Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JORGE GONÇALVES | ||
Descritores: | PRISÃO PREVENTIVA INTERNAMENTO PREVENTIVO CESSAÇÃO DO INTERNAMENTO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/21/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | I - O internamento preventivo previsto no artigo 202.º, n.º 2, do C.P.P., não é uma medida de coacção autónoma, mas uma diferente forma de execução da prisão preventiva. II - Quando o tribunal fez cessar o internamento preventivo, em função de relatório médico que reconheceu estarem reunidas as condições para a alta, não se tratou de qualquer acto de revogação e substituição da medida de coacção imposta, nos termos do artigo 212.º do C.P.P., ou de reexame dos seus pressupostos, nos termos do artigo 213.º, porquanto a medida de coacção manteve-se sempre a mesma, desde o interrogatório judicial de arguido detido: a prisão preventiva, ainda que em diferentes formas de execução. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa: I – RELATÓRIO 1. Após primeiro interrogatório judicial, foi imposta a A, melhor identificado nos autos, a medida de coacção de prisão preventiva, sendo determinado o internamento preventivo do mesmo, nos termos do artigo 202.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Por despacho de 13 de Novembro de 2022, proferido na sequência da junção aos autos de relatório proveniente da Casa de Saúde ..., onde o arguido se encontrava internado, subscrito pela médica psiquiatra assistente do arguido, foi determinada a cessação do internamento preventivo. Arguiu o arguido a existência de irregularidade que se traduziu na omissão da sua notificação daquele relatório. Foi então proferido despacho de indeferimento da arguição de irregularidade. 2. Recorreu o arguido do despacho de indeferimento da arguição de irregularidade, terminando a respectiva motivação com a formulação das seguintes conclusões (transcrição das conclusões): 1. O presente recurso tem como objeto de impugnação o despacho que indeferiu a arguição de mera irregularidade junto do tribunal a quo - JIC ..., notificado a 28/11/2022, ao arguido, ora recorrente, por o mesmo violar normas de direito. 2. Primeiramente, o ora recorrente foi notificado de despacho que substituiu a prisão preventiva executada em regime de internamento preventivo (art.º 202º, nº 2 do CPP), pela sua execução em estabelecimento prisional. 3. Surpreendentemente, no douto despacho objeto de recurso, o tribunal a quo - JIC ... - teve por referência, para essa decisão judicial, que contende com direitos liberdades e garantias, nomeadamente a restrição da liberdade do arguido, e a sua saúde, já que conforme inserto aos autos o mesmo padece muito possivelmente padece de doença do foro psíquico advindo do consumo de drogas (“Bloom”), um relatório medico que não foi notificado ao recorrente. 4. O recorrente arguiu junto do tribunal a quo a arguição de irregularidade nos termos do disposto no art.º 118º, nº 2 e 123º, nº 1, enunciado tal circunstância omissiva. 5. Especificamente constava daqueloutro douto despacho que «De acordo com o relatório médico junto, o arguido está clinicamente estável, podendo ter alta da instituição onde se encontra. 6. Aditando, ainda, que «Por outro lado, pode manter tratamento mesmo em reclusão». 7. Em resposta explanou o arguido, aqui recorrente, que não tinha sido notificado desse relatório, nem tampouco o seu defensor, por forma tomar conhecimento do mesmo e poder se pronunciar à luz do contraditório, de acordo com os art.ºs 61º, nº 1, al. b) e art.º 32º, nºs 1 e 5 da CRP. 8. Sendo o relatório médico um juízo científico ou técnico emitido por um médico, está subjacente a apreciação e análise à luz do princípio da livre apreciação da prova e, portanto, pode ser contraditado. 9. De modo que se propugnou pela arguição de irregularidade nos termos citados, ao que o douto tribunal indeferiu (referência de notificação nº 52706768 e do despacho propriamente dito nº52702383) 10. Todavia e já no passado dia 22/12/2022, o defensor do recorrente foi consultar o aludido processo e efetivamente, em face dos elementos constantes dos autos o mesmo padece de doença do foro mental, advinda do consumo de drogas que o impede de discernir-se quando comparado com o homem médio, sagaz e minimamente diligente. 11. Concretamente, consta a fls. 204 dos autos, relatório médico que alude que o mesmo «apresenta diagnóstico de esquizofrenia, em comorbilidade com perturbação do uso de múltiplas substâncias». 12. Pelo que teria todo o interesse em ser notificado do aludido relatório médico, por forma a promover a sua manutenção na Casa de Saúde ..., lugar onde se encontrava. 13. E assim, receber, condignamente, tratamentos contínuos e adequados à mitigação da doença que padece. 14. Pelo supra exposto o douto tribunal violou o disposto no art.º 61º, nº 1, al. b), 202º, nº 2 do CPP e o art.º 32º, nº 1 e 5 da CRP. Termos em que e nos demais de Direito de V.ª Exas. deve o presente recurso ser recebido e o douto despacho que ora se recorre ser anulado, por estar viciado de mera irregularidade nos termos do art.º 118º, nº 2 e 123º, nº 1 do CPP, em contravenção das normas dos arts. 61º, nº 1, al. b), 202º, nº 2 do CPP e art.º 32º, nºs 1 e 5 da CRP. 3. O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta, no sentido de que o recurso não merece provimento, concluindo (transcrição das conclusões): 1. Em 1.º interrogatório judicial, o Tribunal aplicou ao arguido a medida de coação de prisão preventiva, determinando-se o seu cumprimento em internamento preventivo, enquanto a anomalia persistisse. 2. “I- O internamente preventivo previsto no art.º 202º, nº 2, do CPP prevê não uma medida de coação autónoma, mas uma diferente forma de execução da prisão preventiva (razão por que lhe são igualmente aplicáveis os prazos do art.º 215º, a obrigação de reexame periódico prevista no art.º 213º e o regime de extinção previsto no art.º 214º, nº 2).” 3. No despacho de 13-11-2022 não se procedeu à alteração do estatuto coativo do arguido, na medida em que o mesmo se mantém, desde o seu interrogatório judicial de arguido detido, sujeito à mesma medida de coação - prisão preventiva 4. Como se pode concluir da informação da médica psiquiatra, o arguido está clinicamente estável, podendo manter o tratamento à patologia de que padece, com a inerente abstinência de consumos de estupefacientes, em reclusão. 5. De acordo com o disposto no artigo 163.º do CPP: "O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador." 6. Encontrando-se o referido parecer subtraído à livre apreciação da prova, consideramos que também não está sujeito a qualquer contraditório. 7. No despacho de 13-11-2022 não existiu violação dos direitos de defesa do arguido, pelo que não padece de qualquer irregularidade. 8. Pelo exposto, bem andou o Tribunal, em 24-11-2022, ao indeferir a arguição de irregularidade invocada pelo arguido. 4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o artigo 416.º, do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), pronunciou-se no sentido de que o recurso não merece provimento. 5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, do mesmo diploma. Cumpre agora apreciar e decidir. II – FUNDAMENTAÇÃO 1. Segundo jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Atento o teor das conclusões, identifica-se como questão a apreciar e decidir: - da invocada irregularidade por falta de notificação prévia do arguido 2. Elementos relevantes 2.1. Despacho recorrido (transcrição): « O arguido veio invocar que não foi notificado do relatório médico a que de reporta o despacho com a referência 52624897, invocando, por isso, que tal afetou o direito de defesa e o exercício do direito de contraditório (artigos 61.º, n.º 1, al. b) e artigo 32.º, n.º 1 e 5 da CRP), razão pela qual defende ter existido irregularidade, que arguiu à luz do artigo 123.º do CPP. O Ministério Público pugnou pelo indeferimento do requerimento apresentado, referindo o seguinte: “Veio o arguido arguir a irregularidade da falta de notificação do relatório médico que fundamentou a sua condução ao EP do ... para continuação da execução da medida de coacção de prisão preventiva a que se encontra sujeito. Ora, salvo melhor opinião, carece de total fundamento o alegado pelo arguido, na medida em que o referido relatório consiste tão só num juízo técnico, não susceptível de contraditório. Acresce ainda que não foi o estatuto coactivo do arguido alterado de qualquer forma, na medida em que o mesmo se mantém, desde o seu interrogatório judicial de arguido detido, sujeito à mesma medida de coacção – prisão preventiva e sendo a decisão proferida expressa e clara no sentido de que a referida medida de coacção seria executada em regime de internamento preventivo, enquanto se mantivesse a anomalia psíquica do arguido, nos termos do disposto no artigo 202.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Atento o exposto, o Ministério Público promove o indeferimento do requerimento apresentado.” Pelos motivos invocados pelo Ministério Público, supra constantes, com os quais se concorda, indefiro a arguição de irregularidade efetuada pelo arguido. Devolva os autos ao Ministério Público.» *** 3. Apreciando Após primeiro interrogatório judicial, foi imposta a A, melhor identificado nos autos, a medida de coacção de prisão preventiva, sendo determinado o internamento preventivo do mesmo, nos termos do artigo 202.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. O internamento preventivo previsto no sobredito preceito legal não é uma medida de coacção autónoma, mas uma diferente forma de execução da prisão preventiva, razão por que são igualmente aplicáveis os prazos do artigo 215.º, a obrigação de reexame periódico prevista no artigo 213.º e o regime de extinção previsto no artigo 214.º, n.º2 (isto sem prejuízo do estabelecido no artigo 216.º) – cfr. Código de Processo Penal Comentado por Juízes Conselheiros do S.T.J., 2016. 2.ª edição revista, p. 819. Temos, assim, no internamento preventivo, não uma medida de coacção alternativa à prisão preventiva, ou dela substitutiva, mas sim uma específica forma de execução dessa medida de coacção de prisão preventiva, sob a forma de internamento preventivo. O artigo 202.º, n.º 2, do C.P.P. pressupõe que se mostre (ou que se demonstre) que o detido sofre de anomalia psíquica, a exigir, a nosso ver, a realização de exame psiquiátrico ao arguido face ao seu aparente estado de descompensação. Quando o tribunal fez cessar o internamento preventivo, não se tratou de qualquer acto de revogação e substituição da medida de coacção imposta, nos termos do artigo 212.º do C.P.P., ou de reexame dos pressupostos, nos termos do artigo 213.º, porquanto a medida de coacção manteve-se sempre a mesma, desde o interrogatório judicial de arguido detido: a prisão preventiva, ainda que em diferentes formas de execução. Por conseguinte, não tinham de ser convocados, como não foram, o n.º 4 do artigo 212.º e o n.º 3 do artigo 213.º, sobre o exercício do contraditório. Contraditório que se prevê para que seja determinado o internamento, mas que não se exige para que seja determinada a sua cessação: o internamento preventivo dura “enquanto a anomalia persistir”, devendo dar lugar à prisão preventiva executada nos termos habituais imediatamente quando cessar a anomalia psíquica ou ela deixar de ter gravidade que justifique o internamento, se nessa altura se mantiverem ainda, como é evidente, os pressupostos da medida de coacção imposta. Ocorre que posteriormente ao internamento preventivo do arguido na Casa S. João de Deus, ..., foi junto aos autos relatório psiquiátrico elaborado por médica psiquiatra da dita instituição, no qual se pode ler que o arguido: «(…) apresenta diagnóstico de esquizofrenia, em comorbilidade com perturbação do uso de múltiplas substâncias. Presentemente encontra-se estabilizado da sua patologia, sem sintomatologia psicótica ativa, não apresentando comportamentos disruptivos e colaborando nos cuidados, devendo-se a estabilidade clínica atualmente observada ao cumprimento do tratamento e à abstinência de consumos toxicofílicos. Encontra-se medicado com antipsicótico injectável de longa duração (decanoato de haloperidol 200mg, de administração mensal». Mais adiante refere-se que, no momento, o arguido apresentava baixo risco de incorrer em comportamentos agressivos. Decorre do relatório médico entender-se que o arguido, no momento, não se enquadrava clinicamente em ambiente de internamento de agudos, reunindo condições para a alta. Isto sem prejuízo de se entender que o arguido beneficiaria de integração em ambiente terapêutico, onde fosse garantida supervisão, cumprimento do tratamento e manutenção da abstinência relativamente a consumos toxicofílicos. Por outras palavras, extrai-se que o arguido está compensado e que deve manter-se em meio contentor a fim de que lhe seja ministrada a terapêutica de que carece e garantida a sua abstinência. Em reclusão é, por princípio, garantida ao arguido/recorrente a terapêutica e a manutenção da abstinência Na sequência, foi proferido despacho do seguinte teor: «Nos presentes autos o arguido A encontrar-se sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, a qual foi substituída por internamento preventivo. De acordo com o relatório médico junto, o arguido está clinicamente estável, podendo ter alta da instituição onde se encontra. Por outro lado, pode manter tratamento, mesmo em reclusão. Conforme resulta do despacho que aplicou ao arguido a referida medida de coacção, está indiciada a prática pelo mesmo de um crime de violência doméstica p. e p. p. art.º 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, verificando-se, em concreto a existência de perigo de continuação da actividade criminosa. Subsistindo todos os fundamentos que determinaram a aplicação ao arguido de medida de coacção de prisão preventiva, cujo teor dou por reproduzido, e tendo cessado o que determinou que o mesmo fosse internado em estabelecimento de saúde, deve o mesmo aguardar os ulteriores termos do processo sujeito àquela medida. Assim sendo, não estando ultrapassados o prazo máximo de duração a que alude o art.º 215.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo, determino a cessação do internamento preventivo a que o arguido A aguardando o mesmo os ulteriores termos deste processo à medida de coacção de prisão preventiva. Notifique. Comunique à Casa de Saúde .... Passe mandados de condução do arguido ao E.P. do .... Com cópia do auto de interrogatório de arguido detido e deste despacho, comunique ao TEP. * Após, remeta aos serviços do Ministério Público.» Como já se disse, o arguido, em rigor, esteve sempre sujeito à medida de prisão preventiva. A questão que se colocava era a de saber se o arguido deveria continuar em prisão preventiva em regime de internamento preventivo ou em prisão preventiva em reclusão no estabelecimento prisional, o que dependia de decisão médica. Neste quadro, afigura-se-nos que o tribunal não tinha de notificar o arguido, através do seu defensor, do dito relatório médico, como acto prévio à cessação do internamento preventivo, para exercício do contraditório, não se justificando o prolongamento de um internamento, ao abrigo do disposto no artigo 202.º, n.º 2, do C.P.P., “em hospital psiquiátrico ou outro estabelecimento análogo adequado”, depois de ser junto aos autos relatório médico proveniente da instituição em causa, atestando a inadequação clínica, no momento, da continuação desse internamento, Podendo o arguido ter alta da instituição onde se encontrava e manter o seu tratamento, mesmo em reclusão – com garantia de supervisão e cumprimento do tratamento, além da manutenção da abstinência -, justificava-se determinar, desde logo, a cessação do internamento. Isto sem prejuízo de entendermos que o arguido tinha direito a tomar conhecimento do teor do relatório médico em causa, o que, efectivamente, veio a acontecer. Adoptando o nosso C.P.P. o princípio da relevância material da irregularidade, pois só são relevantes as irregularidades que possam afectar o valor do acto praticado ou omitido, entendemos que, não dependendo a cessação do internamento preventivo do prévio exercício do contraditório, a referida falta de notificação do relatório médico em causa não traduz qualquer irregularidade. Por outro lado, o conhecimento que o Ex.mo defensor veio a ter do teor do dito relatório retira relevância material à omissão da notificação. O arguido/recorrente, em rigor, não dirige directamente o seu recurso ao despacho judicial que determinou a cessação do internamento preventivo, mas antes ao despacho que indeferiu a arguição de irregularidade. Ora, como já dissemos, entendemos que, perante a informação médica de que não havia razão para a continuidade do internamento do arguido em serviço de agudos, havia que fazer cessar o internamento preventivo, sem prejuízo, como é evidente, de o arguido, conhecedor do teor do relatório médico, poder requerer o que tiver por conveniente no sentido de, como alega, poder “receber tratamentos contínuos e adequados à mitigação da doença de que padece”, ou no sentido de demonstrar que sofre de anomalia grave que continua a justificar o internamento preventivo. Neste quadro, entendemos inexistir irregularidade processual e que o recurso não merece provimento. *** III – Dispositivo Em face do exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto por A. Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 3 (três) UC a taxa de justiça (artigos 513.º, n.º1 do C.P.P., 8.º, n.º5, do R.C.P. e tabela III anexa a esse Regulamento), sem prejuízo de se poder vir a verificar a condição de que depende a isenção prevista na al. j) do artigo 4.º do RCP. Comunique de imediato ao tribunal recorrido. Lisboa, 21 de Março de 2023 (o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º 2, do C.P.P.) Jorge Gonçalves Maria José Machado Carlos Espírito Santo |