Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
330/22.0PGALM.L1-3
Relator: ALFREDO COSTA
Descritores: OBJECTO DO RECURSO
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ERRO MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade do Relator)
– Objecto e método de cognição: delimita-se o conhecimento pelas conclusões do recurso (arts. 402.º-412.º CPP), identificando como temas: nulidade por condenação por ilícito distinto (art. 379.º, n.º 1, al. c)), regime do art. 358.º CPP, possibilidade de rectificação por lapso (art. 380.º CPP) e critérios de determinação das penas, incluindo a acessória do art. 69.º CP.
– Alteração de factos e qualificação jurídica: distingue-se alteração não substancial (art. 358.º CPP), que exige comunicação e tempo para defesa, de alteração substancial (art. 359.º CPP), insusceptível de valoração; releva-se o momento da “verificação em audiência” como pressuposto do art. 358.º e a diferença entre vício processual em julgamento e vício apenas da peça escrita.
– Erro material na sentença: analisa-se a divergência entre Relatório/Fundamentação/Dispositivo e a vontade real do julgador, qualificável como lapso manifesto rectificável (art. 380.º, n.º 1, al. b) CPP), e os limites dessa correcção quando a “rectificação” implicaria modificação essencial da decisão.
– Enquadramentos típicos em conflito: clarificam-se os elementos dos arts. 291.º e 292.º CP (condução perigosa; condução sob influência do álcool, crime de perigo), face a menções cruzadas no texto, e a inaplicabilidade do DL 2/98 quando existe habilitação; articula-se a pena acessória do art. 69.º CP com o juízo de perigosidade rodoviária.
– Medida da pena e substituição: aplicam-se os critérios dos arts. 40.º e 71.º CP (ilicitude, dolo, prevenção, antecedentes), ponderando a adequação de penas de substituição (p. ex., permanência na habitação) e obrigações terapêuticas, exigindo fundamentação coerente com a matéria de facto provada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

1. RELATÓRIO
1.1. Nestes autos, que correram termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Almada - JL Criminal - Juiz 2, em que é Arguido AA, com os restantes sinais dos autos, foi proferida sentença, que decidiu nos seguintes termos: (transcrição)
“(…)
Pelo exposto, decido julgar totalmente procedente por provada a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência:
- condeno o arguido pela prática em autoria material de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.°, n.º 2, do Decreto-lei n.º 2/98 de 3 de Janeiro, na pena de sete meses de prisão, cuja execução em regime de permanência na habitação, e durante esse período á obrigação de diligenciar pela marcação, no prazo máximo de um mês a contar do trânsito em julgado, de consulta de especialidade tendente ao tratamento à adição de consumo de álcool de que padece e de frequentar as consultas/tratamentos que lhe venham ser propostos pelo seu médico assistente e autoriza o arguido a ausentar-se da sua residência, onde será executada a pena, para trabalhar na CNEU, Centro de Neurofisiológico, Ld.ª, localizado na ..., às terças e quintas-feiras, no período das 9h às 13h00, devendo a DGRSP estimar o tempo de duração da viagem de ida e volta.
Condeno o arguido na proibição de condução de veículos a motor, de qualquer categoria, prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, pelo período de 14 meses.
Condeno ainda o arguido no pagamento das custas do processo, com taxa de justiça que se fixa em 2 Uc`s, nos termos do disposto nos artigos 8.º do R.CP. e 513 e 514.º ambos do C.P.P.
Para o efeito do cumprimento da pena acessória de inibição de conduzir fixada deve o arguido entregar a carta de condução de que é titular, no prazo de dez dias, após a obtenção da carta de condução, neste Tribunal, ou em qualquer posto policial, sob pena de não o fazendo incorrer na prática de um crime de desobediência.
Notifique, deposite e, após trânsito, remeta boletins.
(…)”
*
1.2. Não se conformando com esta decisão, dela interpôs recurso o Arguido, com as seguintes conclusões: (transcrição)
“(…)
1. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, nos termos da qual foi o Arguido, ora Recorrente, condenado pela prática, em autoria material, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, na pena de 7 (sete) meses de prisão, em regime de permanência na habitação e, durante esse período à obrigação de diligenciar pela marcação, no prazo máximo de um mês a contar do trânsito em julgado, de consulta de especialidade tendente ao tratamento à adicção de consumo de álcool de que padece e, de frequentar as consultas/tratamentos que lhe venham ser propostos pelo seu médico assistente, autorizando o Arguido a ausentar-se da sua residência, onde será executada a pena, para trabalhar na ..., sito na ..., às terças e quintas-feiras, no período das 09:00h às 13:00h, devendo a DGRSP estimar o tempo de duração da viagem de ida e volta.
2. Mais foi o ora Arguido condenado na proibição de condução de veículos a motor, de qualquer categoria, prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, pelo período de 14 meses.
3. Entende o ora Recorrente que a Sentença objecto de recurso, para além de enfermar de alguns erros notórios no julgamento da matéria de Direito, nomeadamente no que concerne à escolha e determinação da medida da pena que lhe foi aplicada e, que, por isso, deve ser substituída por outra mais favorável às suas pretensões, é nula, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 379.º do CPP.
4. O ora Recorrente foi acusado pela práctica dos factos constantes da acusação pública de fls. …, sendo-lhe imputada a práctica, em autoria material, de um crime de condução perigosa, previsto e punido pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea a) e artigo 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.
5. No entanto, o ora Recorrente, foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, na pena de 7 (sete) meses de prisão, em regime de permanência na habitação e, durante esse período à obrigação de diligenciar pela marcação, no prazo máximo de um mês a contar do trânsito em julgado, de consulta de especialidade tendente ao tratamento à adicção de consumo de álcool de que padece e, de frequentar as consultas/tratamentos que lhe venham ser propostos pelo seu médico assistente, autorizando o Arguido a ausentar-se da sua residência, onde será executada a pena, para trabalhar na ..., sito na ..., às terças e quintas-feiras, no período das 09:00h às 13:00h, devendo a DGRSP estimar o tempo de duração da viagem de ida e volta.
6. Sendo certo que não pode haver condenação pelo crime diferente do da acusação, sem que tenha sido respeitado o comando do artigo 358.º do CPP, temos que a inobservância pelo Tribunal a quo do procedimento prescrito no artigo 358.º do CPP implica a nulidade da Sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP e, nulidade esta que torna inválido o julgamento, por ser o acto em que se verificou, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 122.º do CPP, que assim deve repetido.
7. Da acta de audiência de julgamento, não consta ter sido dado cumprimento ao referido artigo 358.º, n.º 1 do CPP.
8. A inobservância pelo Tribunal do procedimento prescrito no artigo 358.º do CPP implica a nulidade da sentença, e do julgamento, pois que o cumprimento do preceituado no artigo 358.º, n.º 1 do CPP, não se satisfaz com a simples concessão de um prazo para produzir alegações de direito, já que a expressão preparação para a defesa nesse lugar utilizada traduz algo mais do que um mero convite circunscrito à alegação em exclusiva sede jurídica (Cfr. Acórdão do STJ, de 27 de Abril de 2000, Proc. n.º 662/99-5º SSTJ, nº 40, 54).
9. Como salienta o Acórdão do STJ de 6 de Maio de 1999 (in Colectânea de Jurisprudência 1999, Tomo II, 208), “A obrigatoriedade de comunicar ao arguido a alteração da acusação verificada no decurso da audiência, concedendo-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a defesa á aplicável mesmo quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (...).”
10. Por isso, a sentença é nula nos termos do artigo 379.º, n.º 1 c) do CPC e, tal nulidade torna inválido o julgamento, por ser o acto em que se verificou, conforme o disposto no artigo 122.º, n.º 1 do CPP, que assim deve ser repetido (n.º 2 do referido preceito).
11. Termos em que deve ser declarada nula a sentença, bem como o julgamento que a originou, devendo este ser objecto de repetição, por forma a dar-se cumprimento ao disposto no artigo 358.º, n.º 1 do CPP.
12. O artigo 359.º, n.º 1 do CPP estabelece que uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser tomada em conta pelo Tribunal para o efeito de condenação no processo em curso.
13. E, alteração substancial dos factos é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (Cfr. artigo 1.º, alínea f) do CPP),
14. Mas o artigo 1.º, alínea f) do CPP tem de ser interpretado no seu sentido natural, de que um alteração dos factos é substancial se vier a ter por efeito a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis; não sucedendo isso, ela não é substancial, ficando sujeita ao regime do artigo 358.º do CPP (Cfr. Acórdão do STJ, de 27 de Maio de 1992, C.J. XVII. tomo 3, 40).
15. Apenas se verifica uma alteração substancial dos factos quando existe um acréscimo de factos aos que constavam da acusação ou da pronúncia (Cfr. Acordão do STJ, de 8 de Janeiro de 1992 in C.J. XVII, tomo 1, 5).
16. E, a sentença em apreço, não aduziu factualidade típica não constante da acusação.
17. Com efeito, os factos são rigorosamente os mesmos, nada de novo resultou apurado para além do que já constava da acusação, das condições sócio-económicas do arguido, e dos seus antecedentes criminais.
18. É, assim, patente não ter havido alteração substancial dos factos descritos na acusação, não procedendo violação do artigo 359.º do CPP, tendo, no entanto, havido uma alteração não substancial dos factos.
19. Na verdade, o artigo 358.º do mesmo diploma adjectivo, estabelece o seu n.º 1 que, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
20. Perante os mesmos factos (da acusação e da sentença) o crime indicado pela acusação não é o mesmo que foi considerado pela sentença.
21. Da acta de audiência de julgamento, não consta ter sido dado cumprimento ao referido artigo 358.º, n.º 1 do CPP.
22. A inobservância pelo Tribunal a quo do procedimento prescrito no artigo 358.º do CPP implica a nulidade da sentença, e do julgamento, pois que o cumprimento do preceituado no artigo 358.º, n.º 1 do CPP, não se satisfaz com a simples concessão de um prazo para produzir alegações de direito, já que a expressão preparação para a defesa nesse lugar utilizada traduz algo mais do que um mero convite circunscrito à alegação em exclusiva sede jurídica – Cfr. Acõrdão do STJ de 27 de Abril de 2000, Proc. nº 662/99-5.º SSTJ, n.º 40, 54.
23. Como salienta o Acódão do STJ de 6 de Maio de 1999 (in Col. Jur. 1999, tomo II, 208), “A obrigatoriedade de comunicar ao arguido a alteração da acusação verificada no decurso da audiência, concedendo-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a defesa á aplicável mesmo quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia(...)”
24. Por isso, a sentença é nula nos termos do artigo 379.º, n.º 1 c) do CPP e, tal nulidade torna inválido o julgamento, por ser o acto em que se verificou, conforme dispõe o artigo 122.º, n.º 1 do CPP, que assim deve ser repetido (n.º 2 do referido preceito).
25. A sentença sob censura violou os seguintes preceitos legais:
- Artigo 358, n.º 1.º do CPP;
- Artigo 379, n.º 1, alínea c) do CPP;
- Artigo 122, n.º 1 do CPP;
- Artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
(…)”
*
1.3. O Ministério Público respondeu ao recurso expendendo, sinteticamente o seguinte:
1. Reconhece que o texto inserido no CITIUS contém “erro material” (divergência entre vontade real e declarada), sustentando que o arguido foi acusado, julgado e condenado por condução perigosa (art. 291.º CP); a menção a embriaguez e, sobretudo, a “sem habilitação” seriam lapsos de escrita.
2. Afirma não ter havido qualquer alteração de factos ou qualificação no decurso da audiência que exigisse art. 358.º/359.º CPP e que a decisão lida em audiência transmitiu correctamente o decidido (na presença do arguido e defensora).
3. Conclui que a sentença é nula enquanto peça escrita, mas a nulidade é suprível por reformulação/rectificação pelo tribunal.
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1.4. Neste tribunal a Srª Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer cujo segmento relevante aqui se transcreve:
(…)
Não deixando de considerar que a referência à condenação pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal se trata de manifesto lapso material de escrita passível de correção nos termos previstos no artº. 380º nº. 1 b) do CPP, o mesmo não concluímos relativamente ao lapso consistente na recorrente referência ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez sobre o qual incidiu a análise da prova e determinação concreta da pena porquanto:
a) patentemente, esse não foi o crime pela prática do qual o arguido foi acusado;
b) trata-se de manifesto lapso que comporta modificação essencial da sentença, o que impede a sua correção oficiosa nos termos previstos no artº. 380º nº. 1 b) do CPP.
(…)
Conclui no sentido da procedência do recurso do arguido.
*
1.5. No âmbito do disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi junta qualquer resposta ao parecer.
*
1.6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do citado código.
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2. OBJECTO DO RECURSO
2.1. De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões, as questões a apreciar são:
a. Há nulidade da sentença (art. 379.º, n.º 1, al. c) CPP) por condenação por crime diverso do da acusação, com violação do art. 358.º CPP?
b. A divergência entre o corpo da sentença (onde se trata o art. 292.º CP) e o dispositivo (onde se escreveu DL n.º 2/98) traduz erro material rectificável (art. 380.º CPP) ou vício insanável que impõe a renovação do julgamento?
c. Escolha e medida da pena principal e acessória: existe erro de direito relevante?
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3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. Na sentença recorrida deram-se como provados e não provados os seguintes factos: (transcrição)
“(…)
Da prova produzida em audiência resultaram provados com relevância para a boa decisão da causa os seguintes factos:
1. No dia ........2022, pelas 20h10, o arguido AA conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 53-52 RF, depois de ter ingerido bebidas alcoólicas, pela ponte ..., sentido ..., fazendo a condução do veículo aos zigue zagues, entre a via da direita e a via do meio, obrigando os restantes condutores que ali circulavam a afastarem-se para não serem embatidos pelo veículo conduzido pelo arguido.
2. À saída da ..., e em direção à rotunda Centro Sul, o arguido, incapaz de manter uma trajetória direita com a viatura por si conduzida, quase que embateu num autocarro da ... , de matrícula não concretamente apurada.
3. Seguiu pela Av. Henrique Barbeitos, Almada, e virou à esquerda na rotunda para ..., virando na rotunda para a ..., e virou para um túnel ai existente, seguindo para a ..., onde uma condutora teve de subir o passeio com a viatura por si conduzida para evitar o embate do veiculo conduzido arguido.
4. O arguido AA seguiu ainda até à ... , onde estacionou a viatura por si conduzida junto aos nº 53 onde foi retido por populares que entretanto chamaram as autoridades policiais.
5. Submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue através de ar expirado pelo aparelho Alcoolimetro SAF IR #: SESAH1R298002994 , com última verificação em ........2021 o arguido AA acusou uma taxa de álcool no sangue de 1,89 g/l, sendo a apurada de 1,739 g/l, realizado o desconto da margem de erro máxima admissível.
6. Ao agir da forma descrita o arguido quis e representou conduzir o veiculo acima identificado na via publica sob o efeito do álcool, em quantidade superior a 1,20 g/l, o que conseguiu, bem sabendo que nessas circunstancias não estava capaz de exercer a condução do veiculo em segurança e que com a sua conduta colocava, como colocou, em perigo a vida e a integridade física de pessoas e de bens de elevado valor de terceiros, com que se cruzou.
7. O arguido AA agiu sempre de forma livre, deliberada e ciente que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
8. O arguido está reformado, recebendo de reforma o montante mensal de € 1600.
9. Está a amortizar o empréstimo no montante de € 400 contraído para compra e aparelhos auditivos para si e para sua filha.
10. Vive com a filha, que tem uma incapacidade de cerca de e a mulher igualmente reformada, a qual recebe de reforma o montante mensal de cerca de € 600.
11. O arguido é titular de carta de condução desde ...-...-1972.
12. O arguido foi condenado:
a) por sentença transitada e julgado em ...-...-2014, pela prática em ...1.../02 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 5 e na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de quatro meses;
b) por sentença transitada em julgado em ...-...-2025, pela prática em ...-...-2015 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 8 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de seis meses e quinze dias;
c) por sentença transitada em jugado em ...-...-2021 pela prática em ...-...-2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de dois meses e quinze dias suspensa na execução por um ano e na pena acessória de proibição de conduzir veiculo a motor de qualquer categoria pelo período de nove meses;
d) por sentença transitada em julgado em ...-...-2018 pela prática em ...-...-2018 de um crime de condução de veiculo em estado de embriaguez na pena de seis meses de prisão suspensa na execução por um ano, com sujeição a regime de prova, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de um ano.
Matéria de facto não provada
Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1. e 5. Dos factos provados o arguido foi interveniente em acidente de viação.
(…)”
*
3.2. Quanto à motivação da decisão de facto: (transcrição)
“(…)
O tribunal fundou a sua convicção numa análise global da prova produzida, ponderada criticamente, segundo das regras da experiência comum e juízos de normalidade.
O arguido compareceu em audiência de julgamento negando os factos descritos na acusação, tendo referido ter bebido três ou quatro cervejas, negando ter feito o percurso descrito na acusação, sendo que , esteve apenas num pastelaria no laranjeiro e depois foi para casa onde foi abordado por um homem e uma mulher e agentes de autoridade.
Descreveu as suas condições sócio económicas nos preciso termos dados por provados, sendo que quanto a estes se atendeu igualmente ao teor do relatório junto aos autos pela DGRSP.
As testemunhas BB e CC, o primeiro na qualidade de utilizador do UBER e a segunda na qualidade de condutora, descreveram o percurso efectuado pelo arguido ao volante da viatura, desde a entrada na ponte ... até ao local onde por este veio a ser imobilizado, descrevendo ambos de forma consentânea a condução errática empreendida pelo arguido.
Ambos referiram que após o arguido ter imobilizado a viatura chamaram a polícia e enquanto ali esteve não ingeriu bebidas alcoólicas. A testemunha DD, militar da PSP, deslocou-se ao local na sequência da chamada para o efeito estando já o arguido no exterior do veículo a ser retido pelas testemunhas. Na sequência do relatado sujeito o arguido ao teste do álcool tendo confirmado o teor de fl.s 4 e 5 e 9 dos autos. Referiu, ainda, que o arguido exalava um forte odor a álcool e tinha uma postura instável.
A filha do arguido, a testemunha EE confirmou o exercício da condução por parte do seu pai nas circunstâncias de tempo e lugar dadas por provadas, após ter ingerido bebidas alcoólicas na festa do 1.º de Maio, na ..., em Lisboa.
Quanto ao preenchimento do tipo subjectivo o tribunal atendeu ao comportamento subjectivo do arguido em ter ingerido bebidas alcoólicas em momento anterior ao exercício da condução.
Relativamente aos antecedentes criminais atendeu-se ao teor do CRC do arguido.
(…)”
*
4. APRECIANDO
4.1. Da invocada nulidade por condenação por crime diverso (art. 379.º, n.º 1, al. c) CPP) e da (in)observância do art. 358.º CPP
O recorrente sustenta que foi acusado de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário (art. 291.º CP); e, na fundamentação da sentença, o tribunal reporta-se repetidamente ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez (art. 292.º CP).
Argumenta, ainda, que no dispositivo, consta a condenação por condução sem habilitação legal (art. 3.º, n.º 2, DL 2/98).
Defende, assim, que foi condenado por crimes diversos dos constantes da acusação, sem que tivesse havido comunicação de alteração (art. 358.º CPP), o que gera a nulidade do art. 379.º, n.º 1, al. c) CPP.
Vejamos:
Da leitura da sentença resulta um quadro de incongruências textuais:
a. No Relatório e no enquadramento jurídico-penal lê-se que o arguido foi acusado e julgado por crime de condução de veículo em estado de embriaguez (art. 292.º CP), com desenvolvimento dogmático próprio desse tipo (crime de perigo abstracto), e motivação da pena acessória referida a esse ilícito (incluindo citação doutrinal de Paula Ribeiro de Faria).
b. Já no Dispositivo, o tribunal a quo condena o arguido por um crime de condução sem habilitação legal (art. 3.º, n.º 2, do DL n.º 2/98), fixando 7 meses de prisão em regime de permanência na habitação e 14 meses de proibição de conduzir (art. 69.º, n.º 1, al. a) CP).
c. A matéria de facto provada descreve condução errática, com TAS apurada de 1,739 g/l, e um percurso com zig-zags, quase colisão com autocarro e necessidade de terceiros evitarem embate, além de antecedentes criminais por embriaguez na condução.
d. Nota-se ainda uma contradição textual: ao fixar a pena acessória, a sentença afirma inexistir condenação por factos de idêntica natureza, quando antes elenca quatro condenações por embriaguez na condução — o que evidencia lapsos de redacção e copy-paste na versão escrita.
Em suma: Os factos provados coincidem com a materialidade descrita na acusação: condução errática em via pública, zig-zags, quase colisão, necessidade de terceiros evitarem embate e TAS apurada de 1,739 g/l, tudo suportado por testemunhas e teste quantitativo; não há aditamento factual extra acusação. A própria motivação do recurso reconhece que os factos são rigorosamente os mesmos e que não houve alteração substancial de factos (art. 359.º CPP), sustentando apenas uma alegada alteração não substancial/qualificação sem cumprir o art. 358.º (comunicação).
Qual foi o crime realmente decidido?
O Ministério Público (resposta) é inequívoco: acusado, julgado e condenado por condução perigosa (art. 291.º CP); a referência a embriaguez e a inserção de “sem habilitação” são erros materiais de escrita (corpo e dispositivo), havendo divergência entre a vontade real e a declaração escrita (típico do disposto no artº. 380.º do CPP).
A sentença contém sinais evidentes de “texto-modelo” mal colado: i) longos parágrafos doutrinais sobre o art. 292.º (com citação específica) e ii) um dispositivo ainda diferente (DL n.º 2/98), além da contradição na apreciação dos antecedentes (afirma “inexistência”, depois elenca quatro condenações) — tudo apontando para lapsos sucessivos de redacção e não para alteração de objecto processual ou para novidade decisória.
Vejamos mais em detalhe a questão dogmática suscitada quanto ao disposto no art. 358.º CPP (alteração não substancial de factos) / alteração de qualificação jurídica.
O art. 358.º incide sobre alterações verificadas no decurso da audiência, com relevo para a decisão, exigindo comunicação ao arguido e, a requerer, tempo para preparação de defesa. Nada nos autos demonstra qualquer alteração em audiência — a resposta do MP é clara: não houve alteração de factos/qualificação em julgamento; a “anomalia” nasce na redacção do texto da sentença a posteriori, e não na condução da audiência, nem na leitura pública da decisão (que, segundo a mesma resposta, foi correcta e na presença do arguido e defensora).
Logo, não se verifica o pressuposto temporal-processual do art. 358.º: ausente a “verificação” de alteração no decurso da audiência. Consequentemente, não há violação do art. 358.º e não se preenche a nulidade do art. 379.º, n.º 1, al. c) por essa via.
Ainda no que tange à invocação do artº. 379.º, n.º 1, al. b) do CPP.
O recorrente alterna a invocação de al. b) e al. c). Porém, a sua construção argumentativa reporta-se a condenação por crime diverso (al. c)), não à não especificação dos fundamentos de facto e de direito (al. b)). Esta oscilação fragiliza a peça recursória, por inadequação tipológica da nulidade invocada em parte das alegações (o próprio recurso especifica factos e fundamentos, embora com lapsos).
Em suma: Não se demonstra qualquer alteração em audiência que exigisse o regime do art. 358.º. O que existe é erro material na redução a escrito — problema de art. 380.º CPP e não nulidade invalidante do julgamento.
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4.2. Erro material (art. 380.º CPP) vs. nulidade insanável: é possível rectificar sem repetir julgamento?
A divergência entre a vontade real do julgador (condenação pelos factos da acusação) e a sua expressão escrita (menções desalinhadas a 292.º CP e a DL 2/98 no dispositivo) configura erro material rectificável.
A resposta do MP é explícita ao qualificar a situação como erro material da decisão: o juiz escreveu involuntariamente algo diferente do que queria e decidiu, fenómeno que o art. 380.º CPP permite sanar por rectificação (ex.: substituição, supressão ou correcção de menções erradas), sem ofensa de caso julgado e sem repetir julgamento.
O parecer do MP sustenta, diferentemente, que a repetida referência ao art. 292.º importaria modificação essencial não rectificável, concluindo pela procedência do recurso e repetição do julgamento.
Com o devido respeito, esta posição não colhe à luz do processo tal como está documentado:
i. Não há acréscimo factual nem surpresa probatória; os mesmos factos suportam quer o art. 291.º, quer, em tese, o art. 292.º (dada a TAS). O objecto foi sempre o conjunto de factos da acusação, provados em julgamento.
ii. Os indicadores objectivos de lapso (dispositivo mencionar DL 2/98 num arguido com carta de condução; contradições sobre antecedentes; corpo com doutrina típica de 292.º e, no entanto, pena e pena acessória compatíveis também com 291.º) são altamente provas de erro de escrita e não de convolação deliberada.
iii. Nada aponta para alteração em audiência da qualificação; antes pelo contrário, a leitura da decisão terá transmitido correctamente o decidido (condução perigosa), segundo a resposta do MP, e não foi posta em causa por prova documental em sentido inverso nos autos.
Assim, está-se no domínio do art. 380.º CPP: rectificação do texto, conformando o Relatório, Fundamentação e Dispositivo à decisão efectivamente tomada (condenação pelos factos da acusação), sem necessidade de repetição do julgamento.
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4.3. Pena principal e pena acessória
Mesmo superadas as inexactidões textuais, a medida concreta aplicada — 7 meses de prisão, executada em regime de permanência na habitação, e 14 meses de proibição de conduzir (art. 69.º, n.º 1, al. a) CP) — mostra-se proporcional e fundamentada no quadro fático:
Ilicitude elevada do comportamento (trajecto longo, condução errática pondo em risco a circulação) e TAS acentuada (1,739 g/l);
Dolo directo e acrescidas exigências de prevenção geral e especial, face a várias condenações anteriores por ilícitos rodoviários da mesma natureza (embriaguez na condução) — o que, aliás, reforça a percepção de que estamos perante lapsos de escrita quando a sentença, a páginas tantas, fala em inexistência de antecedentes (contradição já apontada).
No plano legal, quer o art. 291.º CP (condução perigosa), quer o art. 292.º CP (embriaguez), permitem a aplicação de pena de prisão dentro de molduras que acomodam uma pena de 7 meses, e a pena acessória do art. 69.º, n.º 1, al. a) CP é comum a ambos os ilícitos (a sentença chega a referir expressamente a sua aplicabilidade a 291.º e 292.º).
Nada no recurso demonstra erro notório na escolha da pena (preferência pela pena não privativa) ou na quantificação concreta, tanto mais que foi eleito um regime substitutivo (permanência na habitação), acrescida com obrigação de tratamento de adição alcoólica e compatibilização laboral (medidas de ressocialização adequadas).
Posto isto:
Foi proferida sentença em ...-...-2024, posteriormente inserida no sistema informático CITIUS, na qual se detectam lapsos manifestos de escrita, traduzidos em menções a tipos legais que não correspondem à acusação deduzida nem à decisão efectivamente tomada.
Nos termos do artigo 380.º, n.º 1, alínea b), do CPP, podem ser rectificados os erros materiais ou meras inexactidões resultantes de lapso manifesto, devendo a rectificação identificar com precisão os pontos corrigidos.
É o caso dos presentes autos!
Assim, será de determinar o seguinte:
1. No Relatório e Fundamentação da Sentença
Onde se lê:
“crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal”
Deve passar a constar:
“crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal”.
Onde se lê:
“Nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, aplicável ao crime do artigo 292.º, n.º 1, do mesmo Código”
Deve passar a constar:
“Nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, aplicável ao crime do artigo 291.º, n.º 1, do mesmo Código”.
2. Na apreciação dos antecedentes criminais
Onde se lê:
“Inexistência de condenação anterior por factos de idêntica natureza”
Deve passar a constar:
“Existência de condenações anteriores por factos de idêntica natureza (quatro condenações por crime de condução em estado de embriaguez)”.
3. No Dispositivo:
Onde se lê:
“condeno o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro”
Deve passar a constar:
“condeno o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal”.
Mantêm-se inalteradas todas as demais disposições da sentença, designadamente a condenação na pena de 7 meses de prisão em regime de permanência na habitação com fiscalização electrónica, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 14 meses, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, al. a) do CP.
O recurso não obtém provimento.
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5. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, negando provimento ao recurso, determinar:
1. Rectificar a sentença proferida em ...-...-2024, expurgando as menções incorrectas ao crime de condução em estado de embriaguez (art. 292.º CP) e ao crime de condução sem habilitação legal (DL 2/98), bem como harmonizando as referências aos antecedentes criminais com a matéria de facto dada como provada, nos precisos termos constantes do presente acórdão.
2. A decisão condenatória mantém-se, sem qualquer alteração quanto ao sentido decisório e à medida das penas.
Notifique.
Custas a cargo do recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCs.

Tribunal da Relação de Lisboa, 10-09-2025,
Alfredo costa
Maria da Graça dos Santos Silva
Cristina Isabel Henriques
Processado e revisto pelo relator (artº 94º, nº 2 do CPP)
Ortografia pré-acordo