac. TRE de 27.09.2004, disponível in www.dgsi.pt:
“I. O perdão é um ato de clemência atribuído por lei que incide sobre a pena, extinguindo-a total ou parcialmente, conforme o âmbito do perdão aplicado.
II. A sua aplicação - na sua eficácia, nos seus efeitos, nos termos em que é concedido - é imperativa ope legis, enquanto que a suspensão da execução da pena, resulta de conclusão do tribunal, preenchidas que fiquem certas circunstâncias ou pressupostos.
III. A condição resolutiva do perdão opera de forma obrigatória e automática
IV. A revogação do perdão, não determina a modificação da pena, quer na sua espécie quer na sua medida, quer na sua exequibilidade”.
Face ao exposto, sem necessidade de ulteriores considerações, ante o incumprimento das condições resolutivas oportunamente fixadas, nos termos do disposto no artº 8º, nº 1 da Lei nº 38-A/2023, de 02.08, revogo o perdão oportunamente concedido a AA e, em consequência, determino o cumprimento do ano de prisão anteriormente perdoado.
De notar que, atenta a medida da pena única em que AA foi condenado, jamais poderia o mesmo beneficiar do disposto no artº 43º do CPenal, pelo que, como é bom de ver, não o poderá agora também, sem prejuízo de a pena a cumprir ser de um ano de prisão.
Cabe aqui referir que o regime de permanência em habitação de determinada pena de prisão, prevista e decretada ab initio, nos termos do disposto no artº 43º do CPenal, constitui uma realidade diferente daquela em que, no âmbito do cumprimento de pena em reclusão, foi concedido ao condenado o perdão ao abrigo da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto. Neste caso, trata-se do remanescente de uma pena de prisão efectiva, parcialmente cumprida em reclusão e, posteriormente, a revogação do perdão apenas foi decretada após a verificação, ope judice, de uma atuação culposa do condenado, violadora dos deveres impostos pela concessão do perdão previsto naquela Lei, qual seja o não cumprimento das condições estabelecidas para a concessão daquele.
A aplicação do regime de cumprimento de pena previsto no artigo 43º, do Cód. Penal, só tem aplicação e só se destina, como do seu próprio texto resulta, ao momento da condenação, pelo que, quando a pena de prisão aplicada na sentença for inferior a 2 anos não tem tal preceito legal aplicação, pelo que, indefere-se o cumprimento do ano de prisão anteriormente perdoado em regime de cumprimento na habitação porquanto carece de fundamento legal.
Conforme refere Paulo Albuquerque in Comentário ao Código Penal, em anotação ao artigo 44º do Cód. Penal, na redacção anterior à Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, “O regime de permanência na habitação é uma verdadeira pena de substituição da pena de prisão (ver expressamente neste sentido a exposição de motivos da proposta de lei nº 98/ X, que esteve na base da Lei nº 59/2002). Não se trata, pois, de um mero regime de cumprimento da pena de prisão, que possa ser aplicado em momento posterior ao da condenação”. No mesmo sentido vai o Ac. do TRL de 02.07.2019, onde se sustenta que o regime de permanência em habitação “continua a configurar-se como pena de substituição detentiva ou em sentido impróprio, na medida em que, supondo a prévia determinação concreta da pena de prisão e sendo decidida na sentença condenatória, tal como as penas de substituição em sentido próprio, não substitui a pena de prisão por outra pena, antes substitui a forma paradigmática de execução da pena de prisão (em estabelecimento prisional) pelo seu cumprimento em meio não prisional, nutrindo-se, assim, na expressão de F. Dias, que passamos a parafrasear (ob. cit. p. 336), do mesmo húmus histórico e político-criminal das restantes penas de substituição: o da luta contra as penas (curtas) de prisão, pois é claro e indiscutível que os inconvenientes político-criminais graves que a estas penas se apontam – e que podem resumir-se no que se chama o efeito criminógeno da prisão - valem para a pena de prisão intramuros, mas já não para a prisão cumprida em regime de permanência na habitação”.
Notifique.
Dê conhecimento ao TEP territorialmente competente e informe o processo à ordem do qual o condenado se encontra.”
Inconformado com tal despacho veio o arguido interpor o presente recurso, não se extraindo da sua motivação quaisquer conclusões, mas das quais se retira seja, no essencial, seja prorrogado o prazo para o cumprimento da obrigação imposta na decisão condenatória e que se considere inconstitucional a decisão de revogação do perdão de que beneficiou.
O Ministério Público na 1.ª instância apresentou resposta, pugnando pela sua improcedência, bem como pelo seu aperfeiçoamento do recurso, de modo a que sejam formuladas conclusões.
Em sede de parecer a que alude o art.º 416.º do CPP, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta aderiu, na íntegra, às alegações do recurso apresentadas pelo Ministério Público na primeira instância.
Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, tendo o recorrente reforçado o teor dos fundamentos do recurso.
Feito o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos remetidos à conferência, nos termos do art.º 419.º n.º 3, al. b) do CPP.
II– Fundamentação
Resulta do art.º 412.º n.º 1 do Código de Processo Penal (e do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995) que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sequência da respetiva motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido por si formulado, de forma a permitir o conhecimento das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida, sem prejuízo, das questões de conhecimento oficioso, que eventualmente existam.
No caso em apreço, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
1) saber se a decisão recorrida se mostra correcta ao aplicar a condição resolutiva prevista no art. 8.º da Lei n.º 38.º-A/2023, de 2 de Agosto (Lei da Amnistia) ou se, pelo contrário, ao não ter ponderado as circunstâncias concretas do condenado e as suas alegadas dificuldades económicas, violou o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa;
2) consoante se responda à questão anterior, saber se o condenado pode cumprir a pena de prisão que lhe resta em regime de permanência na habitação.
Cumpre apreciar.
Comecemos, naturalmente, pelo conhecimento da primeira das questões a decidir.
Sem que corramos grande risco de errar, podemos afirmar estar solidamente estabelecido o entendimento jurisprudencial segundo o qual a interpretação das normas que ao longo (da história) do nosso (luso) processo legislativo vieram instituir medidas de excepção através das quais se decidiu extinguir ou o procedimento criminal ou as consequências decorrentes da prática de factos ilícitos deverá ser feita de forma estrita ou literal, fazendo coincidir o espírito do legislador com o que deixou escrito na(s) norma(s) que elaborou. Significa isto que o legislador previu a possibilidade de aplicar o perdão das penas nas circunscritas condições por si previstas – conjugação dos arts. 3.º e 7.º da Lei n.º 38-A/2023 e, sobretudo a ter em atenção no presente recurso, sob as condições resolutivas previstas no seu art. 8.º, cuja redacção é a seguinte:
“1 - O perdão a que se refere a presente lei é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada.
2 - O perdão é concedido sob condição resolutiva de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado. 3 - A condição referida no número anterior deve ser cumprida nos 90 dias imediatos à notificação do condenado para o efeito.
4 - Considera-se satisfeita a condição referida no n.º 2 caso o titular do direito de indemnização ou reparação não declare que não foi indemnizado ou reparado.
5 - Quando o titular do direito de indemnização ou da reparação for desconhecido, não for encontrado ou ocorrer outro motivo justificado, considera-se satisfeita a condição referida no n.º 2 se a reparação consistir no pagamento de quantia determinada e o respetivo montante for depositado à ordem do tribunal.”
Revelador da afirmada consistência jurisprudencial, podemos ler no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2023, publicado no DR n.º 23/2023, I.ª Série, 1 de Fevereiro de 2023, págs. 22 a 41:
“O direito de graça assume uma natureza excecional que, como tal, não comporta aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva, devendo as normas que o enformam “ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas”. Nesta medida, “insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa (…)”.
Como tal, atendendo à excecionalidade que caracteriza as leis de amnistia e de perdão, a interpretação das mesmas deverá, pura e simplesmente, conter-se no texto da respetiva lei, adotando-se uma interpretação declarativa em que “não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo”.
Vale aqui, plenamente, o brocardo e princípio exceptio strictissimae interpretationis. E não se afigura como sendo um escolho nesta senda hermenêutica a expressa determinação do artigo 11.º do Código Civil, proscrevendo a analogia mas permitindo a interpretação extensiva. É que operar um salto de aplicação como o que está em causa cairia sob a alçada da analogia, não da simples interpretação / aplicação extensiva.
E a mesma exacta ideia decorre do já mais antigo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/2002, proferido no Processo n.º 725/01, disponível in www.tribunalconstitucional.pt1,: “[n]este domínio, o Tribunal Constitucional vem entendendo, com significativa reiteração, que, nos óbvios parâmetros do Estado de direito democrático, a liberdade de conformação legislativa goza de alargado espaço onde têm lugar preponderante considerações não necessariamente restritas aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado, mas também outras ditadas pela conveniência pública que, em última instância, entroncam na raison d’État.
Essa constatação é particularmente relevante no que ao princípio da igualdade diz respeito, desde que as diferenciações materiais resultantes do exercício do direito de graça não envolvam arbítrio, ou seja, não permitam soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis (vejam-se, por exemplo, os acórdãos nºs. 42/95, 160/96 e 510/98, publicados, o primeiro e o terceiro, no Diário da República, II Série, de 27 de Abril de 1995 e de 20 de Outubro de 1998, respectivamente, e o segundo no Boletim do Ministério da Justiça, nº 454, págs. 267 e segs.). […]
A redacção do art. 8.º da Lei n.º 38-A/2023 supra transcrita é linear, clara, transparente e não permite qualquer dúvida: a pessoa condenada só pode beneficiar do perdão, na condição de cumprir, no prazo por si estipulado, a obrigação prevista na mesma lei relativa ao pagamento da indemnização de que tenha sido alvo, sem que o seu regime legal preveja qualquer ponderação das concretas dificuldades para o seu cumprimento, ao invés, por exemplo, do regime previsto nos arts. 55.º e 56.º do Código Penal (que permite, dentro do quadro do cumprimento da finalidade das penas, fazer um juízo concreto, mas sempre exigente, das dificuldades no cumprimento das condições impostas para permitir o beneficio da aplicação do regime de substituição da pena de prisão efectiva) ou do regime relativo ao não cumprimento da pena de multa aplicada a título principal (previsto nos arts. 47.º, n. os 3 e 4, 48.º e 49.º, n. os 3 e 4 do Código Penal).
“[…] [A] sujeição da concessão do perdão à condição resolutiva de pagamento da indemnização em que foi condenado, dentro de certo prazo, não contende com qualquer direito, liberdade ou garantia fundamental de que o mesmo sentenciado seja titular que caiba na previsão dos referidos preceitos. Mas independentemente disso, acresce que o condicionamento se mostra feito de forma geral e abstracta, aplicando-se a todos os abrangidos pelo perdão que tenham sido também condenados no pagamento de indemnização ao lesado, e que o mesmo tem fundamento material. […]” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 9/1/2024, proferido no processo n.º 75/20.6GCGMR-K.G1, relatado por Florbela Sebastião e Silva, disponível in www.dgsi.pt.2
O regime legal de clemência é aplicado nas estritas condições, excepcionais, por si previstas.
No caso concreto, a determinação do cumprimento da pena perdoada, considerando que o pagamento do montante indemnizatório não foi concretizado pelo condenado, é uma decorrência directa da obrigação essencial a que os tribunais estão sujeitos: ao cumprimento da lei.
Dado que o cumprimento do regime previsto na Lei da Amnistia não dá margem para qualquer apreciação das condições concretas de cada condenado para proceder ao cumprimento das obrigações inerentes ao cumprimento da pena (e para beneficiarem da clemência), nenhuma obrigação processual se impunha de o ouvir (não já na sua estrita condição de arguido) ao abrigo do disposto no art. 61.º, n.º 1, al. b) do CPP, pelo que nenhuma nulidade foi praticada pelo tribunal a quo, designadamente a prevista no 119.º, al. c) do mesmo diploma.
Cremos ser a supra jurisprudência citada, cujos fundamentos subscrevemos na íntegra, o suficiente para, associando-nos aos fundamentos igualmente presentes na decisão recorrida, considerar insubsistente, nesta parte, o recurso interposto.
Passemos ao conhecimento da segunda das questões a decidir, isto é, saber se o condenado pode cumprir a pena de prisão que lhe resta em regime de permanência na habitação.
A este propósito a decisão recorrida, recordemos, contém a seguinte fundamentação:
“De notar que, atenta a medida da pena única em que AA foi condenado, jamais poderia o mesmo beneficiar do disposto no artº 43º do CPenal, pelo que, como é bom de ver, não o poderá agora também, sem prejuízo de a pena a cumprir ser de um ano de prisão.
Cabe aqui referir que o regime de permanência em habitação de determinada pena de prisão, prevista e decretada ab initio, nos termos do disposto no artº 43º do CPenal, constitui uma realidade diferente daquela em que, no âmbito do cumprimento de pena em reclusão, foi concedido ao condenado o perdão ao abrigo da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto. Neste caso, trata-se do remanescente de uma pena de prisão efectiva, parcialmente cumprida em reclusão e, posteriormente, a revogação do perdão apenas foi decretada após a verificação, ope judice, de uma atuação culposa do condenado, violadora dos deveres impostos pela concessão do perdão previsto naquela Lei, qual seja o não cumprimento das condições estabelecidas para a concessão daquele.
A aplicação do regime de cumprimento de pena previsto no artigo 43º, do Cód. Penal, só tem aplicação e só se destina, como do seu próprio texto resulta, ao momento da condenação, pelo que, quando a pena de prisão aplicada na sentença for inferior a 2 anos não tem tal preceito legal aplicação, pelo que, indefere-se o cumprimento do ano de prisão anteriormente perdoado em regime de cumprimento na habitação porquanto carece de fundamento legal.
Conforme refere Paulo Albuquerque in Comentário ao Código Penal, em anotação ao artigo 44º do Cód. Penal, na redacção anterior à Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, “O regime de permanência na habitação é uma verdadeira pena de substituição da pena de prisão (ver expressamente neste sentido a exposição de motivos da proposta de lei nº 98/ X, que esteve na base da Lei nº 59/2002). Não se trata, pois, de um mero regime de cumprimento da pena de prisão, que possa ser aplicado em momento posterior ao da condenação”. No mesmo sentido vai o Ac. do TRL de 02.07.2019, onde se sustenta que o regime de permanência em habitação “continua a configurar-se como pena de substituição detentiva ou em sentido impróprio, na medida em que, supondo a prévia determinação concreta da pena de prisão e sendo decidida na sentença condenatória, tal como as penas de substituição em sentido próprio, não substitui a pena de prisão por outra pena, antes substitui a forma paradigmática de execução da pena de prisão (em estabelecimento prisional) pelo seu cumprimento em meio não prisional, nutrindo-se, assim, na expressão de F. Dias, que passamos a parafrasear (ob. cit. p. 336), do mesmo húmus histórico e político-criminal das restantes penas de substituição: o da luta contra as penas (curtas) de prisão, pois é claro e indiscutível que os inconvenientes político-criminais graves que a estas penas se apontam – e que podem resumir-se no que se chama o efeito criminógeno da prisão - valem para a pena de prisão intramuros, mas já não para a prisão cumprida em regime de permanência na habitação”.
Prevê o art. 43.º, n.º 1 do Código Penal o seguinte:
1 - Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:
a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos;
Pressuposto de aplicação desta norma é que a pena de prisão aplicada, à data da decisão condenatória, tenha sido em medida não superior a dois anos, o que não é o caso dos autos, tendo sido definida uma pena superior, portanto, insusceptível de ser executada em regime de permanência na habitação.
“O regime de permanência na habitação é uma verdadeira pena de substituição da pena de prisão e, deste modo, apenas pode ser decidida na sentença, pelo tribunal de julgamento, e não na fase de execução da sentença, como se constituísse mero incidente da execução da pena de prisão.
E, se o momento para decidir da aplicação do regime de permanência na habitação é o da sentença condenatória, não permite o artigo 44.º do C. Penal [actual art. 43.º), que, tendo sido suspensa a execução da pena de prisão, possa ser perspectivada a aplicação daquele regime, em caso de posterior revogação da referida suspensão.”, assim, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27 de Junho de 2012, proferido no processo n.º 81/10.9GBILH, relatado por José Eduardo Martins, disponível in www.dgsi.pt.3
Termos em que, também nesta parte, o recurso carece de fundamento.

III. Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente que se fixam em 3 (três) UCs.
Notifique.

Lisboa, 22 de Outubro de 2025
Texto processado e revisto integralmente pelo relator – art- 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Mário Pedro M.A.S. Meireles
Ana Rita Loja
Cristina Isabel Henriques
_______________________________________________________
1. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020042.html.
2. https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/dc561ca0c9a80bea80258ab00036180f?OpenDocument
3. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/bae7f3dc06dc5a1f80257a3e0054f2a4?OpenDocument.