Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5073/07.2TVLSB.2.L1-8
Relator: RUI OLIVEIRA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CASO JULGADO
CRÉDITO LITIGIOSO
ACÇÃO DECLARATIVA
EXTINÇÃO
HOMOLOGAÇÃO DO PLANO
EFEITOS EM RELAÇÃO A CONDEVEDORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário (da responsabilidade do relator):
I – O processo especial de revitalização (PER) não se destina a resolver litígios sobre a existência e amplitude dos créditos e a decisão sobre a reclamação de créditos é meramente incidental, não produzindo caso julgado fora do processo;
II – As acções declarativas que versem sobre créditos litigiosos que não foram objecto de reconhecimento (com eventual modificação) no PER estão excluídas da extinção imposta pelo n.º 1 do art. 17.º-E do CIRE, na redacção anterior à vigente;
III – A decisão de homologação do plano de recuperação não produz efeitos em relação a terceiros, nomeadamente os condevedores.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1.1. Épocalider, Lda., deduziu, em 11.12.2018, incidente de liquidação de sentença, nos termos dos Arts. 609.º, n.º 2, e 358.º e segs. do CPC, contra Camilo Sousa Mota & Filhos, S.A., e CME - Construção e Manutenção Electromecânica, S.A., pedindo que estas sejam «condenadas solidariamente entre si a pagarem à A. o valor de 638.738,10 €, acrescido dos respectivos juros de mora, vencidos e vincendos, às taxas legais supletivas em vigor para as obrigações comerciais, desde a notificação da liquidação e até efectivo e integral pagamento», em liquidação do ponto 3 da decisão transitada em julgado em 15.12.2016, cujo teor é o seguinte: «3. condenar solidariamente as Rés (Camilo Sousa Mota & Filhos, S.A. e CME - Construção e Manutenção Electromecânica, S.A.) a pagarem à Autora (Épocalider, Limitada) a indemnização correspondente aos custos acrescidos suportados por ela com a sua permanência em obra sem poder executar trabalhos, por um número de dias úteis não superior a 231, imposta mercê das suspensões ordenadas pelas Rés, da falta de elementos técnicos a fornecer por elas, e de serviços que lhe foram afectados não previstos inicialmente, relegando o apuramento desse custo para ulterior incidente de liquidação».
1.2. As RR. deduziram oposição, a que a A. respondeu por escrito, após o que, com dispensa da audiência prévia, foi proferido despacho saneador em 21.10.2020, que: julgou não ocorrer inutilidade da lide determinada pela aprovação do plano de revitalização da 1.ª R. no âmbito do Processo Especial de Revitalização (PER) n.º 1529/14.9TBPRD; julgou improcedentes as excepções dilatórias deduzidas; fixou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.
1.3. Foi realizada prova pericial, após o que foi designada data para a realização da audiência final, que não chegou a realizar-se em virtude da decisão, proferida em 21.09.2019, no âmbito do PER n.º 867/19.9T8AMT relativo a 1.ª R., sobre a reclamação de créditos aí deduzida pela aqui A. e que fixou a indemnização que esta peticiona no presente incidente (cfr. acta da audiência de 06.11.2023).
1.4. Após obtenção de informações relativas ao trânsito em julgado da referida decisão e da homologação do plano de revitalização da 1.ª R., foi, em 28.01.2025, proferida sentença que declarou «a inutilidade superveniente da lide na medida em que o valor indemnizatório, objeto do presente incidente, já foi liquidado e fixado por decisão na reclamação apresentada no PER pela aqui A., e englobada no plano de pagamentos da 1R. que foi homologado, estando o processo especial de revitalização da 1R encerrado» e condenou a A. nas custas, por ter dado «azo à inutilidade sem a comunicar».
1.5. Inconformada, apelou a A., pedindo que tal decisão seja revogada e que seja ordenado o prosseguimento dos autos, formulando, para tanto, as seguintes conclusões:
«1. Por sentença transitada em julgado em 15/12/2016 as aqui RR foram, entre outras condenações, condenadas a solidariamente a pagarem à Autora a indemnização correspondente aos custos acrescidos suportados por ela com a sua permanência em obra sem poder executar trabalhos, por um número de dias úteis não superior a 231, imposta mercê das suspensões ordenadas pelas Rés, da falta de elementos técnicos a fornecer por elas, e de serviços que lhe foram afectados não previstos inicialmente, relegando o apuramento desse custo para ulterior incidente de liquidação;
2. A 1ª R. encontrou-se em situação de Processo Especial de Revitalização que correu termos sob o número 867/19.9T8AMT, no Juiz 4 do Tribunal de Comércio de Amarante, no âmbito do qual a aqui A. reclamou créditos englobando um crédito da sentença proferida nestes autos principais e o crédito ora objecto de liquidação;
3. O dito PER foi homologado por despacho de 24/9/2019, transitado em julgado em 14/10/2019;
4. Nos autos de PER a A. reclamou a título de indemnização objecto da liquidação em apreço a quantia de 638.738,10, tendo a mesma sido objecto de impugnação pela devedora e fixado judicialmente esse valor indemnizatório em €63.873,81 (despacho de 24/9/2019);
5. O PER em apreço encontra-se arquivado desde 30/10/2023, não havendo notícia do seu incumprimento.
6. O PER não se compadece com a produção de prova testemunhal, por declarações de parte, por confissão provocada e pericial requerida pelas partes, dados os curtíssimos prazos estabelecidos na lei para este procedimento.
7. As impugnações de que sejam alvo os créditos incluídos pelo administrador judicial na lista provisória de créditos e as decisões que sobre essas reclamações recaírem não operam caso julgado material, já que as reclamações de crédito no âmbito do PER têm como único objectivo, por um lado, legitimar a intervenção do credor no PER e, por outro, calcular o quórum deliberativo e a maioria prevista no n.º 3 do artigo 17.º-F, sendo certo a incompatibilidade do funcionamento do caso julgado material com a natureza célere e simplificada do PER.
8. Na verdade, o PER não tem como finalidade dirimir litígios sobre a existência, natureza ou amplitude dos créditos dos credores perante o devedor.
9. A natureza célere do PER não se compadece com tais finalidades.
10. As decisões que recaiam sobre as reclamações de créditos são meramente incidentais, pelo que, nos termos do n.º 2 do artigo 91.º do CPC, não constituem caso julgado fora do respectivo processo
11. No que concerne aos credores cuja qualidade não foi reconhecida no processo de revitalização ou em relação aos quais se discuta o respectivo montante, porque esse alegado crédito ou a respectiva extensão não foi reconhecida para efeitos de pagamento previsto no plano de recuperação, o litígio quanto a esses créditos permanece por solucionar.
12. A fixação do montante em causa em sede do PER tem como objectivo a já determinação do número de votos a atribuir ao credor, o que é efectuado sem prejuízo do direito do credor quantificar, pelo incidente de liquidação, o concreto montante em débito.
13. Não há caso julgado nem autoridade deste que obstem a que o Tribunal recorrido conheça ou que condicionem esse conhecimento do mérito da causa no presente incidente de liquidação.
14. Não há nenhum facto que tenha ocorrido posteriormente ao início do presente processo que determine a sua inutilidade».
1.6. Apenas a 2.ª R. contra-alegou, pronunciando-se pela manutenção da decisão recorrida, alinhando as seguintes conclusões:
«O crédito da Recorrente já se encontra liquidado (e os termos do seu pagamento regulados), tornando-se inútil o prosseguimento da presente ação
A. O crédito que a Recorrente liquida e cuja condenação ao pagamento peticiona nos presentes autos foi alvo de reconhecimento e liquidação superveniente no âmbito de um PER, em que era Devedora a aqui 1.ª Ré, e que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo do Comércio de Amarante (Juiz 4) sob o n.º de processo 867/19.9T8AMT.
B. Em concreto, naquela sede, a Recorrente reclamou o crédito indemnizatório em discussão nesta sede, aduzindo os mesmos fundamentos a que recorreu no requerimento inicial do presente incidente de liquidação, e terminou liquidando o crédito pelo exato montante aqui liquidado (EUR 638.738,10). O crédito reclamado pela Recorrente foi incluído na lista provisória de créditos elaborada pelo Sr. Administrador Judicial Provisório nomeado no PER; nessa sequência, a 1.ª Ré deduziu impugnação à lista provisória de créditos, por referência, entre outros, ao montante do crédito indemnizatório em causa nestes autos. A referida impugnação foi objeto de decisão judicial que reconheceu e fixou (em rigor, liquidou) definitivamente o montante do crédito indemnizatório detido pela Recorrente, em EUR 63.873,81. O crédito indemnizatório da Recorrente foi, por fim, incluído na lista definitiva de créditos, pelo montante acima fixado e com a natureza de crédito comum.
C. Ainda no âmbito do PER, os credores aprovaram um Plano de Recuperação da 1.ª Ré que veio a ser objeto de sentença homologatória, proferida em 06.11.2019 (e transitada em julgado em 25.08.2020). O Plano de Recuperação da 1.ª Ré prevê os termos e condições de satisfação do crédito indemnizatório da Recorrente, aqui em discussão (designadamente, quanto ao respetivo quantum e ao momento do pagamento).
D. Assim, o PER da 1.ª Ré teve como efeitos, no que ora releva: (i) fixar/liquidar o montante do crédito indemnizatório da Recorrente em discussão nestes autos (através da decisão judicial que recaiu sobre a impugnação da 1.ª Ré à reclamação de créditos apresentada pela Recorrente); e (ii) redefinir / regular o modo de satisfação / pagamento das dívidas da 1.ª Ré sobre a Recorrida - de entre as quais o crédito aqui em discussão -, modificando em termos definitivos o conteúdo das prestações obrigacionais a que a 1.ª Ré se encontra obrigada (através dos termos previstos no Plano de Recuperação da 1.ª Ré, aprovado pela maioria dos credores desta e homologado judicialmente).
E. Adicionalmente, o Plano de Recuperação da 1.ª Ré não previu a continuação dos presentes autos para discussão do crédito indemnizatório aqui invocado pela Recorrente.
F. De acordo com o disposto no artigo 17.º-F, n.º 11 do CIRE, a decisão de homologação do Plano de Recuperação da 1.ª Ré vinculou a empresa e todos os seus credores, incluindo a aqui Recorrente (e mesmo que esta não houvesse reclamado – como reclamou - os seus créditos e / ou participado – como participou - nas negociações).
G. De acordo com o exposto, o efeito jurídico que a Recorrente pretende extrair dos presentes autos (a liquidação e a condenação no pagamento do crédito indemnizatório por si detido) verificou-se já no âmbito do PER da 1.ª Ré, encontrando-se, por conseguinte, prejudicado, sob pena de duplicação. A decisão judicial que recaiu sobre a impugnação do crédito indemnizatório da Recorrente, mas também o Plano de Recuperação da 1.ª Ré e a respetiva sentença homologatória, têm de se projetar nos presentes autos, em termos equivalentes aos da figura da autoridade de caso julgado (cfr. artigos 580.º e 619.º, n.º 1 do CPC), conduzindo à inutilidade superveniente da presente lide, e, por conseguinte, à extinção da mesma, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e) do CPC.
H. Desta forma, e conforme clarificado na Decisão Recorrida, previne-se não só (i) a repetição da discussão da exata questão por um outro Tribunal (o que exponencia a preservação da unidade do sistema jurídico e da segurança jurídica), como também (ii) a colocação da esfera patrimonial das Recorridas numa situação de excessiva e inadmissível sujeição à Recorrente.
I. Isto porque, no caso de a presente ação prosseguir, (i) a Recorrente obteria um segundo título executivo contra as Recorridas (em particular, contra a 1.ª Ré): a putativa decisão final a proferir nestes autos, para além da sentença homologatória do Plano de Recuperação da 1.ª Ré; mas também (ii) alcançaríamos o cenário de a Recorrente ser paga em duplicado por referência a um só crédito (ora através do acordo de pagamentos firmado no Plano de Recuperação, ora através da decisão de condenação das Rés a proferir no âmbito do presente incidente), o que redundaria numa contradição insuperável de julgados e num favorecimento inadmissível da Recorrida em detrimento dos restantes credores da mesma natureza (comum) – que o legislador veda, quer através da figura do caso julgado, quer também através do princípio fundamental par conditio creditorum (cfr. artigo 194.º do CIRE e artigo 604.º, n.º 1 do Código Civil).
A presente ação sempre teria de ser extinta, após o trânsito em julgado da decisão de homologação do Plano de Recuperação da 1.ª Ré, por impossibilidade legal de prosseguir
J. A acrescer a todo o acima exposto, é também a lei, de modo direto, a determinar e impor a extinção da presente ação.
K. Nos termos do disposto no artigo 17.º-E, n.º 1 do CIRE, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de junho (aplicável no caso em apreço), o despacho de nomeação do Administrador Judicial Provisório no âmbito do PER obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra a empresa e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.
L. Daqui resulta, com relevância para este caso, que, após o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação da 1.ª Ré, todas as ações em curso para cobrança de dívidas e com idêntica finalidade relativas a créditos sobre o Devedor reclamados e reconhecidos no âmbito do PER, são imediatamente extintas, a menos que o Plano de Recuperação disponha em sentido contrário.
M. Por um lado, o Plano de Recuperação da 1.ª Ré não prevê a continuação dos presentes autos para discussão do crédito indemnizatório aqui invocado pela Recorrente.
N. Por outro lado, a Jurisprudência dominante dos nossos Tribunais Superiores entendeu que as ações para cobrança de dívidas e ações em curso com a mesma finalidade correspondem tanto às ações declarativas de condenação (designadamente, de condenação do devedor ao pagamento de um crédito) como às ações executivas. No caso vertente, sem sombra de dúvida, estamos perante uma ação declarativa condenatória (cfr. artigo 10.º, n.os 1, 2 e 3, alínea b) do CPC), na medida em que a Recorrida pretende que “as RR. [sejam] condenadas solidariamente entre si a pagarem à A. o valor de 638.738,10 €”.
O. Desde já se torna, portanto, evidente que a presente ação teria de ter sido extinta imediatamente após o trânsito em julgado da decisão de homologação do Plano de Recuperação da 1.ª Ré (não merecendo, portanto, reparo a Decisão Recorrida, que concluiu neste sentido).
P. Além disto, verifica-se que, com fundamento na norma do artigo 17.º-E, n.º 1 do CIRE (na sua redação anterior, aplicável ao caso vertente), os Tribunais Superiores portugueses sustentaram recorrentemente que, mesmo em situações como a vertente – em que o Credor tenha visto os seus créditos serem apreciados e reconhecidos, ainda que apenas parcialmente, no âmbito de um PER - deve ser extinta a ação em curso para cobrança daqueles créditos após o trânsito em julgado da decisão judicial de homologação do Plano de Recuperação do devedor (exceto se o mesmo previr a continuação da referida ação).
Q. Isto porque, independentemente de o crédito ter sido reconhecido em PER por um valor inferior àquele cujo pagamento é peticionado em ação declarativa conexa (como é o caso destes autos), o credor encontra-se vinculado aos efeitos decorrentes do Plano de Recuperação homologado (designadamente, redefinição do modo de satisfação dos créditos). Assim, a ação judicial paralela em que a mesma questão é discutida perde causa de subsistir.
R. De resto, conforme também reconhecido pelos nossos Tribunais Superiores, os principais objetivos inerentes ao PER e, em concreto, ao disposto no artigo 17.º-E, n.º 1 do CIRE (quais sejam os de promover a revitalização das empresas devedoras, evitando a sua insolvência, conferindo-lhes em concreto um período de proteção em que não podem ser surpreendidas com ações que acentuem a sua instabilidade financeira) devem prevalecer sobre o prejuízo que os credores eventualmente sofram com o não prosseguimento das ações judiciais em curso em que se discutem créditos englobados no Plano de Recuperação homologado (a garantia do pagamento de todos os créditos de todos os credores não é reconhecida como um fim / objetivo primordial do PER).
S. É evidente que o disposto no artigo 17.º-E, n.º 1 do CIRE, na sua redação anterior, conduz à extinção da presente ação, a qual se deveria ter verificado imediatamente após o trânsito em julgado da sentença homologatória do Plano de Recuperação da 1.ª Ré. O prosseguimento dos presentes autos após o referido trânsito em julgado constituiu uma ilegalidade, que a Decisão Recorrida fez cessar, conforme se impunha.
A Decisão Recorrida não sofre qualquer reparo também no que respeita ao caráter solidário da obrigação em discussão nestes autos
T. A Recorrente nada aduz com o fim de contrariar o entendimento da Decisão Recorrida a este respeito, nem sequer contempla esta questão nas suas Conclusões (que, como se sabe, delimitam o objeto do recurso); no entanto, à cautela, deixa-se claro que, no âmbito do PER, foi fixado o montante global da dívida (solidária) e determinada primariamente a responsabilidade de um dos devedores quanto ao seu pagamento (a 1.ª Ré). Nestes termos, de acordo com o disposto no artigo 524.º do Código Civil, depois de satisfazer o crédito da Recorrente, nos termos do Plano de Recuperação, a 1.ª Ré terá direito de regresso contra a 2.ª Ré, para tanto podendo, se assim o entender, intentar ação judicial para discussão dessa precisa questão.
U. Esta matéria é, portanto, respeitante exclusivamente à distribuição de responsabilidades no plano das relações internas entre os co-devedores solidários, não estando a mesma em discussão nestes autos (que apenas reportam à liquidação do crédito da Recorrente e à condenação conjunta, e em termos abstratos, das Rés, ora Recorridas, no seu pagamento).
V. Nesta medida, e em face do exposto, nada obstaria, a este respeito, a que a presente instância fosse desde já extinta, não merecendo qualquer reparo a Decisão Recorrida».
1.7. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Decorre do disposto nos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 do CPC, que as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, atendendo às conclusões supra transcritas, as questões essenciais a decidir consistem em saber:
a) se a decisão proferida no âmbito PER n.º 867/19.9T8AMT relativo a 1.ª R., que incidiu sobre a reclamação de créditos aí deduzida pela A., fez caso julgado material;
b) se a homologação do referido PER determinou a inutilidade superveniente da presente lide.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
«1. Por sentença transitada em julgado em 15/12/2016 as aqui RR foram, entre outras condenações, condenadas a solidariamente a pagarem à Autora a indemnização correspondente aos custos acrescidos suportados por ela com a sua permanência em obra sem poder executar trabalhos, por um número de dias úteis não superior a 231, imposta mercê das suspensões ordenadas pelas Rés, da falta de elementos técnicos a fornecer por elas, e de serviços que lhe foram afectados não previstos inicialmente, relegando o apuramento desse custo para ulterior incidente de liquidação;
2. A 1ªR encontrou-se em situação de Processo especial de revitalização que correu termos sob o número 867/19.9T8AMT, no J4 do Tribunal de Comércio de Amarante, no âmbito do qual a aqui A. reclamou créditos englobando um crédito da sentença proferida nestes autos principais e o crédito ora objeto de liquidação;
3. O dito PER foi homologado por despacho de 24/9/2019, transitado em julgado em 14/10/2019, e pese embora o pedido de não homologação pedido por alguns credores de entre os quais a aqui A.;
4. No dia 10/09/2020 foi proferido despacho a determinar o encerramento do PER;
5. A aqui A., Epolider, viu o seu crédito ser reconhecido e graduado no PER englobando um crédito da sentença dos autos principais e a indemnização objeto de liquidação destes anos, pelo valor total de €334.412,09;
6. Nos autos de PER a A. reclamou igualmente a título de indemnização objeto da liquidação em apreço a quantia de 638.738,10, tendo a mesma sido objeto de impugnação pela devedora e fixado judicialmente esse valor indemnizatório em €63.873,81 (despacho de 24/9/2019);
7. O PER em apreço encontra-se arquivado desde 30/10/2023, não havendo notícia do seu incumprimento».
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. No presente recursos não está em causa a reapreciação da decisão relativa à matéria de facto.
Como é consabido, em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve identificar, nas conclusões da alegação do recurso, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especificando os concretos meios de prova que põem em causa o sentido da decisão da 1.ª instância e justificam a alteração da mesma, referindo a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnados (art. 640.º do CPC).
Nada disso ocorreu no caso sub judice, limitando-se a A./recorrente a colocar em causa as consequências que o tribunal a quo retirou dos factos provados, sem impugnar a decisão de facto. Tanto assim é que a alegação da A./recorrente não vem acompanhada da identificação dos factos cuja omissão ou desconsideração foi feita pelo tribunal recorrido, nem da menção dos factos concretos que foram incorrectamente julgados.
Acresce que, embora a Relação tenha competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto (art. 662.º do CPC), não se vislumbram motivos para alterar a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo, razão pela qual se tem esta por consolidada.
4.2. Vejamos, então, se a decisão proferida em 24.09.2019, no âmbito do Processo Especial de Revitalização (PER) n.º 867/19.9T8AMT relativo a 1.ª R., que incidiu sobre a reclamação de créditos aí deduzida pela A. e que fixou em € 63.873,81 a indemnização genericamente atribuída à A. na decisão ora liquidanda, produz ou não caso julgado material quanto a essa matéria.
A decisão recorrida, embora não o assumindo claramente, parece entender que sim, ao afirmar que «a A. deduziu os mesmos fundamentos que nesta ação na reclamação de crédito do PER da 1R, pediu àquele tribunal que liquidasse o seu crédito exatamente com o mesmo valor que o faz aqui: Essa reclamação foi impugnada e objeto de decisão judicial. Não se trata apenas de invocar a autoridade do caso julgado ou mesmo o caso julgado. É mais do que existir duas vezes a exata mesma questão a ser discutida num tribunal», «a A. já viu um tribunal decidir essa questão, já recebeu o valor em causa, e não pode apagar o que naquele tribunal foi decidido e manter a sua pretensão na integra quando o seu crédito foi solvido. É certo que o foi em valor inferior ao que pretendia, mas quanto a isso a A. apenas podia ter feito uso dos mecanismos legais para tanto. Entre eles não se incluía a manutenção desta ação com o mesmo fim», «decidida a pretensão da A. num processo, não se pode conhecer novamente da mesma» e «o valor indemnizatório, objeto do presente incidente, já foi liquidado e fixado por decisão na reclamação apresentada no PER pela aqui A.».
Tem sido discutida na doutrina e na jurisprudência a questão de saber se a decisão sobre as reclamações de créditos proferida no processo especial de revitalização tem efeitos fora desse processo.
Nuno Gundar da Cruz, in Processo Especial de Revitalização, Petrony, 2016, p. 47 e segs., sintetiza da seguinte forma as posições em presença:
«A primeira tendência de opinião, que se revela maioritária na doutrina - e que merece acolhimento junto de Luís A. CARVALHO FERNANDES E JOÃO LABAREDA, FÁTIMA REIS SILVA, NUNO SALAZAR CASANOVA e DAVID SEQUEIRA DINIS, JOÃO AVEIRO PEREIRA, MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO e, de certo modo, de RUI DIAS DA SILVA -, assenta no pressuposto de que a decisão sobre as impugnações da lista provisória de créditos não produz efeitos fora do PER, servindo, apenas, para aferição da base de cálculo das maiorias necessárias para a aprovação do plano de recuperação. Tendo por referência este pressuposto, esta linha de pensamento proclama que a decisão sobre as impugnações de créditos se baseia numa análise perfunctória pelo juiz dos factos e do Direito, a qual não é compatível com um contraditório amplo e, em principio, com a produção de prova que não seja documental.
A segunda tendência de opinião a que me refiro é a preconizada por CATARINA SERRA E RITA MOTA SOARES, para quem o juiz deve admitir a produção da prova necessária e adequada à conformação da lista de créditos ao universo real, pelo que, existindo lista definitiva, ela produz efeitos fora do PER, não podendo os créditos voltar a ser apreciados em processo de insolvência.
A terceira tendência de opinião é a proposta por Luís M. MARTINS, o qual considera que, havendo impugnação da lista provisória de créditos, e se necessário, abre-se um incidente de natureza declarativa dentro do PER, que culminará na prolação de uma sentença de verificação e graduação de créditos».
A primeira posição, que é, também, a seguida pela jurisprudência maioritária (cfr. Nuno Gundar da Cruz, Ob. Cit., p. 54 e segs), assenta na seguinte ordem de razões:
- o carácter limitado dos meios de defesa e das provas no âmbito do PER, não havendo lugar a resposta às impugnações e estando a prova limitada à prova documental;
- a decisão das impugnações não é precedida da observância das garantias próprias da discussão em processo civil, não sendo assegurado o contraditório e a igualdade das partes;
- o juiz limita-se a decidir das impugnações à lista provisória de créditos, sem proferir uma sentença de verificação e graduação de créditos;
- a reclamação dos créditos visa, primacialmente, a determinação do universo dos créditos e respectivos titulares e a delimitação de quem pode participar nas negociações e no procedimento de aprovação do acordo recuperatório, estabelecendo a base de cálculo das maiorias necessárias;
- a homologação do acordo é vinculativa para os credores que não reclamaram créditos e que não participaram nas negociações e que nem sequer reclamaram o seu crédito, mas, apenas, se essa ausência se dever a motivo que lhe seja imputável;
- a decisão das impugnações não resolve, definitiva e irreversivelmente, a questão, tanto que, em caso de insolvência sequencial, os créditos constantes da lista definitiva podem ser impugnados nos termos gerais e ser objecto de plena discussão;
- a decisão sobre as reclamações de créditos é meramente incidental, não constituindo, nos termos do n.º 2 do art. 91.º do CPC, caso julgado fora do respectivo processo.
Assim, por exemplo, o acórdão da RL de 16.12.2020 (relator Leopoldo Soares), in www.dgsi.pt, considerou que «A reclamação de créditos levada a cabo no PER , fase na qual por um lado não se detecta a verificação de um efectivo contraditório e por outro se constata que prima pela celeridade e superficialidade da apreciação dos créditos, destina-se a delimitar o universo de credores que podem participar nas negociações, bem como o universo de credores que têm direito ao voto e dessa forma apurar a base de cálculo das maiorias necessárias».
Escreveu-se neste aresto que: «(…) dir-se-á, agora, em relação à problemática que constitui o cerne do recurso que, na esteira do referido por Maria do Rosário Epifânio [Manual de Direito da Insolvência , 7ª edição, Almedina, 2019, página 444], entendemos que “ … no PER a reclamação de créditos destina-se: - à delimitação do universo de credores que podem participar nas negociações; - à delimitação do universo de credores que têm direito ao voto; - ao apuramento da “base de cálculo das maiorias necessárias”. A reclamação de créditos em sede de PER tem, assim, uma função eminentemente processual, valendo exclusivamente para efeitos do PER não gozando de força de caso julgado material (eficácia interna e externa – art. 619º do CPC ), mas apenas formal (eficácia interna - art. 620º do CPCivil), uma vez que a questão pode ser reposta novamente em sede processo de insolvência ou de outro processo. Apenas este entendimento é consentido pela inexistência de um efetivo contraditório (repare-se que não há uma fase de resposta às impugnações como existe no processo de insolvência – artigo 131º ) ou dos controlos garantísticos do processo civil, por um lado, e pelo caráter célere e perfunctório da apreciação dos créditos , ditado pela finalidade de recuperação da empresa, por outro lado” – fim de transcrição. Neste sentido afigure-se que também aponta Fátima Reis Silva, Processo Especial de Revitalização, Notas Práticas e jurisprudência mais recente, Porto Editora, Abril/2014, página 45. Por sua vez , Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, PER O Processo Especial de Revitalização, Comentários aos artigos 17º-A a 17º-I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Coimbra Editora, Março /2014, página 78, parecem adoptar um entendimento semelhante quando referem: “o carácter meramente incidental, e sem força de caso julgado, da decisão de reclamação de créditos, pode incentivar algum consenso sobre a lista de créditos , facilitando o desenrolar do PER e o cômputo dos votos para a aprovação do plano” – fim de transcrição. (…) No que nos toca perfilhamos o entendimento, expendido por Maria do Rosário Epifânio na supra citada obra, de que a reclamação de créditos levada a cabo no PER, fase na qual por um lado não se detecta a verificação de um efectivo contraditório e por outro se constata que prima pela celeridade e superficialidade da apreciação dos créditos, destina-se a delimitar o universo de credores que podem participar nas negociações, bem como o universo de credores que têm direito ao voto e dessa forma apurar a base de cálculo das maiorias necessárias. Assim, visto que a mesma tem uma função primordialmente processual, apenas goza de força de caso julgado formal valendo exclusivamente para efeitos do PER».
O mesmo entendimento veio a ser perfilhado no acórdão do STJ de 27.11.2019, relator José Reinho («I - O PER não tem como finalidade precípua dirimir definitivamente e com força de caso julgado material litígios sobre a existência dos créditos, e daqui que a decisão que recaia sobre as reclamações de créditos é meramente incidental, não constituindo caso julgado fora do respetivo processo») e no acórdão da RP de 12.07.2021, relatora Maria José Simões («tal como no PER, sendo o PEAP um processo célere e simples, as decisões sobre reclamações de créditos devem ser baseadas unicamente em prova documental, não tendo aquele processo como finalidade dirimir litígios sobre a existência ou amplitude de quaisquer créditos (vide, acs. do TRP de 24/11/2020, pº nº 1319/20.0T8VNG.P1 e do TRL de 13/04/2021, pº nº 291/18.0T8AGH-A.L1-1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt»), ambos in www.dgsi.pt.
Quanto a nós, alinhamos com a posição maioritária referida, por entendermos que a natureza, as especificidades e as finalidades do PER, bem como as limitações inerentes à instrução e discussão da questão, impedem que as decisões relativas às impugnações da lista provisória de créditos tenham qualquer valor fora do PER, servindo, apenas, para efeitos de cálculo do quórum deliberativo.
Tal como refere Nuno Gundar da Cruz, Ob. Cit., p. 55 e segs, «…na decisão sobre as impugnações, o julgador não forma o juízo de certeza típico de um processo em que se produz prova efetiva, ou suficiente, como alguma doutrina lhe chama. É que, na realidade, no âmbito da decisão sobre as impugnações, não estão previstos nem o direito de resposta por parte de quem viu o seu crédito impugnado, nem a possibilidade de se usarem todos os meios de defesa e de prova, disponíveis no CIRE, por exemplo, para a decisão sobre as impugnações da lista de credores reconhecidos, no âmbito do processo de insolvência (artigo 25.º, n.º 2, ex vi artigo 134.º, n.º 1). Pelo contrário, a decisão sobre as impugnações, no contexto do PER, baseia-se numa análise superficial e perfunctória, tanto dos factos, como do Direito. Ou seja, a decisão sobre as impugnações assenta em prova sumária. Esta prova sumária reconduz-se à prova de simples justificação ou de primeira aparência (prima facie), a qual tende a formar um grau menor de convicção no julgador. Neste sentido, o juiz, quando decide sobre as impugnações, basta-se, para o seu convencimento, com a séria credibilidade ou verosimilhança da alegação de um das partes, a impugnante ou a impugnada. O grau de probabilidade suficiente para juiz formar a sua convicção e decidir é, por isso, menor do que a exigido nos processos em que é produzida prova efetiva, nos quais te via a formação da plena convicção do juiz. Este entendimento assenta no pressuposto - que defendo - de que decisão sobre as impugnações, mormente sobre a existência, o montante e a natureza subordinada ou não dos créditos, serve unicamente para a aferição da base de cálculo das maiorias necessárias para a aprovação do plano de recuperação, pelo que aquela não produz efeitos fora do PER. O mesmo é dizer que a decisão sobre as impugnações e a lista definitiva que daí emerja não fazem caso julgado material. Isto significa que a existência, o montante e a natureza dos créditos não fica definitivamente estabilizada, por efeito da decisão sobre as impugnações, podendo a questão vir a ser suscitada em sede de outro processo, que, diversamente do PER, tenha por objetivo a definição da situação jurídica controvertida».
Temos, pois, por certo que o PER não visa dirimir conflitos sobre a existência, natureza ou a amplitude dos créditos, sendo a decisão sobre a reclamação de créditos meramente incidental e, por isso, não constitui caso julgado fora do PER, destinando-se, tão somente, à determinação do universo dos créditos e respectivos titulares, tendo em vista a formação e apreciação do quórum deliberativo para efeitos de aprovação do plano apresentado ou sugerido, o qual, no caso de não aprovação, conduzirá à conversão em processo de insolvência, onde aí, sim, se procederá à verificação e graduação de créditos.
Quanto muito, para que a decisão sobre as reclamações de créditos pudesse ter efeitos definitivos e fazer caso julgado material, teríamos que estar perante uma situação que permitisse a prolação de uma decisão sumária, não dependente de melhor prova, para além da documental.
Ora, no caso dos autos, a decisão proferida em 24.09.2019, no âmbito do processo especial de revitalização n.º 867/19.9T8AMT relativo a 1.ª R., não foi precedida de contraditório, nem de provas, o que decorre do seu próprio teor, onde, aliás, vem anunciado o seu carácter superficial e provisório e as finalidades meramente intra processuais da mesma:
«Quanto ao crédito reclamado pela credora “Épocalider, Lda., esta credora reclamou a quantia de € 920.423,67, respeitando € 777.542 a capital e € 142.881,67 euros a juros, sendo assim tal crédito constante da lista impugnada. Conclui a devedora que o crédito que deve ser reconhecido à credora é de 55.521,56 euros, isto porque, corresponde à percentagem de 40% do valor da condenação já verificada e transitada em julgado (€ 138.803,90), sem qualquer computo de juros, sendo que o valor reclamado em sede de incidente de liquidação de sentença se encontra a ser discutido em sede judicial, tem natureza litigiosa e não é reconhecido pela impugnante.
A este propósito cumpre afirmar, desde logo, que, como se afirmou no despacho de 10-09-2019, o presente processo não se compadece com a produção de prova testemunhal, por declarações de parte, por confissão provocada e pericial requerida pelas partes, dados os curtíssimos prazos estabelecidos na lei para o procedimento (cfr. Ac. da R.G. de 01-06-2015 in www.dgsi.pt., proc. n.º 3066/14.2T8GMR-A.G1).
Além disso, como se salientou no Ac. da R.P. de 13-09-2018, in www.dgsi.pt., proc. n.º 4689/17.3T8VNG.P1: “A este propósito é fundamental não esquecer que que as impugnações de que sejam alvo os créditos incluídos pelo administrador judicial na lista provisória de créditos e as decisões que sobre essas reclamações recaírem não operam caso julgado material, já que as reclamações de crédito no âmbito do PER têm como único objectivo, por um lado, legitimar a intervenção do credor no PER e, por outro, calcular o quórum deliberativo e a maioria prevista no n.º 3 do artigo 17.º-F, sendo certo a incompatibilidade do funcionamento do caso julgado material com a natureza célere e simplificada do PER.
Na verdade, o PER não tem como finalidade dirimir litígios sobre a existência, natureza ou amplitude dos créditos dos credores perante o devedor.
“(...) tal entendimento leva necessariamente à seguinte conclusão: quanto aos credores cuja qualidade não foi reconhecida no processo de revitalização ou em relação aos quais se discuta o respectivo montante, porque esse alegado crédito ou a respectiva extensão não foi reconhecida para efeitos de pagamento previsto no plano de recuperação, o litígio quanto a esses créditos permanece por solucionar.
No entanto e porque os titulares desses créditos não podem ficar numa situação previsivelmente mais desfavorável daquela em que ficariam caso não existisse plano de revitalização (artigo 216.º, n.º 1, al. a) ex vi artigo 17.º-F, n.º 5), é-lhes pois concedido o direito de acção contra o devedor para fazer valer esses seus pretensos direitos.
“Neste momento processual, importa unicamente apreciar parcialmente a impugnação da devedora relativamente ao crédito da credora Épocalider (pois que a apreciação de parte da impugnação à lista provisória quanto a este crédito já resulta do despacho de 10-09-2019).
Neste âmbito, refira-se, desde logo, que inexiste qualquer motivo para não se considerar o crédito de € 138.803,90 que resulta do ponto 4. do segmento decisório da sentença transitada em julgado aludida no artigo 35.º da impugnação e, designadamente, não procedem os argumentos invocados no artigo 38.º do mesmo articulado da devedora, pelos fundamentos já expostos no despacho de 10-09-2019, que aqui se dão por reproduzidos.”
A este valor acrescem os juros de mora vencidos à data da reclamação no montante de € 131.734,38.
No incidente de liquidação, a credora alegou que o custo real da subprodutividade pela A. durante os 231 dias uteis em obra foi de € 638.738,10, correspondente a (2.383,33+177,70+204,07)= 2.765,10 x 231 dias úteis (cfr. fls. 1734 verso e ss.).
Na oposição à liquidação apresentada pela ora devedora, impugnou ela a quantificação do número de dias que a credora permaneceu na obra, sem que pudesse executar trabalhos e ainda a quantificação do custo diário das paragens suportado pela ali requerente da liquidação (cfr. fls. 610 e ss.).
Ora, dos documentos juntos aos autos não resulta, com a necessária segurança, qual o concreto número de dias que a credora permaneceu na obra, sem que pudesse executar trabalhos e ainda o respectivo custo diário.
Entende-se, todavia, em obediência ao decidido na sentença de condenação genérica fixar-se, com base na equidade, um montante mínimo a este título.
Desta forma, fixa-se aqui em 10% do montante peticionado em sede de incidente de liquidação o referido crédito da aqui credora, isto é, o valor de € 63.873,81.
A fixação do montante em causa em 10% do valor peticionado em sede de liquidação parece pois, equitativa, no âmbito do presente PER em face da falta de elementos que aqui permitam uma quantificação mais rigorosa, e sem prejuízo, como decorre do já exposto, do direito do credor quantificar, pelo incidente de liquidação, o concreto montante em débito.
Assim, conclui-se que deve ser reconhecido à credora em causa um crédito no montante de € 334.412,09 (=138.803,90+131.734,38+63.873,81).
Nos termos e pelos fundamentos expostos, julga-se a impugnação da devedora relativamente ao crédito da credora Épocalíder, Lda., pelo que se reduz o crédito da dita credora ao montante de € 334.412,09» (sublinhado nosso).
Tal como bem salienta a recorrente nas suas alegações, «(…) o crédito reconhecido à Recorrente, no âmbito do PER, a título da indeminização aqui peticionada, foi de €63.873,81, a verdade é que tal reconhecimento foi expressamente efectuado com efeitos limitados àquele PER e sem consequências quanto a este específico incidente de liquidação, como abundantemente consta do despacho em causa (…). Como resulta do despacho do PER, não foi efectuada qualquer liquidação do crédito da Recorrente nesse processo, nem o poderia ser uma vez que tal exigiria um conjunto de diligências de prova incompatíveis com a sua natureza (…)».
Não se percebe, pois, e ressalvado o devido respeito, que a decisão recorrida tenha considerado que «o valor indemnizatório, objeto do presente incidente, já foi liquidado e fixado por decisão na reclamação apresentada no PER pela aqui A.» e muito menos, ainda, que tenha afirmado que a A. «já recebeu o valor em causa», o que não decorre dos factos provados, nem dos elementos juntos aos autos.
Assim sendo, pelas razões mencionadas, concluímos que a decisão proferida em 24.09.2019, no âmbito do processo especial de revitalização n.º 867/19.9T8AMT relativo a 1.ª R., que incidiu sobre a reclamação de créditos aí deduzida pela A. e que fixou em € 63.873,81 a indemnização genericamente atribuída à A. na decisão ora liquidanda, não produziu caso julgado material quanto a essa matéria.
4.3. Analisemos de seguida se a homologação do PER determinou a inutilidade superveniente da presente lide.
O n.º 1 do art. 17.º-E, do CIRE, na versão vigente à data da instauração do PER, tinha a seguinte redacção: «A decisão a que se refere o n.º 4 do artigo 17.º-C [i.e., o despacho de nomeação do Administrador Judicial Provisório no âmbito do PER] obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra a empresa e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação».
Na actual redacção, introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11.01 (só aplicável aos processos especiais de revitalização instaurados após a sua entrada em vigor - cfr. art. 10.º, n.º 2 da referida Lei), o referido n.º 1 do 17.º-E dispõe que: «A decisão a que se refere o n.º 5 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos durante um período máximo de quatro meses, e suspende quanto à empresa, durante o mesmo período, as ações em curso com idêntica finalidade».
No caso dos autos, decorre dos factos provados que o PER foi homologado por despacho de 24.09.2019, transitado em julgado em 14.10.2019 e que no dia 10.09.2020 foi proferido despacho a determinar o seu encerramento, sendo, portanto, aplicável o art. 17.º-E, n.º 1 do CIRE na primeira redacção supra citada.
Ora, em face dessa redacção, a doutrina e a jurisprudência discutiram sobre se a suspensão e a extinção abrangeria as acções declarativas ou só as executivas em que o devedor fosse parte passiva (cfr. Nuno Salazar Casanova, Os Efeitos Processuais do PER e do PEAP nas Ações Declarativas de Condenação, in https://www.uria.com/documentos/publicaciones, e jurisprudência citada por Marco Carvalho Gonçalves, in Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, p. 697 e 698).
A jurisprudência dominante vinha entendendo que a expressão “acções para cobranças de dívidas” abrangia qualquer acção judicial – declarativa ou executiva – destinada a exigir o cumprimento de um direito de crédito resultante da actividade económica do devedor e que, por isso, contendesse com o seu património (cfr., por exemplo, os acórdãos do STJ de 24.05.2022, relator Jorge Dias, e da RG de 15.12.2022, relatora Vera Sottomayor, ambos em www.dgsi.pt).
Maria do Rosário Epifânio, in O Processo Especial de Revitalização, Almedina, 2016, p. 32 e segs., entendia, todavia, que «…se o PER é um processo especial de cariz concursal, à semelhança do processo de insolvência (…), não faz sentido suspender as acções declarativas ou impedir a sua propositura. Até porque a verificação dos créditos tem eficácia de caso julgado formal (só tem efeitos dentro do PER), podendo o respetivo credor ter interesse na prossecução dessa ação declarativa. Ora, se as ações declarativas forem paralisadas no âmbito do PER, extinguir-se-ão, nos termos do art. 17.º-E, n.º 1, se vier a ser homologado um plano de recuperação (solução excessivamente gravosa do ponto de vista da economia processual)».
Aliás, mesmo alguns autores e arestos que entendiam que a norma em causa se referia a qualquer acção judicial (declarativa ou executiva), consideravam que a mesma devia ser interpretada no sentido de não impedir o prosseguimento de acções que visassem o reconhecimento de um crédito, nem determinar a extinção destas, quando tal crédito não fosse reconhecido no PER, nem objecto de apreciação de mérito nesse âmbito.
Assim, por exemplo, o acórdão do STJ de 27.11.2019, já citado, considerou que:
«I - O PER não tem como finalidade precípua dirimir definitivamente e com força de caso julgado material litígios sobre a existência dos créditos, e daqui que a decisão que recaia sobre as reclamações de créditos é meramente incidental, não constituindo caso julgado fora do respetivo processo.
II – O objeto da sentença homologatória do plano é o próprio plano de recuperação, e não o reconhecimento de créditos, pelo que não faz caso julgado quanto à existência destes.
III - Se o crédito litigioso não é regulado no plano de recuperação, nada impede o reatamento da ação, que assim não se extingue nos termos do n.º 1 do art.º 17.º-E do CIRE.
IV - Pese embora o crédito reclamado pelo dono da obra no âmbito do PER, emergente de alegado incumprimento do empreiteiro (requerente do PER), não ter sido impugnado e constar da lista de créditos, não se extingue a ação onde esse crédito é feito valer por via de reconvenção, se o plano de recuperação que foi aprovado e homologado nada estabeleceu quanto ao crédito invocado pelo autor (empreiteiro), emergente de alegado incumprimento por parte do dono da obra.
V – Nestas circunstâncias, o litígio não foi regulado pelo plano de recuperação, pelo que a ação e a reconvenção devem ter seguimento, sob pena de se criar uma situação de denegação de justiça e de violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva.
VI - A sentença homologatória de plano de recuperação nas descritas circunstâncias não faz caso julgado sobre a existência do crédito do reclamante, nem é impositiva da extinção da ação e da reconvenção onde o requerente do PER e o credor reclamante discutem os seus alegados créditos».
Escreveu-se neste aresto que «(…) a função da reclamação de créditos no PER não é obter, com autoridade de caso julgado, a definição dos direitos reclamados; a sua função é tão-só a de permitir apurar o quórum deliberativo indicado no art. 17.º-F, n.º 5 do CIRE. O PER não tem como finalidade precípua dirimir definitivamente e com força de caso julgado material litígios sobre a existência dos créditos, de sorte que a decisão que recaia sobre as reclamações de créditos é meramente incidental, não constituindo caso julgado fora do respetivo processo (v. art. 91.º, n.º 2 do CPCivil). Concordantemente com esta ideia, e citando doutrina e jurisprudência conformes, lê-se do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 9 de abril de 2019 (processo n.º 154/17.7T8ALD.C1.S2, disponível em www.dgsi.pt) que a lista de créditos no PER visa determinar quem pode participar nas negociações, as maiorias de aprovação e quem pode votar, e que o processo do art. 17º-D do CIRE para a reclamação de créditos e organização da lista definitiva de credores apresenta uma tramitação assaz simplificada, destituída do contraditório indispensável a que o tribunal possa decidir sobre os créditos com força de caso julgado. Mais se aponta no referido acórdão que a lista só é definitiva nos termos e para os efeitos do processo de revitalização, não integrando um ato formal de reconhecimento do crédito. Deste modo, pressupondo sempre o caso julgado a existência de uma decisão judicial em certo sentido, não há que conotar o reconhecimento tácito do crédito do Recorrente com qualquer caso julgado. É certo, porém, que o crédito reclamado pelo Recorrente não foi impugnado, constando da lista de créditos. É certo também que foi aprovado um plano de recuperação, homologado depois pelo tribunal. Ainda, é certo que a decisão de homologação vincula a empresa e os credores. Mas tudo isto carece, quanto a nós, da essencialidade que a Recorrente lhe quer emprestar, nomeadamente em termos de caso julgado».
No mesmo sentido, o acórdão da RL de 12.06.2019, relator Leopoldo Soares, in www.dgsi.pt, decidiu que:
«I- Mesmo dando de barato que o nº 1do artigo 17º-E, do CIRE quando menciona acções para cobrança se refere quer as acções executivas quer as declarativas em que se pretenda obter a condenação do devedor ao pagamento de um crédito/prestação pecuniária, ainda assim tal norma não deve ser interpretada no sentido de obstar à instauração ou determinar a extinção de acções declarativas que se reportem a créditos que não foram reconhecidos no PER e que não foram aí reclamados e objecto de apreciação de mérito.
II - Se o crédito não foi reconhecido no PER e se não foi aí reclamado e apreciado de mérito, o respectivo credor não está impedido de instaurar ou prosseguir uma acção que vise o reconhecimento do seu crédito pelo menos para o efeito de obter o seu pagamento de acordo com as condições fixadas no plano de recuperação homologado no PER».
Transcreve-se, pela sua pertinência e clareza e por merecer a nossa concordância, parte da fundamentação deste último acórdão:
«A suspensão dessas acções (sejam elas executivas ou declarativas) durante o período das negociações não levanta, a nosso ver, qualquer dificuldade, estando plenamente justificada com o objectivo do legislador que, como se depreende da exposição de motivos da proposta de Lei nº 39/XII (que esteve na origem da lei que veio criar o processo especial de revitalização), visa assegurar “…a existência da necessária calma para reflexão e para criação de um plano de viabilidade para o devedor que se encontre em negociações”.
Situação diferente ocorre com a extinção dessas acções na sequência da aprovação do plano de recuperação que é determinada pela norma supra citada.
Com efeito, se essa extinção não oferece dificuldades relevantes quando reportada a acções referentes a créditos que foram reconhecidos no processo de revitalização e que, como tal, estão, sem qualquer controvérsia, sujeitos ao plano aí homologado (situação a que se reportam a maioria dos acórdãos supra citados) – ou, eventualmente, no que toca a acções que se reportam a créditos que, apesar de não terem sido reconhecidos, foram ali objecto de apreciação de mérito –, o mesmo não acontece no que toca a acções em que estão em causa créditos que não foram reclamados e reconhecidos no processo especial de revitalização e que não foram objecto de qualquer apreciação de mérito relativamente à sua existência/inexistência (como acontece no caso sub judice).
Deverão também estas acções ser declaradas extintas em conformidade com a norma supra citada?
Refira-se, antes de mais, que, na nossa perspectiva, a doutrina do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº1/2014 – onde se fixou o entendimento de que “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.” – não pode ser convocada para a resolução da questão que nos ocupa, uma vez que tal doutrina se baseia em pressupostos inerentes ao processo de insolvência – no âmbito do qual foi fixada – que não ocorrem no processo especial de revitalização.
Com efeito, além de ser diferente a natureza e finalidade de cada um desses processos (o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência ou a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, destinando-se o processo especial de revitalização a estabelecer negociações com os credores de modo a que o devedor possa concluir com os credores um acordo conducente à sua revitalização), a doutrina firmada no citado Acórdão pressupõe o trânsito em julgado da sentença que declara a insolvência (pressuposto que não se verifica no processo de revitalização) e baseia-se fundamentalmente no artigo 90º do CIRE – onde se dispõe expressamente que os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência – que não tem aplicação ao processo de revitalização.
(…)
É certo que, nos termos do artigo 17º-F, nº 10 (correspondente ao nº 6 na anterior redacção), “A decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 4 do artigo 17.º-C…” e é certo que, nos termos do artigo 197º, alínea c) – aqui aplicável por força do disposto no artigo 17º-F, nº 7 –, “Na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência…O cumprimento do plano exonera o devedor e os responsáveis legais da totalidade das dívidas da insolvência remanescentes”.
Significará isso, portanto, que, estando em causa um crédito que já se havia constituído em momento anterior (como é aqui o caso), o respectivo credor, ainda que não tenha reclamado o seu crédito e não tenha participado nas negociações, ficará também vinculado ao plano e às condições de pagamento que nele se encontram previstas (com eventual redução do seu valor ou alteração das condições de pagamento).
Mas, ainda que tenha que ficar sujeito às condições fixadas no plano de recuperação que foi aprovado, qual seria a tutela conferida ao credor cujo crédito não foi reconhecido ou apreciado (de mérito) no PER e que não o vê satisfeito pelo devedor nem mesmo de acordo com as condições que constam do plano de recuperação?
Como poderá fazer valer o seu direito se ficar impedido de obter o reconhecimento e a satisfação (ainda que parcial em função das condições fixadas no plano) desse crédito, como decorreria do disposto no artigo 17º-E, nº 1 quando impõe – aparentemente – a impossibilidade de instaurar acção com essa finalidade e a extinção das que se encontrem pendentes?
Catarina Serra[…] questiona a razoabilidade dessa solução a propósito dos créditos litigiosos.
Também Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis[…] questionam essa solução, dizendo o seguinte:
“…havendo controvérsia quanto à existência de determinada dívida, esta certamente não terá sido reconhecida para efeitos dos pagamentos previstos no plano de recuperação.
E uma vez que poderá suceder que o plano de recuperação seja aprovado e homologado sem que exista decisão sobre uma eventual impugnação da lista de credores, o credor cuja dívida é controvertida não poderá ficar privado da acção declarativa na qual reclama o reconhecimento da existência do seu crédito.
Com efeito, ao referido credor cujo crédito não foi reconhecido e cuja impugnação não foi decidida oportunamente apenas resta a acção declarativa.
Só esta lhe permitirá ver reconhecida a sua condição de credor, assim passando a estar abrangido pelo plano de pagamentos previsto no plano de recuperação”.
(…)
a norma citada não poderá ser interpretada no sentido de obstar à instauração e determinar a extinção de acções declarativas que se reportem a créditos que não foram reclamados, reconhecidos ou objecto de apreciação de mérito no PER, uma vez que tal interpretação retiraria a esses credores – que, eventualmente, poderão nem ter tomado conhecimento atempado do PER – a possibilidade de obter o reconhecimento do seu crédito para o efeito de o mesmo lhe ser pago de acordo com as condições que constam do plano.
Veja-se que a falta de reclamação do crédito no âmbito do PER não poderá implicar que o respectivo credor não mais o possa exigir; nada na letra da lei nos induz a tal conclusão, importando notar que, como decorre do disposto no artigo 17º-G, nº 7, caso o processo de revitalização seja convertido em processo de insolvência, a existência de lista definitiva de créditos no PER não impede que venham a ser reclamados créditos que aí não hajam sido reclamados, o que significa que essa lista não tem carácter definitivo e que a não reclamação do crédito no PER não tem efeito preclusivo, não impedindo que o credor venha, posteriormente, a reclamar o crédito.
Note-se, por outro lado, que é a própria lei que admite que o plano de recuperação seja aplicável a credores que não reclamaram os seus créditos no PER e que aí não tenham tido participação – cfr. artigo 17º-F – disposição que também aponta para o facto de serem atendidos outros credores, além daqueles que reclamaram créditos e ficaram a constar da lista definitiva.
Mas, se esses créditos não foram reclamados e não foram aí reconhecidos e se o devedor não proceder ao respectivo pagamento, como poderá o credor demonstrar essa qualidade, para o efeito de ver o seu crédito ser satisfeito de acordo com as condições do plano, se estiver impedido de propor acção com essa finalidade ou se for declarar extinta a acção que já se encontre pendente?
Entendemos, na verdade, que o facto de a decisão que homologa o plano vincular todos os credores – independentemente de terem ou não reclamado os seus créditos – não significa que o credor fique impedido de obter o reconhecimento do seu crédito – sempre que ele não seja reconhecido e pago pelo devedor –, pelo menos para o efeito de poder exigir o seu pagamento de acordo com as condições fixadas no plano e, nessa medida, não podemos ter como aceitável, à luz das regras e princípios gerais de direito e à luz do pensamento legislativo, uma interpretação da norma supra citada que imponha a impossibilidade de esses credores instaurarem acção com aquela finalidade ou que imponha a extinção de acção que, com idêntico objectivo, se encontre pendente, uma vez que tal interpretação redundaria numa incompreensível, injusta e desproporcionada restrição dos direitos desses credores que, a nosso ver, não terá sido pretendida pelo legislador e que – como se refere no voto de vencido do Acórdão da Relação de Coimbra de 19/05/2015 – violaria o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional, consagrado no art. 20º, nº1 da Constituição.
Entendemos, portanto, em face do exposto, que não pode/não deve ser declarada extinta, ao abrigo do disposto no citado artigo 17º-E, nº 1, a acção onde é peticionado um crédito que – como acontece no caso sub judice – não foi reclamado no PER, não foi aí reconhecido e tão pouco foi objecto de apreciação de mérito e que, como tal, se configura como um crédito cuja existência/inexistência ainda se configura como controvertida – por ser negado pela Ré e por não ter sido objecto de qualquer apreciação de mérito – e que, como tal, carece ainda de reconhecimento para o efeito de poder ser exigido à devedora nos termos e condições resultantes do plano, em conformidade com o disposto no citado artigo 17º-F, nº 10».
No caso vertente, ainda que se entendesse que o incidente de liquidação tem como objectivo “a cobrança de dívidas” e, portanto, que se integra na previsão do art. 17.º,-E, n.º 1 do CIRE, na redacção anterior à vigente, sempre teríamos que, contrariamente ao que se defende na decisão recorrida, o crédito da Recorrente não foi liquidado no âmbito do PER, o que decorre, inequivocamente, do despacho de 24.09.2021.
Destarte, o efeito jurídico que a A./recorrente pretende obter com o incidente de liquidação não se mostra verificado.
Nem se defenda que é irrelevante o facto de o crédito da A. ter sido reconhecido no PER por um valor inferior àquele cujo pagamento é peticionado no incidente, atentos os efeitos vinculativos da homologação do PER, porquanto o despacho de 24.09.2021 limitou-se a fixar o crédito em 10% do peticionado, para efeitos, apenas, do cálculo do quórum deliberativo, como se viu e «sem prejuízo (…) do direito do credor quantificar, pelo incidente de liquidação, o concreto montante em débito».
É, também, indiferente que o plano de recuperação da 1.ª R. não tenha previsto a continuação dos presentes autos para discussão do crédito indemnizatório aqui invocado pela Recorrente.
Atentemos nas palavras de Artur Dionísio Oliveira, in Os efeitos processuais do PER e os créditos litigiosos, III Congresso do Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2015. p. 123 e segs:
«(…) O legislador pretendeu efetivamente impor a extinção de todas as ações para cobrança de dívidas pendentes contra o devedor?
Uma resposta positiva a esta questão terá, sobre os créditos litigiosos ou ilíquidos não reconhecidos no plano de recuperação, uma de duas consequências possíveis:
- A acção em curso extingue-se, sem que isso impeça que, no dia seguinte, seja proposta uma nova acção, exatamente igual à que foi extinta; neste caso a extinção não terá servido para rigorosamente nada, embora torne mais difícil a posição do alegado credor, que se vê forçado a repetir todos os esforços já levados a cabo, com as inerentes perdas de tempo e de dinheiro e sem garantias de voltar a produzir a prova que, eventualmente, já tivesse produzido.
- A acção em curso extingue-se e não pode ser proposta nova acção para cobrança daquela dívida enquanto se mantiver a eficácia do plano de recuperação, por se manter a proibição de instauração de novas acções para cobrança de dívidas (…).
Cremos que o legislador não pode ter pretendido nenhum dos resultados que acabámos de descrever. Aquilo que o legislador pretendeu foi, num primeiro momento, assegurar as condições adequadas ao estabelecimento de negociações entre o devedor e os seus credores, tendo em vista a revitalização daquele, e, num segundo momento, a efectiva sujeição de todos os créditos ao plano de recuperação acordado e homologado pelo tribunal.
Mas já não pretendeu impedir a apreciação judicial e o eventual reconhecimento dos créditos litigiosos ou a liquidação dos créditos ilíquidos.
Cremos também que a norma do n.º 1 do art. 17.º-E permite uma interpretação mais consonante com a sua finalidade e com as necessidades que pretende tutelar.
Já vimos que a parte final do n.º 1 do art. 17.º-E do CIRE abre uma excepção à extinção das acções para cobrança de dívida por força da aprovação e homologação de um plano de recuperação, admitindo que o próprio plano preveja a sua continuação.
Já vimos que essa excepção visa, sobretudo, as acções declarativas.
Como também já dissemos, a possibilidade de o plano prever o prosseguimento das acções declarativas suspensas, aqui se incluindo os incidentes de liquidação e os embargos de executado, está concebido como forma de permitir a liquidação dos créditos ilíquidos e o reconhecimento dos créditos litigiosos, nos casos em que aquela liquidação ou este reconhecimento não tenham sido acordados na fase das negociações.
De uma forma mais abrangente e completa podemos afirmar que aquele prosseguimento foi pensado para os créditos que necessitam de ulterior definição jurisdicional. Claro que, havendo reconhecimento destes créditos no plano de recuperação, esta definição ulterior não será necessária, nada obstando à extinção das acções. O prosseguimento justifica-se apenas nos casos em que o crédito não perdeu a sua natureza litigiosa nem foi reconhecido no plano de recuperação.
A leitura que fazemos da parte final do artigo 17.º-E do CIRE, conjugada com as finalidades próprias do PER, permite concluir com segurança que o legislador efectivamente não pretendeu incluir na extinção das acções por força da homologação do plano de recuperação aquelas onde se discutem créditos que continuam a necessitar de definição jurisdicional para que possam ser satisfeitos, ainda que em obediência àquele plano. (…)
Embora não o digam de forma expressa, cremos que o pensamento de Carvalho Fernandes e João Labareda vai neste sentido, quando afirmam o seguinte: «não se vê obstáculo a que, não tendo a decisão sobre a impugnação no processo de revitalização sido precedida da observância das garantias próprias da discussão em processo civil, nomeadamente por virtude da limitação da produção e apresentação de provas, a questão possa vir a ter reposta em sede de outro processo que, diferentemente do de revitalização, tenha por objectivo prioritário e fundamental a definição da situação jurídica controvertida».
Aqui chegados, estamos em condições de afirmar que a letra do preceito que vimos analisando vai além do pensamento legislativo nele vertido, pois não expressa uma restrição que esteve presente na formulação daquele pensamento, isto é, que corresponde à respectiva intencionalidade normativa.
Significa isto que estamos perante uma lacuna oculta, cujo regime é assim explicado por Larenz: «De entre as lacunas da lei distinguimos ainda entre lacunas “patentes” e “ocultas”, assim como lacunas iniciais e subsequentes. Existe uma lacuna “patente” quando a lei não contém regra alguma para um determinado grupo de casos , que lhes seja aplicável se bem que, segundo a sua própria teleologia, devesse conter tal regra. Falamos de uma lacuna “oculta” quando a lei contém precisamente uma regra aplicável a casos desta espécie, mas que, segundo o seu sentido e fim, não se ajusta a esse determinado conjunto de casos, porque não atende à sua especificidade, relevante para a valoração. A lacuna consiste aqui na ausência de uma restrição. Por isso a lacuna está “oculta”, porque, ao menos à primeira vista, não falta aqui uma regra aplicável. (…) O preenchimento de tal lacuna leva-se a cabo acrescentando, pela via de uma “redução teleológica” da norma, a restrição omitida.»
Tal redução traduz-se, no caso, em excluir do âmbito de aplicação da norma que fixa como efeito da homologação de um plano de recuperação a extinção das acções para cobrança de dívidas pendentes contra o devedor, as situações em que os créditos continuam a necessitar de definição jurisdicional para que possam ser cobrados, ainda que com as limitações introduzidas pelo plano homologado (…)»
Também Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, p. 390 e 391, entende que as acções afectadas pelo efeito processual extintivo da homologação do plano são, apenas, as que respeitem aos créditos afectados/modificados pelo plano: «(…) o titular de um crédito litigioso que veja a sua acção (declarativa) suspensa por força da abertura do PER corre, primeiro, grandes riscos de não ver o seu crédito reconhecido no processo. Se o crédito é litigioso isto significa que a empresa contesta o crédito e não reconhece este sujeito como credor e, assim sendo, com toda a probabilidade, não incluirá este sujeito na relação de credores a apresentar ao tribunal e nem tão-pouco lhe comunicará o início das negociações. O administrador judicial provisório tenderá, por seu lado, a não incluir o crédito na lista de créditos, seja por desconhecimento, seja por não reconhecimento (quando o credor, apesar de tudo, se apercebe da abertura do PER e reclama o seu crédito, o administrador judicial provisório não terá, em princípio, elementos que lhe permitam reconhecê-lo). (…) À provisoriedade dos efeitos impeditivo [da instauração de ações para cobrança de dívidas] e suspensivo [do curso das ações para cobrança de dívidas] contrapõe-se a definitividade do efeito extintivo, o que explica, em última análise, que as acções afectadas pelos primeiros não coincidam com as acções afectadas pelo segundo – que o alcance deste seja necessariamente mais restrito. Impedir-se temporariamente o sujeito de propor uma acção ou suspender-se temporariamente a acção por ele proposta não lhe provoca senão algum atraso na realização da sua pretensão, atraso este que é, em regra, inofensivo. Pôr-se fim à acção em que se discute ou define um crédito inviabiliza o direito (processual) do sujeito de ver o seu direito (substantivo) judicialmente reconhecido, o que se traduz numa denegação de justiça, violadora do princípio da tutela jurisdicional efectiva. Pressupondo que o legislador não desejou este resultado, a solução mais razoável é reconhecer-se que existe aqui uma lacuna oculta (não obstante haver uma regra aplicável à hipótese, ela não se ajusta, porque não atende à sua especificidade) e proceder-se á redução teleológica da norma do art. 17.º-E, n.º 1 (…)».
No mesmo sentido, vejam-se os acórdãos da RE de 05.1.2015 e de 23.02.2016, ambos relatados por Sílvio Sousa («os efeitos do plano de recuperação, aprovado em sede de processo especial de revitalização, estão circunscritos aos efeitos de créditos constituídos e reconhecidos, e não também aos créditos litigiosos, quanto à sua constituição ou validade; alargar os efeitos do referido plano a estes créditos equivaleria a violar o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva») e da RL de 26.05.2021, relatado por Paula Santos («As acções em que se discutem créditos litigiosos, não incluídos e reconhecidos pelo PER, não se incluem na extinção referida no artigo 17º E nº1 do CIRE, pelas razões supra expostas e ainda por violação do disposto no artigo 20º da CRP – acesso ao direito e aos tribunais»), in www.dgsi.pt.
Aliás, mesmo aqueles que consideram que o art. 17.º-E, n.º 1 do CIRE só abrangia, como actualmente, as acções executivas para cobrança de créditos, consideravam que «(…) havendo disputa sobre o valor em dívida ou sobre a própria existência do crédito, tem o credor a possibilidade de começar a discutir o seu crédito numa ação declarativa. Com efeito, se a empresa requerente – e o administrador provisório – não reconhecer a existência de um crédito ou a sua totalidade, não será o PER o momento próprio para conhecer desse litígio. (…) Não sendo o crédito reconhecido no âmbito do PER, nada impede agora o credor de acionar a empresa através de uma ação declarativa. A sentença transitada em julgado que venha a reconhecer a existência do crédito, poderá ser executada normalmente: nem esse crédito foi objecto de acordo com a empresa devedora, nem está abrangido pelo despacho de homologação» e «aprovado o plano, as ações que estavam em curso extinguem-se, passando o pagamento a ser feito de acordo com o que foi aprovado pela maioria dos credores. Deve entender-se que a ação apenas se extinguirá quando o valor que estiver a ser reclamado no processo suspenso seja o valor reconhecido no PER ou, não sendo, quando o novo valor fixado para a dívida tenha o acordo do credor. De contrário, é o direito de acesso á justiça que fica posto em causa, na medida em que o credor que iniciou a ação ficaria impedido de obter pagamento pela totalidade da dívida por votação de terceiros, sendo a decisão judicial substituída por uma deliberação de um conjunto de credores com interesses conflituantes e incompatíveis comos do credor em causa, podendo o próprio ter votado contra a proposta. Quando assim não for, deve considerar-se que também estes processos prosseguirão após o trânsito em julgado da decisão que homologue o acordo, ainda que possa haver lugar a redução do pedido» (cfr., neste sentido, Susana Amaral Ramos, in Recuperação de Empresas, Almedina, 2.ª ed, p. 154 e segs).
Aqui chegados, resta-nos concluir que a presente acção está excluída da extinção imposta pelo n.º 1 do art. 17.º-E do CIRE, na redacção anterior à vigente, pelo que a homologação do plano de recuperação, no âmbito PER n.º 867/19.9T8AMT relativo a 1.ª R., não tornou impossível nem inútil o prosseguimento da mesma.
4.4. Acresce que a presente acção e o incidente de liquidação em causa são, também, deduzidos contra a sociedade CME - Construção e Manutenção Electromecânica, S.A. (2.ª R.), que não é parte no PER n.º 867/19.9T8AMT.
A recorrida defende que não há qualquer obstáculo à extinção da presente instância com fundamento na circunstância de a obrigação aqui em causa ter dois devedores solidários, porquanto, nos termos do artigo 524.º do CC, depois de satisfazer o crédito da A./recorrente, nos termos do plano de recuperação, a 1.ª R. terá direito de regresso contra a 2.ª R., estando-se em face de matéria respeitante, exclusivamente, à distribuição de responsabilidades no plano das relações internas entre os co-devedores solidários.
Sucede que, como bem nota a recorrida, não se discutem nestes autos as relações internas entre os co-devedores solidários (as duas RR.), mas sim a liquidação de um crédito da A. sobre ambas as RR.
Ora, independentemente do direito de regresso que a 1.ª R. possa ter sobre a 2.ª R. por aquilo que pagou ou vier a pagar, o certo é que a A. conserva o direito de ver liquidado o crédito que detém sobre a co-devedora. E esta não é parte do PER, nem beneficia, nem pode aproveitar-se das medidas aprovadas quanto à sua co-devedora.
Com efeito, as medidas aprovadas no plano de recuperação não se estendem aos demais obrigados, pelo que o credor mantém intactos os direitos de que dispõe contra os devedores estranhos ao PER, podendo exigir-lhes tudo quanto estavam obrigados.
Enfim, a decisão de homologação do plano de recuperação não produz efeitos em relação a terceiros, nomeadamente condevedores ou garantes da devedora (cfr. Marco Carvalho Gonçalves, Ob. Cit., p. 728 e jurisprudência aí citada), pelo que, também por esta via, nunca a presente instância poderia ser julgada inútil quanto à 2.ª R.
E nem se defenda, como a recorrida, que esta questão não faz parte do objecto do recurso, por não ter sido contemplada nas conclusões. Na verdade, as questões objecto do recurso são as supra enunciadas (nomeadamente, saber se ocorreu inutilidade superveniente da lide, como um todo), não estando o tribunal vinculado à argumentação das partes, podendo descobrir e assentar o seu entendimento noutros argumentos não avançados por elas.
4.5. Aqui chegados, conclui-se pela total procedência do recurso, impondo-se revogar a decisão recorrida.
As recorridas suportarão as custas do recurso, por terem ficado vencidas (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

V – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos autos.
Custas pelas recorridas.
Notifique.
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Lisboa, 23.10.2025
Rui Oliveira
Amélia Loupo
Ana Paula Olivença