Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
139/24.7PALSB.L1-3
Relator: FRANCISCO HENRIQUES
Descritores: INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PERÍODO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1. Não há vício de insuficiência da matéria de facto dada como provada quando os factos dados como provados são subsumíveis aos elementos típicos do crime em apreço.
2. Não existe vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão quando a fundamentação da decisão de facto é escorreita e perfeitamente plausível e não é contraditória com os factos dados como provados.
3. A reapreciação da prova pelo tribunal de recurso não se destina a analisar as incongruências que possam ser detectadas nos meios de prova produzidos no processo. Mas, sim os reflexos que essas incongruências incompatibilidades possam ter na decisão de facto da decisão recorrida. A questão da mera opinião perante as provas produzidas (credibilidade da testemunha) não faz parte da dupla jurisdição em matéria de facto.
4. É adequado e proporcional o alargamento do período da suspensão da execução em relação ao período de duração da pena de prisão imposta no caso de exigências de prevenção especial não muito relevantes e fortes as exigências de prevenção geral, emergentes da proliferação de um tipo de criminalidade que afecte gravemente a percepção da comunidade sobre a validade do sistema de justiça – sobretudo, o sentimento de grave insegurança na relações interpessoais.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
No processo comum, com intervenção do tribunal singular com n.º 139/24.7PALSB, foi proferida sentença a 06/05/2025 pelo Juiz 14 do Juízo Local Criminal de Lisboa do Tribunal Judicial da comarca de Lisboa que decidiu:
- absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violação de domicílio, p. e p., no artigo 190.º n.º 1 e n.º 3 do Código Penal.
- condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica praticado contra BB, p. e p., no artigo 152.º n.º 1 alínea b), e n.º 2 alínea a), do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos e 6meses, a contar do trânsito em julgado da presente sentença, sujeita:
(i) ao acompanhamento de regime de prova mediante plano a elaborar pelos Serviços de Reinserção Social;
(ii) à condição de não contactar com a ofendida CC por qualquer meio, mantendo-se afastado da sua residência e local de trabalho.
- condenar o arguido AA na pena acessória de obrigação de frequência de programa de prevenção da violência doméstica durante o período de suspensão da execução da pena de prisão.
- condenar o arguido AA a pagar à ofendida CC, a título de reparação, a quantia de € 3.500,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal desde o trânsito em julgado da sentença até efectivo e integral pagamento.
Inconformado o arguido apresentou as seguintes conclusões:
"1. O presente Recurso versa sobre a matéria de facto e é interposto da Sentença de 06-05-2025 que condenou o Arguido pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º n.º 1, al. b), e n.º 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 quatro anos.
2. Contudo, não pode o Arguido conformar-se com a douta decisão, desde logo, porque a mesma não teve em consideração elementos essenciais no enquadramento jurídico dos factos constantes dos autos, não procedendo a uma corretã valoração da prova produzida em audiência de julgamento, violando a presunção de inocência, ignorando totalmente o princípio do in dubio pro reo e fazendo um errado enquadramento jurídico dos factos.
3. Sem que se compreenda como tal pode acontecer num Estado de Direito Democrático, entende a defesa que o douto Tribunal a quo procurou, inclusivamente, justificar as atitudes da Ofendida e da sua manifesta falta à verdade.
4. Facto é que, em resultado da postura da Ofendida e da conjuntura social vigente, viu o Arguido ser grosseiramente violado o princípio da presunção da inocência, consagrado constitucionalmente no artigo 32.º, n.º 2 da CRP.
5. Contrariamente ao exigido, em todas as situações dos autos, o pré-juízo de condenação sobre o Arguido conduziu a uma errada valoração das versões apresentadas, à desculpabilização das atitudes da Ofendida e à desvalorização injustificada da demais prova, unicamente por contrariar a versão desta.
6. Ao longo de todo o processo, o Douto Tribunal a quo actuou como se coubesse ao Arguido provar a sua inocência, invertendo assim o princípio da inocência e partindo de um princípio de pré-condenação do qual dificilmente se consegue sair quando, ainda para mais se concede total e exclusiva credibilidade à Ofendida, em detrimento de toda a demais prova produzida.
7. Sublinhe-se que tal foi verificado até na forma como o Arguido foi questionado acerca da data de início da relação e como foi confrontado diversas vezes com observações de que a Ofendida o tinha abandonado e não parecia interessada no relacionamento.
8. Além do que, a Ofendida demonstrou raiva e descontrolo aquando do seu depoimento, batendo na mesa, proferindo asneiras e interrompendo todos os demais, sem que tal tenha sido sequer apontado pelo douto Tribunal.
9. A demais prova produzida por cada um dos intervenientes processuais não foi também valorada devidamente.
10. Tal conduziu à decisão proferida nos presentes, a qual se encontra desde logo ferida tanto quanto à matéria de facto como quanto à matéria de Direito, constituindo em consequência condenação profundamente injusta, totalmente contrária aos mais elementares princípios de Direito, cuja decisão deve ser alterada, com a consequente absolvição do Recorrente.
11. Perante as omissões e mentiras trazidas aos autos pela Ofendida, impunha-se sempre uma análise crítica das suas declarações, o que nem sequer foi feito pelo douto Tribunal, como se impunha, omitindo todas as evidentes incongruências do seu depoimento.
12. Pelo contrário impunha-se uma valoração plena dos depoimentos das testemunhas, sendo que inexistem quaisquer fundamentos mencionados na decisão com vista à sua desvalorização, não assistindo qualquer razão ao douto Tribunal ao decidir como decidiu nesta matéria, procedendo a uma errada valoração da prova.
13. O douto Tribunal a quo, nem sequer se pronuncia acerca do facto de a Ofendida ter omitido e, por diversas vezes, mentido descaradamente, ao invés, ainda se refere na Sentença ser normal que a Ofendida não se recorde de alguns "pormenores", por exemplo, que autorizou a entrada do Arguido em sua casa, apesar de ter dito que não.
14. Ora, com o devido respeito, em causa não estão meros pormenores, sendo que, nomeadamente a Ofendida afirmou que não deixou o Arguido entrar em casa, sabendo que ele estava também acusado de um crime de violação de domicílio e poderia ser condenado pelo mesmo, não fosse a verdade ser reposta pela testemunha EE.
15. O douto Tribunal ignorou todas as omissões e mentiras da Ofendida, em contradição directa com a demais prova produzida, concedendo integral credibilidade ao depoimento da Ofendida, em detrimento das declarações prestados pelo Arguido, corroboradas pela prova testemunhal, sobretudo, pelo depoimento da testemunha EE.
16. Impõe-se, por ser totalmente impossível que assim se tenha verificado, que se dêem como provados os factos vertidos nos pontos 5 e 6.
17. A Ofendida afirmou que o Arguido lhe apertou o pescoço com uma mão, por forma a empurrá-la e entrar em sua casa.
18. Ao invés, a testemunha EE – que se encontrava à porta do prédio, a observar a Ofendida e o Arguido, em momento anterior e simultâneo à subida e à entrada em casa –, NÃO viu qualquer agressão, tendo ainda dito que os dois subiram calados.
19. A terem os factos ocorrido como descrito pela Ofendida – o que se rejeita por não corresponder à verdade – os mesmos seriam confirmados pelo depoimento da testemunha EE, o que não sucedeu, bem pelo contrário.
20. No que respeita à alegada agressão já no quarto, conforme declarou a testemunha EE, quando os dois entraram para essa divisão a outra colega de casa – a FF – ficou a vê-los e ela a vê-la, tendo depois voltado para o seu quarto sem ter testemunhado qualquer incidente.
21. Em suma, a Ofendida e o Arguido estiveram sempre a ser observados nos momentos em que supostamente ocorreram os apertos no pescoço, que, pasme-se, não foram vistos por ninguém.
22. Também aqui, em resultado da conjugação da prova se impunha validar a versão do Arguido, que sempre declarou que não apertou o pescoço da Ofendida ou levou a cabo qualquer outra agressão.
23. Pelo que, se impunha ao douto Tribunal a quo dar como não provado o vertido nos pontos 5 e 6 dos factos não provados.
24. No que concerne ao ponto 8 dos factos provados, concretamente à escoriação apresentada pela Ofendida a 22/02/2025, isto é, 3 dias após o dia dos factos, importa desde logo sublinhar que no auto de notícia elaborado no dia 19/02/2025 consta "Consequências para a vítima – sem lesões" e "não foi elaborada reportagem fotográfica pois a vítima não tem marcas visíveis".
25. A este propósito foi inquirida a Agente da PSP – GG – que elaborou o auto e assegurou que não existiam marcas visíveis e que a Ofendida foi questionada, nada tendo identificado.
26. Não obstante, o douto Tribunal a quo desvaloriza o auto e o depoimento da testemunha, colocando em causa a competência da própria ao decidir que tal só se poderá dever a "erro de colagem informática".
27. Dos esclarecimentos prestados pela Perita médica, em sede de audiência de julgamento, resulta que numa lesão como a apresentada pela Ofendida, as marcas surgem no imediato ou passados alguns minutos, além de existirem inúmeras situações compatíveis com a lesão em causa, entre as quais ter sido provocada pela própria Ofendida.
28. Ao contrário do afirmado pela Ofendida, não foram encontradas nódoas negras e o rebentamento de um quisto sebáceo causado pelo aperto no pescoço não é verosímil.
29. Certo é que também os esclarecimentos médicos foram desconsiderados pelo Tribunal, por forma a não contrariar a versão da Ofendida e a respectiva credibilidade.
30. Com efeito, o facto dado como provado no ponto 8 deve ser integrado na matéria de facto não provada.
31. Nos pontos 9 e 10 da matéria de facto considerada provada, desconhece-se a que expressão se refere o douto Tribunal, a qual entende ser "apta a causar vexame e humilhação" à Ofendida.
32. Estará o douto Tribunal a referir-se à expressão "sorrisinhos", "deixaste-me sozinho" ou outra qualquer?!
33. Independentemente de qual das expressões seja, sempre se dirá que nenhuma delas tem qualquer conotação ofensiva ou ameaçadora, sendo ambas neutras e, face ao contexto em que foram proferidas, mais não são do que meros desabafos.
34. NUNCA o Arguido quis afectar o bem-estar físico e psíquico da Ofendida, nem tão-pouco causar-lhe vexame ou humilhação, sendo que, aliás, foi o próprio quem se sentiu humilhado com a situação.
35. Para melhor se compreender a errada valoração do depoimento da Ofendida efectuada pelo douto Tribunal a quo, importa debruçarmo-nos sobre os vários elementos de prova produzida e confrontá-los com a versão apresentada pela Ofendida.
36. A Ofendida, questionada directamente acerca de o Arguido lhe ter pedido para ir buscar as suas coisas ao quarto dela, negou que tal tivesse acontecido.
37. Ora, decorre do depoimento do Arguido e do depoimento da testemunha EE que o Arguido queria ir embora, mas primeiro quis ir recolher as coisas dele que tinha em casa da Ofendida. Aliás, o Arguido tinha deixado as chaves do carro e os seus documentos no quarto da Ofendida.
38. Quando questionada acerca de ter discutido com o Arguido quando estavam no quarto, a Ofendida negou, mas a testemunha EE referiu ter ouvido gritos de ambos.
39. Procurou ainda a Ofendida distorcer a normalidade que é ditada pelas regras da experiência, dizendo que temia pelas duas pessoas que estavam lá em casa e que corriam perigo.
40. Parece-nos de senso comum que o facto de não estar sozinha em casa representaria, ao invés, uma sensação de segurança e, para mais, não existiu qualquer contacto entre o Arguido e as duas pessoas em questão.
41. Negou também a Ofendida que não sabia do problema que o Arguido teve com a dependência de estupefacientes, o que é contrariado pelo depoimento da testemunha HH que explicou que logo no início da relação a colocou a par, por estar preocupado em virtude de a Ofendida trabalhar no ambiente nocturno.
42. Por último, disse a Ofendida que no dia 18/02/2024 se encontrou com o Arguido para jantar, por volta das seis horas, por ser o horário que ele sai do trabalho e questionada acerca da possibilidade de terem feito um piquenique afirmou nunca ter feito nenhum piquenique com o Arguido.
43. Ao invés, o Arguido esclareceu que naquele dia 18 preparou um piquenique e foram almoçar num miradouro em Lisboa.
44. Por sua vez, a testemunha II afirmou que, naquele domingo, o Arguido levou tudo da sua casa, para ir fazer o piquenique com a Ofendida.
45. O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP, consiste num defeito estrutural da Sentença.
46. Ora, nos presentes autos, atendendo à incongruência dos testemunhos entre si, ao grau de incoerência com as demais provas que existem nos autos, isto é, realizando-se uma apreciação conjunta das provas, não é possível sustentar a decisão condenatória.
47. Se em abstracto, numa situação normal se poderia compreender uma decisão condenatória que assentasse exclusivamente na versão da Ofendida, facto é que, atendendo à prova produzida nos presente autos tal se mostra impossível.
48. A prova produzida, quando confrontada com a prova produzida à contrário, principalmente se validamente valorada, impunha a decisão da absolvição do Arguido por insuficiência de prova.
49. Acresce que, com base em todo o supra exposto, resulta clara a verificação de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, uma vez que, facilmente se dá conta que o Tribunal violou as regras da experiência ou que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios entre si.
50. Verifica-se assim um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, sendo que as provas revelam claramente um sentido oposto ao da decisão recorrida, logicamente impossível.
51. Acresce que, também no que concerne à tipificação do crime de violência doméstica, ainda que se pudesse dar como provados os factos vertidos na douta Acusação – o que apenas se equaciona à cautela e não poderá jamais aceitar-se – facto é que, ainda assim, sempre teria o douto Tribunal de concluir pela absolvição do Arguido em resultado da ausência da verificação dos elementos objectivo e subjectivo do crime de violência doméstica.
52. A dinâmica dos factos, os depoimentos prestados nos autos e a demais prova documental, impõem concluir que a Ofendida nunca esteve numa posição de inferioridade ou submissão, sendo inclusivamente uma pessoa independente, como reconhece expressamente o douto Tribunal.
53. Nunca, em momento algum, o Arguido procurou a Ofendida ou se tentou cruzar com ela, aliás o Arguido colocou um ponto final na relação, para não mais ter de conviver com a Ofendida.
54. O Arguido e a Ofendida mantiveram uma relação interagindo, entre si, sempre em condições de paridade, o que se verificou, inclusivamente, na noite de 19/02/2024.
55. Sempre terá de se atender que a verificação do crime de violência doméstica depende da respectiva situação ambiente e da imagem global do facto, o que o douto Tribunal a quo não fez.
56. Cabia, assim ao douto Tribunal a quo absolver o Arguido, por não se encontrarem preenchidos os elementos típicos do crime de violência doméstica.
57. Ainda sem conceder, sempre se dirá que, face à inexistência (ou eventualmente insuficiência) da prova produzida nos presentes autos, conforme supra exposto, deve prevalecer o princípio in dubio pro reo.
58. Nos presentes autos, parece resultar que cabia ao Arguido convencer o Tribunal da sua inocência.
59. Com o devido e merecido respeito, esta interpretação viola grosseiramente o princípio do in dubio pro reo e, por conseguinte, o disposto no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
60. Acresce que, perante todas as incongruências e falsidades trazidas aos autos pela Ofendida, a não valer o princípio do in dubio pro reo, nesta situação de sustentadas dúvidas acerca da credibilidade do depoimento da Ofendida, tal significaria a consagração de um ónus da prova a cargo do Arguido, o que não pode ser admitido.
61. Assim, nem que seja pela mobilização do aludido princípio em prol do Arguido, como ora se pugna, impunha-se, em última ratio, a absolvição do Arguido.
62. Sem conceder, por mero dever de patrocínio e unicamente à cautela, a pena de 2 anos e 6 meses de prisão e, sobretudo, a suspensão por 4 anos fixada pelo douto Tribunal a quo são desproporcionais e injustificadas, pois não atendem às circunstâncias concretas do caso, à reduzida culpa do arguido, à ausência de antecedentes, verificando-se falta de fundamentação quanto à duração da suspensão, em violação dos artigos 40.º, 50.º e 71.º do Código Penal.
63. Ainda sem prescindir, a quantia de €3.500,00 fixada a título de indemnização a pagar pelo Arguido à Ofendida, é desproporcional, por não ter sido devidamente considerada a culpa reduzida, o carácter isolado do facto, a lesão mínima e a situação económica do Arguido, violando assim os princípios de equidade e os artigos 483.º, 494.º e 496.º do Código Civil".
O Ministério Público apresentou resposta, tendo concluído pela improcedência do recurso.
Os autos subiram a este Tribunal e nos mesmos o Ministério Público elaborou parecer em que conclui pela improcedência do recurso.
Os autos foram a vistos e a conferência.
2. Âmbito do recurso e identificação das questões a decidir
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º n.º 2 do Código Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr., Acórdão do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995 e artigos 403.º n.º 1 e 412.º n.º 1 e n.º 2, ambos do Código Processo Penal).
Inexistindo questões de conhecimento oficioso que importe decidir e face ao teor das conclusões da motivação apresentadas, nos presentes autos as questões a apreciar respeitam: ao erro vício, ao erro de julgamento, à medida da pena, à indemnização fixada.
3. Fundamentação
A sentença recorrida no que respeita à factualidade provada e não provada e respectiva fundamentação tem o teor que segue.
"2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido AA e a vítima CC mantiveram uma relação amorosa de namoro, sem coabitação, desde data indeterminada de …de 2023 até … de 2024.
2. No dia … de 2024, pelas 02H00, o arguido encontrava-se juntamente com a vítima CC no estabelecimento de restauração e bebidas …, em … e, após esta se ter dirigido à varanda para falar com um amigo, disse-lhe que ela tinha estado com "sorrisinhos" para com o seu amigo, expressão que a deixou emocionalmente afectada, tendo resolvido abandonar o local e o arguido para evitar qualquer discussão, apanhando um táxi até à sua residência, sita na Rua ….
3. Passado cerca de 1 hora de CC ter chegado à sua residência, o arguido apareceu à porta do prédio e começou a tocar várias vezes à campainha e a bater na porta.
4. CC desceu para a porta do prédio para conversar com o arguido e pedir-lhe para este abandonar o local.
5. Porém, o arguido assim que visualizou CC, com uma postura bastante agressiva, começou a proferir a seguinte expressão "DEIXASTE-ME SOZINHO" e de seguida começou a apertar o pescoço de CC com as duas mãos e a empurrá-la.
6. De seguida, o arguido entrou dentro da casa daquela e dirigiu-se para o quarto da mesma, e quando JJ lhe pediu para abandonar o local, o arguido começou novamente a apertar-lhe o pescoço e de seguida empurrou-a para cima da cama.
7. Só após muitas insistências o arguido abandonou a casa de CC e já no exterior, começou novamente a tocar à campainha e a atirar pedras para a janela do quarto de CC que teve de accionar a polícia através da linha de emergência para por cobro à situação.
8. O arguido quis agredir e ofender o corpo e a saúde de CC, tendo com esta conduta provocado uma escoriação no ângulo da mandíbula à esquerda, já na transição para o pescoço, com cerca de 1.5 cm de maiores dimensões, que lhe determinaram quatro dias de doença, com afectação de dois dias para a capacidade de trabalho geral.
9. O arguido actuou motivado por sentimento de posse, quis dirigir a expressão supracitada a CC bem sabendo que a mesma era apta a causar vexame e humilhação à mesma, o que o mesmo logrou pretender e alcançar, bem sabendo impor-se-lhe um acrescido respeito, por com ela manter uma relação de intimidade e confiança.
10. Ao actuar da forma descrita o arguido quis afectar-lhe deste modo o bem-estar físico e psíquico, a sua liberdade, o que logrou.
11. O arguido sabia, além do mais, que praticava os factos supra descritos na casa de morada de CC.
12. O arguido sabia também que a sua conduta era susceptível de provocar sofrimento, receio e inquietação em CC provocando-lhe instabilidade emocional, sentimento de insegurança, intranquilidade, afectando desse modo a sua paz e sossego individuais, rebaixá-la, menosprezá-la, humilhá-la, ferindo-a como pessoa e principalmente como mulher, o que logrou conseguir.
13. O arguido sabia que tinha o dever de respeitar CC com quem manteve uma relação de intimidade e que ao actuar da forma descrita violava os seus mais elementares direitos de respeito e consideração, o que quis e logrou conseguir.
14. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo serem todas as suas condutas proibidas e punidas por lei e, não obstante, não se coibiu de as praticar, e que tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
2.2 Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa, ficou por provar que:
A. O arguido entrou na residência da ofendida contra a vontade dela.
B. O arguido entrou dentro da casa da ofendida e dirigiu-se para o quarto da mesma sem o seu consentimento.
C. O arguido quis entrar na casa da ofendida e aí permanecer contra a vontade desta.
2.3. Motivação de facto
O tribunal fundou a sua convicção (atendendo aos critérios enunciados no art. 127.º do CPP) com base nas declarações do arguido, conjugadas com as declarações da ofendida e demais prova testemunhal, tendo ainda sido relevada toda a prova documental junta aos autos.
Efectivamente, o arguido prestou declarações, tendo negado parcialmente os factos.
Assim, explicou que tinha passado o dia com a ofendida, que tinha havido algum álcool também durante o dia e que de facto acabaram a noite na discoteca descrita na acusação.
Disse que às tantas deixou de ver a KK e a encontrou posteriormente na varanda, que parecia que se tinha esquecido de si e ficou à espera que ela se lembrasse de vir falar consigo, o que só aconteceu passados uns 15/20 minutos.
Explicou que de facto lhe disse que andava com sorrisinhos e finalmente se tinha lembrado da sua presença; nesta sequência disse que a KK olhou nos olhos e fugiu do espaço.
O arguido explicou que tinha o telemóvel sem bateria, que não tinha os documentos consigo nem a carteira, pois tinha deixado as coisas em casa ofendida.
Explicou que uma vez que a ofendida não reapareceu, começou a ficar preocupado e apercebendo-se que a KK de facto já não estava no local lembrou-se que as coisas dele estavam na sua casa e por isso tinha de voltar lá e teria de o fazer a pé.
Assim, segundo disse, dirigiu-se para casa da ofendida a pé em num estado nervosismo e ansiedade, não só com medo do que lhe poderia ter acontecido mas também a pensar que ela que ela não estava a ser sua amiga.
Disse que quando chegou na casa da KK viu que a luz do quarto dela estava acesa e uma vez que já era tarde que não convinha fazer barulho, decidiu ir à janela e mandar a gravilha, e não tocar logo à campainha, mas como não teve resposta e tinha as coisas em casa da KK e precisava delas tocou à campainha, mas no máximo 2 vezes.
Disse então que a ofendida desceu, abriu-lhe a porta, e lhe perguntou lhe porque é que o tinha deixado sozinho sabendo que não tinha como se mexer, ao que a ofendida respondeu que não queria mais conversas.
Então, e segundo referiu, o arguido disse só queria ir buscar seus pertences ao seu quarto para ir para casa.
Entraram, então, no prédio, na casa e no quarto, onde tiveram uma nova discussão com gritos e abanões mútuos, mas nada de agressivo.
Depois, segundo referiu, o arguido pegou nas suas coisas, mas a KK coloca-se à porta da frente do quarto a dizer que vão falar, tentar resolver as coisas, mas neste momento, o arguido já tinha decidido pôr um ponto final em toda a situação tirou a KK da frente e saiu de residência dirigindo-se ao seu carro, que está em frente ao prédio.
Segundo explicou, pôs entretanto o telemóvel a carregar; no entanto, resolveu ainda voltar para ir buscar o resto dos seus pertences.
Segundo referiu, a porta do prédio estava aberta entrou e começou a bater à porta de casa com força mas apercebeu-se entretanto que já era muito barulho a essas horas e foi para o carro onde tenta ter bateria no telemóvel e é nesse momento interpelado pelas autoridades.
Relativamente ao relacionamento com a KK, disse ainda que ela trabalhava à noite que tinha pouco tempo a estar juntos, que era coisa que não lhe agradava.
Mais esclareceu que às tantas acabou por haver consumo de cocaína por ambas as partes, sendo certo que ele já no passado tinha tido um problema de consumo de cocaína e que quando conheceu a KK já estava sem consumir há algum tempo.
Foi, por seu turno, também ouvida a ofendida, que disse que no dia em questão de facto tinham ido jantar juntos, que depois foram beber um copo ao Harbour, onde chegaram, provavelmente às 2:30 da manhã.
Explicou que entretanto encontraram um conhecido em comum com quem ambos ofendida e arguido, estiveram a conversar na varanda e que entretanto o arguido entrou para a pista de dança e quando foi ter com ele o arguido acusou-a de estar com de estar com conversinhas com o rapaz.
Explicou que, como não era a primeira vez que isto acontecia, a ofendida disse que já não estava para isso e que ia para casa, tendo apanhado um táxi.
Esclareceu que passado cerca de 1 hora de ter chegado a casa o arguido foi tocar à campainha de forma bastante insistente, e a ofendida como morava com mais 2 outras pessoas que trabalhavam teve de descer porque não queria incomodar e não tinha intercomunicador.
Referiu que quando foi ter com o arguido este lhe começou a pedir satisfações, que lhe disse que o tinha abandonado, sendo que a ofendida disse que não, que não estava, que simplesmente se salvaguardou e que não estava para isto.
Nessa sequência, disse então que o arguido lhe apertou o pescoço com uma mão e com pressão, tendo sentido falta de ar e também um ataque de pânico; que isto durou cerca de 5 segundos.
Explicou que o arguido a afastou da entrada do prédio com a mão no pescoço para o lado, entrou, subiu as escadas e entrou na casa, que estava com a porta aberta desde que a ofendida tinha saído de casa e então o arguido entrou no seu quarto.
Disse que foi atrás dele e o viu mexer num monte de coisas no sofá, afirmando que o arguido não lhe disse que queria levar as coisas dele.
Disse que o arguido estava num estado paranóia, descontrolado e descompensado, que nunca o tinha visto assim e temeu pela sua vida, e embora tenha afirmado não saber se tinha consumido estupefaciente, sabia que ele que era viciado em cocaína e que se apercebeu que era grave já em Fevereiro, que o arguido lhe chegou a pedir dinheiro para se reabastecer.
Explicou que quando consumia o arguido alterava o seu comportamento, ficava paranóico e agressivo, não a deixava falar.
Relatou, então, que no quarto quando ele remexeu nas coisas no sofá lhe perguntou o que é que ele estava a fazer que ele então começou a chorar e balbuciar. E que lhe apertou o pescoço novamente, a empurrou e caiu em cima da cama.
Disse que nestas circunstâncias lhe pediu repetidamente para ele se ir embora. Por fim, ele saiu com uma mochila e foi para o carro estacionado à frente da sua casa.
Esclareceu que quando estavam dentro do quarto não houve discussões, só pediu que ele sair, temendo pela sua vida e das outras pessoas que lá viviam, sentindo que se viu perante um estranho a tentar agredi-la dentro de sua casa.
Porém, o arguido voltou a tocar à campainha e foi nessa altura que ligou para o 112. A PSP chegou entretanto, ela explicou se tinha passado que a PSP foi ter com ele e foram-se todos embora.
A ofendida revelou que depois deste episódio ficou com uma grande ansiedade, que não conseguia sair de casa sem olhar por trás do ombro, ficava ansiosa sempre que via um carro parecido com o do arguido.
Disse que sente uma raiva muito grande por não se ter conseguido defender e que tem um enorme sentimento de impotência, sendo que antes nunca tinha dito este tipo de sentimentos e tem medo de voltar a ser agredido e sentir novamente essa impotência.
Diz que ficou com dores e nódoas negras.
Foi ouvida a testemunha EE, uma das colegas de casa da ofendida à data dos factos que afirmou que estava a dormir quando cerca das 4h00 acordou com vozes, tendo-se apercebido que era a voz da sara.
Disse que foi à porta de entrada do apartamento, que tinha visibilidade para a porta do prédio e viu a sara com o arguido na rua, mesmo à frente da porta do prédio.
Não se apercebeu, segundo disse, dos pormenores da conversa, mas ficou com a ideia de que o arguido manifestava ciúmes e fazia algum tipo de acusação à KK relativamente a um indivíduo na discoteca.
Despois de acalmar um pouco, a KK disse que ia para casa e o arguido disse que primeiro queria ir buscar as suas coisas e então eles entraram e foram para o quarto da KK.
Disse que no quarto continuou a haver discussão, que o arguido as tantas chorava a dizer "tu já não gostas de mim, nunca gostaste" e que a KK lhe pedia para ir-se embora.
Segundo referiu, quando finalmente o arguido saiu, entraram no quarto da KK e ela estava a chorar e tinha marcas no pescoço e a KK lhe disse que o arguido lhe tinha agarrado o pescoço.
Que o arguido depois ficou a bater à porta e a tocar à campainha a dizer "já não gostas de mim", e entretanto a polícia apareceu.
Disse que nunca vira a KK nesse estado, tão em baixo, a sentir-se humilhada e que depois esteve fora uns tempos com amigos e que depois era sempre acompanhada por alguém quando voltava a casa.
As testemunhas HH, amigo do arguido, e II, mãe do arguido, nada sabiam sobre os factos, tendo prestado depoimento quanto ao arguido ser pessoa calma, amiga, tendo ambos afirmado eu de facto tinha tido problemas com consumo de droga mas que tal nunca se traduziu em violência.
Mais esclarecedora revelou-se a testemunha LL, psicóloga que acompanha o arguido.
Explicou que começou a acompanhar o arguido devido ao seu consumo de estupefacientes, que entretanto este deixou o referido consumo mas terá retomado durante a relação com a ofendida.
Disse que quando abstinente de consumos, fica compensado, estável, fica bem.
Porém, quando se encontra a consumir, fica emocionalmente descontrolado, o que se traduz em paranóia, desconfiança, ciúme, criando um cenário que lhe atormenta a cabeça que desencadeia uma situação psicopatológica que se torna incontrolável – descrição, no fundo coerente com a feita pela ofendida relativamente ao estado do arguido.
Finalmente, a perita médica esclareceu que as escoriações aparecem de imediato ou passados alguns minutos e a agente da PSP GG confirmou a elaboração e assinatura do auto de notícia, tendo esclarecido que se aí refere não ter verificado a existência de marcas é porque não existiam.
Ora, desde logo, a versão apresentada pelo arguido não se mostra muito coerente, pois ao passo que diz que a ofendida o abandonou no bar, afirmou que a mesma o deixou entrar para ir buscar as coisas porque ele pediu (e não por iniciativa da ofendida) mas que depois foi esta que não o quis deixar sair do quarto (mas no entanto, não lhe abriu a porta quando quis ia buscar o resto das coisas e tocou à campainha), não se tendo considerado as suas declarações credíveis na parte em que negam os factos.
Em contrapartida, a ofendida prestou declarações de forma muito sincera e genuína. Na verdade, foi evidente para este tribunal que ainda actualmente a ofendida sente uma enorme e revolta com o que lhe aconteceu, e que os factos tiveram um profundo impacto na sua vida que ainda hoje se faz sentir.
É verdade que parece não recordar bem alguns pormenores no que se refere a ter o arguido entrado em casa sem o seu consentimento, pois em contradição com o relatado pela testemunha EE (também isenta e credível), mas tal falha de memória entende-se facilmente face ao estado emocional da ofendida: desde logo, tendo em conta as agressões do arguido, é normal que a sua atenção se focasse mais nelas e não em pormenores que poderia ver com menor importância; por outro lado, o arguido entrou em sua casa depois de já lhe ter apertado o pescoço e apertou-lhe novamente o pescoço, é consentâneo com as regras da experiência comum e com a personalidade da ofendida exibida em audiência de julgamento (tendo-se ficado com a ideia de que a ofendida é pessoa independente e forte que, conforme referiu, nunca imaginou encontrar-se nesta situação e ficou revoltada não só com o que lhe aconteceu mas também com o sentimento de impotência que lhe gerou) que a ofendida tenha dificuldade em conciliar um eventual consentimento (mesmo que passivo, simplesmente por falta de reacção) para que o arguido entrasse e acabasse por agredi-la novamente, sendo certo que as lesões constam do relatório pericial junto aos autos e forma relatadas pela testemunha EE, desconsiderando-se o relatado pela testemunha agente da PSP, que poderá dever-se a erro de colagem informática.
Perante, pois, a prova produzida e analisada de acordo com critérios de experiência comum e de razoabilidade, face aos factos objectivos que resultaram demonstrados, ficou provada a intenção do arguido e o seu conhecimento do carácter reprovável da sua conduta, resultando necessariamente que o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
Assim, o tribunal ficou convencido de que o arguido praticou os factos constantes da acusação, com excepção da entrada no domicílio da ofendida sem o seu consentimento, pois o depoimento da testemunha EE o contraditou.
Quanto às condições pessoais, sociais e económicas do arguido, o tribunal teve em consideração as declarações prestadas pelo mesmo em sede de audiência de julgamento, que neste aspecto se revelaram credíveis.
Para dar como provada a ausência de antecedentes criminais do arguido, o tribunal atendeu ao teor do seu Certificado do Registo Criminal".
3.1. Do mérito do recurso.
Do erro vício.
Estabelece o artigo 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Assim sendo, os vícios têm de resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àqueles estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.
O vício previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal ocorre quando a factualidade provada no acórdão/sentença não permite, por insuficiência, a formulação de uma decisão jurídico penal, ou seja, quando dos factos provados não possam logicamente ser extraídas as ilações formuladas do tribunal recorrido.
A insuficiência da matéria de facto consiste numa incorrecta formação de um juízo, na medida em que a conclusão ultrapassa as respectivas premissas.
Assim sendo, existe insuficiência da matéria de facto quando esta não é fundameno da solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto com relevo para a decisão.
O vício previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do Código Processo Penal, ocorre em quatro situações:
- quando há contradição entre a matéria de facto dada como provada;
- quando há contradição entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada;
- quando há contradição entre a fundamentação probatória da matéria de facto; e,
- quando há contradição entre a fundamentação e a decisão.
No caso em apreciação, no acórdão recorrido não se verifica o vício da insuficiência da matéria de facto dada como provada.
Com efeito, os factos dados como provados são subsumíveis aos elementos típicos do crime em apreço.
De igual forma não existe uma contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
A fundamentação da decisão de facto é escorreita e perfeitamente plausível e não é contraditória com os factos dados como provados.
E, assim, a sentença recorrida não padece do erro vício.
Do erro de julgamento.
A impugnação ampla da matéria de facto refere-se à análise da prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, só podendo alterar-se o decidido se as provas indicadas por aquele obrigarem a decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem.
A invocação do erro de julgamento impõe uma reapreciação probatória fazendo apelo a segmentos probatórios concretos, prestados em audiência ou a elementos documentais, de forma a analisar se o seu conteúdo específico demonstra (perante uma correcta aplicação das regras probatórios) a ocorrência de um erro na decisão da fixação da matéria de facto provada e não provada.
Assim este mecanismo da impugnação ampla da matéria de facto envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal na primeira instância, e da prova dela resultante.
Trata-se de uma reapreciação vinculada ao cumprimento de deveres muito específicos de motivação e formulação de conclusões do recurso.
Assim, nos termos do n.º 3 do artigo 412.º do Código Processo Penal, o recorrente deve especificar:
a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e,
c) as provas que devem ser renovadas.
O n.º 4 do artigo 412.º do Código Processo Penal acrescenta que as indicações a que se referem as alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 412.º do Código Processo Penal se fazem por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas, e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, segundo o estabelecido no n.º 6 do artigo 412.º do Código Processo Penal .
E, no final, é necessário que dessa indicação resulte comprovada a insustentabilidade lógica ou a arbitrariedade da decisão recorrida e que a versão probatória e factual alternativa proposta no recurso é que a correcta.
Então, se se concluir que o tribunal a quo não podia ter dado os concretos factos como provados ou como não provados, haverá erro de julgamento e, consequentemente, modificação da matéria de facto, em conformidade com o desacerto detectado.
No entanto, se a convicção do julgador puder ser objectivável face aos critérios probatórios e se versão apresentada pelo recorrente for meramente alternativa e igualmente possível, deverá manter-se a opção do julgador, por força dos princípios da oralidade e da imediação da prova.
Assim sendo, a questão da mera opinião perante as provas produzidas (credibilidade da testemunha ou das declarações do arguido) não faz parte da dupla jurisdição em matéria de facto, por o tribunal de recurso não beneficiar dos princípios da imediação e oralidade.
O recorrente não indicou os factos que considera incorrectamente julgados, nem quais os concretos meios de prova em que funda a sua dissensão.
Este tribunal ad quem poderia pura e simplesmente negar a elaboração de qualquer análise a propósito da reapreciação da prova produzida em julgamento. Isto, por o recorrente não ter cumprido o ónus que sobre ele impede nos termos do artigo 412.º n.º 3 do Código Processo Penal.
Limitou-se a indicar quais os pontos da matéria de facto que considera erradamente julgados (e que praticamente constitui toda a matéria de facto integrante dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos de ilícito, cuja prática foi imputada ao recorrente), não indicou "as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida". Ao invés, limitou-se a afirmar que não são credíveis os depoimentos das testemunhas decisivas para a formação da convicção do tribunal a quo.
No entanto, sempre se dirá que na sentença recorrida consta expressamente que:
"Ora, desde logo, a versão apresentada pelo arguido não se mostra muito coerente, pois ao passo que diz que a ofendida o abandonou no bar, afirmou que a mesma o deixou entrar para ir buscar as coisas porque ele pediu (e não por iniciativa da ofendida) mas que depois foi esta que não o quis deixar sair do quarto (mas no entanto, não lhe abriu a porta quando quis ia buscar o resto das coisas e tocou à campainha), não se tendo considerado as suas declarações credíveis na parte em que negam os factos.
Em contrapartida, a ofendida prestou declarações de forma muito sincera e genuína. Na verdade, foi evidente para este tribunal que ainda actualmente a ofendida sente uma enorme e revolta com o que lhe aconteceu, e que os factos tiveram um profundo impacto na sua vida que ainda hoje se faz sentir.
É verdade que parece não recordar bem alguns pormenores no que se refere a ter o arguido entrado em casa sem o seu consentimento, pois em contradição com o relatado pela testemunha EE (também isenta e credível), mas tal falha de memória entende-se facilmente face ao estado emocional da ofendida: desde logo, tendo em conta as agressões do arguido, é normal que a sua atenção se focasse mais nelas e não em pormenores que poderia ver com menor importância; por outro lado, o arguido entrou em sua casa depois de já lhe ter apertado o pescoço e apertou-lhe novamente o pescoço, é consentâneo com as regras da experiência comum e com a personalidade da ofendida exibida em audiência de julgamento (tendo-se ficado com a ideia de que a ofendida é pessoa independente e forte que, conforme referiu, nunca imaginou encontrar-se nesta situação e ficou revoltada não só com o que lhe aconteceu mas também com o sentimento de impotência que lhe gerou) que a ofendida tenha dificuldade em conciliar um eventual consentimento (mesmo que passivo, simplesmente por falta de reacção) para que o arguido entrasse e acabasse por agredi-la novamente, sendo certo que as lesões constam do relatório pericial junto aos autos e forma relatadas pela testemunha EE, desconsiderando-se o relatado pela testemunha agente da PSP, que poderá dever-se a erro de colagem informática".
Face à posição expressa pelo recorrente, é de assumir que a sua argumentação assenta unicamente numa dissensão opinativa com a forma como o tribunal a quo fundou a sua convicção.
É manifesto que a argumentação do recorrente aponta directamente para uma diferente valoração da prova daquela efectuada pelo tribunal a quo.
O recorrente insurge-se contra a desvalorização das declarações que prestou em julgamento, face à credibilidade dada ao depoimento da ofendida.
A reapreciação da prova pelo tribunal de recurso não se destina a analisar as incongruências que possam ser detectadas nos meios de prova produzidos no processo. Mas, sim os reflexos que essas incongruências incompatibilidades possam ter na decisão de facto da decisão recorrida.
Como acima se expressou, a questão da mera opinião perante as provas produzidas (credibilidade da testemunha) não faz parte da dupla jurisdição em matéria de facto.
Não existe nenhum motivo válido para infirmar a convicção formada pelo tribunal a quo. Pois, a mesma encontra-se razoável e validamente justificada.
E, como tal, não existe fundamento para censurar a convicção formada pelo tribunal a quo.
Da medida da pena.
O crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º n.º 1 alínea b), e n.º 2 alínea a), do Código Penal, é punível com a pena de 2 a 5 anos de prisão.
Na determinação da pena concreta a aplicar recorre-se ao critério global previsto no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, o qual dispõe "a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção". Pelo que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa e da prevenção – especial e geral positiva ou de integração –, concretizadas a partir da eleição dos elementos para elas relevantes.
A culpa e a prevenção "são os dois termos do binómio", através dos quais será construído o "modelo de medida da pena".
Com tal desiderato no horizonte, importa definir as funções e a inter-relação que a culpa e a prevenção desempenham em sede da medida da pena.
A culpa estabelece o máximo de pena concreta ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade.
A prevenção geral positiva traduz a necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena.
E prevenção especial consubstancia as necessidades inerentes à ressocialização do arguido.
Na determinação do substrato da medida da pena, isto é, da totalidade das circunstâncias do complexo integral do facto (factores de medida da pena) que relevam para a culpa e a prevenção (cfr., artigo 71.º n.º 1 do Código Penal), há que atender a "todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele" (artigo 71.º n.º 2 do Código Penal).
Daqui, decorre a construção do seguinte modelo: dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade da norma violada – entre o ponto óptimo – que nunca deve ultrapassar o limite máximo de pena adequado à culpa, mas que não tem obrigatoriamente com ele coincidir – e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar em último termo, a medida da pena.
Exposto o raciocínio e o modelo imanente à determinação da medida da pena, considerando o enquadramento jurídico-penal efectuado, impõe-se a determinação concreta da pena.
Relevam por via da culpa, para efeitos de medida da pena:
- no sentido da agravação da ilicitude contribui o grau de conhecimento e a intensidade da vontade no dolo: dolo directo, as lesões físicas provocadas, o modo de execução do crime, incluindo a violência exercida e a ocasião única em que tal comportamento se verificou.
Ponderados todos estes factores, deve estabelecer-se o grau de culpa acima do abaixo médio da moldura abstracta da pena.
Revelam por via da prevenção especial para efeito de medida da pena:
- a ausência de antecedentes criminais;
- a integração familiar, social e laboral.
Pelo que, a conjugação destes factores não revela particulares necessidades de prevenção especial, devendo o seu grau deve situar-se no mesmo plano da prevenção geral positiva.
No que se refere à prevenção geral positiva ou de integração, a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade do ordenamento jurídico, fica assegurada com a imposição ao recorrente da pena de prisão fixada pelo tribunal a quo – a qual se situa pouco acima do limite mínimo da moldura abstracta.
O recorrente insurgiu-se contra o período fixado para a duração da suspensão de execução da pena de prisão que lhe foi imposta.
Se é certo, que as exigências de prevenção especial não são muito relevantes, o mesmo não acontece em relação as exigências de prevenção geral. A proliferação deste tipo de criminalidade afecta gravemente a percepção da comunidade sobre a validade do sistema de justiça – sobretudo, o sentimento de grave insegurança na relações interpessoais.
Assim sendo, é adequado e proporcional o alargamento do período da suspensão da execução em relação ao período de duração da pena de prisão imposta.
Da indemnização fixada.
O recorrente insurgiu-se, igualmente, contra a indemnização fixada pelo tribunal a quo.
No caso, estão em causa, apenas, danos não patrimoniais.
Os danos não patrimoniais que compreendem os prejuízos (tais como as dores físicas, a perda de prestígio e reputação, os vexames, os desgostos morais, etc.) que sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, por derivarem de lesão de bens (como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a honra ou o bem nome) que não integram o património do lesado. Pelo que, tais danos apenas podem ser compensados com a imposição ao agente de uma obrigação indemnizatória. Constituindo esta mais uma satisfação que uma indemnização (cfr., Varela, Antunes; "Das Obrigações em Geral", vol. I; p. 571).
Assim sendo, o dano não patrimonial é aquele que tem por objecto um interesse não patrimonial, isto é, um interesse não avaliável em dinheiro, tendo "necessariamente por suporte a pessoa humana no seu lado subjectivo; situa-se no pólo oposto à felicidade do homem. Quem sofre um desgosto, quem se incomoda, quem sente as torturas da dor, ou de falta de saúde, perde um bem anímico: esta perda é o dano moral ou não patrimonial" (cfr., Matos, Oliveira; "Código da Estrada Anotado"; 3.ª edição; p. 443).
E justamente porque os danos não patrimoniais são insusceptíveis de serem rigorosamente quantificados pecuniariamente, e como tal, não são verdadeiramente indemnizáveis, no sentido de lhes acharem equivalente que reponha as coisas no estado anterior à lesão, a fixação do respectivo montante só pode ser feita equitativamente tendo em atenção, em cada caso, o grau de culpa do agente, a situação económica dele e do lesado e as demais circunstâncias cuja influência se faça sentir – conforme resulta do disposto nos n.º 1 e n.º 3 do referido artigo 496.º do Código Civil. Ou seja, o montante da reparação atribuída "deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta (...) todas as regras da boa prudência, do senso prático, da justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida" (cfr., Varela, Antunes; ob. cit.; vol. I; p. 575, nota 4).
Como escreve Vaz Serra "trata-se apenas de dar ao lesado uma satisfação, ou compensação do dano sofrido, proporcionando-lhe situações ou momentos de prazer e alegria que neutralizam, quanto possível, a intensidade da dor física ou psíquica" (in, BMJ, 83.º-83 e 278.º-182).
Nos termos do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil, os danos não patrimoniais sofridos pelo lesado são indemnizáveis, desde que pela sua gravidade, essa indemnização se justifique.
No caso sub judice, o sofrimento psicológico causado à ofendida, é dano grave que justifica uma indemnização.
Deste modo, tendo em consideração:
- a gravidade do sofrimento psicológico da ofendida;
- o estatuto socioeconómico do recorrente;
o quantum indemnizatório foi devidamente fixado.
Desta forma, nesta parte, o recurso não poderá proceder.

4. Dispositivo
Por todo o exposto, acordam os juízes que compõem a 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso e, consequentemente, manter a sentença proferida.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC – artigo 513.º do Código Processo Penal.
Notifique.

Lisboa, 22 de Outubro de 2025
Francisco Henriques
Cristina Almeida e Sousa
Cristina Isabel Henrique