Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ CAPACETE | ||
Descritores: | ACÇÃO DE DIVÓRCIO CASA DE MORADA DE FAMÍLIA ALIMENTOS RECONVENÇÃO ADMISSIBILIDADE | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/28/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. Em ação de divórcio ou de separação é admissível a dedução de pedido reconvencional de alimentos, mesmo que o réu não se defenda e ainda que não peticione, também ele, o divórcio em reconvenção. 2. A dedução de reconvenção sem que se mostre verificado qualquer um dos requisitos, processuais ou substantivos, a que está sujeita, configura uma exceção dilatória atípica ou inominada, que determina a absolvição do autor da instância reconvencional. 3. A prescrição contida no art.º 266º de «inadmissibilidade» da reconvenção em caso de não verificação de qualquer um daqueles requisitos, mais não é do que uma forma de extinção da instância reconvencional equiparada à absolvição da instância; 4. (...) pelo que, afirmar-se, a propósito do pedido reconvencional de atribuição da casa de morada de família, «termos em que não se admite, nesta parte, a reconvenção apresentada», é o mesmo que afirmar-se «termos em que, relativamente ao pedido de atribuição da casa de morada de família, não admito a reconvenção apresentada pela ré, o que configura uma exceção dilatório inominada ou atípica, em consequência do que, nesta parte, absolvo o autor da instância reconvencional». 5. Numa ação de divórcio, em que a ré deduziu reconvenção a pedir: - que lhe seja atribuída a casa de morada de família; - que o autor seja condenado a prestar-lhe alimentos à razão de €150,00 mensais, tendo o juiz decidido, em despacho avulso: - não admitir a reconvenção relativamente àquele primeiro pedido; e, - admiti-la quanto ao segundo pedido, não podia, mais tarde, no saneador, fixar à causa apenas o valor de €30.000,01, correspondente ao valor da ação de divórcio, olvidando o valor da reconvenção. 6. Isto, quer o seu entendimento: - seja no sentido de que, uma vez apresentada reconvenção, o valor do pedido reconvencional deduzido pelo réu, desde que distinto do formulado pelo autor, acrescenta imediatamente ao indicado pelo autor para a ação, independentemente da posterior decisão sobre a sua admissibilidade; ou, - seja no sentido de que, deduzido pedido reconvencional, mesmo sendo este distinto do formulado pelo autor, o valor daquele não é imediatamente adicionado ao valor deste, o que apenas sucederá no caso de a reconvenção ser admitida. 7. O direito a alimentos na sequência do divórcio só se constitui na esfera jurídica do o ex-cônjuge se este não tiver possibilidades de prover à sua subsistência. 8. Consequentemente, verificada que esteja a qualidade de ex-cônjuge do demandante de alimentos, importa apurar da incapacidade do mesmo para prover à sua subsistência, só após o que, apurada tal incapacidade, se partirá para a verificação dos demais requisitos de que o n.º 1 do art.º 2016.º-A, CC, faz depender o efetivo direito a alimentos, ou seja, para a ponderação acerca: - das necessidades de quem os pretende; e, - das possibilidade daquele que os deve prestar, então se considerando as várias circunstâncias naquele preceito enumeradas, com a finalidade de fixar o montante respetivo. 9. A prova da incapacidade de prover à subsistência, que está na origem do direito a alimentos entre divorciados, impende, como facto constitutivo que é desse direito, sobre aquele que deles pretende beneficiar. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – RELATÓRIO: SA intentou a presente ação de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, contra EA, alegando, em suma, que autor e ré casaram um com o outro no dia 16 de julho de 1988. Desde então, o autor tem sido vítima de ofensas, maus-tratos e ameaças por parte da ré, ao ponto de temer pela sua vida. Em agosto de 2020, na sequência de novas ofensas verbais dirigidas pela ré ao autor, não mais voltou a haver comunhão de vida entre o casal. O autor não pretende restabelecer a vida conjugal com a ré. Conclui assim a petição inicial: «Nestes termos e nos mais de Direito, (...) deve a presente acção ser liminarmente recebida e marcada a tentativa de conciliação, a que se refere o art.º 1779, vindo a final a ser decretado o divórcio entre A. e R.» * A ré contestou, defendendo-se por impugnação, alegando, no essencial, que correspondem à verdade os factos vertidos na petição inicial, apesar de concordar com a cessação do vínculo conjugal que a liga ao autor, por não existir qualquer possibilidade de reatamento da vida em comum entre ambos. Além disso, deduz reconvenção contra o autor, pretendendo: - que lhe seja atribuído o «direito de uso e habitação da casa de morada de família»; - que o réu seja condenado a pagar-lhe, a título de pensão de alimentos, uma prestação mensal não inferior a €150,00. Conclui assim a contestação/reconvenção. «Nestes termos e nos demais de direito, (...), requer-se na presente acção ser: i.) Seja julgado procedente o pedido de dissolução do casamento e marcada a respectiva tentativa de conciliação nos termos e para os efeitos do artigo 1779.º do Código Civil e, por conseguinte, decretado o divórcio; ii.) Procedência total do pedido reconvencional, nomeadamente o seu direito de uso e habitação da casa morada de família; e da fixação da pensão de alimentos no valor de €150,00 (cento e cinquenta euros), nos termos e para os efeitos dos artigos 2015.º e 2016.º, n.º 2 do Código Civil.» * Após a apresentação da contestação/reconvenção pela ré, a senhora juíza a quo proferiu o seguinte despacho, datado de 7 de fevereiro de 2022: «Da Reconvenção O Autor, SA, intentou a presente acção especial de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, contra EA, pedindo que fosse decretado o divórcio e dissolvido o casamento entre aquele e a Ré, nos termos do artigo 1781º, alínea d), com fundamento no facto de ser alvo de comentários insultuosos da Ré e ter medo dela, não pretendendo retomar a vida em comum. Em contestação, veio a Ré deduzir pedido reconvencional, pedindo que fosse decretado o divórcio e dissolvido o seu casamento com o Autor, mais pedindo a atribuição da casa de morada de família e a atribuição de uma pensão de alimentos no valor de € 150,00 mensais. O artigo 555º, n.º 2 do Código de Processo Civil admite expressamente a cumulação do pedido de pensão de alimentos em sede de acção de divórcio, além dos casos previstos de reconvenção no artigo 266º, n.º 2 do Código de Processo Civil. O pedido de pensão de alimentos formulado pela Ré é expressamente admitido pela norma legal citada, sendo, portanto, de admitir. Quanto ao pedido de atribuição de casa de morada de família, nos termos do artigo 990º, n.º 4 do Código de Processo Civil, o mesmo deverá ser deduzido por apenso à acção de divórcio, não sendo admissível a sua dedução como pedido reconvencional, termos em que não se admite, nesta parte, a reconvenção apresentada. Compulsado o teor da contestação apresentada, quanto ao pedido de alimentos formulado, o mesmo não tem os factos que o fundamentam individualizados do demais articulado da contestação, o que dificulta o contraditório do pedido formulado. Face ao exposto, ao abrigo do disposto no artigo 590º, n.º 2, alínea b) e n.º 4 do Código de Processo Civil, convido a Ré a apresentar novo articulado de contestação, na qual individualize os factos apresentados, que em seu entender, fundamentam o pedido da prestação de alimentos formulado e o valor indicado, no prazo de 10 dias.» * Notificada desse despacho, a ré correspondeu ao convite, apresentando novo articulado, individualizando os factos que, em seu entender, fundamentam o pedido reconvencional de prestação de alimentos. A ré conclui assim esse novo articulado: «Nestes termos e nos demais de direito, e com o suprimento de V. Excelência, requer-se com referência ao artigo 555.º, n.º 2 do Código de Processo Civil e n.º 2 do artigo 266.º do mesmo diploma legal, pela procedência da fixação de alimentos no valor de €150,00 (cento e cinquenta euros), em sede da acção de divórcio apresentada pelo Autor, nos termos e para os efeitos dos artigos 2015.º e 2016.º, n.º 2, do Código Civil.» * O autor replicou, concluindo assim: «Nestes termos, não deverá ser imputado ao A. qualquer prestação a título de pensão de alimentos pelas razões já anteriormente invocadas.» * Findos os articulados, a senhora juíza a quo dispensou a realização da audiência prévia, desta forma singela: «Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 593.º, aplicável ex vi do artigo 932.º, ambos do Código de Processo Civil, determino o prosseguimento da presente acção, sem a realização da audiência prévia.»[1]. * Foi proferido despacho saneador, no qual, além do mais: a) se fixou em €30.000,01, o valor da causa; b) se identificou o objeto do litígio; c) se enunciaram os temas da prova. * Na subsequente tramitação dos autos, realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, de cuja parte dispositiva consta o seguinte: «Com fundamento no exposto: a) julgo procedente por provado o pedido do Autor e, consequentemente, decreto o divórcio requerido, dissolvendo o casamento celebrado em 16 de Julho de 1988, entre o Autor SA e a Ré EA. b) Julgo improcedente o pedido de condenação do Autor no pagamento de uma pensão de alimentos à favor da Ré. c) Condeno a Ré no pagamento das custas da acção. d) Determino que, oportunamente, se dê cumprimento ao disposto no n.º 1 do artigo 78º do Código do Registo Civil.» * Inconformada com o decidido sob a al. b) da parte dispositiva da sentença, veio a ré interpor o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações: a) «A Ora Recorrente não se pode conformar com a decisão proferida nos autos no que concerne á atribuição da pensão de alimentos»; b) «Os factos dados como provados e não provados estão em contradição»; c) «O Tribunal A Quo, diz que não pode dar como provado que a Ré encontra-se reformada por invalidez com incapacidade permanente de 72% avaliada em 8 de Fevereiro de 2019. (ponto 11 dos factos provados), dá como não provado no ponto i dos factos não provados, que a Ré doente oncológica»; d) «A testemunha CG, que prestou o seu depoimento no dia 17 de outubro pelas 09h.44m.45s e terminou às 10h. 11m. 10s, quando questionada sobre a doença de sua mãe ao minuto 21.2, a mesma refere que: “A partir do momento em que a mãe retirou o peito, porque tinha um tumor maligno, deixou de trabalhar no lar, por falta de mobilidade no braço, e passou a fazer as compras para o Lar mais o seu pai.”»; e) «No ponto O e P dos factos não provados, refere-se que: “o) A Ré ficou dependente do rendimento do Autor, ora cônjuge, funcionário público da Câmara Municipal de Lisboa, aposentado aos dias de hoje. p) O rendimento familiar para fazer face às despesas diárias, advinha da profissão do marido e da reforma de invalidez da Ré, embora, maioritariamente do Autor, atendendo à diferença significativa de valores.”»; f) «Nos factos provados nomeadamente nos pontos 12 a 14, o tribunal A Quo refere que: “12 - A Ré aufere uma reforma de invalidez no valor de €273,39. 13 - A Ré despende mensalmente o montante de €21,57 com despesas de medicamentos. 14 - A Ré despende mensalmente valores não concretamente apurados com despesas de água, luz, gás e comunicações.”»; g) «Ora salvo o devido respeito e melhor opinião se a Ré aufere uma pensão de invalidez no montante de €273,39, paga, luz, água, gás, comunicações e alimentação, necessita sempre do rendimento do Autor, para conseguir fazer face ás suas despesas.»; h) «Da prova produzida em sede de julgamento, facilmente se comprova tal.»; i) «A testemunha AN, que prestou depoimento no dia 17 de outubro de 2022, com início ás 10h.46m.07s e terminus 10h.55m.54s, disse quando interrogada para tal que: “Minuto 3.40 – que a Ré pediu um apoio á segurança social devido +a sua doença, porque não tinha o rendimento do seu marido.»; j) «A análise feita de forma errónea da prova produzida em sede de julgamento, nomeadamente os depoimentos das testemunhas A testemunha CG, foi bem explicita, quando aos factos relevantes para a decisão de atribuição da pensão de alimentos pelo A á Ré.»; k) «Ao minuto 13.30 do seu depoimento, e quando foi questionada sobre se a sua mãe trabalhava, a mesma referiu que tomou conta de meninos, desconhecendo o quanto a mesma recebia, mas que há cerca de 5 meses, que não tem menino.»; l) «Ao minuto 23.54 - Refere que a mãe lhe pedia para lhe pagar a água, luz, mas que mais tarde lhe pagava. A última despesa que pagou foi da NOS, no valor que pensa ser de 70€, porque não tinha dinheiro para pagar.»; m) «Perante tal depoimento, não pode ser dado como provado o ponto 15, pois não existiu prova bastante de que a mesma auferia um rendimento de €125,00. Não pode ser provado que a Ré auferia 125€ por cada criança, só pelo depoimento da filha TA. Tendo sido esta que falou nesse valor, mas não indicou quem era as crianças, pois se se trata de crianças do bairro onde vivem e a testemunha mora em frente á casa da Ré, era fácil identificar os menores e seus progenitores, não o fazendo por saber que não corresponde á verdade,»; n) «A testemunha AN, que prestou depoimento no dia 17 de outubro de 2022, com início ás 10h.46m.07s e terminus 10h.55m.54s, referiu ao minuto 03.07, que teve conhecimento que a mesma foi ama da Segurança Social, mas há muito tempo». o) «Assim, deve a sentença ora recorrida ser substituída por outra em que seja atribuída a pensão de alimentos á Ré, pelo seu marido, por dela carecer». «Fazendo-se assim a costumada, JUSTIÇA.» * O autor respondeu ao recurso, pugnando para que lhe seja negado provimento, não tendo, no entanto, apresentado conclusões. *** II – ÂMBITO DO RECURSO: Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal “ad quem” possa ou deva conhecer “ex officio”, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso. Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art.º 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas. Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, “ius novarum”, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal “a quo” (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º). Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663.º, n.º 2). À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir: - se há lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto; - se a apelante tem direito a receber do apelado uma prestação mensal a título de alimentos e, em caso afirmativo, qual o respetivo montante. * III – FUNDAMENTOS: 3.1 – Fundamentação de facto: 3.1.1 – A sentença recorrida considerou provado que: «1 - SA e EA contraíram casamento a 16 de julho de 1988, sem convenção antenupcial em Loures. 2 - O Autor é único titular, na qualidade de arrendatário, do contrato de arrendamento da fração autónoma correspondente ao 2º- G do prédio de renda económica, tipo II, sito na Rua ___, Lisboa. 3 - A Ré apelidava o Autor de “maricas”, dirigindo-lhe expressões como “faz-te homem”, entre outras do mesmo género, com intuito de o enxovalhar e maltratar. 4 - O Autor é uma pessoa pacata, que não gosta de conflitos. 5 - Em Agosto de 2020, o casal, numa ida a Viseu acompanhados dos netos, desentendeu-se por a Ré bater num neto, quando se encontravam de férias. 6 - O Autor e a Ré, a partir de data não concretamente apurada do ano de 2020, passaram a fazer vidas separadas, sendo que cada um tratava de si isoladamente, dormindo a Ré no sofá da sala. 7 - A Ré gritava com o Autor. 8 - A Ré colocou a roupa do Autor no lixo. 9 - O Autor estava o dia todo fechado no quarto com medo da Ré. 10 - O Autor tem o firme propósito de não mais restabelecer a vida conjugal. 11 - A Ré encontra-se reformada por invalidez com incapacidade permanente de 72% avaliada em 8 de Fevereiro de 2019. 12 - A Ré aufere uma reforma de invalidez no valor de €273,39. 13 - A Ré despende mensalmente o montante de €21,57 com despesas de medicamentos. 14 - A Ré despende mensalmente valores não concretamente apurados com despesas de água, luz, gás e comunicações. 15 - A Ré habitualmente toma conta de crianças, auferindo valor não concretamente apurado por cada uma delas. 16 - A renda da casa habitada pela Ré é paga pelo Autor. 17 - O Autor saiu da casa de morada de família em Outubro de 2020». 3.1.2 – (...) e não provados que: «a) A Ré dirigia diversas vezes ao Autor a expressão “não vales nada”. b) O Autor ao se aperceber da violência com que a Ré batia no neto, teve que intervir, afastando-a, ao que ela não gostou. c) A Ré rapidamente partiu para a ofensa verbal chamando-lhe vários nomes ofensivos tais como não vales nada, és um merdas, ameaçando-o de que se ele regressasse para casa lhe faria a vida negra. d) A Ré partia coisas em casa e mandava com coisas para cima do Autor. e) A Ré é uma pessoa muito agressiva e conflituosa, que não se dá com ninguém, nem sequer com as vizinhas, com quem também anda sempre em guerra. f) A Ré disse ao Autor que lhe iria fazer a vida num inferno. g) A Ré disse ao Autor que se ele não saísse de casa “iria apanhá-lo a dormir e matava-o.” h) Assustadas e preocupadas, as filhas CG e TA, levaram-no para as suas casas, alternadamente, pois tinham medo que a mãe fizesse mal ao pai e que o estado de saúde do pai se agravasse devido aos conflitos. i) A Ré é doente oncológica. j) A Ré foi diagnosticada com uma depressão e um esgotamento. k) Aquando do diagnóstico, o Autor adoptou um comportamento hostil e grosseiro com a Ré, gerindo a sua vida como queria e sem dar satisfações. l) A Ré sempre trabalhou até ser diagnosticada com doença do foro oncológico e fazer a intervenção cirúrgica a que foi sujeita mais precisamente da mastectomia, ficando impedida de o fazer depois. m) A Ré foi obrigada, por força das circunstâncias, a abandonar o seu local de trabalho. n) A Ré tinha a seu cargo toda a gestão da vida doméstica. o) A Ré ficou dependente do rendimento do Autor, ora cônjuge, funcionário público da Câmara Municipal de Lisboa, aposentado aos dias de hoje. p) O rendimento familiar para fazer face às despesas diárias, advinha da profissão do marido e da reforma de invalidez da Ré, embora, maioritariamente do Autor, atendendo à diferença significativa de valores. q) O Autor, recebe mensalmente uma reforma em valor próximo dos €1.000,00. r) A incapacidade permanente de 72% da Ré impossibilita-a de ter uma ocupação profissional. s) A Ré, para fazer face à carência económica, tem sobrevivido com ajuda das filhas maiores de ambos, que a auxiliam como e quando podem. t) A Ré despende mensalmente de despesas de água o valor de cerca de €15,00, de luz o valor de cerca de €60,00, de gás o valor de cerca de €30,00 e de comunicações o valor de cerca de €30,00, num total de €156,70. u) A Ré suporta sozinha o valor da renda de casa, no valor de €3,32 desde que o Autor saiu de casa. v) O Autor tem a sua reforma penhorada por dívidas à autoridade tributária, recebendo apenas o salário mínimo.» * 3.2 – Mérito do recurso: A apelante dedica mais de metade da motivação recursória ou, se se quiser, do corpo das alegações, sem que perceba com que utilidade, a reproduzir na íntegra: - os factos considerados provados e não provados na sentença recorrida; - a motivação do tribunal a quo sobre a decisão da matéria de facto. 3.2.1 – A impugnação da decisão sobre a matéria de facto: Dispõe o art.º 640.º: «1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.» Conforme refere Abrantes Geraldes, «a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações: a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (art.ºs 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b)); b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art.º 640.º, n.º 1, al. a)); c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.»[2]. As referidas exigências, prossegue o citado Autor, «devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo»[3], sempre temperado pela necessária proporcionalidade e razoabilidade, sendo que, basicamente, o essencial que tem de estar reunido é «a definição do objeto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova indicados e explicitados e com a assunção clara do resultado pretendido).»[4]. Acompanhemos, sobre esta temática, o Ac. do S.T.J. de 08.06.2021, Proc. n.º 2737/16.3T8VFX.L1.S1 (Chambel Mourisco), in www.dgsi.pt: «O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou, em diversos acórdãos, sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, firmando uma linha jurisprudencial que iremos procurar sintetizar. No que diz respeito ao enquadramento processual da rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o Supremo Tribunal de Justiça considerou no acórdão de 3/12/2015, proferido no processo n.º 3217/12.1TTLSB.L1.S1 (Revista-4.ª Secção), que se o Tribunal da Relação decide não conhecer da reapreciação da matéria de facto fixada na 1.ª instância, invocando o incumprimento das exigências de natureza formal decorrentes do artigo 640.º do Código de Processo Civil, tal procedimento não configura uma situação de omissão de pronúncia. No mesmo acórdão refere-se que o art.º 640.º, do Código de Processo Civil exige ao recorrente a concretização dos pontos de facto a alterar, assim como dos meios de prova que permitem pôr em causa o sentido da decisão da primeira instância e justificam a alteração da mesma e, ainda, a decisão que, no seu entender deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnados. Acrescenta-se que este conjunto de exigências se reporta especificamente à fundamentação do recurso não se impondo ao recorrente que, nas suas conclusões, reproduza tudo o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art.º 640.º, n.ºs 1e 2 do CPC. Por fim, conclui-se que versando o recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, importa que nas conclusões se proceda à indicação dos pontos de facto incorretamente julgados e que se pretende ver modificados. A propósito do conteúdo das conclusões, o acórdão de 11-02-2016, proferido no processo n.º 157/12.8 TUGMR.G1.S1 (Revista) – 4.ª Secção, refere que tendo a recorrente identificado no corpo alegatório os concretos meios de prova que impunham uma decisão de facto em sentido diverso, não tem que fazê-lo nas conclusões do recurso, desde que identifique os concretos pontos da matéria de facto que impugna (Cfr. no mesmo sentido acórdãos de 18/02/2016, proferido no processo n.º 558/12.1TTCBR.C1.S1, de 03/03/2016, proferido no processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, de 12/05/2016, proferido no processo n.º 324/10.9TTALM.L1.S1 e de 13/10/2016, proferido no processo n.º 98/12.9TTGMR.G1.S1, todos da 4.ª Secção). No que diz respeito à exigência prevista na alínea b), do n.º 1, do art.º 640.º do Código de Processo Civil, o acórdão de 20-12-2017, proferido no processo n.º 299/13.2TTVRL.C1.S2 (Revista) - 4ª Secção, afirma com muita clareza que quando se exige que o recorrente especifique «[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida», impõe-se que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos. Quanto ao caso em análise no aludido acórdão referiu-se que não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três «blocos distintos de factos» e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna. Acerca da natureza do ónus de alegação, quando se pretenda impugnar a matéria de facto, o acórdão de 09-02-2017, proferido no processo n.º 471/10.7 TTCSC.L1.S1 (Revista – 4.ª Secção), sublinhou que «Ao impor um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, com fundamento na reapreciação da prova gravada, o legislador pretendeu evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância, daí que o prazo acrescido de 10 dias só seja aplicável quando o recorrente o use efetivamente para impugnar a matéria de facto». Finalmente, na linha da doutrina (...), o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que quando o recorrente não cumpra o ónus imposto no art.º 640.º do Código de Processo Civil não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento, que está reservado para os recursos da matéria de direito (Cfr. acórdãos de 7/7/2016, proferido no processo n.º 220/13.8TTBCL.G1.S1 e de 27/10/2016, proferido no processo n.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, ambos da 4.ª Secção). (...) - A alínea b), do n.º 1, do art.º 640.º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos. - Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, agrega a matéria de facto impugnada em blocos ou temas e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna. (Acórdão de 19-12-2018, proferido no Proc. n.º 271/14.5TTMTS.P1.S1 e Acórdão de 05-09-2018, proferido no Proc. n.º 15787/15.8T8PRT.P1.S2.) - Da conjugação do art.º 640.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Civil, com o disposto no art.º 639.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, resulta que o recorrente que pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto tem de fazer consignar nas suas conclusões os concretos pontos de facto que pretende impugnar e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida. (Acórdão de 31-10-2018, proferido no Proc. n.º 2820/15.2T8LRS.L1.S1.) - Na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. - Limitando-se o Recorrente a afirmar, tanto na alegação como nas conclusões, que, face aos concretos meios de prova que indica, “se impunha uma decisão diversa”, relativamente às questões de facto que impugnara, deve o recurso ser rejeitado quanto à impugnação da matéria de facto, por não cumprimento do ónus processual fixado na alínea c), do n.º 1, do artigo 640.º, do Código de Processo Civil. (Acórdão de 06-06-2018, proferido no Proc. n.º 1474/16.3T8CLD.C1.S1.) - Não cumpre o ónus imposto pelo n.º 2, al. a), do artigo 640.º do Código de Processo Civil - indicação exata das passagens da gravação em que se funda a sua discordância - o recorrente que nem indicou as passagens da gravação, nem procedeu à respetiva transcrição e se limitou a fazer um resumo, das partes pertinentes desses depoimentos. (Acórdão de 06-06-2018, proferido no Proc. n.º 125/11.7TTVRL.G1.S1.) - Sendo as conclusões não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também e sobretudo as definidoras do objeto do recurso e balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar nelas, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença, aqueles cuja alteração pretende e o sentido e termos dessa alteração. - Por menor exigência formal que se adote relativamente ao cumprimento dos ónus do art.º 640.º do Código de Processo Civil e em especial dos estabelecidos nas suas alíneas a) e c) do n.º 1, sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso. - Tendo o recorrente nas conclusões se limitado a consignar a globalidade da matéria de facto que entende provada, mas sem indicar, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença e que impugna, os que pretende que sejam alterados, eliminados ou acrescentados à factualidade provada, não cumpriu o estabelecido no art.º 640.º, n.º 1, als. a) e c) do Código de Processo Civil, devendo o recurso ser liminarmente rejeitado nessa parte. (Acórdão de 16-05-2018, proferido no Proc. n.º 2833/16.7T8VFX.L1.S1.) - A exigência, imposta pelo art.º 640.º, n.º1, al. b) do Código de Processo Civil, de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, determina que essa concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, e quando gravados com a indicação exata das passagens da gravação em que se funda o recurso. - Não cumpre aqueles ónus o apelante que, nas alegações não especificou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto que pretendia impugnar, limitando-se a transcrever as declarações, a mencionar documentos, tomando como referência determinados tópicos que elencou. (Acórdão de 11-04-2018, proferido no Proc. n.º 789/16.5T8VRL.G1.S1.) - As coordenadas estabelecidas pelo Supremo Tribunal de Justiça no que concerne à interpretação do disposto no artigo 690.º do Código de Processo Civil, referente ao ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, visam evitar soluções que possam conduzir a uma repetição total do julgamento, em virtude de recursos genéricos contra uma decisão da matéria de facto alegadamente errada, observando-se assim a opção do legislador de viabilizar apenas uma reapreciação de questões concretas, relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente, permitindo deste modo um efetivo exercício do contraditório por parte do recorrido. - A verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, no que respeita aos aspetos de ordem formal, deve ser norteada pelo princípio da proporcionalidade e da razoabilidade. - Não cumprem o ónus imposto pelo art.º 640.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil os recorrentes que não concretizaram, por referência a cada um dos mencionados factos que impugnaram, quais os meios probatórios que, no seu entender, imporiam decisão diversa daquela que foi dada pelo Tribunal de 1.ª Instância, não indicando também a decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre a matéria de facto, relativamente a determinados factos impugnados (Acórdão do STJ de 6/11/2019, Processo n.º 1092/08.0TTBRG.G1.S1). (...) podemos concluir que o recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, deve: – Concretizar cada um dos pontos de facto que considera incorretamente julgados; – Especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, sendo que essa concretização deve ser feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos; – Enunciar a decisão alternativa que propõe; – Indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda a sua discordância com o decidido (tratando-se de prova gravada).» No Ac. do S.T.J. de 27.09.2018, Proc. n.º 2611/12.2TBSTS.L1.S1 (José Sousa Lameira), in www.dgsi.pt, decidiu-se: - O recorrente não satisfaz o ónus impugnatório de decisão de facto quando omite a especificação dos pontos de facto que entende terem sido incorretamente julgados, uma vez que é essa indicação que delimita o objeto do recurso; - Também não cumpre tal ónus quando se limita a discorrer genericamente sobre o teor da prova produzida, sem indicar os concretos meios probatórios que, sobre cada um dos pontos impugnados, impunham decisão diversa da recorrida, devendo ainda especificar a decisão concreta a proferir sobre cada um dos diversos pontos da matéria de facto impugnados; - Para que o ónus a cargo do recorrente seja cumprido, exige-se ainda ao recorrente uma análise crítica da prova invocada, em confronto com o que consta da motivação da sentença, que permita justificar a alteração da decisão proferida sobre os factos; - Relativamente ao recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não há lugar ao despacho de aperfeiçoamento das respetivas alegações. Por outro lado, como é sabido, as competências que o art.º 662.º atribui à Relação apenas podem ser exercidas dentro do objeto recursório fixado pelo recorrente nas conclusões de recurso, nos termos dos art.ºs 635º e 640.º, ou seja, a Relação apenas pode alterar a decisão sobre a matéria de facto se o recorrente a impugnar e na medida em que impugnou. No caso de o recorrente ter impugnado (apenas ou também) a decisão sobre a matéria de facto, como já se enfatizou, deve indicar os concretos pontos que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios que imponham decisão diversa e indicar a decisão que deve ser proferida, nos termos que decorrem do citado art.º 640.º. É o resultado desta especificação efetuada pelo recorrente, que constituirá o objeto da atividade recursória da Relação, em sede de art.º 662.º. Assim, se o recorrente impugna determinados pontos da matéria de facto, mas não impugna outros pontos da mesma matéria, estes não poderão ser alterados, sob pena de a decisão da Relação ficar a padecer de nulidade, nos termos do art.º 615.º, nº 1, al. d), 2ª parte. É dentro destes limites objetivos que o art.º 662.º atribui à Relação competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto, o mesmo é dizer, quanto ao modus operandi de tal alteração[5]. A este propósito refere Francisco Ferreira de Almeida, que «a Relação não pode exorbitar os poderes cognoscitivos delimitados e balizados pela alegação do recorrente, no exercício do seu poder de impugnação (art.º 640º). Há, assim, que observar o princípio dispositivo, ou seja, a iniciativa da parte interessada, devendo a atividade cognitiva cingir-se aos pontos de facto especificamente indicados, desde que mostrem cumpridos os requisitos formais constantes do art.º 639.º.»[6]. Segundo Rui Pinto, «as competências que se atribuem no art.º 662.º apenas se podem exercer dentro do objeto fixado pelo recorrente nas conclusões do recurso, nos termos dos art.ºs 635.º e 640.º. Em suma: a Relação apenas pode alterar a decisão sobre a matéria de facto se o recorrente a impugnar e na medida em que impugnou. Efetivamente, está na disponibilidade do legitimado (cf. artigo 631.º) recorrer ou não da decisão sobre a matéria de facto, segundo o princípio tantum devolutum quantum appelatum. Se o recorrente apenas impugnou matéria de direito, a Relação não pode alterar a decisão sobre a matéria de facto. Já se o recorrente impugnou (apenas ou também) a decisão sobre a matéria de facto deverá indicar os concretos pontos incorretamente julgados, os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa e indicar a decisão que deve ser proferida, conforme o artigo 640.º. O resultado dessa especificação operada pelo recorrente, constituirá o objeto da atividade recursória da Relação em sede de artigo 662.º. Se o recorrente impugnou certos pontos da matéria de facto, mas não impugnou outros pontos, estes não podem ser alterados, sob pena de nulidade nos termos do artigo 615.º n.º 1 al. d) segunda parte.»[7]. À luz de todo o enquadramento que antecede, de imediato se conclui que a apelante não cumpre, relativamente a qualquer um dos itens da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, os ónus constantes do art.º 640.º. Em sede de motivação do recurso, a apelante alega o seguinte: «IV – Contradição entre os Factos Provados e não Provados Ao analisarmos a decisão ora recorrida verificamos uma contradição entre os factos dados como não provados e provados, pois se por um lado o Tribunal A Quo, diz que não pode dar como provado que a Ré encontra-se reformada por invalidez com incapacidade permanente de 72% avaliada em 8 de Fevereiro de 2019. (ponto 11 dos factos provados), dá como não provado no ponto i dos factos não provados, que a Ré doente oncológica. A testemunha CA, que prestou o seu depoimento no dia 17 de outubro pelas 09h.44m.45s e terminou às 10h. 11m. 10s, quando questionada sobre a doença de sua mãe ao minuto 21.2, a mesma refere que: A partir do momento em que a mãe retirou o peito, porque tinha um tumor maligno, deixou de trabalhar no lar, por falta de mobilidade no braço, e passou a fazer as compras para o Lar mais o seu pai. No ponto O e P dos factos não provados, refere-se que: “o) A Ré ficou dependente do rendimento do Autor, ora cônjuge, funcionário público da Câmara Municipal de Lisboa, aposentado aos dias de hoje. p) O rendimento familiar para fazer face às despesas diárias, advinha da profissão do marido e da reforma de invalidez da Ré, embora, maioritariamente do Autor, atendendo à diferença significativa de valores.” Nos factos provados nomeadamente nos pontos 12 a 14, o tribunal A Quo refere que: “12 - A Ré aufere uma reforma de invalidez no valor de €273,39. 13 – A Ré despende mensalmente o montante de €21, 57 com despesas de medicamentos. 14 – A Ré despende mensalmente valores não concretamente apurados com despesas de água, luz, gás e comunicações.” Ora salvo o devido respeito e melhor opinião se a Ré aufere uma pensão de invalidez no montante de € 273,39, paga, luz, água, gás, comunicações e alimentação, necessita sempre do rendimento do Autor, para conseguir fazer face ás suas despesas. Da prova produzida em sede de julgamento, facilmente se comprova tal. A testemunha AN, que prestou depoimento no dia 17 de outubro de 2022, com início ás 10h.46m.07s e terminus 10h.55m.54s, disse quando interrogada para tal que: Minuto 3.40 – que a Ré pediu um apoio á segurança social devido +a sua doença, porque não tinha o rendimento do seu marido.» Isto, como é bom de ver, não configura sequer impugnação da decisão sobre a matéria de facto! Ainda que configurasse, não deixaria de ser evidente o incumprimento, pela apelante, dos ónus impostos pelo art.º 640.º. Além de que, inexiste a apontada contradição. Nos termos do art.º 662.º, n.º 2, al. c), a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto. Existe contradição insanável da fundamentação de facto quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou entre a fundamentação probatória da matéria de facto. Conforme ensinava Alberto dos Reis, «as respostas são contraditórias quando têm um conteúdo logicamente incompatível, isto é, quando não podem subsistir ambas utilmente.»[8]. A contradição, como lapidarmente se explica no Ac. da R.E. de 06.10.1988, B.M.J. 380.º, 559, «implica a existência de colisão entre a matéria de facto constante de uma das respostas e a matéria de facto constante de outras das respostas, ou então com a factualidade provada, no seu conjunto, de tal modo que uma seja contraria da outra.» No caso concreto, não existe incongruência ou oposição insanável entre: - os pontos de facto considerados provados, descritos em 3.1.1.12 a 14; e, - os pontos de facto considerados não provados, descritos em 3.1.2. o) e p), de tal modo que inviabilize o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso, ou seja, para apreciação e decisão da questão atinente aos pretendidos alimentos por parte da ré/apelante[9]. Basta atentar que na sentença recorrida está também provado: - que «A Ré habitualmente toma conta de crianças, auferindo valor não concretamente apurado por cada uma delas.» - 3.1.1.15; e, - que «A renda da casa habitada pela Ré é paga pelo Autor.» - 3.1.1.16. Mais alega, no entanto, a apelante, no corpo das alegações, aqui sim, parecendo ser, efetivamente, sua intenção impugnar a decisão sobre a matéria de facto: «VI – ERRO NA APRECIAÇÂO DA PROVA O tribunal A quo, não apreciou a prova produzida em sede de julgamento, de acordo com os depoimentos que foram prestados pelas testemunhas. Vejamos, A testemunha CG, foi bem explicita, quando aos factos relevantes para a decisão de atribuição da pensão de alimentos pelo A á Ré. Ao minuto 13.30 do seu depoimento, e quando foi questionada sobre se a sua mãe trabalhava, a mesma referiu que tomou conta de meninos, desconhecendo o quanto a mesma recebia, mas que há cerca de 5 meses, que não tem menino. Ao minuto 23.54 - Refere que a mãe lhe pedia para lhe pagar a água, luz, mas que mais tarde lhe pagava. A última despesa que pagou foi da NOS, no valor que pensa ser de 70€, porque não tinha dinheiro para pagar. Perante tal depoimento, não pode ser dado como provado o ponto 15, pois não existiu prova bastante de que a mesma auferia um rendimento de €125,00. Não pode ser provado que a Ré auferia 125€ por cada criança, só pelo depoimento da filha TA. Tendo sido esta que falou nesse valor, mas não indicou quem era as crianças, pois se se trata de crianças do bairro onde vivem e a testemunha mora em frente á casa da Ré, era fácil identificar os menores e seus progenitores, não o fazendo por saber que não corresponde á verdade, A testemunha AN, que prestou depoimento no dia 17 de outubro de 2022, com início às 10h.46m.07s e terminus 10h.55m.54s, referiu ao minuto 03.07, que teve conhecimento que a mesma foi ama da Segurança Social, mas há muito tempo. Ora, perante tais depoimentos, ao fazermos uma análise criteriosa, apuramos que a Ré tem necessidade que o A, lhe preste alimentos, para fazer face ás despesas do dia a dia.» Salta à evidência, à luz dos considerandos anteriormente tecidos, o incumprimento, pela apelante, dos ónus previstos no art. 640.º. Isto sendo certo que em momento algum a sentença recorrida considerou provado que a ré «(...) auferia um rendimento de €125,00», pois o que resultou provado sob o ponto 15. da matéria de facto provada é que «A Ré habitualmente toma conta de crianças, auferindo valor não concretamente apurado por cada uma delas.» Termos em que, por falta de cumprimento, pela apelante, dos ónus previstos no art.º 640.º, se rejeita, in totum, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto. * 3.2.2 – Enquadramento jurídico: 3.2.2.1 - Notas prévias: O modo como foi decidida a questão da admissibilidade da reconvenção: Foi pela decisão avulsa datada de 7 de fevereiro de 2022, acima transcrita, que a senhora juíza a quo se pronunciou sobre admissibilidade da reconvenção. Independentemente do acerto, ou não, do momento processual em que se pronunciou sobre a admissibilidade da reconvenção[10], a senhora juíza a quo fê-lo nos termos que acima se deixaram transcritos. Quanto ao pedido reconvencional de alimentos, decidiu assim: «O artigo 555º, n.º 2 do Código de Processo Civil admite expressamente a cumulação do pedido de pensão de alimentos em sede de acção de divórcio, além dos casos previstos de reconvenção no artigo 266º, n.º 2 do Código de Processo Civil. O pedido de pensão de alimentos formulado pela Ré é expressamente admitido pela norma legal citada, sendo portanto de admitir.» Sucede que o pedido de alimentos formulado pela ré não é expressamente admitido pelo disposto no art.º 555.º, n.º 2, segundo o qual, «nos processos de divórcio ou de separação sem consentimento do outro cônjuge é admissível a dedução de pedido tendente à fixação do direito a alimentos.» Em anotação a este preceito, esclarecem Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Sousa, que «na contestação, o réu, além da defesa por exceção ou por impugnação, pode deduzir pedido reconvencional como corolário da alegação de factos que, na sua perspetiva, também integrem algum dos fundamentos do divórcio sem consentimento (art.º 266.º, n.º 2, al. d)). Acresce ainda a possibilidade de ser pedida pelo R., no caso previsto no n.º 2 do art. 1792 do CC, indemnização pelos danos não patrimoniais e de ser cumulado com a pretensão reconvencional do divórcio o pedido de fixação de alimentos, nos termos do n.º 2 do art.º 555.º, embora com as limitações substantivas decorrentes dos art.ºs 2016.º e 2016.º-A do CC. Não é de excluir a possibilidade de o réu, mesmo que não se defenda e mesmo que não peticione o divórcio em reconvenção, deduza pedido reconvencional de alimentos.»[11]. Em termos semelhantes se pronunciam Lebre de Freitas / Isabel Alexandre: «Importa ainda referir que, permitindo a lei ao demandante cumular o pedido de decretamento do divórcio com o da condenação do réu no pagamento de alimentos, igual possibilidade de cumulação é de admitir ao demandado, quando este pretenda reconvir. E, uma vez que o legislador decidiu afastar os obstáculos legais a esta cumulação, parece que também será de admitir que, em ação de divórcio ou separação que o réu não conteste, ou em que apenas se defenda da pretensão formulada (não pedindo, também ele, o divórcio), o réu possa, em sede reconvencional, pedir a condenação do autor no pagamento de alimentos (...). As mesmas razões de economia processual que justificam o preceito do n.º 2 são também invocáveis para a situação que acaba de se descrever.»[12]. Não pode, assim, e em rigor, afirmar-se que o pedido de alimentos formulado pela ré é expressamente admitido pelo disposto no art.º 555.º, n.º 2. Relativamente ao pedido reconvencional de atribuição da casa de morada de família, a senhora juíza a quo decidiu assim: «Quanto ao pedido de atribuição de casa de morada de família, nos termos do artigo 990º, n.º 4 do Código de Processo Civil, o mesmo deverá ser deduzido por apenso à acção de divórcio, não sendo admissível a sua dedução como pedido reconvencional, termos em que não se admite, nesta parte, a reconvenção apresentada.» A reconvenção está, como é sabido, sujeita, na sua admissibilidade, a requisitos: uns de natureza substantiva e outros de natureza processual – art.ºs 93.º e 266.º, nºs 2 e 3. Os requisitos processuais são aqueles que respeitam: - à identidade da competência em razão da matéria, da nacionalidade e da hierarquia (art.º 93.º); - à identidade de forma do processo, salvo se a diferença resultar apenas do diferente valor dos pedidos (art.º 266., nº 3); e - à dedução descriminada do pedido e seus fundamentos (583.º, n.º 1). Os requisitos substantivos exprimem a relação de conexão substantiva que deve existir entre o pedido principal e o reconvencional, como se vê do art.º 266.º, nº 2 alíneas a) a d). A dedução de reconvenção sem que se mostre verificado algum daqueles requisitos, configura uma exceção dilatória atípica ou inominada, que determina a absolvição do autor da instância reconvencional. Conforme referem Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Sousa: «a dedução de reconvenção sem verificação de alguns dos pressupostos materiais ou formais constitui uma exceção dilatória (atípica) determinativa da absolvição da instância reconvencional (art.º 576.º, n.º 2).»[13]. Assim, corretamente, deveria a senhora juíza a quo ter julgado verificada a referida exceção dilatória inominada quanto ao pedido de atribuição da casa de morada de família e, consequente, absolvido, nessa parte, o autor da instância reconvencional, nos termos dos arts. 278.º, n.º 1, al. e) e 576.º, n.º 2. O art.º 266º, a respeito dos requisitos formais e substanciais da reconvenção, prescreve a sua «inadmissibilidade» que não é mais do que uma forma de extinção da instância reconvencional equiparada à absolvição da instância[14]. Considera-se, por isso, que o segmento em que se afirma «termos em que não se admite, nesta parte, a reconvenção apresentada», é equivalente à absolvição parcial do autor da instância reconvencional quanto ao pedido de atribuição da casa de morada de família[15]. Tratando-se da extinção parcial da instância reconvencional quanto àquele concreto pedido, haveria que assacar a correspondente responsabilidade tributária à autora, e isso a senhora juíza a quo não fez. O valor da causa: Foi no despacho saneador, depois de anteriormente, em decisão avulsa, se ter pronunciado sobre a admissibilidade da reconvenção, admitindo-a quanto ao pedido de prestação de alimentos formulado pela ré contra o autor, que a senhora juíza a quo fixou o valor da causa: €30.000,01. Nos termos do art.º 306.º, n.º 2, «o valor da causa é fixado no despacho saneador, salvo nos processos a que se refere o n.º 4 do artigo 299.º e naqueles em que não haja lugar a despacho saneador, sendo então fixado na sentença.» Tendo a senhora juíza a quo fixado o valor da causa no despacho saneador, e não sendo o presente um daqueles processos a que se refere o n.º 4 do art.º 299.º, não se compreende a razão pela qual voltou, na parte final do dispositivo da sentença, a fixar o valor da causa. Acontece que o valor da causa nunca poderia ser o fixado pela senhora juíza a quo. Dispõe o art.º 299.º: «1 - Na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a ação é proposta, exceto quando haja reconvenção ou intervenção principal. 2 - O valor do pedido formulado pelo réu ou pelo interveniente só é somado ao valor do pedido formulado pelo autor quando os pedidos sejam distintos, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 530.º. 3 - O aumento referido no número anterior só produz efeitos quanto aos atos e termos posteriores à reconvenção ou intervenção. 4. (...).» A dedução, pelo réu de pedidos reconvencionais contra o autor, reflete-se, naturalmente, na utilidade económica da ação, que, por essa via, pode ser aumentado. Compreende-se, por isso, que a lei processual civil e, correspondentemente, a lei das custas, mandem somar o valor do pedido reconvencional com o pedido formulado na petição inicial, embora só quando aquele seja distinto deste, dado que só neste caso a reconvenção faz aumentar a utilidade económica da ação e, correspondentemente, o seu valor (art.ºs 299.º, n.º 2 do CPC, e 11.º, n.º 1 do RCP). É, manifestamente, o caso presente! Até há relativamente pouco tempo era entendimento jurisprudencial praticamente pacífico que, deduzida reconvenção, o valor do pedido reconvencional deduzido pelo réu, desde que distinto, nos termos do art.º 530.º, n.º 3, do formulado pelo autor, acrescentava imediatamente ao indicado pelo autor para a ação. Por outras palavras, a partir do momento da apresentação da contestação com dedução de pedido reconvencional, sendo este distinto do formulado pelo autor, o valor daquele era imediato adicionado ao valor deste. O valor da causa seria, assim, o correspondente ao somatório dos dois pedidos (o formulado pelo autor na petição inicial e o formulado pelo réu em sede reconvencional), ainda que a reconvenção viesse a ser considerada inadmissível, o que tem como pressuposto a anterioridade da decisão sobre o valor da causa em relação à decisão sobre a admissibilidade da reconvenção. Seguindo-se este entendimento, no caso concreto, o valor da causa seria o correspondente ao somatório do valor: - do pedido formulado na ação: e, dos pedidos formulados cumuladamente na reconvenção (art.º 297.º, n.º 2). As ações de divórcio consideram-se sempre de valor equivalente à alçada da Relação e mais €0,01, ou seja, €30.000,01 (art.º 303.º, n.º 1); As ações de atribuição da casa de morada de família divórcio consideram-se sempre de valor equivalente à alçada da Relação e mais €0,01, ou seja, €30.000,01 (art.º 303.º, n.º 2); Nas ações de alimentos definitivos o valor é o quíntuplo da anuidade correspondente ao pedido (art.º 298.º, n.º 3). Uma vez que a ré pede, em sede reconvencional, a condenação do autor a pagar-lhe, a título de alimentos definitivos, uma prestação mensal de €150,00 (cento e cinquenta euros), encontramos o valor de €9.000,00 (€150,00 x 12 x 5 = €9.000,00). O valor da causa seria, assim, de €69.000,02 (€30.000,01 + €30.000,01 + €9.000,00 = €69.000,02), e não de €30.000,01. Sucede que esse automatismo começou recentemente a ser posto em causa, tanto por alguma doutrina, como por alguma jurisprudência. A este propósito afirma Miguel Teixeira de Sousa que «(a) O momento a partir do qual se verifica a alteração do valor da causa deve ser apenas aquele em que a modificação do objecto se considera processualmente admitida. Antes da decisão sobre a admissibilidade da modificação do objecto não há nenhuma justificação para modificar o valor do processo (id. GPS I (2022), n.º 4 s.). (b) O disposto no n.º 3 impõe que a modificação do valor só opera para o futuro, pelo que não tem sentido construir este futuro sem se saber se estão adquiridas as bases para a sua construção. Em termos mais concretos: o art.º 296.º, n.º 1, impõe que o valor da causa corresponda à sua utilidade económica. Ora, a utilidade económica de uma acção não se altera se a ocorrência que a pode determinar afinal não se verificar por inadmissibilidade da alteração do seu objecto. (...) (a) A reconvenção tem um valor próprio (art.º 583.º, n.º 2); o mesmo sucede quanto ao incidente de intervenção de terceiros (art.º 304.º, n.º 1). Assim, enquanto se discutir a admissibilidade da reconvenção ou da intervenção do terceiro não pode haver nenhuma alteração do valor da causa. (b) Suponha-se, p. ex., que a acção de processo comum tem ao valor de €30.000 e que, por isso, está pendente, num juízo local cível (art.º 130.º, n.º 1, LOSJ); admita-se que é formulado um pedido reconvencional com um valor de €25.000; a acção não deve ser imediatamente remetida para o juízo central cível (art.º 117.º, n.º 3, LOSJ) com o argumento que o valor da causa passou a ser de €55.000 e, por isso, da competência daquele juízo central (art.º 117.º, n.º 1, LOSJ). Aliás, só esta solução obsta a que a causa permaneça num juízo central cível que considerou inadmissível o pedido reconvencional que é fundamento da sua competência em função do valor. (...) (a) A solução é imposta pela regra da Kompetenz-Kompetenz, ou seja, pela regra segundo a qual é ao tribunal da causa – e não a qualquer outro tribunal – que incumbe controlar a sua competência. (b) A regra da Kompetenz-Kompetenz impõe que tem de caber ao juízo local cível controlar a sua competência, pelo que é a esse tribunal que incumbe verificar se deixou de ser competente em consequência da dedução do pedido reconvencional. P. ex.: suponha-se que, numa acção pendente num juízo local cível, o réu deduz um pedido reconvencional e que, através da soma do valor deste pedido ao valor do pedido do autor (n.ºs 1 e 2), esse tribunal deixa de ser competente em função do valor para apreciar a acção (art.ºs 130.º, n.º 1, e 117.º, n.º 1, al. a), LOSJ). (c) Qualquer outra solução – nomeadamente, a remessa do processo para o juízo central cível antes do controlo da admissibilidade da reconvenção – viola a regra da Kompetenz-Kompetenz, dado que é ao juízo local civil que cabe verificar se, depois da dedução do pedido reconvencional, continua a ser competente para apreciar a causa, e não ao juízo central cível que incumbe controlar se aquele juízo local deixou de ser competente para essa apreciação. (...) (a) Não se ignora que as soluções que são dadas quanto à relevância da ampliação do pedido para o valor da causa e quanto ao momento em que a modificação do objecto deve relevar para a aferição daquele valor estão muito longe do que constitui a prática jurisprudencial comum. No entanto, sempre se dirá que aquelas soluções são as únicas que são coerentes com o critério da utilidade económica que consta do →art.º 296.º, n.º 1, e que obstam quer a que a causa permaneça num tribunal que deixou de ter competência em função do valor para a sua apreciação, quer a que a acção seja remetida para um tribunal que, em função da inadmissibilidade da modificação do objecto, afinal não é o competente em função do valor para a apreciar. Quer dizer: as soluções habitualmente seguidas na jurisprudência implicam entorses sistémicos que não podem ser ignorados e que devem ser evitados. (b) A relevância que o →art.º 296.º, n.º 2, atribui ao valor da causa para efeitos de competência do tribunal, de forma do processo e de admissibilidade do recurso ordinário mostra a relação desse valor com as garantias do processo equitativo. Em concreto: de acordo com um critério de proporcionalidade, essas garantias têm de ser reforçadas no que respeita à competência do tribunal, à forma de processo e à admissibilidade de recurso nas causas de valor mais elevado. Assim, desconsiderar a ampliação do objecto da causa para a aferição do seu valor implica desconsiderar as garantias do processo equitativo em função do seu valor.»[16]. Na jurisprudência pode ler-se o Ac. da R.L. de 14.07.2020, Proc. n.º 23074/18.3T8PRT-A.L1-6 (Eduardo Petersen), in www.dgsi.pt: «A admissão dum pedido reconvencional não é automática, depende de despacho onde se assegura que estão preenchidos os requisitos previstos no artigo 266º do CPC. Embora estejamos, no despacho de admissibilidade da reconvenção, numa fase preliminar, de apuramento duma excepção à estabilidade da instância – artigo 260º do CPC – repare-se que o resultado da não admissão do pedido reconvencional tem o mesmo efeito que o conhecimento de uma excepção dilatória: - a não admissão da reconvenção impede o tribunal de conhecer do mérito do pedido reconvencional e porque não conhece, o pedido reconvencional não é afectado em si, mas apenas no seu conhecimento, ou seja, fica quem o deduz livre de instaurar acção autónoma para que ele seja posteriormente conhecido. É muito comum ver-se a fixação do valor da causa em despacho prévio imediatamente anterior ao despacho saneador. Foi o caso também dos autos. E então pergunta-se, no caso de ter sido deduzido pedido reconvencional, a fixação do valor independe da admissibilidade da reconvenção? Afirmativamente responderam os acórdãos da Relação do Porto de 29.3.2007 e de 8.2.2001, citando aliás como doutrina “Lopes Cardoso, in “Manual dos Incidentes da Instância”, ed. de 1992, págs. 35 a 36 e Salvador da Costa, in “Os Incidentes da Instância”, 3.ª ed., págs. 34 a 35”. Em sentido contrário e mais actualmente, aliás referindo-se expressamente a esses acórdãos, o acórdão da Relação de Guimarães de 8.10.2015, em cujo ponto I do respectivo sumário se lê: “Para a determinação do valor da causa, nos termos do art.º 299 do C. P. Civil, a soma do valor dos pedidos principal e reconvencional, não é automática. Essa soma de valores só acontecia na redacção do Código de Processo Civil vigente até ao Dec. Lei n.º 34/2008, que entrou em vigor em 20/04/2009 (o então art. 308 n.ºs 1 e 2 do C. P. Civil), e mesmo aí se verificados os respectivos pressupostos”. O caso sobre que este acórdão se debruça é exactamente o inverso do presente: ali, o tribunal recorrido, não admitindo a reconvenção, fixou o valor da acção na correspondência do pedido do autor, ignorando a indicação de valor do pedido reconvencional, não o somando portanto ao pedido do autor. E a Relação de Guimarães entendeu não censurar essa fixação do seu tribunal recorrido. Independentemente de estar em causa, nesse processo, a discussão sobre a identidade dos pedidos (segunda parte do nº 2 do artigo 299º do CPC), o que o Tribunal da Relação de Guimarães afirma é que a soma não é automática, desde logo porque a admissibilidade da reconvenção depende de despacho. Quando pensamos no objectivo e relevância de atribuição e fixação de um valor à causa, e quando pensamos no momento e competência de fixação do valor da causa, resulta-nos que um pensamento de mera soma operando automaticamente não se acomoda à lógica desse objectivo e relevância: - qual é a utilidade processual que a utilidade económica reclama? A do alargamento do regime de recursos ou a da intervenção de um tribunal mais especializado a um caso que o legislador reputa não necessitar disso e portanto que o legislador entende não autorizar tenha acesso? Repare-se, se a acção, pelo valor do pedido inicial, não admite recurso para o STJ, porque é que, para que é que, vai beneficiar dum recurso para o STJ pelo simples facto do réu ter deduzido uma reconvenção que não é admissível, face ao artigo 266º do CPC, apenas porque o valor do pedido reconvencional, na soma ao pedido do autor, vai exceder a alçada da Relação? E por outro lado, se o tribunal não vai despender mais actividade do que a da simples rejeição do pedido reconvencional face ao artigo 266º do CPC, qual é a razão para que a tributação deva ser a correspondente à duma acção em que se some o valor do pedido inicial com o do pedido reconvencional? Entendemos por isso que, ademais porque o tribunal deve fixar o valor da causa no momento em que profere saneador, competindo-lhe aqui um juízo também sobre a admissibilidade da reconvenção, quando o tribunal sabe que não vai admitir o pedido reconvencional, a fixação do valor da causa deve atender a este conhecimento, para permitir que a lógica de atribuição de valor à causa se mantenha conforme à correspondência pensada pelo legislador entre a utilidade processual e a utilidade económica que as partes fazem valer em juízo.» Em suma, seguindo-se este entendimento, e conforme consta do sumário do citado acórdão «estando em causa a admissibilidade da reconvenção, o juiz, na ocasião do despacho saneador em que deve fixar o valor da causa e simultaneamente decidir da admissibilidade da reconvenção, deverá fixar o primeiro em conformidade com a decisão que produzir quanto à segunda, e não apenas de modo automático, por simples soma do valor do pedido do autor com o do pedido reconvencional», só nessa medida se conseguindo fazer corresponder à utilidade económica dos pedidos a utilidade processual que o legislador entendeu ser a adequada. Seguindo este entendimento, no sentido de que, deduzido pedido reconvencional, mesmo sendo este distinto do formulado pelo autor, o valor daquele não é imediatamente adicionado ao valor deste, então, também não poderia a senhora juíza a quo ter fixado em €30.000,01, mas em €39.000,01, o valor da causa. A estrutura da sentença: Foi depois da fundamentação de facto, ou seja, depois de fixar a factualidade provada e não provada, e de motivar a decisão sobre a matéria de facto, e imediatamente antes da fundamentação de direito, que a senhora juíza a quo enunciou as questões a decidir. Não é a forma correta de estruturação de uma sentença. Conforme lapidarmente escreve Tomé Gomes: «A estrutura da sentença integra, nos termos definidos nos artigos 607.º, n.ºs 2 e 3, e 608.º do CPC, os seguintes segmentos: a) - O relatório a identificar as partes e o objeto do litígio, bem como a enunciar as questões a resolver; b) - O saneamento, se for caso disso, em sede de conhecimento de exceções dilatórias ou nulidades processuais; c) - A fundamentação de facto e de direito, que compreende: (i) - em primeira linha, a enunciação dos factos provados e dos factos não provados; (ii) - seguidamente, a motivação do julgamento de facto mediante a análise crítica das provas e a especificação dos fatores que foram decisivos para a convicção sobre cada facto, com a indicação dos concretos meios de prova convocados para tal efeito; (iii) - e a rematar com a fundamentação de direito, indicando, interpretando e aplicando as normas jurídicas correspondentes; d) - A decisão ou dispositivo, contendo o juízo de procedência ou de improcedência da ação e da reconvenção, quando deduzida, bem como os consequentes comandos e efeitos a decretar, em caso de procedência, e ainda a condenação nas custas que sejam devidas; se for julgada procedente alguma exceção dilatória, a decisão consistirá no juízo de absolvição do réu, ou eventualmente do reconvindo, da respetiva instância.» É, portanto, ainda em sede de relatório, e não depois da fundamentação de facto, que compreende: - em primeira linha, a enunciação dos factos provados e não provados; - em seguida, a motivação do julgamento de facto mediante a análise crítica das provas e a especificação dos fatores que foram decisivos para a convicção sobre cada facto, com a indicação dos concretos meios de prova convocados para tal efeito, que o juiz deve identificar as partes e o objeto do litígio, bem como enunciar as questões a resolver. 3.2.2.2 – O direito da ré a receber alimentos do autor: A obrigação de prestação de alimentos encontra-se regulada nos art.ºs 2003.º e segs., CC, dispondo o art.º 2009.º, n.º 1, al. a), que «estão vinculados à prestação de alimentos (...) ex-cônjuge.». Trata-se de uma obrigação que emerge após a dissolução do casamento por divórcio, não obstante a cessação das relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges (art.º 1688.º). Uma tal obrigação alimentar está sujeita às regras especiais constantes dos art.ºs 2015.º e segs., CC. Nos termos do art.º 2003.º, n.º 1, CC, entende-se por alimentos «tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário.» Este preceito fornece-nos: - por um lado, os elementos (sustento, habitação e vestuário) que devem ser considerados para definir o objeto da prestação de alimentos; - por outro lado, o critério («tudo o que é indispensável») que permitirá, em conjugação com o art.º 2004.º, delimitar a medida da prestação alimentícia. No que respeita ao primeiro aspeto, importa considerar o que se deve entender compreendido no tríptico «sustento, habitação e vestuário». Para esse efeito, devem ser contabilizadas as despesas relativas à satisfação das necessidades respeitantes à alimentação (comida e bebida), à residência (utilização de um espaço para viver, com a disponibilização dos recursos básicos para a vida quotidiana, nomeadamente, água e eletricidade), e à indumentária (roupa e calçado), mas também as relacionadas com a saúde (consultas médicas, fármacos e tratamentos prescritos) ou com a higiene do alimentando e da casa. No que tange ao segundo aspeto, resulta da lei que o que deve ser coberto pela prestação alimentar é o que se revelar imprescindível à satisfação das referidas necessidades. Esta ideia de «indispensabilidade» releva para a delimitação da quantidade e da qualidade dos recursos necessários para cobrir as necessidades que devem ser consideradas (p. ex., quantidade e qualidade de alimentos, da roupa ou do calçado). Essa mesma ideia poderá ter importância para a operação de identificação das despesas a considerar à luz do n.º 1, conduzindo à exclusão de gastos que, embora possam contribuir para uma vida mais prazenteira, e não traduzam um padrão de vida luxuoso, não satisfazem necessidades essenciais. Da articulação do n.º 1 do art.º 2003.º com o art.º 2004.º, resulta clara a função assistencial (alimentar) que a obrigação legal alimentícia é chamada a cumprir: dentro dos limites traçados pelo art.º 2004.º, o que se pretende é proporcionar ao alimentado a possibilidade de subsistir condignamente[17]. No mesmo sentido aponta Maria João Romão Guerreiro Vaz Tomé, para quem «o fundamento último, ético e jurídico, da obrigação de alimentos entre ex-cônjuges encontra-se num princípio de solidariedade pós-conjugal. Não se pode, com efeito, tratar os ex- -cônjuges como se nunca houvessem sido casados. É que o divórcio não pode apagar o passado nem obstar ao desenvolvimento actual de determinadas consequências do matrimónio. Trata-se como que de uma eficácia póstuma do vínculo matrimonial, de um efeito ultra-activo do casamento.»[18]. Segundo a mesma Autora, «a natureza alimentar da obrigação em apreço é clara. Não sendo determinado pelos danos sofridos pelo alimentando, o montante da prestação alimentar é fundamentalmente fixado atendendo às necessidades do credor e aos recursos do devedor, pois que os alimentos devem ser prestados na proporção da necessidade do alimentando e das condições económicas do alimentante (art.º 2004.º do Cód. Civil). Acresce que, de acordo com o art.º 2008.º do Cód. Civil, o direito a alimentos é indisponível e impenhorável, pois está em causa a aplicação dos alimentos às necessidades do alimentando. Por isso mesmo, é também um direito irrenunciável e incompensável. O carácter essencialmente alimentar deste direito é reforçado pela possibilidade de alteração dos alimentos fixados nos termos do art.º 2012.º do Cód. Civil. Leve-se ainda em linha de conta que o direito a alimentos cessa se terminar a necessidade do seu titular, se o obrigado não tiver recursos e, também, com a morte do credor ou do devedor. Elimina-se a apreciação da culpa na ruptura da sociedade conjugal, porque se quer reduzir a questão ao seu núcleo essencial: a assistência de quem precisa por quem tem possibilidades. Prevê-se, todavia, uma cláusula de equidade negativa (“razões manifestas de equidade”), na medida em que, em casos excepcionais, o direito de alimentos pode ser negado ao ex-cônjuge necessitado por ser chocante onerar o outro com a obrigação correspondente (art.º 2016.º, n.º 3, do Cód. Civil). A lei não define “razões manifestas de equidade”, tendo o legislador recorrido à técnica legislativa da cláusula geral e dos conceitos indeterminados. Trata-se da necessidade de permeabilidade e de adaptação da ordem jurídica aos seus fundamentos ético-sociais.»[19]. Dispõe o art.º 2004.º do C.C.: «1. Os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los. 2. Na fixação dos alimentos atender-se-á, outrossim, à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência.» No n.º 1 estão previstos aqueles que se podem considerar os pilares da obrigação de alimentos: a) a necessidade de alimentos por parte do credor; e, b) a possibilidade de prestação de alimentos por parte do devedor. Tendo em conta a natureza da obrigação em causa, tal como acaba de ficar caracterizada, é necessária a verificação cumulativa destes dois elementos para que nasça, ou se mantenha, por força da lei, a obrigação de um ex-cônjuge prestar alimentos ao outro. São, pois, elementos constitutivos dessa obrigação de prestação de alimentos. A consideração de ambos permite também aferir, à luz de uma ideia de proporcionalidade, a medida em que os alimentos devem ser prestados. Em suma, pois, a necessidade de alimentos por parte do respetivo credor, a ausência ou diminuição da capacidade de prover à sua subsistência e a possibilidade de prestar por parte do correspondente devedor constituem elementos constitutivos dessa obrigação legal de alimentos[20]. Tal como refere Maria João Romão Guerreiro Vaz Tomé, «a determinação do fundamento – princípio da solidariedade pós-conjugal – e da natureza jurídica – alimentar – da obrigação de alimentos entre divorciados afigura-se fundamental para implementar o conceito de necessidade. Este conceito desempenha um papel absolutamente essencial em matéria de alimentos, pois que estes são devidos apenas a quem se encontre em necessidade. Trata-se de estabelecer as circunstâncias que o legislador considerou como de necessidade enquanto pressuposto da obrigação de alimentos e enquanto referente para a quantificação da mesma obrigação. O princípio de solidariedade pós-conjugal permite atender às necessidades de uma vida autónoma e digna, e não apenas às necessidades básicas de sobrevivência ou ao mínimo vital. A adopção do sistema de divórcio pura constatação da ruptura do casamento conduziu ao acolhimento da necessidade como pressuposto exclusivo da obrigação de alimentos. A relação de consequencialidade entre a necessidade e o direito a alimentos reveste-se de carácter exclusivo no sentido de que para a atribuição deste direito como que nenhuma outra razão releva. Como que importa agora apenas o carácter objectivo da necessidade. O ex-cônjuge necessitado tem direito a alimentos qualquer que seja a causa que produziu o seu estado de necessidade, desde que tal necessidade não seja susceptível de ser satisfeita mediante um empenhamento diligente. Encontra-se em necessidade quem não consegue satisfazer adequadamente as necessidades de uma vida autónoma e digna, quer com o seu património, quer com a sua força de trabalho. Se a necessidade do alimentando for susceptível de cessar com o seu trabalho (de acordo com a as suas possibilidades físicas e intelectuais, o seu estado de saúde, etc.), com a abstenção da prática do jogo, da prodigalidade ou de outros vícios e condutas impeditivas do desenvolvimento de uma actividade profissional, não deve então ter direito a alimentos, pois que inexiste uma verdadeira e própria necessidade. Trata-se aqui de uma necessidade voluntariamente criada, independentemente de a conduta do credor criar directa ou tão só indirectamente essa necessidade. Deve também atender-se aos bens do necessitado, não apenas aos rendimentos produzidos pelos mesmos, assim como à possibilidade de obter dinheiro a crédito, caso lhe seja possível restitui-lo num período de tempo razoável. No que respeita a bens em princípio improdutivos, há que levar em linha de conta a possibilidade que o alimentando tem ou não de realizar o seu valor.»[21]. A Lei n.º 61/2008, de 31.10, introduziu significativas modificações no regime jurídico da obrigação de alimentos entre ex-cônjuges, passando a estabelecer expressamente o princípio da autossubsistência ou da autossuficiência de cada um deles no período subsequente ao divórcio. É isso que inequivocamente decorre do art.º 2016.º, n.º 1, segundo o qual «cada cônjuge deve prover à sua subsistência, depois do divórcio.» Como salienta Rute Teixeira Pedro, «tratando-se do afloramento de uma ideia que subjaz ao regime geral previsto no art.º 2004.º, n.º 2, tal afirmação no art.º 2016.º torna clara a função assistencial que a obrigação de alimentos entre ex-cônjuges é chamado a desempenhar e apenas em casos de necessidade insustentável de ser resolvida autonomamente pelo sujeito carecido. Em linha com a nova conceção de casamento, a solidariedade pós-conjugal é limitada à concretização de um objetivo puramente alimentar, o que se reflete também na regra plasmada no art.º 2016.º-A, n.º 3, quanto à medida dos alimentos devidos.»[22]. Por sua vez, Maria João Romão Guerreiro Vaz Tomé refere que o legislador consagrou claramente no art.º 2006.º, n.º 1, «o dever de cada um dos ex-cônjuges prover à sua subsistência. Este princípio de auto-suficiência é uma consequência necessária da tese do clean break ou da concentração dos efeitos do divórcio. De resto, a sociedade hodierna tem como paradigma o indivíduo autónomo, independente e auto-suficiente. De acordo com a confiança depositada na igualdade (formal) de todos os cidadãos, pressupõe-se que essa autonomia está ao alcance de todos os indivíduos. Deste princípio de auto-suficiência parece decorrer, ainda que implicitamente, o carácter temporário da obrigação de alimentos. Visando os alimentos permitir a transição para a independência económica, o carácter temporário da obrigação em apreço surge com alguma clareza. O alimentando não verá as suas necessidades insatisfeitas e o alimentante não será responsável pelo seu futuro. A obrigação de alimentos subsiste pelo período de tempo suficientemente razoável para o alimentando se adaptar às suas novas circunstâncias de vida. Procura-se uma harmonização prática entre as necessidades do alimentando e as vinculações do alimentante, tendo-se também em vista que os efeitos negativos do divórcio se devem repercutir igualmente na esfera de cada um dos cônjuges. O carácter provisório da obrigação de alimentos parece ser implicado pela própria consagração do referido princípio da auto-suficiência, pela consideração da unidade e coerência jurídico-sistemáticas, pela compreensão da norma em função do seu contexto. Este parece ser o sentido que melhor satisfaz a concordância objectiva e congruência sistemático-prática das opções. (...) Prevaleceu (...) entre nós, a concepção reabilitadora ou do carácter temporário da obrigação de alimentos como efeito do divórcio, atendendo como que ao enfraquecimento do fundamento desta obrigação.»[23]. Temos, pois, como inequívoco, que «o princípio geral, em matéria de alimentos entre ex-cônjuges, após o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, que decorre da sequência dispositiva do art.º 2016.º do CC, é o do seu carácter excepcional, expressamente, limitado e de natureza subsidiária, com base na regra de que “cada cônjuge deve prover à sua subsistência” e de que “o direito a alimentos pode ser negado, por razões manifestas de equidade”»[24]. Ou seja, com a sequência dispositiva decorrente dos art.º 2016.º e 2016.º-A, CC, o legislador visou explicitar, de uma forma clara, que o direito a alimentos na sequência do divórcio só se constitui se o ex-cônjuge não tiver possibilidades de prover à sua subsistência. Consequentemente, verificada que esteja a qualidade de ex-cônjuge do demandante de alimentos, importa apurar da incapacidade do mesmo de prover à sua subsistência; só depois de se apurar de tal incapacidade é que se parte para a verificação dos demais requisitos de que o n.º 1 do art.º 2016.º-A, CC, faz depender o efetivo direito a alimentos, ou seja, a ponderação acerca das necessidades de quem os pretende e as possibilidade daquele que os deve prestar, sendo de considerar as várias circunstâncias ali enumeradas, com a finalidade de fixar o montante respetivo. É questão isenta de dúvidas que a prova da incapacidade de prover à subsistência, que está na origem do direito a alimentos entre divorciados impende, como facto constitutivo que é desse direito (art.º 342.º, n.º 1, CC), sobre aquele que deles pretende beneficiar[25]. Reportando-nos ao caso concreto, era sobre a ré/reconvinte, e ora apelante, que recaía o ónus de alegação e prova de factos concretos demostrativos daquela incapacidade de prover à sua subsistência. Ora, a ré/reconvinte, e ora apelante, não logrou demonstrar, designadamente, que por razões de idade ou de saúde está incapaz de prover à sua subsistência. Está provado que: a) «A Ré aufere uma reforma de invalidez no valor de €273,39»; b) «(...) despende mensalmente o montante de €21,57 com despesas de medicamentos»; c) «(...) despende mensalmente valores não concretamente apurados com despesas de água, luz, gás e comunicações»; d) «(...) habitualmente toma conta de crianças, auferindo valor não concretamente apurado por cada uma delas»; e) «(...) a renda da casa habitada pela Ré é paga pelo Autor.» Por outro lado, não se provou que: - «A Ré é doente oncológica»; - «A Ré foi diagnosticada com uma depressão e um esgotamento»; - «A Ré sempre trabalhou até ser diagnosticada com doença do foro oncológico e fazer a intervenção cirúrgica a que foi sujeita mais precisamente da mastectomia, ficando impedida de o fazer depois»; - «A Ré foi obrigada, por força das circunstâncias, a abandonar o seu local de trabalho»; - «A Ré tinha a seu cargo toda a gestão da vida doméstica»; - «A Ré ficou dependente do rendimento do Autor, ora cônjuge, funcionário público da Câmara Municipal de Lisboa, aposentado aos dias de hoje»; - «O Autor, recebe mensalmente uma reforma em valor próximo dos €1.000,00»; - «A incapacidade permanente de 72% da Ré impossibilita-a de ter uma ocupação profissional»; - «A Ré, para fazer face à carência económica, tem sobrevivido com ajuda das filhas maiores de ambos, que a auxiliam como e quando podem»; - «A Ré despende mensalmente de despesas de água o valor de cerca de €15,00, de luz o valor de cerca de €60,00, de gás o valor de cerca de €30,00 e de comunicações o valor de cerca de €30,00, num total de €156,70». É inequívoco que a ré/reconvinte, e ora apelante, não logrou fazer prova, como lhe competia, nos termos do já referido art.º 342.º, n.º 1, CC, desse facto essencial constitutivo do seu alegado direito a exigir alimentos do autor/reconvindo, ora apelado. Assim, não podia senão improceder o seu pedido reconvencional de atribuição de uma prestação alimentícia mensal a cargo do autor/reconvindo, e ora apelado. *** IV – DECISÃO: Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, em consequência do que confirmam a sentença recorrida. Custas do recurso, na vertente de custas de parte, a cargo da apelante – art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 7 e 663.º, n.º 2. Lisboa, 28 de março de 2023 José Capacete Carlos Oliveira Diogo Ravara _______________________________________________________ [1] A audiência prévia é, em regra, uma diligência obrigatória, não podendo ser dispensada com a singeleza do despacho que se transcreveu. [2] Recursos em Processo Civil, 7ª Ed., Almedina, 2022, pp. 200-201. [3] Recursos cit., pp. 201-202. [4] Recursos cit., p. 208. [5] Cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2018, pp. 324-325. [6] Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, 2015, p. 469. [7] Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Almedina, 2018, pp. 324-325. [8] Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV. p. 553. [9] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição, Almedina, 2022, p. 356. [10] Crê-se que o momento processual adequado para o efeito seria o despacho saneador. [11] Código de Processo Civil Anotado, Vol. II. 2.ª Edição, Almedina, 2022, p. 394 (o destacado a negrito é da nossa autoria). [12] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª Edição, Almedina, 2017, pp. 505-506 (o destacado a negrito é da nossa autoria). [13] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição, Almedina, 2022, p. 339. [14] Cfr. Ac. do S.T.J. de 30-03.2017, Proc. n.º 6617/07.5TBCSC.L1.S2 (Abrantes Geraldes), in www.dgsi.pt. [15] Cfr. neste sentido, o Ac. do S.T.J. de 11.07.2019, Proc. n.º 14561/16.9T8SNT-A.L1.S1, in www.dgsi.pt. [16] CPC on line, arts. 259.º a 361.º, Versão de 2022.12, pp. 71-72, acessível em https://drive.google.com/file/d/1EroOf6TjJk9bS0gLRTMoFY0x9tSLs6zC/view. [17] Cfr. Rute Teixeira Pedro, Código Civil Anotado, Vol. II (Coordenado por Ana Prata), Almedina, pp. 902-903. [18] Reflexões sobre a obrigação de alimentos entre ex-cônjuges, in Textos de Direito da Família, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 588, in file:///C:/Users/MJ01695.JUSTICA/Downloads/2018121364353779outfile.pdf. [19] Reflexões cit., pp. 588-589. [20] Cfr. Rute Teixeira Pedro, Código Civil cit., pp. 904-906. [21] Reflexões cit., pp. 595-598. [22] Código Civil cit., pp. 925-926. [23] Reflexões cit., pp. 599-601. [24] Cfr. Ac. do S.T.J. de 23.10.2012, Proc. nº 320/10.6TBTMR.C1.S1 (Hélder Roque), in www.dgsi.pt. [25] Cfr. Ac. da R.C. de 17.04.2012, Proc. nº 320/10.6TBTMR.C1 (Sílvia Pires), in www.dgsi.pt. |