Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
24585/16.0T8LSB.L1-7
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: EXECUÇÃO
INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
SIMPLES CÁLCULO ARITMÉTICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/26/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. O valor em dívida depende de simples cálculo aritmético quando, no dispositivo da sentença, o réu é condenado a pagar ao autor a quantia correspondente às prestações de capital em dívida, acrescida de juros desde data que ali se indica, a uma taxa também ali indicada, constando dos factos provados na sentença o valor do capital mutuado e que nenhuma prestação dele foi paga.
II. O incidente de liquidação tem como pressuposto a dedução de um pedido genérico ou uma condenação genérica, referente a uma universalidade ou às consequências de um facto ilícito.
III. Os casos em que o tribunal pode condenar no que vier a ser liquidado (art. 609, n.º 2, do CPC) são aqueles em que é permitida a formulação de um pedido genérico e que estão elencados no art. 556 do mesmo código, a saber: a) quando o objecto mediato da ação seja uma universalidade, de facto ou de direito; b) quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito, ou o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o artigo 569 do Código Civil; c) quando a fixação do quantitativo esteja dependente de prestação de contas ou de outro ato que deva ser praticado pelo réu.
IV. Só poderá haver lugar ao incidente de liquidação de sentença quando esta condena no que se vier a liquidar e o objeto da condenação seja uma universalidade ou as consequências de um facto ilícito (art. 358 do CPC). Ainda assim, no caso da universalidade, a liquidação pode efetuar-se no processo executivo, e não necessariamente em incidente declarativo de liquidação (art. 716, n.º 7, do CPC).
Decisão Texto Parcial:Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
AA., exequente no processo indicado à margem, em que é executada BB., notificado do despacho de indeferimento liminar proferido em 5 de janeiro de 2018 e com ele não se conformando, interpôs o presente recurso.

O recorrente intentou execução oferecendo como título sentença proferida em 13/05/2011, da qual se extrata, para o que ora releva, o seguinte:
«Banco..., S.A., com sede na R. ..., Lisboa, demanda BB., residente na R. ..., Fonte da Pipa, Sacavém, em acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que o réu seja condenado a pagar à autora a quantia de € 19.818,72, acrescida de juros, à taxa anual de 15,60% e imposto de selo, até integral e efetivo pagamento.
(…)
Factos provados.
Da discussão da causa, encontra-se provado que:
A. O autor é uma instituição de crédito.
B. No exercício da sua atividade, o autor celebrou, por escrito, um acordo que denominou de contrato de mútuo nº 764989, datado de 13 de Junho de 2006, consistente no empréstimo, a restituir com acréscimo de juros, da importância de € 12.000,00 (…).
C. Nesse escrito consta, no texto como mutuário e como tal adiante designado, BB. (…).
(…)
E. Nos termos de tal acordo, o autor emprestou a dita importância de € 12.000,00, com juros à taxa nominal de 11,60% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos serem pagos em 72 prestações, mensais e sucessivas, de € 275,26 cada, com vencimento a primeira em 10/7/2006 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes.
(…)
L. A ré não pagou nenhuma das prestações acordadas.
(…)
Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente o pedido da autora Banco .., S.A. e, em consequência, condenar a ré BB. a pagar à autora a quantia a liquidar em execução de sentença, correspondente às prestações de capital não pagas, acrescidas de juros desde 10/7/2006, à taxa de 15,60%, a que acresce o Imposto de Selo respectivo, até integral e efetivo pagamento, absolvendo-a do restante peticionado.»

No requerimento executivo, o exequente procede à seguinte liquidação:
Total:     40 576,69 €

CAPITAL ------ €13.800,00 – CORRESPONDENTE ÀS PRESTAÇÕES DE CAPITAL VENCIDAS E NÃO PAGAS (1.ª A 72.ª) COM EXCLUSÃO DOS JUROS REMUNERATÓRIOS – VIDE PLANO FINANCEIRO

JUROS À TAXA DE 15,60% SOBRE €13.800,00 DESDE 10.07.2006 ATÉ AO TRÂNSITO EM JULGADO EM 15.06.2011----€10.622,45

IMPOSTO DE SELO À TAXA DE 4% DESDE 10.07.2006 ATÉ 15.06.2011---€424,90

JUROS À TAXA DE 20,60% (15,60%+5%, ARTIGO 829.º-A, N.º4 C.CIVIL) DESDE 16.06.2011 ATÉ AO PRESENTE 30.03.2016----€13.629,86

IMPOSTO DE SELO À TAXA DE 4% DESDE 16.06.2011 ATÉ 30.03.2016---€545,19

JUROS À TAXA DE 20,60% (15,60%+5%, ARTIGO 829.º-A, N.º4 C.CIVIL) DESDE 31.03.2016 ATÉ AO PRESENTE 26.09.2016----€1.394,14

IMPOSTO DE SELO À TAXA DE 6% (VERBA 17.2.1 DA TABELA GERAL DO IMPOSTO DE SELO, ART.º 70.º A DO
CÓDIGO DE IMPOSTO DE SELO ALTERADO PELO ART.º 155.º DA LEI 7-A/2016, DE 30 DE MARÇO) DESDE 31.03.2016 ATÉ AO PRESENTE 26.09.2016---€83,65

TAXA DE JUSTIÇA----€76,50

TOTAL (EXCLUIDOS JUROS VINCENDOS E IMPOSTO DE SELO DESDE 27.09.2016) ----€40.576,69

MAIS JUROS VINCENDOS À TAXA DE 20,60% SOBRE €13.800,00 DESDE 27.09.2016 ATÉ EFECTIVO E INTEGRAL PAGAMENTO E IMPOSTO DE SELO À TAXA DE 6% SOBRE ESSES JUROS.

O tribunal a quo indeferiu liminarmente o requerimento executivo inicial, com fundamento em falta de título por, em seu entender, a sentença carecer de um incidente de liquidação.

O exequente não se conforma e recorre, juntando várias decisões de tribunais superiores, tiradas sobre situações análogas, em abono da sua posição.

Não houve contra-alegações.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, a questão que se coloca é a de saber se a sentença oferecida como título executivo carece de ser liquidada em incidente declarativo ou se reúne desde já todos os elementos de um título executivo.

II. Fundamentação de facto
Relevam os factos constantes do relatório.

III. Apreciação do mérito do recurso
Está em causa no presente recurso saber se a sentença oferecida como título executivo reúne as condições de exequibilidade (como defende o exequente, ora recorrente) ou se, pelo contrário, a dívida só será exequível depois de intentado e decidido incidente de liquidação (como sustentou o tribunal a quo).
A sentença condenatória proferida em 2011, cujo dispositivo acima reproduzimos, condenou a agora recorrida a pagar ao agora recorrente «a quantia a liquidar em execução de sentença, correspondente às prestações de capital não pagas, acrescidas de juros desde 10/7/2006, à taxa de 15,60%, a que acresce o Imposto de Selo respectivo, até integral e efetivo pagamento».
Adianta-se já que o trecho «a liquidar em execução de sentença» reportava-se naturalmente ao art. 805 do CPC então vigente (na redação do DL 38/2003, de 8 de março), correspondente ao atual art. 716 do CPC de 2013, ambos inseridos nas disposições gerais do processo de execução. De acordo com a norma desses artigos que no tempo se sucederam, sempre que for ilíquida a quantia em dívida, o exequente deve especificar os valores que considera compreendidos na prestação devida e concluir o requerimento executivo com um pedido líquido. Foi o que fez o banco exequente.
A liquidação da dívida dependia de simples cálculo aritmético – era assim aquando da prolação da sentença condenatória e assim era aquando da instauração da execução – variando o seu valor no tempo apenas em função dos juros, que do tempo dependem.
Como se disse, a sentença exequenda condenou a ali ré a pagar a quantia correspondente às prestações de capital em dívida que, no caso, eram todas, conforme claramente consta dos factos listados na sentença (L. A ré não pagou nenhuma das prestações acordadas). As prestações de capital não podem somar mais que a totalidade do capital mutuado – € 12.000. Nos termos do contrato, a ré devia restituir o valor mutuado em 72 prestações que incluíam juros (no montante, cada uma, de € 275,26, totalizando mais de € 19.000). Nos termos da sentença, a ré deve pagar as prestações de capital não pagas (como não pagou nenhuma, deve pagar a totalidade do capital emprestado), «acrescidas de juros desde 10/7/2006, à taxa de 15,60%, a que acresce o Imposto de selo respectivo, até integral e efetivo pagamento». A soma das prestações de capital não pagas e respetivos juros e imposto de selo, vencidos até à data da sentença, podia ter sido feita nesta, mas o tribunal optou então por relegar essa liquidação para a execução da sentença.
Tal liquidação, que consiste em aritmética pura, foi feita pelo exequente, até à data do requerimento executivo, como manda o art. 716, n.º 1, do CPC (idêntico ao art. 805, n.º 1, do anterior CPC na versão do DL 38/2003).
No que respeita a juros e sanção pecuniária compulsória que continuam a vencer-se, a liquidação é feita a final pelo agente de execução, como determinam os n.ºs 2 e 3 do art. 716 (anterior art. 805). Em consonância, após liquidar a dívida à data do requerimento executivo – ou seja, após adicionar o valor das prestações de capital não pagas e o valor dos juros vencidos – o exequente mencionou que acrescem os juros vincendos.

Estando em causa dívida cujo apuramento do valor exato depende de simples cálculo aritmético não tem aplicação o incidente de liquidação regulado nos arts. 358 a 361 do CPC (arts. 378 a 380-A do CPC anterior). A disciplina deste incidente manteve-se praticamente inalterada com o novo Código, nomeadamente a respeito das regras a que vamos fazer referência. O incidente tem por objetivo «tornar líquido o pedido genérico, quando este se refira a uma universalidade ou às consequências de um facto ilícito». É nestas circunstâncias, e não noutras, que o incidente pode ser deduzido. Deve sê-lo, quando possível, antes de começar a discussão da causa, tendo por objetivo um dos dois indicados: i) tornar líquido o pedido genérico referente a uma universalidade; ou ii) ou tornar líquido o pedido genérico referente às consequências de um facto ilícito.
É o que decorre do n.º 1 do art. 358 do CPC (anterior art. 378, n.º 1, do revogado CPC), que tem o seguinte teor: «Antes de começar a discussão da causa, o autor deduzirá, sendo possível, o incidente de liquidação para tornar líquido o pedido genérico, quando este se refira a uma universalidade ou às consequências de um facto ilícito».
O n.º 2 do mesmo artigo permite a dedução do incidente de liquidação depois de proferida sentença de condenação genérica, nos termos do n.º 2 do artigo 609 do CPC (anterior art. 661): «O incidente de liquidação pode ser deduzido depois de proferida sentença de condenação genérica, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º, e, caso seja admitido, a instância extinta considera-se renovada».
O n.º 2 do art. 358 reporta-se ao momento da dedução do incidente, permitindo-o num tempo diferente do previsto no n.º 1. As condições que permitem a sua interposição, essas são as que constam do n.º 1: tornar líquida a condenação no que vier a ser liquidado, quando esta se refira a uma universalidade ou às consequências de um facto ilícito. Ainda assim, caso a condenação se reporte a uma universalidade, o incidente não é obrigatório, havendo que levar em conta o disposto no art. 716, n.º 7 (idêntico ao n.º 7 do anterior art. 805).
Repare-se que, os casos em que o tribunal pode condenar no que vier a ser liquidado (art. 609, n.º 2, do CPC) são aqueles em que é permitida a formulação de um pedido genérico e que estão elencados no art. 556 do mesmo código, a saber:
a) Quando o objecto mediato da ação seja uma universalidade, de facto ou de direito;
b) Quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito, ou o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o artigo 569 do Código Civil;
c) Quando a fixação do quantitativo esteja dependente de prestação de contas ou de outro ato que deva ser praticado pelo réu.
Só haverá lugar ao incidente de liquidação quando a sentença condena no que se vier a liquidar quando o objeto da condenação é uma universalidade ou as consequências de um facto ilícito (art. 358 do CPC). A sentença pode ainda condenar no que vier a resultar de uma dada prestação de contas, mas aí já não haverá lugar a incidente de liquidação, mas a uma ação de prestação de contas.
Em suma, os casos em que pode haver condenação no que vier a ser liquidado (art. 609, n.º 2) são aqueles em que é permitida a dedução de pedidos genéricos (art. 556, n.º 1), e mais nenhuns. No mesmo sentido, Salvador da Costa, Os incidentes da instância, 8.ª ed., Almedina, 2016, p. 254: «Ao invés do que já admitimos, a previsão do artigo 609.º, n.º 2 não abarca situações de formulação de pedidos genéricos diversos dos previstos no art. 556, n.º 1, por exemplo, o caso de ficar provado o fornecimento de materiais no desenvolvimento de contratos de compra e venda, mas não a respetiva qualidade e preço».

Também por via do raciocínio acabado de expender se percebe facilmente que no caso dos autos não tinha de haver incidente de liquidação, nem tão-pouco poderia ser instaurado, uma vez que não se verificam os pressupostos da sua dedução.
No caso dos autos, a sentença não condenou numa universalidade, nem em indemnização de danos decorrentes de ilícito. A sentença dada à execução condenou em quantia certa – prestações de capital, todas, de montante conhecido e igual ao capital mutuado – acrescida de juros em percentagem determinada, tudo a liquidar (necessariamente por mera operação aritmética) no momento da instauração da execução.
É muito vulgar o recurso pelos tribunais a esta forma de condenação, evitando assim a operação aritmética de contabilização de juros no momento da sentença.
A liquidação resulta de simples cálculo aritmético quando o título (no caso a sentença) contém todos os elementos necessários para, através de operações aritméticas (nomeadamente as mais básicas – adição, subtração, divisão e multiplicação) se conseguir obter a quantia certa.
Com o requerimento executivo inicial, o exequente procede à liquidação nos termos do art. 716 do CPC. E foi o que sucedeu no caso: a sentença dada à execução continha todos os elementos necessários a transformar o texto do dispositivo num valor certo.

Porém, e em abono da verdade há que dizê-lo, o exequente não efetuou a liquidação corretamente. Tendo a sentença condenado a ré a pagar à autora a quantia correspondente às prestações de capital não pagas, e constando dos factos que o autor emprestou a importância de € 12.000, a reembolsar em prestações e que a ré não pagou nenhuma destas, não se compreende como é que o exequente afirma que as prestações de capital não pagas somam € 13.800. Haverá aqui um manifesto lapso que, provavelmente afetou também a liquidação dos juros.
Todavia, esta é uma questão a sanar oportunamente pelo tribunal a quo e que não contende com a exequibilidade do título.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação totalmente procedente, revogando o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que não rejeite a sentença dada à execução como se inexequível fosse.

Custas pela recorrida.

Lisboa, 26/06/2018

Higina Castelo

José Capacete

Carlos Oliveira
Decisão Texto Integral: