Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | INÊS MOURA | ||
Descritores: | RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE ESBULHO VIOLENTO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/26/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. A existência de esbulho violento enquanto requisito para o decretamento da restituição provisória de posse, tanto pode dirigir-se a pessoas como a coisas. Contudo, a violência dirigida às coisas apenas será relevante para este efeito, a partir do momento em que, ainda assim, visa o possuidor, colocando-o numa situação de intimidação ou constrangimento. 2. A circunstância do Requerido se recusar a abandonar o imóvel onde vivia em união de facto com a arrendatária, com fundamento no direito que invoca à transmissão do contrato de arrendamento não se apresenta como um comportamento violento direcionado ao Requerente, ainda que o prive da disponibilidade absoluta do bem de que é proprietário. 3. Só o esbulho violento pode fundamentar a restituição provisória da posse nos termos do art.º 377 do CPC, o que se compreende, até porque o decretamento da providência tem lugar sem a audiência do esbulhador, o que representa uma diminuição das garantias de defesa da parte contrária. Por um lado, o legislador prescinde da observância prévia do princípio do contraditório; por outro lado, não considera necessária a existência de prejuízo, requisito para as restantes providências cautelares. Tal acontece precisamente pelo facto de ter existido a prática de violência e no sentido de desencorajar tais atos. 4. Na falta de violência, a tutela do possuidor pode ser igualmente obtida, mas já no âmbito de um procedimento cautelar comum, desde que verificados os seus pressupostos, ficando afastada a possibilidade de convolação do presente procedimento de restituição provisória da posse em procedimento cautelar comum, nos termos do art.º 379.º do CPC, por não terem sido alegados os factos suficientes que, a provarem-se, permitem concluir que a conduta do Requerido é suscetível de causar uma lesão grave ou dificilmente reparável no direito do Requerente. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório Vem JS requerer o presente procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse contra NS, com referência ao imóvel que identifica, mais requerendo a inversão do contencioso. Alega que: - é dono e legítimo proprietário da fração autónoma destinado a habitação, que identifica; - em 18.08.2014 deu de arrendamento aquela fração autónoma, pelo prazo de dois anos, com início em 01.09.2014, mediante o pagamento de uma renda mensal de € 450,00 a MB; - em 26.05.2020 celebraram o “Aditamento ao Contrato de Arrendamento”, alterando o valor da renda para € 500,00 e alterando o prazo de duração do arrendamento, para 5 anos, a partir de 31.08.2020; - para a celebração do contrato de arrendamento e do posterior aditamento foi determinante para o Requerente, nomeadamente quanto à pessoa da inquilina e quanto ao montante da renda, a circunstância de manter uma relação de confiança com a mãe da inquilina, e de esta se ter oferecido para ser fiadora; - na vigência do contrato de arrendamento, o Requerido passou a viver com a inquilina no locado; - em data anterior a 03.11.2021, a inquilina e o Requerido comunicaram ao Requerente a sua decisão de se separarem e que a inquilina iria deixar o locado, tendo o Requerido manifestado ao Requerente o seu interesse em continuar a viver na casa; - o Requerente pediu então ao Requerido, que apresentasse uma proposta de novo contrato de arrendamento, para que pudesse discuti-lo com o seu advogado; - em 25.10.2021 o Requerido enviou ao Requerente um e-mail, pelo qual colocou à sua consideração uma minuta de um “Acordo de Cessão da Posição Contratual” o que o surpreendeu, pois nunca havia equacionado a possibilidade de transmitir a posição contratual da inquilina; - no dia 5 de Novembro de 2021 realizou-se uma reunião em que estiveram presentes o Requerente e sua companheira PS, a inquilina e o Requerido, onde o Requerente informou que não aceitava a proposta de cessão contratual do Requerido, acrescentando que pretendia, como pretende, ceder o apartamento à filha, para sua habitação; - ficou acordado por todos que se faria um acordo de rescisão, tendo o prazo de entrega das chaves sido prolongado a pedido do Requerido, para dar tempo a ele e à inquilina para retirar os seus pertences do apartamento. - em 30.11.2021 o Requerente, a inquilina e a fiadora subscreveram o “Acordo de Revogação de Contrato de Arrendamento” acordando na revogação do contrato, com efeitos a partir de 11.03.2022; - em 03.03.2022 o Requerido intentou contra o Requerente e a inquilina uma ação especial para atribuição da casa de morada de família, a qual foi distribuída sob o n.º …/…, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Local Cível de Oeiras – Juiz 1, mediante a qual o Requerido pediu que fosse: a) reconhecida e declarada a união de facto entre o Requerido e a inquilina desde inícios do mês de setembro de 2016 até ao dia 15 de dezembro de 2021; b) reconhecida e declarada a dissolução da união de facto entre o Requerido e a inquilina, com efeitos a partir do dia 15 de dezembro de 2021; c) o “Acordo de Revogação de Contrato de Arrendamento” considerado nulo, ou anulado e sem qualquer efeito de direito; d) transmitido/transferido para o Requerido o contrato de arrendamento, ao abrigo do art.º 1105.º do Código Civil, aplicável ex vi do art.º 4.º da Lei da União de Facto e) os ali réus condenados a reconhecer os pedidos formulados, - no dia 11.03.2022 o Requerente, acompanhado pela inquilina, deslocaram-se ao apartamento, para o receberem do Requerido, que não lhes abriu a porta; - o Requerente pediu a intervenção da PSP, tendo o Requerido informado então que não saía nem iria sair de casa, uma vez que tinha o direito de ali ficar por ter vivido em união de facto com a inquilina e que já havia proposto uma ação, estando marcada uma conferência de interessados; - em 26.04.2022 no processo acima indicado foi proferida sentença que, julgou verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta, absolvendo os ali Réus da instância; - em 28.04.2022 o Requerido intentou nova ação especial, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, contra o Requerente e a inquilina, a qual foi distribuída com o número de processo …/…, ao Juízo de Família e Menores de Cascais – Juiz 1, nela formulando o mesmo pedido; - por sentença proferida em 27.10.2022 naquele processo, aquele Tribunal declarou-se materialmente incompetente para aquela ação e, consequentemente absolveu os réus da instância; - em 21.11.2022 o Requerente dirigiu ao Requerido a carta com o seguinte teor: “Como é do seu conhecimento, V. Ex.ª ocupa a habitação correspondente ao 8º piso, lado direito, do número 9 da Rua …, em Oeiras, da qual sou proprietário, sem que V. Ex.ª possua qualquer título que o legitime. Por conseguinte, venho pelo presente solicitar a V. Ex.ª se digne desocupar aquela habitação, deixando-a livre e no estado em que a encontrou, no prazo de oito dias a contar da recepção da presente carta. Para o efeito, solicito o seu contacto, para agendarmos dia e hora para entrega das chaves do apartamento e as de acesso ao edifício.” - por carta datada de 22.11.2022, o Requerido alegou que “o contrato de arrendamento em apreço transmitiu-se para a minha pessoa, pelo que eu sou o arrendatário de pleno direito” advertindo o Requerido para que “se abstenha de praticar qualquer acto que perturbe a posse e a fruição do locado”. Conclui que a atuação do Requerido impediu a inquilina de cumprir a sua obrigação de restituir o locado e o coage a permitir o desapossamento, o que integra o conceito de esbulho violento, sustentando que tal o priva de proporcionar essa habitação à sua filha para que aí possa organizar a sua vida como jovem adulta, não sendo estas necessidades compagináveis pela demora de um processo declarativo. Foi proferido despacho que indeferiu liminarmente a providência requerida, nos termos do art.º 226.º n.º 4 al. b) e art.º 590.º do CPC, com fundamento na sua manifesta improcedência. É com esta decisão que o Requerido não se conforma e dela vem interpor recurso, pedindo a sua revogação e substituição por outra que determine o prosseguimento dos autos, apresentando para o efeito as seguintes conclusões, que se reproduzem: I - Vindo alegado pelo Requerente que, em momento anterior ao apossamento, o Requerido se obrigou a desocupar a fracção autónoma de que o Apelante é proprietário e a entregar-lhe as respectivas chaves, a sua recusa em abandonar o imóvel do Apelante e entregar-lhe as respectivas chaves constitui incumprimento doloso dessa sua obrigação e esbulho da posse do Apelante. II - A restituição provisória da posse visa dar protecção imediata e efectiva ao detentor esbulhado, deste modo se punindo o esbulhador com a medida de reposição da situação quo ante, sem curar de saber se outra qualquer circunstância poderá justificar essa atitude, pelo que é irrelevante tudo o que se refere na douta sentença recorrida quanto ao suposto direito do Requerido à transmissão do arrendamento. III - Acresce que, mesmo ponderando, sem conceder, a hipótese remota de existir o direito de transmissão que o Requerido se arroga, o seu exercício - em face das circunstâncias do caso (nomeadamente, a anterior assunção por si da obrigação de abandonar o locado) – é ostensivamente abusivo e, portanto, ilegítimo (cf. artigo 334.º do Código Civil). IV - E é, também, infundado, pois, para que ao Requerido assistisse o direito de transmissão que se arroga, mister seria que, para além da verificação dos requisitos atinentes ao conceito de união de facto, coexistissem necessidades dos membros da união e o “interesse dos filhos”, entre outros fatores ou razões atendíveis (cf. artigo 1105.º, n.º 2 do Código Civil, ex vi artigo 4.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio) e, contudo, como revela a documentação junta aos autos, o Requerido nada alegou, naquelas duas acções judiciais, quanto ao segundo pressuposto, pelo que, contrariamente ao afirmado na sentença recorrida, a pretensão do Requerido não tem foros de seriedade. V - Não assistindo qualquer direito ao Requerido para permanecer na fracção autónoma e recusar a sua entrega ao Requerente, com fundamento na sua alegação abusiva (nos termos do artigo 334.º do Código Civil) e infundada (por, além do mais, o Requerido nunca ter invocado o pressuposto de necessidade do putativo exercício do direito de transmissão, como impõe artigo 1105.º, n.º 2 do Código Civil, ex vi artigo 4.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio), deste modo privando e impedindo o Apelante do uso e fruição correspondente ao seu direito de propriedade – facto que o Requerido não pode ignorar em face das circunstâncias anteriores, atinentes à obrigação por si assumida de abandonar o apartamento até 11 de Março de 2022 -, aquela conduta do Requerido deve considerar-se como integrando o conceito de esbulho. V - Em face do que se tem vindo a expor, a fundamentação do Tribunal recorrido, para concluir pela não verificação do esbulho, não poderá, com o devido respeito, manter-se, tendo em conta o disposto nos artigos 1278.º e 1279.º do Código Civil e no artigo 377.º do Código de Processo Civil e a circunstância de se basear em meras hipóteses e não em factos jurídicos, deste modo violando o disposto naquelas normas e o disposto no artigo 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil. VI - A propositura das acções especiais pelo Requerido apenas traduzem o exercício do seu direito de acção, com tutela constitucional (cf. artigo 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa), sendo este diferente do direito que através dela se pretende acautelar, pelo que, contrariamente ao afirmado na douta sentença recorrida, aquelas são irrelevantes para a verificação do requisito violência. VII - A violência consiste num acto directamente perpetrado contra pessoas ou contra coisas que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída, em consequência dos meios usados pelo esbulhador. VIII - Constitui esbulho violento a conduta do Requerido ao se recusar, no dia 11.3.2022 (reiterada pela comunicação de 22.11.2022), perante o Requerente, a ex-inquilina e a Polícia de Segurança Pública, a abandonar o imóvel e a entregar as correspondentes chaves ao Requerente, e apesar de ter previamente acordado com o Requerente que o faria, quando este lhe comunicou que não tinha interesse em tê-lo como locatário. IX - Acresce que, com essa conduta, o Requerido obstou a que a ex-inquilina cumprisse com a sua obrigação de restituição do locado. X - Assim, a recusa do Requerido em abandonar a fracção autónoma do Requerente e em entregar as correspondentes chaves, continuando a habitar naquele imóvel, assim impedindo o acesso do Requerente ao mesmo, que é seu, tornando-o incapaz para reagir perante o acto de desapossamento, constitui um acto de esbulho violento por parte do Requerido, a merecer a imediata restituição. XI - Ao entender de modo diverso, o Tribunal recorrido não terá feito a melhor interpretação e aplicação do direito aplicável, assim violando o artigo 1279.º do Código Civil e o artigo 377.º do Código de Processo Civil. XII - O requerimento inicial do Requerente contém matéria de facto suficiente para sustentar a lesão grave e dificilmente reparável do seu direito real, pelo que, para o caso de se entender que não estão reunidos os pressupostos para o decretamento da providência cautelar de restituição de posse (o que por mera cautela de patrocínio se equaciona), o procedimento deveria ser convolado para o procedimento cautelar comum. XIII - Não tendo assim entendido, afigura-se que, com o devido respeito, o Tribunal a quo não terá feito a melhor interpretação e aplicação do direito aplicável, assim se encontrando violadas as disposições dos artigos 379.º e 547.º do Código de Processo Civil. II. Questões a decidir São as seguintes as questões a decidir, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC - salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine: - da (in)existência de esbulho violento enquanto pressuposto da restituição provisória da posse; - dos factos alegados (não) revelarem a existência de uma lesão grave e dificilmente reparável. III. Fundamentos de Facto Os factos provados com interesse para a decisão são os que constam do relatório elaborado, onde se faz menção à alegação que consta do requerimento inicial. IV. Razões de Direito - da (in)existência de esbulho violento enquanto pressuposto da restituição provisória da posse Alega o Recorrente que, mesmo que existisse o direito do Requerido à transmissão do arrendamento, o que considera que não existe, há esbulho por parte do mesmo quando não cumpre o que ficou acordado entre todos na reunião de novembro de 2021 relativamente à restituição da casa em março de 2022, agindo de má fé, mais referindo que há violência a partir do momento em que o esbulhador impede o proprietário de contactar com a coisa possuída. A decisão recorrida considerou que caso se comprove por decisão judicial a transmissão a relação de locatário para o Requerido, a posse exercida pelo Requerente, ainda que por intermédio de outrem, correspondente à titularidade do direito de propriedade que se mantém nos mesmos moldes, não integrando o comportamento do Requerente o conceito de esbulho, sempre entendendo que não houve qualquer violência física ou psíquica contra a pessoa ou bens do Requerente. A restituição provisória de posse vem autonomizada como procedimento cautelar especificado, estabelecendo o art.º 377.º do CPC os caos em que a mesma pode ter lugar, nos seguintes termos: “No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.” Por seu turno o art.º 379.º do CPC permite, mesmo que não tenha havido violência, que o possuidor perturbado no exercício do seu direito possa lançar mão, nos termos gerais, do procedimento cautelar comum. São assim requisitos para a procedência da providência cautelar de restituição provisória de posse, a alegação e prova de factos que constituem a posse, a ofensa dessa posse denominada de esbulho e a violência. No que se refere à posse, diz-nos o art.º 1251.º do C. Civil que a posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, sendo que, nos termos do art.º 1252.º n.º 2 do mesmo diploma, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto sobre a coisa. Há esbulho sempre que alguém é privado, total ou parcialmente, contra a sua vontade, do exercício de retenção ou fruição do objeto possuído ou da possibilidade de continuar esse exercício. O art.º 1279.º do C.Civil, com a epígrafe “esbulho violento” estabelece: “Sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à posse, sem audiência do esbulhador.” A ter em conta ainda, o disposto no art.º 1261.º do C.Civil que no seu n.º 2, considera violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coação física ou de coação moral, nos termos do art.º 255 do C.Civil. De acordo com o estabelecido neste último artigo, a coação moral representa a ameaça de um mal causador de receio, podendo a ameaça respeitar à pessoa, à honra ou à fazenda, do possuidor ou de terceiro. O nosso legislador não nos dá o conceito de coação física, o que, numa primeira aproximação, pode ser entendido como um constrangimento através do uso da força física, que coloca o possuidor na impossibilidade material de agir. Despois de alguma controvérsia na doutrina e na jurisprudência, já alguns anos a nossa jurisprudência tem vindo a acolher de forma pacífica o entendimento de que, no caso do esbulho violento, a violência é relevante não só se for exercida sobre as pessoas, mas também se for dirigida à coisa que é objeto da posse - vd. neste sentido, entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/05/1998; Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/02/2006 e de 04/04/2006; Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/12/2006 e de 20/03/2012, todos in. www.dgsi.pt Considera-se também, que a violência tanto pode dirigir-se a pessoas como a coisas. Contudo, a violência dirigida às coisas apenas será relevante para efeitos de restituição provisória de posse, a partir do momento em que, ainda assim, visa o possuidor, colocando-o numa situação de intimidação ou constrangimento (coação). Ou seja, em última linha, ainda que dirigida às coisas, para que possa falar-se de violência, para efeitos de restituição provisória de posse, a mesma tem de representar uma forma de intimidação sobre o possuidor, pondo em causa a sua liberdade de determinação - vd. neste sentido, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/05/2014 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16/10/2006, in www.dgsi.pt . Em posição que nos revemos, diz-nos o Acórdão do STJ de 9 de novembro de 2022 no proc. 150/22.2T8PTG.E1.S1 in www.dgsi.pt: “É conhecida a divergência, na doutrina e na jurisprudência, sobre o exato sentido do conceito de “violência” (no esbulho) e as duas respostas (divergentes) referidas pelas Instâncias: a que considera que para haver violência tem a mesma que ser exercida sobre a pessoa do possuidor; e a que considera que basta a violência exercida sobre a coisa, quando dela resulte uma situação de constrangimento físico ou moral. E também alinhamos pela resposta menos exigente e restritiva, ou seja, que igualmente preenche o conceito de violência a que, em certos termos e circunstâncias, for exercida sobre a coisa. A tal propósito – para justificar em que termos a violência seria relevante – escrevia o Prof. Manuel Rodrigues (in a posse, pág. 365 e ss): “(…) pode perguntar-se se, em face do direito português, só é de atender à violência contra as pessoas ou também à violência contra as coisas; se só à violência física, ou também à violência moral. A violência tanto pode ser contra as pessoas como contra as coisas. A história do art. 494.º do CPC de 1876, permite-nos fazer esta afirmação. O projeto de Seabra não definia violência nem indicava os seus elementos; mas no primeiro projeto da Comissão Revisora, art. 366.º: «quer fosse exercida contra as coisas quer contra as pessoas». (…) O pensamento que dominava os redatores do Código era, pois, o que podia haver violência em qualquer dos casos. É certo que aquelas declarações foram depois suprimidas, mas a supressão foi apenas provocada pelo temor das definições. Também o novo CPC nada diz, sendo de manter o pensamento tradicional. A violência, porém, há-de exercer-se sobre as pessoas que defendem a posse, ou sobre as coisas que constituem um obstáculo ao esbulho, e não sobre quaisquer outras. (…) A violência tanto pode consistir no emprego da força física, como em ameaças. Efetivamente, embora o Código não o diga expressamente, não parece poder duvidar-se que a violência moral é suficiente para dar direito à ação de esbulho violento. Em primeiro lugar, desde muito cedo se considerou a ameaça como suficiente para a violência; em segundo lugar, é o próprio Código Civil que ao definir coação no art. 666.º diz que esta pode consistir em fortes receios (de danos)”. Em função de tais ensinamentos, passou a considerar-se na jurisprudência que mudanças de fechaduras e substituições de cadeados para impedir a utilização de prédios – na medida em que pressupõem a destruição (e o inerente emprego de força física) de coisas (as anteriores fechaduras e cadeados) que constituíam obstáculo ao esbulho – preenchem o conceito de violência relevante; mas também se considerou que a mera colocação (sem qualquer prévia destruição e sem que qualquer obstáculo haja sido vencido) de fechaduras e cadeados não integra o conceito de violência. E é neste ponto da discussão/divergência que o critério proposto pelo Prof. Lebre de Freitas – segundo o qual “é violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador” (in CPC anotado, Vol. II, 2 ª Ed., pág. 78) – se nos afigura inteiramente pertinente; e consentâneo com a ideia de que também a coação moral – tendo presente que também é posse violenta a que foi obtida com coação moral (cfr. 1261.º/2 e 255.º do C. Civil) – preenche a violência, ou seja, integrará atuação violenta tanto aquela que se dirige diretamente à pessoa do possuidor como a que resulta duma ameaça que lhe é feita indiretamente (podendo tal ameaça respeitar à “pessoa, honra ou fazenda” – cfr. art. 255.º/2 do C. Civil).”. Feitas estas considerações e reportando agora ao caso concreto, já se vê, tal como entendeu a decisão recorrida que os factos alegados não são suficientes para que possa dizer-se que houve um esbulho violento por parte do Requerido, através do qual privou o Requerente da sua posse sobre o imóvel de que é proprietário. A circunstância do Requerido se recusar a abandonar o imóvel onde vivia em união de facto com a arrendatário, com fundamento no direito que invoca à transmissão do contrato de arrendamento não se apresenta como um comportamento violento direcionado ao Requerente, ainda que o prive da disponibilidade absoluta do bem de que é proprietário. Não se vislumbra nos factos alegados a existência de uma qualquer ameaça ou coação do Requerido sobre o Requerente, não podendo assim ser configurada a sua resistência a sair do locado na presença da autoridade policial, nem tão pouco a missiva que dirigiu ao Requerente onde afirmando o seu alegado direito de arrendatário lhe pede que se abstenha de praticar qualquer ato que perturbe tal direito. Diz-se com toda a pertinência na decisão recorrida: “(…) o certo é que a privação da fruição da habitação em causa não ocorreu num contexto de exercício de violência física ou psíquica contra a pessoa ou bens do Requerente. Cabendo aqui recordar que o Requerido acredita deter a qualidade de locatário da dita fracção, a exigência destacada pelo Requerente (constante da aludida missiva) corresponde, bem vistas as coisas, à interpelação para o cumprimento do dever que, para o locador, advém do disposto no n.º 1 do artigo 1037.º do Código Civil. Por isso, não se alcança que dela decorra, outrossim, a prenunciação ilícita de um qualquer mal futuro4, porquanto a ameaça do exercício de um direito não constitui coacção moral (cfr. n.º 3 do artigo 255.º do mesmo diploma). Assim, se pode ser ajustado considerar que o Requerente se encontra desapossado por acto atribuível ao Requerido, o certo é que tal parece ocorrer no contexto de um exercício de um direito (a que se deve reconhecer foros de seriedade, atento o facto de este já ter proposto duas acções judiciais com a finalidade última de lhe ser reconhecida a transmissão da posição arrendatícia), não sendo associável um cariz de violência.”. Só o esbulho violento pode fundamentar a restituição provisória da posse nos termos do art.º 377 do CPC, o que se compreende, até porque o decretamento da providência tem lugar sem a audiência do esbulhador. É que nesta providência há uma diminuição das garantias de defesa da parte contrária. Por um lado, o legislador prescinde da observância prévia do princípio do contraditório; por outro lado, não considera necessária a existência de prejuízo, requisito para as restantes providências cautelares. Tal acontece precisamente pelo facto de ter existido a prática de violência, e no sentido de desencorajar tais atos. Na falta de violência, a tutela do possuidor pode ser igualmente obtida, mas já no âmbito de um procedimento cautelar comum, desde que verificados os seus pressupostos. No caso, mesmo a provarem-se os factos alegados não está indiciado qualquer comportamento do Requerido na forma de coação física ou moral, ameaça ou intimidação do Requerente, do que se conclui que não está preenchida uma situação de esbulho violento, nos termos do art.º 377.º do CPC, não merecendo censura a decisão recorrida que assim o entendeu. - dos factos alegados (não) revelarem a existência de uma lesão grave e dificilmente reparável Alega o Recorrente que ainda que se considere não ter havido esbulho violento, sempre se verificam os pressupostos que permitem a convolação pelo tribunal da presente providência num procedimento cautelar comum, por a persistência da situação determinar uma lesão grave e dificilmente reparável do seu direito. A decisão sob recurso considerou não ser possível convolar a presente providência nominada em procedimento cautelar comum, nos termos previstos no art.º 379.º do CPC por os factos alegados pelo Requerente não revelarem uma lesão grave ou dificilmente reparável do seu direito. Os procedimentos cautelares em geral destinam-se a acautelar o efeito útil das ações de que são dependência, visando, designadamente, evitar prejuízos graves através da consumação de uma lesão grave ou dificilmente reparável de um direito em face do decurso de tempo necessário à composição definitiva do litígio, de modo a obter-se a conciliação possível, entre o interesse da celeridade e o da segurança jurídica, o que se infere do disposto no art.º 362.º n.º 1 do CPC. Têm assim como objetivo obviar ao periculum in mora. Quanto ao procedimento cautelar comum, prevê o art.º 362.º n.º 1 do CPC: “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave ou dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência, conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.”. Acrescenta o art.º 368.º n.º 1 do CPC: “A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.” O decretamento de providência cautelar não especificada prevista no art.º 362.º do CPC está assim dependente da verificação de uma probabilidade séria da existência do direito invocado e do fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito, no que é denominado de periculum in mora. Se quanto à existência do direito o legislador se basta com a exigência de um juízo de probabilidade séria, já quanto ao requisito da lesão grave e dificilmente reparável, torna-se necessário um juízo de certeza sobre o perigo. Como nos diz Acórdão do TRL de 21 de março de 2007, in www.dgsi.pt : “O periculum in mora, requisito primordial das chamadas providências cautelares não especificadas que tem de ser alegado e provado, em termos de convencer o tribunal de que a demora de uma decisão - a obter através da acção competente - acarreta um prejuízo a que se pretende obviar com o procedimento cautelar. Na verdade, não é toda e qualquer consequência, que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva, que justifica o decretamento de uma medida provisória, com reflexos imediatos na esfera jurídica da contraparte. Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade de permitir ao Tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão.”. O receio de lesão grave e de difícil reparação supõe que o titular do direito se encontre perante uma ameaça. Pretendendo acautelar-se um prejuízo, se este já se produziu, a providência carece de razão de ser. Diz-nos, no entanto, o Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil anotado, 3ª ed. pág. 684 que é necessário não exagerar no alcance desta doutrina que tem de ser entendida em termos razoáveis. É que pode haver um dano já consumado, mas haver outros danos previsíveis e iminentes. A lesão cometida pode determinar o justo receio de lesões futuras. Refere este Ilustre Prof. que: “Quando isto suceda, o titular do direito pode invocar a lesão efectuada como fundamento do justo receio de outras lesões idênticas e pedir, consequentemente, a providência adequada para evitar que essas lesões se produzam.” Na situação em presença e avaliando os factos alegados, verifica-se que o comportamento do Requerido é suscetível de causar prejuízo ao Requerente, quando lhe impede a total disponibilidade do imóvel de que é proprietário e que aquele detém arrogando-se a qualidade de transmissário do direito ao arrendamento. No entanto, como se referiu, a lei não se contenta com o mero perigo de lesão do direito, antes exige, por um lado, que tal lesão seja grave e, por outro lado, que seja dificilmente reparável. Os factos que resultaram apurados não permitem concluir pela verificação de tal requisito, o que sempre constituiria um obstáculo à convolação pretendida. Dos mesmos não resulta a existência de um perigo iminente que importe remover desde já, e que não se compadece com o decurso da ação principal, ou que do decurso do tempo podem resultar danos graves e de difícil reparação para o Requerente. Pelo contrário, ainda que o Requerente afirme que necessita do imóvel para a sua filha ir viver para lá, a verdade é que, por um lado o contrato de arrendamento em causa foi celebrado pelo prazo de 5 anos, tendo a sua vigência prevista até agosto de 2025, o que mostra que a expectativa do Requerente sempre seria a de ter o imóvel onerado com este mesmo arrendamento até essa data e por outro lado, o próprio Requerente alega que tendo o Requerido manifestado interesse em permanecer a viver na casa, lhe pediu pra ele apresentar uma proposta que pudesse discutir com o seu advogado (art.º 11.º e 12.º da p.i.). Conclui-se por isso, tal como entendeu a decisão recorrida que está afastada a possibilidade de convolar o presente procedimento de restituição provisória da posse em procedimento cautelar comum, nos termos do art.º 379.º do CPC, por não terem sido alegados os factos suficientes que, a provarem-se, permitem dizer que a conduta do Requerido é suscetível de causar uma lesão grave ou dificilmente reparável no direito do Requerente. V. Decisão: Em face do exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelo Requerente, mantendo-se a decisão recorrida. Custas pelo Recorrente. Notifique. * Lisboa, 26 de janeiro de 2023 Inês Moura Laurina Gemas António Moreira |