Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1681/22.0T8CSC.L1-2
Relator: JOÃO PAULO VASCONCELOS RAPOSO
Descritores: ARRENDATÁRIO
COMPRA E VENDA
NULIDADE
LEGITIMIDADE
INTERESSADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário (da responsabilidade do relator):
I. O arrendatário tem legitimidade ativa para a ação declaração de nulidade do negócio de venda a terceiro celebrada pelo senhorio;
II. O exercício do direito de preferência não é a única vantagem que um arrendatário pode retirar de um negócio transmissivo da propriedade, dado que a mera mudança da pessoa do senhorio altera o quadro de direitos e obrigações do contrato, v.g. quanto a fundamentos de denúncia;
III. O direito de preferência também não deve ser visto como uma via processual exclusiva quando o arrendatário, fazendo uma análise do teor do contrato celebrado com terceiro, o considere nulo, pois que isso equivaleria a uma verdadeira constrição a preferir num negócio inválido;
IV. O conceito substantivo de "interessado" na declaração de nulidade é amplo, comportando um interesse público de tutela da ordem jurídica, daí que a lei permita também o conhecimento oficioso;
V. O conceito processual de "interesse na procedência da ação" deve ser alargado nas ações de declaração de nulidade, por forma a corresponder ao referido conceito substantivo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Decisão:

I. Caracterização do recurso:
I.I. Elementos objetivos:
- Apelação – 1 (uma), nos autos;
- Tribunal recorrido – Juízo Central Cível de Cascais – Juiz 1;
- Processo em que foi proferida a decisão recorrida – Ação de processo comum n.º 1681/22.0T8CSC.L1;
- Decisão recorrida – Despacho saneador.
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I.II. Elementos subjetivos:
- Recorrentes (autores): AA e mulher;
- Recorridos (réus):
- BB;
- CC.
- DD;
- EE
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I.III. Síntese dos autos:
- No seu articulado inicial pedem os autores declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado por escritura pública (cuja descrição completa não alegam, remetendo para documento anexo);
- Sustentam a sua pretensão dizendo:
a) São arrendatários do imóvel;
b) Não foram informados do negócio em causa e poderiam exercer preferência;
c) A escritura foi realizada com declaração de factos falsos, quanto à referência de ter por objeto um prédio anterior a 1951;
d) Essa falsidade permitiu que a escritura se realizasse sem que existisse e fosse apresentada licença de utilização;
e) A licença de utilização é um elemento obrigatório e a sua falta determina nulidade do contrato.
- Citados, contestaram os réus, por exceção e impugnação.
- Por exceção, arguindo ilegitimidade ativa dos autores, por falta de interesse direto em agir;
- Por impugnação motivada, designadamente sustentando que o prédio é anterior a 1951 e não se encontra em propriedade horizontal que permitisse o exercício de preferência. –
- Foi determinada notificação dos autores para responderem à exceção, o que fizeram, pronunciando-se pela sua improcedência.
- De seguida, foi declarada a incompetência do Juízo Local em razão do valor e determinada a remessa dos autos ao Central;
- Distribuído nessa sede, foi proferido despacho convidando as partes a pronunciarem-se sobre dispensa de audiência prévia;
- Estas fizeram-no, declarando aceitar tal dispensa;
- Após, foi proferido despacho saneador que, conhecendo da exceção dilatória suscitada pelos réus, concluiu do seguinte modo:
- Face ao exposto, e ao abrigo dos citados normativos legais, julga-se procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa, com a consequente absolvição dos Réus da presente instância
- Deste despacho, não se conformando os autores, recorreram pela presente apelação. –
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II. Objeto do recurso:
II.I. Conclusões apresentadas pela recorrente nas suas alegações:
A. Vem o presente Recurso interposto da decisão do Mmo Juiz do Juízo Central Cível de Cascais que declarou a Ilegitimidade dos AA, nos termos supra-transcritos
B. Em duas ordens de argumentos, a saber:
1. “Os Autores vêm com a presente acção pedir a nulidade do contrato de compra e venda por alegadamente ter sido celebrado entre as partes outorgantes sem licença de utilização , alegando que a falta da licença de utilização constitui uma nulidade insuprível, pelo que peticionam a final, seja declarada a nulidade da compra e venda outorgada...”
2. Da alegação apresentada pelos Autores no âmbito dos presentes Autos não parece emergir por parte destes, qualquer interesse em demandar os aqui RR, já que a sua qualidade de arrendatários de manteve (...)
Face a isso, não tendo os autores exercido em acção própria o seu direito de preferência (...) e não sendo os AA partes do contrato de compra e venda, ante a alegação apresentada, não se vislumbra o
benefício/utilidade que obtém com a procedência da Acção, atenta a qualidade de arrendatários que detêm.”(o sublinhado supra, é nosso)
ORA,
C. Os AA peticionaram a declaração de Nulidade do Contrato de Compra e Venda outorgado entre os RR com base na preterição de formalidade essencial. Mais,
D. Por tal Contrato, a ser considerado válido, passariam os AA a ter novos senhorios, o que não é irrelevante, naturalmente:
1. Quer porque um tal tipo de contrato impõe um relacionamento estreito entre as partes, “estendido” no tempo,
2. Quer porque existiam diversas “contas” a acertar entre o “Vendedora”/Senhoria e os AA e uma promessa de venda da parte desta aos AA que passaria a poder ser exercida. Mais,
E. A venda “à pressa” e com recurso a declaração falsa, visou exactamente ultrapassar as “dificuldades” decorrentes dessas fragilidades da R. BB relativamente aos AA. Mais ainda,
F. Como é consabido, a (peticionada pelos AA) declaração de Nulidade do negócio, faria retroagir os factos ao momento anterior à celebração do mesmo ou seja,
G. A uma realidade em que os AA seriam arrendatários de um imóvel propriedade da co-R BB, a qual prometera vender-lhes o mesmo e à qual, por conta desse prometido negócio, já lhe haviam entregado alguns milhares de Euros.
H. Sendo, por isso e na humilde perspectiva dos AA aqui recorrentes, evidente e objectivo, “o benefício /utilidade que obtêm com a procedência da presente acção” (nas palavras do Mmo Juiz a quo). Mais ainda,
I. Sempre com o máximo respeito, cremos que não cabe ao julgador, pronunciar-se quanto às opções processuais e às tomadas de posição das partes relativamente às acções de que entendem lançar mão para fazer valer os seus direitos
J. E nesses contexto e consideração, não se entende a referência constante da Sentença recorrida e acima transcrita, em que o Mmo Juiz a quo indicia (digamos assim) que ao invés desta acção, deveriam os AA ter ”exercido em acção própria, o seu direito de preferência”,
K. Sendo certo que, não obstante tal referência, a verdade é que a mesma, constando da Sentença recorrida, deveria ter suscitado a reflexão por parte do Mmo Juiz, nomeadamente
L. De que a procedência da Acção de Declaração de Nulidade do Negócio, na medida em que faria retroagir a situação ao momento anterior à celebração do negócio (como supra referido e explanado)
M. Permitiria que, sendo essa a vontade dos AA, lançassem então mão de acção destinada a fazer valer o seu direito de preferência, nos termos e prazos legais
N. O que, por si só, já seria (na nossa humilde opinião), prova cabal do seu interesse pessoal e directo no destino destes Autos ou seja,
O. A sua evidente Legitimidade Activa nos mesmos. Isto é, e a contrário do constante da Sentença recorrida,
P. É evidente que a procedência da acção, nos exactos termos configurados pelos AA, é susceptível de se traduzir, para eles, na obtenção de uma situação claramente vantajosa, sendo óbvia (a adjectivação é sempre nossa) a utilidade desta concreta lide, para os AA, aqui Recorrentes
Q. Não ocorrendo, pois, qualquer ilegitimidade dos AA nos Autos
R. Sendo os mesmos totalmente Interessados (e com interesse que se reputa óbvio e natural) num Processo que tem para eles (também óbvia) utilidade,
S. Termos em que, mostrando-se preenchidos os requisitos dos Artºs 30º/2 do CPC e 286º do CC
T. Deve a sua legitimidade activa ser declarada por V.Exas.,
U. Prosseguindo os Autos para produção de prova, como deve ser declarado por V.Exas.,
Pois só deste modo se poderá afirmar que está a ser feita JUSTIÇA
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A autora, notificada, contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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II.II. Questões a apreciar:
A única questão a apreciar nos autos refere-se a apreciar se os arrendatários, aqui recorrentes, são parte legítima num pleito judicial de declaração de nulidade de contrato de compra e venda do imóvel arrendado.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. –
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II.III. Apreciação do recurso:
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Os elementos relevantes na apreciação são os constantes da supra referida síntese.
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A decisão recorrida sustenta-se do seguinte modo:
Por força do que dispõe o artigo 30.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar e o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.
Esclarece o n.º 2 do citado normativo que o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
Nos termos do n.º 3 do citado artigo 30.º, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor.
Este pressuposto processual é apreciado em função da relação da parte com o objecto da acção.
Em suma, a procedência da excepção dilatória de ilegitimidade prende-se com o interesse em demandar ou em contradizer o prejuízo que advenha da demanda, sendo o critério legal suplectivo o da legitimidade dos sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Com a presente acção os Autores, que alegam ser arrendatários do imóvel que foi objecto de compra e venda, não requerem para si a coisa transmitida a terceiro relativamente à qual teriam o alegado direito de preferência (apenas invocado no artigo 5.º da PI e como «eventual» direito a exercer na acção executiva, que foi entretanto extinta), ou seja, não vêm propor uma acção de preferência.
Os Autores vêm com a presente acção pedir a nulidade do contrato de compra e venda, (...)
Estabelece o 286.° do Código Civil que a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.
Importa, assim, aferir do conceito de interessado para a invocação da nulidade.
Pode adiantar-se que o interessado em invocar a nulidade é o «sujeito de qualquer relação jurídica afectada, na sua consistência jurídica ou prática, pelos efeitos a que o negócio se dirigia» (cfr. Acórdão da RL de 17/06/2021 (...).
Ora, da alegação apresentada pelos Autores no âmbito dos presentes autos não parece emergir, por parte destes, qualquer interesse em demandar os aqui RR., já que a sua qualidade de arrendatários se manteve, tal como alegado pelos próprios (e decorre do documento n.° 3 junto com a PI). Ou seja, face à alegação apresentada pelos AA., pode concluir-se que a situação fáctica (e jurídica) dos demandantes se manteve/mantém (tendo apenas passado a ficar obrigados a pagar as respectivas rendas aos novos proprietários do imóvel/novos senhorios).
Face a isso, não tendo os Autores exercido em acção própria o seu direito de preferência (caso os respectivos requisitos legais estivessem preenchidos) e não sendo os AA. partes do contrato de compra e venda, ante a alegação apresentada, não se vislumbra o benefício/utilidade que obtém com a procedência da presente acção, atenta a qualidade de arrendatários que detêm.
Efectivamente a mera alegação de serem arrendatários do imóvel objecto do contrato de compra e venda (e a vaga alegação de lhes ter sido retirada a possibilidade de adquirir o imóvel em sede executiva, quando se limitam a mencionar que a execução foi extinta pelo pagamento, cfr. artigo 5.° da PI e artigo 3.° do requerimento de 26/06/2023) não permite, por si só, a percepção do interesse na demanda, nem a afirmação de um direito incompatível com o negócio jurídico realizado entre os 1.° a 3.° Réus, alvo de impugnação. Afigura-se-nos, pois, que, no caso vertente, não se mostra preenchido o conceito de interessado previsto no artigo 286.° do Código Civil.
Na aferição da legitimidade, urge ajuizar – repita-se –, na ponderação do concreto litígio, se a previsível procedência da acção, nos termos configurados pelos Autores, é susceptível de lhe trazer objectivamente uma situação de vantagem ou utilidade; traduzido na adopção do denominado critério da utilidade ou prejuízo, com enfoque no n.° 2 do artigo 30.° do Código de Processo Civil.
(...) Em conclusão, considera este Tribunal que os Autores não possuem a exigível legitimidade para a instauração da presente acção declarativa.
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Apreciando.
A legitimidade para a causa é um pressuposto processual positivo, quer isto dizer que traduz uma condição necessária para que os autos sigam e seja proferida a decisão de mérito.
A demonstração dos pressupostos processuais incumbe à parte ativa, sendo exatamente por isso que o seu desrespeito implica consequências para o seguimento do pleito instaurado, impedindo que o autor possa atingir a tutela jurídica que prossegue, pela verificação de uma exceção dilatória nominada – cf. art.º 576.º, n.º 1 e 2 e 577.º e) do Código de Processo Civil - CPC.
O critério aferidor da legitimidade está estabelecido na legislação processual desde a reforma de 1995/96, na sequência de conhecida disputa doutrinal – o interesse direto em demandar resulta da utilidade derivada da procedência da ação, apurando-se esta, em caso de dúvida, pela configuração do litígio feita pelo autor (art.º 30.º n.º 1 a 3 do CPC).1
A ilegitimidade das partes só ocorre, portanto, quando não estiver em juízo o titular da relação material controvertida.
A questão passa a ser a de saber se o arrendatário se encontra num dos polos de uma controvérsia jurídica, sabendo-se que tem uma relação de arrendamento com a contraparte (relação essa que não está diretamente em discussão) e não foi participante no ato jurídico cuja validade é discutida (contrato de compra e venda celebrado entre o proprietário e um terceiro).
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Avançando na análise, podem sintetizar-se da seguinte forma os fundamentos da decisão a quo:
a. Parte ativa legítima é a que tem interesse direto em demandar;
b. O interesse em demandar corresponde a uma vantagem com a procedência da ação;
c. A ação de nulidade pode ser instaurada por qualquer interessado, podendo este conceito substantivo ser aproximado daquele processual – o interessado será quem possa retirar uma vantagem da declaração de nulidade;
d. Os arrendatários autores não acionaram direito de preferência na venda, sendo esta a vantagem que poderiam ter relacionada com o negócio;
e. Não o tendo feito, a simples declaração de nulidade em nada afeta a sua posição, ficando obrigados nos mesmos termos do arrendamento em que se encontravam.
Se são certas as restantes premissas de análise, quanto a um destes vetores, o juízo apresentado é insuficiente, ou incongruente (dependendo da forma como for analisado).
Assim, não se pode dizer, com os elementos disponíveis nos autos (que são apenas a alegação da parte), se foi ou será instaurada alguma ação de preferência (questão da suficiência do argumento), embora neste ponto pareça existir um reconhecimento negativo implícito dos autores e, principalmente, não se deve restringir a um interessado na preferência essa via processual quando constate que o seu direito foi violado por um negócio que considere nulo (questão da consequência ou congruência do argumento).
Pondo a questão em termos simples, o direito conferido ao arrendatário pelo art.º 1091.º n.º 1 al. a) do Código Civil (CC) não pode traduzir-se numa limitação a questionar a própria validade do negócio, no limite impondo-lhe a obrigação de acionar a preferência em negócios que considerasse manifestamente inválidos (se o são efetivamente será uma questão de mérito, que nada afeta esta asserção).
Uma outra incongruência neste argumento é a que decorre das consequências jurídicas da procedência da ação – a declaração de nulidade do negócio determinará que tudo se passe como se este nunca tivesse existido – statuo quo ante, o que decorre da chamada eficácia ex tunc estabelecida pelo art.º 289.º do CC.
Neste contexto, procedendo a ação, será quase tautológico concluir que o direito de preferência retomará a sua integralidade e perfeição e, portanto, mesmo que não o tenham exercido, os arrendatários poderão livremente exercer a sua preferência em qualquer negócio futuro (incluindo algum que as mesmas partes entendessem concluir).
Se esta tipologia de vantagens, direta ou indiretamente relacionadas com a preferência, decorrem da alegação, há também um conjunto de interesses potenciais para os arrendatários, que foram referidos indiretamente pelos recorrentes, que são relevantes e devem ser considerados neste contexto.
Atente-se, em primeiro lugar, que a ação assenta na invocação de um vício na formação do contrato, por preterição de uma formalidade qualificada como essencial (a apresentação de licença de habitação), relacionada com a invocação de uma falsidade na escritura (a informação da antiguidade do prédio).
O requerente de declaração de nulidade, neste contexto, não tem que alegar, aliás nem deve, matéria impertinente para a ação e, portanto, uma apresentação de factos relacionados com interesses, atuais ou potenciais, seria sempre impertinente para a causa.
Em termos diretos, um arrendatário arguente de nulidade da compra e venda outorgada pelo seu senhorio pode ter interesse na declaração de invalidade por mera decorrência da sua posição jurídica.
A simples mudança de senhorio altera necessariamente a relação contratual, mesmo que esta se mantenha intocada na sua estrutura essencial, isto é, se mantenha a cedência de gozo de um imóvel e o valor da renda estabelecida.
A posição do novo senhorio é suscetível de alterar, e altera necessariamente, o quadro contratual em pontos muito relevantes, sendo suscetível, desde logo, de criar novas causas de cessação contratual (v.g., os fundamentos de denúncia pelo senhorio estabelecidos pelos artigos 1101.º e 1102.º do CC).
Quer isto dizer que não se pode, sem mais, dizer-se que é indiferente a um arrendatário ter um ou outro senhorio, mesmo que a renda se mantenha a mesma ou que a alteração da pessoa da contraparte não possa ser qualificada como um interesse para efeitos desta avaliação de legitimidade.
O mesmo se poderá dizer quanto às causas do vício invocado – a existência de uma licença de habitação ou a simples afirmação pública da antiguidade do prédio podem ter interesse para o arrendatário, que poderá simplesmente querer estar envolvido num relacionamento jurídico claro e respeitador da lei, ou até prevenir a possibilidade de tais declarações públicas poderem vir a ter alguma repercussão no seu direito ao gozo do locado (a declaração de falta de licença de habitação pode interferir na licitude da sua ocupação habitacional, podendo, no limite, até pôr em causa a possibilidade de gozo do arrendatário).
A especial relação do arrendatário com o imóvel e o contexto do contrato de arrendamento habitacional levam a que se deva concluir que a compra e venda, mesmo tratando-se de um negócio em que não participe, não é destituída de efeitos jurídicos para o inquilino, o que, só por si, estabeleceria tal interesse independentemente da invocação de qualquer direito de preferência ou da intenção de o exercer.
Diga-se que o acórdão desta Relação e secção citado na decisão recorrida (de 17/6/2021, Arlindo Crua, dgsi.pt)2 alinha-se com este entendimento (simplesmente a situação ali tratada é de inexistência de uma qualquer situação de vantagem atual para a posição jurídica da parte, traduzida numa mera expetativa, de onde decorreu a decisão de ilegitimidade).
O conceito de interessado (na declaração de nulidade) é amplo e abrange todos aqueles cuja esfera jurídica seja afetada pela mesma, o que será sempre o caso do arrendatário em relação à venda do imóvel que lhe foi cedido (seja pelo exercício da preferência, seja pela simples alteração na pessoa do contratante enquanto modificação do próprio conteúdo de direitos e obrigações recíprocos).
Alargando o olhar, deve dizer-se que esta análise comporta uma dupla noção de interessado: - o interessado direto em demandar (conceito processual) e o interessado na declaração de nulidade (conceito substantivo).
Dizem Pires de Lima e Antunes Varela3 que a nulidade pode ser invocada, diz a lei, por qualquer interessado, isto é, pelo titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afetada pelo negócio.
Diz Mota Pinto4 que a lei usa o conceito “qualquer interessado”, querendo significar que pode invocar a nulidade o “sujeito de qualquer relação jurídica afetada, pelos efeitos a que o negócio jurídico se dirigia”.
Seguindo estes passos, pode afirmar-se com segurança que, nas ações de nulidade, o legislador alargou a legitimidade substantiva a não participantes no negócio, o que decorre de um princípio de defesa ampla da ordem jurídica (todos os que tenham algum interesse conexo com o negócio podem ser chamados a defender a licitude de atos jurídicos), mas também decorre de critérios pragmáticos – se a faculdade de extirpar da ordem jurídica negócios nulos estivesse restrita aos contratantes certamente que a grande maioria destes manter-se-ia em vigor.
Há, portanto, também um interesse público a enformar claramente o sentido e a finalidade da norma que, aliás, permite também o conhecimento oficioso do vício.
Importa, assim, numa ação deste tipo considerar em primeiro lugar o conceito substantivo de interessado na declaração de nulidade, para só depois fazer uma correspondência com o conceito processual.
Neste contexto, o interessado na nulidade será até, tipicamente, um terceiro ao negócio (um credor, um herdeiro, um titular de um direito real ou pessoal de gozo conexo, etc.), sendo que as consequências da declaração são apenas diretas na própria ordem jurídica (alterando ou mantendo em vigor um ato nela realizado) e só reflexamente conferindo uma vantagem ao interessado na nulidade, terceiro ao negócio.
A situação tipicamente prevista é a do credor que vê o património do devedor reintegrado com o bem objeto de negócio nulo e, por isso, lhe confere ampla legitimidade para questionar o seu valor (expressamente consagrada pelo art.º 605.º do CC), mas o raciocínio é aplicável ao titular de um direito pessoal de gozo que pode ver o seu quadro contratual afetado e ser-lhe permitido ou negado o exercício de preferência.
O que ressalta sistematicamente deste art.º 605.º é a força dos argumentos de identidade ou maioria de razão face a situações paralelas, não um argumento a contrariu sensu, que limitasse ao credor tal faculdade de acionar a nulidade, algo que seria incompatível com o regime geral deste vício.
Porque o negócio impugnado se relaciona com uma posição contratual própria (alterando a pessoa do contratante e o conteúdo da posição jurídica deste) e porque é suscetível de afetar o exercício de um direito relativo à própria transmissão (a preferência), deve concluir-se que o negócio cuja validade é objeto dos autos interfere com direitos dos autores e que estes tirarão vantagem da procedência da ação.
Deve, assim, entender-se que o arrendatário tem também legitimidade para a ação de nulidade do negócio de venda.
É o que se decide, concedendo-se a apelação.
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III. Decisão:
Face ao exposto, concede-se a apelação e, revogando-se a decisão recorrida, declaram-se os autores legítimos para prosseguirem os presentes autos.
Custas pelos recorridos.
Notifique-se e registe-se. –
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Lisboa, 23 de outubro de 2025
João Paulo Vasconcelos Raposo
Ana Cristina Clemente
Paulo Fernandes da Silva
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1. Cf. João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. II, revisto e atualizado (1987), pág. 185 e seguintes.
2. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
3. Código Civil anotado, T. I, 4ª edição, Coimbra, p. 263.
4. Teoria Geral do Direito Civil. Reimp. Coimbra, 2005, p. 620.