Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa  | |||
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| Relator: | JOÃO PAULO VASCONCELOS RAPOSO | ||
| Descritores: |  CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS COMUNICAÇÃO CLIENTE CONSUMIDOR FIDELIZAÇÃO CLÁUSULA PENAL NULIDADE  | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/23/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: |  Sumário (da responsabilidade do relator): I. Deve ser qualificada como pedido de reapreciação do mérito da decisão uma pretensão recursória que sustente nulidade da sentença por erro de julgamento; II. Cabe à empresa prestadora de serviços de comunicação demonstrar, com factos concretos, a qualidade "profissional" de um cliente, não bastando afirmar que alguém está classificado como tal pela própria empresa; III. Na falta dessa demonstração, deve presumir-se que o contrato celebrado entre uma sociedade comercial prestadora de serviços de comunicação e um particular constitui uma relação entre uma empresa e um consumidor, a estes se equiparando legalmente as micro e pequenas empresas, assim como as organizações sem fins lucrativos; IV. É um referencial operativo de avaliação da proporcionalidade de cláusulas penais estabelecidas para o incumprimento contratual de consumidores com fidelização a regra estabelecida pelo art.º 136.º n.º 4 da LCE, que estabelece limites aos valores a cobrar pela empresa em caso de cessação voluntária do contrato por iniciativa do consumidor ocorrida durante esse período de fidelização; V. A cláusula penal desproporcionada inserida em contrato de adesão é nula e, consequentemente, o respetivo cumprimento não pode ser exigido.  | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: |  Decisão: I. Caracterização do recurso: I.I. Elementos objetivos: - Apelação – 1 (uma), nos autos; - Tribunal recorrido – Juízo Local Cível de Lisboa - Juiz 8; - Processo em que foi proferida a decisão recorrida – Ação de processo comum n.º 2683/24.7T8LSB; - Decisão recorrida – Sentença. -- I.II. Elementos subjetivos: - Recorrente (autora): - ---; - Recorrido (réu): - ---. -- -- I.III. Síntese dos autos: - Pediu a autora condenação do réu a pagar-lhe a quantia de €5.788,76, acrescida de juros de mora. - Sustentou tal pedido, em síntese, dizendo: - Em 16/6/2023 contratou com o réu uma prestação de serviços de telecomunicações, contra o pagamento mensal de €84,28 (valor a que acresceria IVA); - O réu obrigou-se complementarmente a devolver os equipamentos cedidos pela autora, no termo do contrato; - Convencionaram ainda um período de permanência obrigatória, ou fidelização, cujo incumprimento daria lugar a uma penalização contratual; - O réu, apesar de interpelado para esse efeito, não procedeu ao pagamento de faturas, que descreve; - Na sequência, a autora rescindiu o contrato; - O valor das faturas corresponde a serviços não pagos e, quanto à última das delas (novembro de 2023), também à penalização contratual; - O réu deve suportar os encargos que suportou com a cobrança, que descreve. - O réu, citado, não contestou; - Foi proferido despacho convidando a autora a aperfeiçoar a petição inicial e a pronunciar-se sobre eventual declaração de nulidade da cláusula penal, por desproporcional, cujos trechos relevantes têm o seguinte teor: Analisada a petição inicial, constata-se que a Autora funda a sua pretensão num contrato para prestação de bens e serviços de telecomunicações, sem concretizar os precisos termos e condições do alegado contrato que invoca como causa de pedir, não esclarecendo designadamente qual o período de permanência acordado entre as partes, nem qual o período de permanência alegadamente incumprido pelo Réu, nem qual a forma de cálculo do valor indemnizatório peticionado, a título de cláusula penal contratual, a que faz acrescer o valor do IVA, sem invocar qualquer fundamento para o efeito. Além disso, também não alega: - Qual a data em que procedeu à suspensão dos serviços em apreço; - Qual a data e a forma pela qual procedeu à rescisão do contrato celebrado com o Réu. Os documentos juntos à petição inicial são meios de prova e não meio idóneo de alegação de factos, não substituindo o ónus de alegação que impende sobre as partes. (...), convido a Autora a, no prazo de dez dias, apresentar nos autos petição inicial aperfeiçoada, por forma a suprir as deficiências supra enunciadas. (...) Mais se convida desde já a Autora a, em idêntico prazo de 10 dias, exercer o contraditório relativamente à eventual nulidade da cláusula penal por desproporcionalidade face aos danos a ressarcir – cfr. artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil. - Foi apresentado requerimento, em resposta, pela autora, designadamente referindo: - Que o contrato celebrado pelo Réu, em 16/6/2023, foi-o no âmbito da sua atividade profissional, obrigando-se o réu a manter o contrato pelo período de 36 meses, isto é até 16/6/2026; - Que, pelo facto de ter contratado para fins profissionais e não como um consumidor, o Réu beneficiou de um desconto de €47,72 no valor da mensalidade (€38,80 + IVA); - Por falta de pagamento de faturas, suspendeu os serviços em 23/10/2023 e depois rescindiu o contrato, reclamando o valor das faturas em dívida e a cláusula penal; - Em 23/10/2023 faltavam 32 meses para o termo do contrato, a mensalidade em vigor nessa data, sem IVA e sem descontos, era de €119,40; - O valor da cláusula penal foi computado considerando a mensalidade de €119,40, multiplicada por 32 meses, perfazendo o valor de €3.820,80, a que acresce IVA; - Não foi cobrado ao Réu nenhum valor de instalação de serviços, nem pela disponibilização de equipamentos para a utilização do serviço. - Após, foi proferido despacho declarando confessados os factos alegados na petição inicial; - A autora apresentou alegações; - Seguidamente foi proferida sentença, cujo dispositivo tem o seguinte teor: Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência: 1. Condena-se o Réu, ---, a pagar à Autora, ---, a quantia de € 394,15 (trezentos e noventa e quatro euros e quinze cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa aplicável às operações civis, computados desde o dia seguinte à data de vencimento das facturas em cujo pagamento o Réu é condenado até efectivo e integral pagamento, computando-se os juros vencidos à data da instauração da acção em € 13,03 (treze euros e três cêntimos); 2. Absolve-se o Réu do demais peticionado pela Autora. - Desta decisão, não se conformando a autora, veio recorrer, pela presente apelação. – -- II. Objeto do recurso: II.I. Conclusões apresentadas pela recorrente nas suas alegações: 1. A decisão recorrida, que absolveu do pedido em relação aos encargos com a cobrança e à cláusula penal por incumprimento do período de manutenção do contrato, é nula, por erro de julgamento e por violação dos deveres de gestão processual, do contraditório e da igualdade das partes, e carece de fundamento, devendo ser revogada 2. A sentença recorrida errou no julgamento, distorcendo a realidade factual, uma vez que, não obstante o alegado na PI e demonstrado por documento, não considerou, no enquadramento jurídico e na decisão, a totalidade das obrigações que resultaram dos contratos para a Recorrida, desde logo, a obrigação de manter o contrato pelo período acordado e a obrigação de pagar a cláusula penal em caso de incumprimento. 3. O pedido formulado nos autos não foi contestado, nem foi solicitado pelo Tribunal recorrido qualquer esclarecimento relativamente aos encargos com a cobrança ou ao valor da cláusula penal. Pelo que, caso existissem insuficiências sobre factos essenciais à causa não poderia o Tribunal a quo deixar de usar do dever de gestão processual previsto na lei, convidando ao seu suprimento. Não o tendo feito, o que constitui uma violação do que a Lei consagra. 4. Ademais e tendo o Tribunal a quo considerado confessados os factos articulados na PI declarou que poderia conhecer, imediatamente, do mérito da causa, sem necessidade de mais esclarecimentos ou provas. De outro modo e caso considerasse que a Recorrente teria de fazer prova sobre matéria de facto essencial à causa, não poderia deixar: - de notificar a Recorrente sobre a possibilidade de conhecer do mérito da causa e para se pronunciar sobre a eventual improcedência dos encargos com a cobrança e da cláusula penal, por falta de alegação e/ou prova; - de marcar audiência final, para que a Recorrente tivesse oportunidade de nela fazer toda a prova dos fundamentos da ação. 5. Não o tendo feito, o Tribunal recorrido violou o princípio do contraditório, tendo proferido uma decisão surpresa, e o princípio da igualdade das partes, já que decidiu em momento processual anterior ao julgamento e em claro benefício do Recorrido. 6. O Tribunal recorrido decidiu sem fundamento e errou na determinação da norma aplicável e na qualificação jurídica dos factos, porquanto: - a Recorrente alegou e peticionou os encargos com a cobrança e a cláusula penal por incumprimento do período de manutenção do contrato, concretizando o seu montante; - encargos com a cobrança e a cláusula penal cujos montantes não foram questionados pelo Recorrido; - nem o Tribunal a quo solicitou qualquer esclarecimento ou aperfeiçoamento; - e não preenchendo o Recorrido o conceito de consumidor, também não está em causa nos autos a cessação do contrato por sua iniciativa, tendo em vista a mudança de prestador de serviços; - sendo certo que, tendo o Recorrido contratado no âmbito da sua atividade profissional, com objetivo de lucro, na eventualidade das condições contratuais não lhe serem favoráveis, não celebraria um contrato com a Recorrente com obrigação de permanência, nem assumiria o seu cumprimento. De tudo quanto ficou exposto, resulta que, a decisão recorrida - é nula, por erro de julgamento (art.º 608º do CPC) e por violação dos deveres de gestão processual (art.º 6º do CPC), do contraditório (art.º 3º do CPC) e da igualdade das partes (art.º 4º do CPC); - carece de fundamento e deverá ser reformada, por erro na determinação da norma aplicável e na qualificação jurídica dos factos. Deverá, consequentemente, ser declarada nula e substituída por decisão que condene na totalidade do pedido, o qual não foi contestado. Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas., doutamente, suprirão, se requer seja dado provimento ao presente recurso. -- - Não foram apresentadas contra-alegações. – -- II.II. Questões a apreciar: A questão a apreciar é a de saber se a sentença enferma da apontada nulidade, por erro de julgamento, designadamente por invocada violação dos princípios do contraditório, da igualdade das partes e de respeito pelos deveres de gestão processual. Porque a questão pode ser enquadrada apenas como relativa ao mérito da decisão, cumpre fazer a análise da sustentação fáctica e jurídica da decisão. – -- Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. – --- II.III. Apreciação do recurso: -- Os elementos de facto relevantes são os constantes da supra referida síntese. – --- Fundamentos da sentença recorrida – quadro das questões em apreço: A decisão a quo, naquilo que concerne ao objeto recursório destes autos, declarou excessiva a cláusula penal invocada como fundamento de cobrança e qualificou como nulidade o correspondente vício. A decisão foi estabelecida como consequência dessa premissa – absolvição do pedido deduzido, na parte relativa à cláusula penal computada, por falta de sustentação legal. Sendo este o contexto da decisão, decorre diretamente dos elementos supra referidos que a cláusula penal foi computada pela recorrente fazendo uma dupla operação de cálculo: a. Considerando como preço contratado um valor superior ao que vinha sendo faturado, com a invocação de que tal correspondia a um desconto (que, presume-se, teria deixado de ser aplicável em consequência da falta de pagamento); b. Multiplicando o valor dessa mensalidade sem desconto pelo número de meses em falta, correspondentes ao período de fidelização contratual acordada. -- Antes de olhar especificamente para as nulidades invocadas, cumpre sanear o thema decidendum de referências feitas pela recorrente, que perpassam por diversas passagens das alegações e que podem ser referidas como um dever do tribunal condenar o réu no pedido, por não ter a ação sido contestada ou, em termos próximos, que a não contestação implica o reconhecimento de todo o direito da autora. É facto que o pleito configura uma ação não contestada, mas é uma evidência que, no regime processual atual e concretamente na forma seguida pela autora – processo comum, a falta de oposição a uma pretensão não corresponde a um efeito cominatório dito pleno, mas apenas semipleno – cf. art.º 567.º do Código de Processo Civil (CC). Quer isto dizer, em termos simples, que a ausência de contestação determina o mero reconhecimento dos factos alegados pelo autor, não uma confissão do pedido e, portanto, que tal linha de argumentação é destituída de sentido, impondo-se ao tribunal sempre avaliar dos fundamentos jurídicos apresentados pela parte ativa. Desta asserção, que é básica, emergem como elementos salientes de análise imediata a difícil sustentação de argumentos relacionados com a igualdade das partes e o dever de gestão processual, na medida que a retirada de sustentação jurídica a uma pretensão não contestada não traduz, a esta luz, qualquer desigualdade, mas apenas um juízo de falta sustentação jurídica de uma pretensão. A prolação de sentença neste contexto deve ser entendida como idêntica a qualquer outro processo e, portanto, pode abarcar todo o espetro de possibilidades decisórias, entre o totalmente procedente e o totalmente improcedente. Assim, a sentença é simplesmente o ato processual devido naquela concreta fase, subsequente à declaração de validade da citação; à declaração de confissão, pelo réu, da matéria factual apresentada pelo autor e das alegações por este juntas. Importa ainda, nesta sede de análise inicial, ressaltar a circunstância de o tribunal a quo não se ter limitado a proferir uma sentença não contestada, tendo previamente proferido um despacho pré-decisório, cujo objeto e função foi duplo: - Convidar ao aperfeiçoamento da petição inicial (designadamente quanto à factualidade concreta relativa a serviços prestados e sua faturação); - Convidar a pronúncia sobre eventual declaração de nulidade da cláusula penal, por desproporcionalidade (com expressa referência ao preceito legal relativo a proibição de decisões-surpresa – art.º 3.º, n.º 3 do CPC). Quer isto dizer também, numa análise prima facie, que a terceira base de invocação da recorrente – incumprimento do princípio do contraditório – terá dificuldades em se afirmar perante o iter processual seguido pelo tribunal. Decorre desta consideração que a decisão proferida assentou numa base factual estabelecida em dois articulados iniciais – a primeira petição e a aperfeiçoada – o que não pode senão ser entendido como uma ampla faculdade de alegação, compreendendo, aliás, todas as vias previstas na lei. Decorre ainda do efeito cominatório semipleno que, estando admitidos por acordo todos os factos alegados, não teria sequer objeto útil qualquer produção de prova que o tribunal ordenasse, sendo totalmente destituídas de sentido tais referências. A este propósito, cumpre assinalar também que, ao contrário do que parece sustentar a recorrente, o tribunal não tem qualquer dever de assegurar a procedência integral de ações não contestadas e, consequentemente, não tem qualquer dever de suprir faltas de alegação que considere verificadas, com essa finalidade. Tal seria, aliás e ao contrário do sustentado, uma clara violação da igualdade das partes, em prejuízo do réu não contestante. O dever de gestão processual que o tribunal tem que exercer, com vista a uma decisão de mérito tão completa e adequada à realidade substantiva quanto possível, é a de convidar o aperfeiçoamento do articulado, dever esse que foi cumprido. Feito este enquadramento, há condições para avançar. – -- b) Os invocados vícios da sentença – nulidade e erro de julgamento: A recorrente configura a sua posição recursória apenas no disposto no art.º 608.º do CPC, ou seja, num erro de julgamento. Quer isto dizer, portanto que, apesar de aludir a faltas no contraditório, na igualdade das partes ou no dever de gestão processual, a recorrente não estrutura a sua pretensão em qualquer vício na construção da decisão, ou no processo decisório, mas num vício do próprio conteúdo da decisão. Como referido, do enquadramento acima feito sempre resultaria evidenciado que o tribunal a quo deu efetiva oportunidade ao autor para se pronunciar sobre a nulidade da cláusula penal que veio a declarar na sentença e que esta foi proferida no momento processual próprio, pelo que a própria decisão e o conhecimento da questão relativa à cláusula penal eram, necessariamente, esperados pela parte e, nessa medida, não se vê como poderia ser apontado algum vício de nulidade na tipologia estabelecida pelo art.º 615.º do CPC. Em todo o caso, para que fique claro, não foi esse o caminho que a recorrente seguiu e, portanto, a análise a fazer, delimitada pela recorrente, deve partir da invocação de um erro de julgamento. Como lapidarmente se disse em acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/9/2010 (Álvaro Rodrigues)1 - o erro de julgamento ( error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa. A recorrente pretende, portanto, que seja declarado um erro que, olhando as razões apresentadas, será simultaneamente um error factis e um error juris, isto é, é configurado como uma errada apreciação factual e um errado juízo de direito. Tais erros, na perspetiva do recorrente, serão iluminados pelo desrespeito pelos princípios e deveres assinalados – contraditório; igualdade das partes e gestão processual. Se é este o caminho seguido pela recorrente, que não faz qualquer referência ao disposto no art.º 615.º do CPC, mas que qualifica o erro como uma nulidade da sentença, terá que se interpretar esta posição como uma invocação de erro de mérito na decisão e não uma verdadeira nulidade na sentença – vejam-se, a propósito desta distinção entre nulidade da decisão e erro de julgamento, entre todos, o recente acórdão desta Relação de 9/10 (Isabel Teixeira)2; o acórdão da Relação do Porto de 7/11/24 (Manuela Machado)3 e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/3/2022 (Leonor Rodrigues)4. -- c) O erro de facto: Chegando a este ponto, deve voltar-se um pouco atrás para salientar que a recorrente, apesar de não ter configurado um erro na construção da decisão, também comummente referido por erro na atividade, ao aludir a omissões do tribunal no apuramento da realidade factual, poderia, em rigor, estar a invocar uma verdadeiro vício desse tipo, apenas o subsumindo erradamente à luz do art.º 608.º e não do art.º 615.º. Assim, o apontado erro no apuramento dos factos é apresentado pela recorrente como uma omissão do tribunal em apurar a realidade relevante para a decisão, impondo-lhe, nessa perspetiva, que ordenasse a produção de prova necessária poderia ser reconduzido a esse tipo de invocação. Apesar do argumento não ser propriamente cristalino, a sua interpretação pode ser assim referida: – se o tribunal entendia que a matéria factual não era suficiente para a decisão tinha o dever de solicitar a apresentação da prova que tivesse por pertinente. Como quer que seja analisado, é um argumento manifestamente inconsistente. Repetindo o que se disse acima, toda a matéria factual foi dada por assente, por falta de impugnação, tendo inclusivamente o tribunal convidado o autor a completar e aperfeiçoar a sua petição inicial e, portanto, não só nunca poderá haver um erro de facto propriu sensu (na medida em que foram dados por assentes todos os factos alegados, sem qualquer margem para divergências), como também, caso se requalificasse a invocação para a enquadrar à luz de um vício na formação da decisão (art.º 615.º), sempre teria que se dizer que o tribunal praticou todos os atos processualmente admissíveis para suprir qualquer insuficiência a esse nível. Se a autora o não fez, sibi imputet. Quer isto dizer, em conclusão, que nenhuma outra atividade o tribunal poderia ter praticado nos autos para construir uma decisão diferente. A circunstância de constar na decisão recorrida um juízo com o seguinte teor: - a "autora não alega nem qualquer o equipamento disponibilizado e respectivo valor, nem qual o custo associado à instalação do serviço" não põe em causa, em nenhuma medida, esta conclusão. O tribunal só tem que considerar os factos alegados, que são os assentes porque não foram objeto de impugnação, no caso até alegados em dois momentos processuais. A partir dessa base factual, o tribunal constrói os juízos jurídicos que tiver por relevantes, sendo certo, em todo o caso, que tal referência traduz um argumento meramente coadjuvante e subsidiário usado na sentença. Quer isto dizer, sem necessidade de maiores considerações, que não se pode considerar qualquer erro na decisão de facto (por estarem assentes todos os alegados), nem qualquer vício na construção da decisão de facto. Nesta parte é clara a inconsistência do recurso. -- d) O invocado erro de direito – a cláusula penal – a classificação do réu como consumidor ou profissional: A questão central que subsiste refere-se, portanto, ao mérito substantivo da decisão, i.e., saber se se deve manter o juízo de desproporcionalidade da cláusula penal e, na afirmativa, avaliar se o tribunal qualificou devidamente como nulidade o correspondente efeito. Analisando por partes. Quanto ao juízo de proporcionalidade da cláusula a se, disse-se na decisão recorrida: A fidelização existe para compensar a operadora da despesa acrescida implícita na promoção que lhe está associada e a cláusula penal permite, por um lado, contrabalançar, através da fixação acordada de uma indemnização, o custo associado ao desrespeito pelo utente do compromisso assumido que tornou inútil o benefício concedido, e, por outro, impede um ganho injustificado do utente que, não sendo penalizado pelo incumprimento, poderia obter os ganhos contratualizados com a operadora e concedidos por esta em função de uma permanência temporalmente assegurada, sem depois ter qualquer ónus associado a uma ruptura antecipada com o acordado. (...) Sucede que, no caso vertente, atentos os seus contornos, não podemos deixar de considerar esta cláusula penal manifestamente desproporcionada aos danos a ressarcir. (...) É precisamente isso que ocorre no caso vertente. Na verdade, impressiona desde logo a circunstância do valor do desconto aplicado, caso o contrato vigorasse até ao fim – por um total de 36 meses – totalizar o valor de € 1.718,06, quando o valor da cláusula penal cujo pagamento a Autora peticiona perfaz o valor de € 3.820,80 + IVA. Atente-se, aliás, que o valor peticionado pela Autora a este título ultrapassa o valor que o Réu teria que pagar caso mantivesse o contrato até ao fim, pois que neste caso beneficiaria do desconto na mensalidade, enquanto para o cálculo da cláusula penal tal desconto não é contabilizado. De resto, a circunstância da Autora não ter cobrado ao Réu nenhum valor de instalação de serviços, nem pela disponibilização de equipamentos para a utilização do serviço, não é susceptível de afastar a desproporcionalidade assinalada, para mais quando é certo que a Autora não alega nem qualquer o equipamento disponibilizado e respectivo valor, nem qual o custo associado à instalação do serviço. Traduzindo em termos simples este juízo, pode dizer-se que o tribunal de 1.ª instância afirmou tal desproporcionalidade com base em duas considerações: a. No valor global da indemnização apurada, por referência ao valor cobrado mensalmente pelos serviços prestados; b. Na circunstância de implicar um pagamento superior ao que seria devido caso o contrato fosse integralmente cumprido no período de fidelização. É a consistência substantiva desta avaliação que cumpre reavaliar. Considerando o que está assente e as posições que o recorrente tomou nos autos, a única questão estritamente referida à substância do juízo de desproporcionalidade refere-se à não qualificação do réu como consumidor. A recorrente sustenta, portanto, que o réu não tem essa qualidade e, depreende-se deste argumento, que entende que lhe serão inaplicáveis as especiais garantias conferidas a essa tipologia de clientes, ditos particulares. Avançando, deve começar-se por assinalar que o juízo de desproporcionalidade formulado a quo não faz qualquer referência à qualidade do cliente e, nessa medida, não se pode considerar que este argumento sequer contrarie diretamente o que foi decidido. Apesar disso, não pode deixar de se referir que a qualificação do cliente como profissional, feita pela recorrente, não vem associada nos autos a qualquer alegação de suporte e, por consequência, é absolutamente desconhecido se o local de fornecimento era uma habitação ou um estabelecimento comercial, ou qualquer outra circunstância de facto que pudesse relevar nessa classificação. O que se sabe nos autos é que o réu é uma pessoa singular e que está classificado pela autora, enquanto entidade empresarial prestadora de serviços de comunicação, como cliente profissional ou empresarial. Importa considerar que a qualificação do cliente como consumidor ou como profissional não é, pelo contrário, inócua à luz da lei. De acordo com o disposto no artº 3.º al. h) da Lei n.º 16/2002 – Lei das Comunicações Eletrónicas (LCE), consumidor deste tipo de serviços será a pessoa singular que utiliza ou solicita um serviço de comunicações eletrónicas acessível ao público para fins não profissionais. Assinalando que a classificação legal está ligada ao fim ou prática contratual, não à natureza ou forma jurídica da pessoa a quem o serviço é prestado, é de admitir que o negócio não tenha correspondido a uma efetiva ligação contratual entre uma empresa e um consumidor, como sustenta a recorrente. A verdade é que nada existe nos autos que permita suportar tal qualificação, que se torna, portanto, uma mera categorização interna da empresa de comunicações e, em termos processuais, um mero juízo conclusivo não fundamentado. Dizendo em termos simples, a autora teria que ter alegado factos que permitissem sustentar a finalidade profissional dos serviços prestados. Não o tendo feito, não se pode considerar estabelecido, sem mais, que o contrato tenha sido celebrado com tal fim (ou o seu contrário). Importa ainda considerar, a propósito da classificação do cliente réu como consumidor, o disposto no art.º 136.º n.º 7 da LCE, que estabelece garantias específicas a esta tipologia de contratantes, quando se encontrem em situação de fidelização. Diz-se nesse preceito que o regime de proteção de consumidores fidelizados é igualmente aplicável aos utilizadores finais que sejam microempresas, pequenas empresas ou organizações sem fins lucrativos, salvo se as referidas empresas e organizações renunciarem expressamente à proteção conferida por essas disposições. Quer isto dizer que a invocação da natureza de não consumidor do réu não se pode considerar estabelecida nos autos, seja porque não se estabelece um fim profissional, seja porque, mesmo que se estabelecesse tal fim, sempre haveria que indagar se a extensão legal da proteção a micro e pequenas empresas não seria aplicável ao caso. Assim, o argumento que sustente que, de um lado, houve um desconto especial devido à circunstância de se tratar de um contrato comercial e, de outro, de serem inaplicáveis especiais necessidades de proteção dos consumidores, não corresponde à matéria factual dos autos. O que se retira da matéria assente é uma mera categorização ou classificação interna do cliente feita pela própria empresa, não uma situação de facto subsumível a qualquer classificação correspondente à efetiva finalidade do negócio. Porque as regras previstas na LCE são indubitavelmente imperativas, a mera classificação interna dos clientes feita pela empresa prestadora não pode subsistir, sob pena de esvaziamento das garantias legais dadas aos consumidores e entidades análogas. Importa considerar, a concluir este ponto, que é perfeitamente possível, considerando até a situação do tecido económico português, com ampla prevalência de micro e pequenas empresas, muitas delas instaladas nos próprios domicílios dos seus representantes, que exista uma situação de indefinição no fornecimento de comunicações, abrangendo finalidades profissionais e domésticas. Todavia, na falta de qualquer elemento de facto alegado quanto ao seu fim, um contrato entre uma sociedade comercial prestadora de serviços e um particular deve presumir-se que foi celebrado com um consumidor, a menos que resulte factualmente demonstrada a qualidade profissional do cliente. É, portanto, a partir de uma relação contratual empresa-consumidor que a análise deve fazer-se. -- e) As regras aplicáveis a clientes fidelizados – critérios para avaliação de proporcionalidade de cláusulas penais pela cessação de contratos destes clientes: Avançando na análise e dirigindo-a às regras relativas à situação de clientes fidelizados, a LCE é clara na admissão de tais períodos de fidelização contratual, que define na alínea ee) do referido art.º 3.º como o período durante o qual o utilizador final se compromete a não denunciar um contrato ou a não alterar as condições acordadas. Em termos materiais, todavia, a lei estabelece restrições claras aos prestadores de serviços quanto a valores a cobrar em caso de cessação contratual da iniciativa do consumidor durante período de fidelização, não permitindo prestador de serviços cobrar integralmente as prestações vincendas. Dispõe o n.º 4 deste artigo 136.º, para essa cessação de contrato por iniciativa do consumidor fidelizado que: Os encargos pela cessação antecipada do contrato com período de fidelização por iniciativa do consumidor não podem exceder o menor dos seguintes valores: a) A vantagem conferida ao consumidor, como tal identificada e quantificada no contrato celebrado, de forma proporcional ao remanescente do período de fidelização; b) Uma percentagem das mensalidades vincendas: i) Tratando-se de um período de fidelização inicial, 50 /prct. do valor das mensalidades vincendas se a cessação ocorrer durante o primeiro ano de vigência do período contratual e 30 /prct. do valor das mensalidades vincendas se a cessação ocorrer durante o segundo ano de vigência do período contratual; ii) Tratando-se de um período de fidelização subsequente sem alteração do lacete local instalado, 30 /prct. do valor das mensalidades vincendas; iii) Tratando-se de um período de fidelização subsequente com alteração do lacete local instalado, aplicam-se os limites estabelecidos na alínea i). Quer isto dizer, vertendo à situação dos autos, considerando que o desconto no preço deve ser considerado como uma vantagem identificada no contrato e que se trata de um contrato cessado no primeiro ano do primeiro período de fidelização, que o prestador apenas poderia cobrar pela cessação o equivalente ao menor destes valores: a. O correspondente à soma dos descontos acordados relativo às faturas vincendas; b. O equivalente a 50% do valor das prestações vincendas. Quanto a estas (as prestações vincendas), o valor que teria que ser computado teria que ser o acordado e efetivamente praticado, por forma a dar sentido a esta garantia (e não, portanto, o valor das prestações desconsiderando o desconto em vigor). Ainda que estas regras estejam previstas para a cessação voluntária de contrato pelos consumidores fidelizados, constituem um claro referencial para o juízo de proporcionalidade da cláusula penal aplicada. O sentido da lei é precisamente o de conformar os direitos contratuais do prestador de serviços e uma adequada proteção dos consumidores, prevenindo que a cessação contratual possa dar lugar a pagamentos desproporcionais, em desfavor do consumidor. Nessa medida, porque a analogia é clara, o quadro legal deve convocado para modelar o juízo de proporcionalidade da cláusula penal feito a quo, servindo como critério aferidor do mesmo. Nestes termos, perante um preço mensal efetivamente acordado e praticado de €84,28 (mais IVA), que deu lugar a uma resolução por incumprimento do devedor no pagamento de faturas cinco meses após a contratação, aplicar uma penalização ao consumidor equivalente a todo o período contratual vincendo, eliminando a vantagem no preço que era conferida pela existência de fidelização, permite sustentar um efetivo juízo de desproporcionalidade da pena contratual. Dir-se-á até que o juízo de proporcionalidade feito a quo foi mais benévolo que o que resultaria de uma consideração direta do referencial estabelecido na LCE. Assim, se a decisão recorrida, ao aludir a um valor total das faturas vincendas equivalente a €1.718,06 afirma a desproporcionalidade de uma cláusula penal quantificada em €3.820,80, daí eventualmente se podendo inferir que poderia ser admitida uma cláusula que não excedesse tal primeiro valor (i.e., o equivalente à totalidade das faturas vincendas), a verdade é que, à luz deste critério, a penalização contratual máxima admitida corresponderia a 50% desse valor, i.e., ao equivalente a €859,03. Quer isto dizer que não se prefigura, pelo contrário, qualquer erro no juízo jurídico de desproporcionalidade da cláusula penal formulado a quo. Não se vê também, pelas razões acima referidas, que tal juízo decorra de qualquer falta de igualdade das partes, de preterição do contraditório e de algum dever de gestão processual. O tribunal deu à autora a oportunidade de completar ou aperfeiçoar a sua alegação, de se pronunciar sobre a proporcionalidade da cláusula e, após, formulou, no momento processual próprio, o juízo jurídico que entendeu por pertinente. Nada há a censurar na materialidade do juízo ou no caminho seguido para o mesmo. -- f) As consequências jurídicas da desproporcionalidade: Estabelecido o juízo de desproporcionalidade, deve considerar-se compreendida no objeto recursório a avaliação da sustentação jurídica do caminho seguido, com um expresso pedido de revogação do mesmo, mas não a formulação de qualquer juízo alternativo abstratamente configurável, v.g., a sua redução com base no art.º 812.º do Código Civil (CC) – a propósito veja-se o acórdão do STJ de 12/9/2019 (Catarina Serra)5. Diga-se que a redução equitativa deveria partir de uma solicitação do próprio obrigado, algo que, manifestamente, não se mostra possível numa ação não contestada (a propósito, veja-se o acórdão desta Relação de 9/5/2024, Laurinda Gemas)6. Quer isto dizer, portanto, que cumpre apenas avaliar se é sustentado o juízo jurídico de qualificação como nulidade da cláusula penal aplicada. A primeira consideração a estabelecer é que esta cláusula tem clara função indemnizatória ou compensatória, sendo-o em sentido estrito, destinando-se a fixar antecipadamente o valor que o prestador de serviços de comunicação teria direito por incumprimento contratual (a propósito da classificação de cláusulas penais como strictu sensu; indemnizatórias/moratórias e compulsórias veja-se o acórdão STJ de 27/9/2011, Nuno Cameira)7. Estabelecido este quadro, é linear o juízo jurídico do mesmo decorrente. A cláusula penal cujo acionamento é objeto dos autos está, indisputadamente, inserida num contrato pré-elaborado pelo operador de comunicações, elemento que deve ser atendido, por resultar diretamente dos autos, ainda que não tenha sido expressamente especificado na sentença recorrida. É-lhe, assim, aplicável o disposto no regime legal das cláusulas contratuais gerais. aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25/10. Neste quadro legal, estabelecida a desproporcionalidade da cláusula, emerge como sua consequência direta a respetiva nulidade, ex vi art.º 12.º e 19.º al. c) do diploma antes referido, como decidido a quo (cf., por todos, acórdão do STJ 18/1/2022, Isaías Pádua)8. Também neste ponto, a decisão de 1.ª instância não merece censura. --- Quer isto dizer, em conclusão, que o recurso é integralmente improcedente, devendo manter-se na íntegra a sentença proferida a quo. É o que se decide, negando-se a apelação. -- --- III. Decisão: Face ao exposto, nega-se a apelação, mantendo-se a decisão recorrida. Custas pela recorrente. Notifique-se e registe-se. – --- Lisboa, 23 de outubro de 2025 João Paulo Vasconcelos Raposo Teresa Bravo Paulo Fernandes da Silva __________________________________________________ 1. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 2. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 3. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto 4. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 5. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 6. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 7. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 8. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça  |