Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ALFREDO COSTA | ||
Descritores: | FURTO ESTABELECIMENTO COMERCIAL LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/14/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE COM DEC VOT | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE | ||
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Sumário: | Sumário: (da responsabilidade do Relator) – Interpretação do artigo 207.º, n.º 2, do Código Penal: a aplicação do regime de acusação particular no furto simples apenas se verifica quando o bem visado está efectivamente exposto ao público, acessível sem violação de dispositivos de segurança, e desde que ocorra a sua recuperação imediata, cumulativamente com demais requisitos legais. – Conceito de “exposição ao público”: entende-se que bens guardados em compartimentos fechados, como centrais de pagamento automáticas, não estão expostos ao público, mesmo que estejam em local acessível, afastando assim a dependência de acusação particular. – Legitimidade do Ministério Público: nos casos em que o bem subtraído se encontra protegido por mecanismos de segurança, mantém-se a natureza semi-pública do crime de furto simples tentado, não estando a prossecução penal dependente da constituição de assistente pelo ofendido. – Punibilidade da tentativa: a tentativa de furto simples é punível nos termos expressos do artigo 203.º, n.º 2, do Código Penal, sendo a aplicação da pena de multa ajustada segundo os critérios de ilicitude, culpa e prevenção, com especial ponderação da confissão e das condições pessoais do agente. – Princípio da proporcionalidade na determinação da pena: a resposta penal adequada ao caso concreto deve assegurar a função preventiva e ressocializadora, privilegiando a pena não privativa de liberdade, conforme os artigos 70.º e 71.º do Código Penal. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa I. RELATÓRIO 1.1. No processo n° 76/23.2PLLRS o arguido/recorrente AA foi julgado e condenado, por acórdão proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Loures - JC Criminal - Juiz 1, nos seguintes termos: (transcrição) “(…) Pelo exposto, julgando a acusação improcedente, este Tribunal Coletivo delibera: - Absolver o arguido AA da prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e) e 23.º, todos do Código Penal; e - Por falta de legitimidade do Ministério Público para a persecução pela prática do crime de furto simples, tentado, nos termos do art.º 207.º, n.º 2 do Código Penal e 50.º do Código de Processo Penal, o Tribunal não poderá apreciar a responsabilidade criminal do arguido, neste processo. - Declarar perdidos a favor do Estado e ordenar a destruição do pé-de-cabra e da tenaz apreendidos a fls. 7. - Sem custas. (…)” * 1.2. O MP não se conformou com o acórdão prolatado e interpôs recurso. Da motivação do respectivo recurso extraiu as seguintes conclusões: (transcrição) (…) 1 – Por acórdão datado de ... de ... de 2025, por falta de legitimidade do Ministério Público para a persecução pela prática do crime de furto simples, tentado, nos termos do art.º 207.º, n.º 2 do Código Penal e 50.º do Código de Processo Penal, o Tribunal a quo entendeu não apreciar a responsabilidade criminal do arguido AA, concluindo que o crime em causa assumia natureza particular. 2 – Não podemos concordar, de forma alguma, com a decisão do Tribunal a quo ao considerar que o crime em causa assumia natureza particular e ao declarar extinto o procedimento criminal contra o arguido por falta de legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal, por ter feito uma incorrecta apreciação jurídica dos factos sub judice e errada interpretação da Lei, em face dos factos que o Tribunal a quo deu como provados, os quais impunham a condenação do arguido, pelo cometimento de um crime de furto, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 203. º, n.º 1 e n.º 2, 22.º e 23.º do Código Penal. 3 - Estabelece o artigo 207.º, n.º 2 do Código Penal, com a epígrafe “Acusação particular”, que: “No caso do artigo 203.º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao publico, relativamente à subtração de coisas móveis ou animais expostos de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometidas por duas ou mais pessoas. 4 - A norma prevista no n.º 2 do artigo 207.º do Código Penal respeita a coisas móveis subtraídas de um estabelecimento comercial que devam estar expostas ao público, ou seja em lugar acessível aos clientes do estabelecimento comercial. 5 – O dinheiro que o arguido pretendeu subtrair, não estava livremente acessível aos clientes da lavandaria Self-service, encontrando-se no interior de uma central de pagamentos, cujo acesso, pressupunha o rompimento/danificação do local de introdução das moedas, como, de facto sucedeu nos autos e como é possível constatar no auto de visionamento de fls. 48 a 50 dos autos, ou seja, o dinheiro em causa nos autos, estava protegido dos clientes. 6 - O art. 207.º, nº 2 do Código Penal exige que as coisas móveis estejam expostas, ou seja, têm que estar dispostas no estabelecimento comercial para que possam ser vistas pelos clientes. 7 - E, relativamente ao valor diminuto, entende-se que uma coisa é de valor diminuto quando, por força do art. 202.º, al. c) do Código Penal, “não exceder uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto”. Assim, actualmente será considerado de valor diminuto a coisa que não exceder os 102,00 euros. 8 - O valor é, normalmente implícito do tipo, considerado pela doutrina e jurisprudência como um elemento, nos casos de furto. 9- Na anotação ao artigo 207.º do Código Penal, escreve Paulo Pinto de Albuquerque no “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª Edição atualizada, Universidade Católica Editora, pag.ª 884 a 886 o seguinte: “ (…) As duas únicas condições que a lei estabelece em relação à natureza das coisas são a sua natureza móvel e o seu valor diminuto, que se define nos termos do artigo 202.º. As coisas devem estar expostas ao público, ou seja, em lugar acessível aos clientes do estabelecimento comercial. Não se encontram expostas ao público as coisas guardadas em armazém ou em locais fechados, nem as coisas expostas ao público, mas não livremente acessíveis, por exemplo, por estarem ligadas a uma parede ou a uma prateleira por fios metálicos (…). 10- Entendemos, pois, que o procedimento criminal por este crime – furto simples- não depende de acusação particular da ofendida, neste caso a “BB Lavandaria Self-Service”, não sendo necessário, por força do disposto no art.º 50.º do CPP, que para além da queixa apresentada pela sócia e gerente da sociedade, que a sociedade se tivesse que se constituir assistente e deduzisse acusação, subsistindo legitimidade ao Ministério Público para prosseguir o procedimento criminal, estando em causa um crime de furto, na forma tentada e previsto e punível pelos artigos 203.º, n.º 1, n.º 2 e 23.º, todos do Código Penal, cuja natureza é semipública. 11 – Salvo o devido respeito, que é muito, o acórdão sub judice não pode, a nosso ver, merecer acolhimento, pois fez uma incorrecta apreciação jurídica dos factos e errada interpretação da Lei, na parte em que decidiu pela falta de legitimidade do Ministério Público para a persecução pela prática do crime de furto simples, tentado, pois, em face da prova produzida em audiência de julgamento e dada como provada, impunha a condenação do arguido pela prática do referido ilícito penal. 12 - Pelo que, mal andou o Tribunal a quo ao considerar que o crime em causa assumia natureza particular e ao declarar extinto o procedimento criminal contra o arguido, por falta de legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal, fazendo uma errada interpretação do disposto no n.º 2, do artigo 207.º, do Código Penal. 13 - Nos termos do n.º 1, artigo 40.º, do Código Penal, a aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, isto é, a pena cumpre a função de responder às necessidades de prevenção gerais e especiais que se fazem sentir em cada caso. 14 – Já de acordo com o disposto no artigo 70.º, do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, dar-se-á preferência à segunda, sempre que realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 15- De acordo com o disposto no n.º 2, do artigo 71.º, do Código Penal, a pena ideal alcançar-se-á, ponderando, ainda, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; o grau de culpa os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime. 16 – In casu, entendemos que o grau de ilicitude é moderadamente elevado, considerando o modo de execução da conduta; o grau de culpa é elevado, tendo o arguido agido com dolo directo; a favor do arguido, realça-se o facto de ter confessado de forma integral e sem reservas os factos em audiência de julgamento. 17 - Pelo que uma pena de multa, não inferior a 50 (cinquenta) dias, se mostra justa e adequada aos factos enunciados, às circunstâncias do caso concreto e à culpa do arguido. 18 - Quanto ao quantitativo diário a fixar, nos termos do n.º 2, do artigo 47.º, do Código Penal, considerando os factos apurados nos autos e que se fizeram constar da decisão recorrida, deverá o mesmo ser fixado em montante não inferior a 6,00€ (seis euros). 19– Ao decidir como decidiu violou o Tribunal a quo, entre o mais, o disposto nos artigos 40.º, 70.º, 71.º, 203.º e 207.º, n.º 2, do Código Penal, 48.º e 50.º, do Código de Processo Penal. 20 – Pelo que deve o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que condene o arguido AA, pela prática, no dia ... de ... de 2023, entre as 20h00 e as 21h00, de um crime de furto, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, n.º 2 e 23.º, ambos do Código Penal, em pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 6,00. (…) * 1.3. O arguido regularmente notificado não deduziu respostas ao recurso interposto pelo MP. * 1.4. Neste Tribunal, a Srª Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer sustentando-se nos fundamentos do recurso interposto pelo MP e pugna pela sua procedência. * 1.5. Cumprido o artº 417°, n° 2, do CPP não foi junta qualquer resposta ao parecer. * 1.6. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência. * II – OBJETO DO RECURSO 2.1. De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, já que são nelas que sintetizam as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação. In casu, atentas as conclusões, o recorrente invoca as seguintes matérias: a. O numerário visado não se encontrava "exposto ao público", pelo que o crime é de natureza semi-pública, não dependendo de acusação particular; b. Deve ser aplicada pena de multa, proporcional à conduta e antecedentes do arguido. * III – DO ACÓRDÃO RECORRIDO 3.1. Os factos provado/não provados e motivação da decisão de facto têm o seguinte teor: (transcrição) (…) a) Factos Provados Discutida a causa, resultou provado que: 1) No dia 20-01-2023, entre as 20h00 e as 21h00, o arguido deslocou-se à ..., nesta comarca de ..., local onde funciona a lavandaria “BB Lavandaria Self-Service”; 2) Nestas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido munido com uma alavanca metálica, vulgarmente denominada pé-de-cabra, aproximou-se da central de pagamentos e danificou o local de introdução das notas, a fim de retirar o dinheiro que se encontrasse no seu interior. 3) Por motivo não concretamente determinado o arguido interrompeu a sua ação e abandonou o local. 4) Volvidos alguns minutos, CC entrou na lavandaria e contactou a responsável do local, comunicando-lhe que a central de pagamentos se encontrava danificada. 5) O arguido regressou ao local, trazendo consigo o pé-de-cabra na mão direita, deslocou-se de imediato à central de pagamentos, onde introduziu a sua mão esquerda a fim de retirar o dinheiro que ali se encontrava, só não o fazendo porque foi confrontado pelo elemento da PSP que já se encontrava no local, mais concretamente numa sala interior, a visualizar as imagens de videovigilância na companhia da responsável da lavandaria DD. 6) O arguido quis agir como agiu, com o intuito de retirar numerário do interior da central de pagamentos daquele estabelecimento e fazê-lo seu, só não tendo conseguido integrá-lo no seu património devido à pronta atuação do agente da PSP, apesar de saber que não lhe pertencia e que atuava sem o consentimento, contra a vontade e em prejuízo da sua legítima dona. 7) Ao agir da forma supra descrita, o arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas criminalmente. 8) À data dos factos que conduziram à instauração do presente processo, o arguido integrava o seu agregado, constituído por ele e a sua companheira desde há 15 anos, EE, bem como os filhos do casal de 11 e 7 anos de idade. 9) Habitavam numa casa camarária, com uma renda mensal de € 16,00 e que foi atribuída à companheira, constando o arguido no agregado. 10) A situação económica era modesta, fruto apenas da sua atividade laboral como ..., que nos últimos tempos exercia de forma nem sempre regular na sequência do seu envolvimento no consumo de heroína. 11) A companheira era doméstica, pelo que contavam com o apoio financeiro dos familiares. 12) Encontrava-se a consumir heroína de forma muito abusiva, consumos que apenas iniciou há cerca de cinco anos com amizades no seu bairro de residência. 13) AA é o quinto filho de uma prole de oito, sendo que a relação dos progenitores era conflituosa, com muitos episódios de violência doméstica devido ao alcoolismo do progenitor que infligia maus tratos físicos à progenitora, mas que não se estendiam os filhos. 14) O arguido iniciou a sua atividade laboral aos 17 anos de idade como ... de cofragem, ofício que aprendeu nos ... (quando lá esteve aos cuidados de uma tia paterna), tendo trabalhado na ..., em ..., e na ..., para onde emigrou com 21 anos e onde permaneceu até aos 30 anos de idade, tendo regressado por questões de saúde de um familiar. 15) Todos os seus familiares diretos, mãe e irmãos, encontram-se emigrados no ..., país para onde se descolou com 31 anos, vindo a regressar a ...-...-2024, retomando os consumos abusivos de heroína. 16) Pretende estabelecer-se em Portugal, tirar a carta de condução, reintegrar a sua atividade laboral e afastar-se de pares com consumos. Assume a sua problemática, mas considera que a prisão contribuiu para se manter abstinente e entende não necessitar de mais algum tratamento terapêutico, para além da medicação que recebe na Ala …, livre de drogas, do Estabelecimento Prisional de …. 17) O arguido está desde ...-...-2024 em prisão preventiva à ordem do Proc. n.º 878/24.2..., o qual ainda se encontra nos serviços do Ministério Público, não obstante já ter sido deduzida acusação. 18) Por sentença de ...-...-2003, transitada em ...-...-2003, proferida no âmbito do Proc. n.º 498/02.2..., que correu termos no 2.º Juízo Criminal de Loures, foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2002 e ...-...-2002, de um crime de condução sem habilitação legal e um crime de desobediência, nas penas parcelares 120 e 60 dias de multa, as quais, operado o cúmulo jurídico, resultaram na pena única de 165 dias de multa à razão diária de € 5,00, a qual foi declarada extinta, pelo cumprimento, em ...-...-2005. 19) Por sentença de ...-...-2005, transitada em ...-...-2005, proferida no âmbito do Proc. n.º 175/05.2..., que correu termos no 2.º Juízo de Pequena Instância Criminal de Loures, foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2005, de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 120 dias de multa à razão diária de € 3,00, a qual foi declarada extinta, pelo cumprimento, em ...-...-2007. 20) Por sentença de ...-...-2006, transitada em ...-...-2006, proferida no âmbito do Proc. n.º 1654/02.9..., que correu termos no 1.º Juízo Criminal de Loures, foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2002, de um crime de ofensa simples à integridade ... na pena de 10 meses de prisão, suspensa por 3 anos, sob a condição de o arguido comprovar documentalmente nos autos o pagamento ao demandante civil da indemnização arbitrada, a qual foi declarada extinta, pelo cumprimento, em ...-...-2008. 21) Por acórdão de ...-...-2007, transitado em ...-...-2007, proferido no âmbito do Proc. n.º 53/02.7..., que correu termos na 2.ª Vara Mista de Loures, foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2002, de um crime de roubo na pena de 20 meses de prisão, suspensa por 2 anos, mediante a condição de pagar ao ofendido FF a quantia de € 200,00, no prazo de 4 meses, a qual foi declarada extinta, pelo cumprimento, em ...-...-2012. 22) Por acórdão de ...-...-2008, transitado em ...-...-2008, proferido no âmbito do Proc. n.º 440/02.0..., que correu termos na 2.ª Vara Mista de Loures, foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2002, de um crime de roubo na forma tentada e um crime de roubo na forma consumada na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa por igual período, sujeita a regime de prova, a qual foi declarada extinta, pelo cumprimento, em ...-...-2010. 23) Por acórdão de ...-...-2010, transitado em ...-...-2011, proferido no âmbito do Proc. n.º 755/06.9..., que correu termos na ..., foi o arguido condenado pela prática, em ...-...06, de um crime de condução sem habilitação legal e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário nas penas parcelares de 7 meses e 1 ano de prisão, respetivamente, de que resultou a pena única de 1 ano e 4 meses de prisão, suspensa por igual período, sujeita a regime de prova, a qual perdeu autonomia por ter sido englobada no Cúmulo efetuado no Proc. n.º 269/03.9... 24) Por sentença de ...-...-2003, transitada em ...-...-2012, proferida no âmbito do Proc. n.º 764/02.7..., que correu termos no 2.º Juízo de Pequena Instância Criminal de Loures, foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2002, de um crime de condução sem habilitação legal e um crime de desobediência, nas penas parcelares de 30 dias de multa e 30 dias de multa, as quais, em cúmulo jurídico, resultaram na pena única de 45 dias de multa à razão diária de € 8,00, sendo que a primeira foi declarada extinta por prescrição e a segunda por descriminalização da conduta; 25) Por acórdão de ...-...-2011, transitado em ...-...-2011, proferido no âmbito do Proc. n.º 269/03.9..., que correu termos na ..., foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2003, de um crime de ofensa à integridade ... qualificada na pena de 2 anos de prisão, suspensa por 2 anos; 26) Por sentença de ...-...-2012, transitada em ...-...-2012, proferida no âmbito do Proc. n.º 11/12.3..., que correu termos no 1.º Juízo de Pequena Instância Criminal de Loures, foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2012, de um crime de detenção de arma proibida na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, pena essa que foi declarada prescrita em ...-...-2016. 27) Por sentença de ...-...-2012, transitada em ...-...-2013, proferida no âmbito do Proc. n.º 116/11.8..., que correu termos no 5.º Juízo, 3.ª Secção dos Juízos Criminais de Lisboa, foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2011, de um crime de furto simples e de um crime de condução sem habilitação legal nas penas parcelares de 1 ano de prisão por cada um deles, as quais, em cúmulo jurídico, redundaram na pena única de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa por igual período, a qual foi declarada extinta por despacho de ...-...-2015. 28) Por sentença de ...-...-2013, transitada em ...-...-2014, proferida no âmbito do Proc. n.º 18/11.8..., que correu termos no J3 do ..., foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2011, de um crime de furto qualificado na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por um ano; 29) Por sentença de ...-...-2013, transitada em ...-...-2014, proferida no âmbito do Proc. n.º 447/13.2..., que correu termos no 1.º Juízo, 3.ª Secção da Pequena Instância Criminal de Lisboa, foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2013, de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, a qual foi declarada extinta em ...-...-2017. 30) Por sentença de ...-...-2013, transitada em ...-...-2014, proferida no âmbito do Proc. n.º 202/10.1..., que correu termos no J3 do Juízo Local Criminal de Loures, foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2010, de um crime de consumo de estupefacientes na pena de 35 dias de multa, a qual foi declarada extinta pelo cumprimento em ...-...-2018. 31) Por sentença de ...-...-2017, transitada em ...-...-2017, proferida no âmbito do Proc. n.º 82/17.6..., que correu termos no J5 do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa, foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2013, de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita às condições de se inscrever numa escola de condução e de frequentar as aulas, a qual foi declarada extinta em ...-...-2018. 32) Por acórdão cumulatório de ...-...-2013, transitado em ...-...-2017, proferido no âmbito do Proc. n.º 269/03.9..., que correu termos na antiga ..., atual J15 do ..., foi efetuado o cúmulo das penas aplicadas neste e no Proc. n.º 755/06.9..., na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período, a qual foi declarada extinta em ...-...-2020; 33) Por sentença de ...-...-2015, transitada em ...-...-2017, proferida no âmbito do Proc. n.º 30/14.5..., que correu termos no J1 do ..., foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2014, de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 42 períodos de prisão por dias livres, a qual foi declarada extinta pelo cumprimento parcial em ...-...-2020, tendo o remanescente sido perdoado, por despacho de ...-...-2020 do Proc. 1305/18.0...-A do J8 do Juízo de Execução de Penas de Lisboa. 34) Por sentença de ...-...-2015, transitada em ...-...-2018, proferida no âmbito do Proc. n.º 16/12.4..., que correu termos no J2 do ..., foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2012, de um crime de furto qualificado e de um crime de condução sem habilitação legal na pena única de 2 anos de prisão, suspensa por igual período, a qual foi declarada extinta, por prescrição, através de despacho de ...-...-2024. 35) Por sentença de ...-...-2014, transitada em ...-...-2018, proferida no âmbito do Proc. n.º 25/14.9..., que correu termos no J1 do ..., foi o arguido condenado pela prática, em ...-...-2014, de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 8 meses de prisão, substituída por 48 períodos de prisão por dias livres, a qual foi declarada extinta por perdão, através de despacho de ...-...-2022. * b) Factos Não Provados Com relevância para a presente decisão, não se provou que: o intuito do arguido, referido no ponto 6) dos Factos Provados, se concretizou. * 1.1. Motivação da deliberação sobre a Matéria de Facto O arguido prestou declarações em sede de audiência de julgamento, tendo confessado integralmente e sem reservas todos os factos que constavam da acusação, pelo que foi com base nessa confissão, que não deixou quaisquer dúvidas a este Coletivo, que o Tribunal considerou tais factos como provados. Não obstante esta confissão integral, não podia manter-se a contradição de facto que constava do ponto 6. da acusação: o arguido não pode concretizar o intuito de retirar o dinheiro da caixa de pagamento e, simultaneamente, não conseguir subtraí-lo, pelo que, considerando os demais factos objetivos dados como provados, a concretização do intuito de subtrair teve de ser considerada como não provada, sanando-se, deste modo, a contradição de que padecia aquele ponto 6. No que respeita às condições pessoais e económicas do autor, tivemos em conta, para a nossa convicção, o relatório social para determinação da sanção, elaborado pela DGRSP no dia ...-...-2024 e que consta de fls. 144 a 146 destes autos, apenas com pequenas correções decorrentes das declarações do arguido sobre essa matéria, designadamente, quando referiu que a dependência da heroína durava já há cinco anos, em vez dos três ali mencionados, bem como quanto às suas perspetivas futuras que, atualmente, não passam pela emigração. Para prova do ponto 17), estribámo-nos nas declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento e confirmadas pela consulta do ..., levada a cabo pelo relator deste acórdão no dia de hoje. Os antecedentes criminais ficam provados com base no certificado de registo criminal do arguido, emitido em ...-...-2024 (ref.16005117). (…) * IV- APRECIANDO 4.1. O numerário visado não se encontrava "exposto ao público", pelo que o crime é de natureza semi-pública, não dependendo de acusação particular A discussão em torno da natureza pública ou semi-pública do crime de furto simples, em especial nos casos de subtracção de numerário em estabelecimentos comerciais, é não apenas tecnicamente relevante, mas de profundo alcance prático-processual. Esta controvérsia revela-se fulcral nos casos em que se desqualifica o ilícito de furto qualificado para furto simples e se coloca a questão da legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal. Em particular, questiona-se: será aplicável o regime de acusação particular quando o bem jurídico visado – o numerário – se encontrava protegido, sem acesso directo, num receptáculo mecânico fechado? O artigo 207.º, n.º 2, do Código Penal consagra: “No caso do artigo 203.º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à subtracção de coisas móveis ou animais expostos de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas.” Esta norma está inserida num quadro legislativo de compressão da natureza pública dos crimes patrimoniais de reduzida ofensividade, nos quais se assume uma menor necessidade de tutela penal ex officio. O legislador pretendeu, com esta disposição, desjudicializar conflitos de baixo impacto, deixando ao titular do bem subtraído a escolha de activar o regime penal – desde que preenchidos, cumulativamente, todos os requisitos exigidos. Para que se verifique a dependência de acusação particular, é imprescindível a conjugação dos seguintes elementos objectivos: i. Subtracção em estabelecimento comercial; ii. Durante o período de abertura ao público; iii. Relativamente a bens expostos e de valor diminuto; iv. Com recuperação imediata dos bens; v. E a exigência de actuação individual, ou seja, se praticado por apenas um agente. Ora, o ponto fulcral incide na interpretação do conceito jurídico indeterminado de "exposição ao público" – e em particular se o numerário contido no interior de um receptáculo automatizado, como uma caixa de pagamentos, pode ser considerado uma coisa “exposta” na acepção do artigo 207.º, n.º 2, do Código Penal. O acórdão recorrido acolhe a tese de que, uma vez que não é conhecido o valor exacto do numerário visado, e na ausência de elementos qualificativos (artigo 204.º do Código Penal), a conduta configura tentativa de furto simples e, não sendo conhecida a quantia, presume-se de valor diminuto. Assim, sustenta o tribunal que o procedimento criminal depende de acusação particular, por se tratar de subtracção em estabelecimento comercial de coisa móvel de valor diminuto, durante o seu horário de funcionamento. Todavia, esta construção interpretativa assenta numa leitura inadequadamente extensiva e materialmente descontextualizada da norma, desconsiderando a ratio legis e a natureza funcional do bem jurídico visado. É que a aplicação do regime da acusação particular nestes casos é juridicamente insustentável, à luz da interpretação sistemática e teleológica da norma penal. Mas vejamos mais em detalhe: A exposição ao público implica visibilidade, acessibilidade e ausência de obstáculos físicos imediatos ao acto de subtracção. A “exposição” deve ser entendida como uma característica da disposição material do bem no espaço físico do estabelecimento, não apenas como visibilidade física, mas sobretudo como possibilidade prática e imediata de apropriação, sem necessidade de romper mecanismos de segurança. Assim, não se encontram expostas ao público as coisas guardadas em armazém ou em locais fechados, nem as coisas expostas ao público mas não livremente acessíveis, por exemplo, por estarem ligadas a uma parede ou a uma prateleira por fios metálicos. Este entendimento, consagra dois elementos essenciais: i. Acesso livre e directo: o bem deve poder ser alcançado sem violação de barreiras ou dispositivos de segurança; ii. Ausência de reserva ou contenção física: o bem deve estar desprovido de qualquer invólucro protector, como vitrines fechadas, cofres, ou receptáculos com fechaduras. Ora, o numerário visado pelo arguido nos autos encontrava-se no interior de uma máquina de pagamento automática, com estrutura metálica, compartimentos internos e sistema de recolha de dinheiro, projectado expressamente para impedir o acesso não autorizado ao seu conteúdo. Tal como sucede com uma caixa forte ou com o cofre de uma loja, esta caixa não expõe o seu conteúdo ao público: apenas oferece ao público a interface de pagamento – não o numerário em si. É irrelevante, nesta sede, o facto de a máquina se encontrar numa zona acessível do estabelecimento comercial. O que importa, para efeitos do artigo 207.º, n.º 2, é que o objecto do crime – o dinheiro – não estava exposto, nem era acessível ao público no momento da acção, sendo necessário, como foi o caso, danificar a estrutura da máquina para lhe aceder. Ou seja, o dinheiro que o arguido pretendia subtrair encontrava-se dentro de um receptáculo com fecho mecânico, o qual teve de ser danificado com instrumento apropriado (pé-de-cabra), e apenas assim se tornou acessível. Isso bastaria, de per si, para excluir a aplicabilidade do artigo 207.º, n.º 2, uma vez que o bem visado não estava exposto. Por conseguinte, o fundamento essencial da decisão recorrida – de que o procedimento depende de acusação particular – assenta numa premissa hermenêutica errada, conduzindo a uma conclusão ilegítima em termos processuais e dogmáticos. A decisão do legislador de atribuir natureza semi-pública a determinadas condutas no domínio patrimonial visa, precisamente, evitar o accionamento automático do sistema de justiça penal em casos de lesividade social reduzida, nomeadamente quando: i. O bem visado é de valor diminuto; ii. O bem é recuperado de imediato; iii. A conduta ocorre em circunstâncias de normal convivência comercial (isto é, durante o funcionamento do estabelecimento); iv. A subtracção incide sobre bens abertamente disponibilizados para consumo ou visualização do público. Por conseguinte, o artigo 207.º, n.º 2, estabelece uma excepção à regra da natureza pública do crime de furto. Só se aplica, pois, quando estejam preenchidos todos os requisitos cumulativos que atestem uma baixa intensidade lesiva da conduta. Assim, só se justificaria retirar ao Ministério Público a legitimidade para proceder penalmente contra um, ou mais agentes, quando a conduta ofensiva não ponha em crise o bem jurídico da propriedade de forma relevante e não revele qualquer intrusão violenta em espaços ou dispositivos de protecção do bem. Ora, como já referido, in casu o arguido munido com um instrumento de arrombamento (pé-de-cabra) danificou de forma deliberada um equipamento mecânico destinado à guarda e recolha de numerário de uso público, inserido numa lavandaria self-service. Esta caixa central de pagamentos configura um dispositivo de segurança mecânica, criado precisamente para proteger os valores arrecadados do acesso de terceiros. A acção do arguido não só implicou a violação intencional desse sistema de segurança, como demonstrou um especial desvalor da conduta. É precisamente esta dimensão de violação de mecanismos de protecção da propriedade, com intrusão em compartimento reservado e protegido, que distancia a presente situação daquelas para as quais o regime de acusação particular foi concebido. Estar-se-ia, de outro modo, a admitir que condutas que exigem dolo directo, premeditação, instrumentalização e ofensa a barreiras físicas de segurança seriam subsumíveis à categoria de ilícitos de natureza diminuta e de mero interesse privado. Não pode o ordenamento jurídico aceitar tal distorção. A ser assim, estar-se-ia a permitir que crimes com clara ofensividade pública escapem ao controlo jurisdicional autónomo do Ministério Público, violando não só o princípio da legalidade (art. 219.º, n.º 1 da CRP), mas também o da igualdade perante a lei e da protecção judicial efectiva dos bens jurídicos colectivos. É ainda de sublinhar que a protecção de valores como o numerário depositado em caixas automáticas, por não estarem “expostos”, representa um nível acrescido de expectativa de inviolabilidade por parte dos seus legítimos titulares, o que exige igualmente maior intervenção penal e não menos. A opção do tribunal recorrido por aplicar o regime da acusação particular, quando o bem se encontra fechado e protegido contra acessos ilícitos, não só contraria a rácio da norma como desconsidera o modelo acusatório público estruturante do processo penal, permitindo que a acção penal fique dependente de formalismos impróprios ou omissões processuais alheias à gravidade objectiva dos factos. Mas vejamos os argumentos acolhidos pelo acórdão recorrido: O primeiro argumento consiste em entender que, estando o receptáculo automatizado (ex: central de pagamentos) acessível ao público – ou seja, colocado num espaço físico sem barreiras, em livre utilização –, então o seu conteúdo (neste caso, numerário) deve considerar-se “exposto ao público”. Este argumento padece de um vício manifesto. Não se pode confundir o acesso à interface da máquina com o acesso ao bem jurídico tutelado, ou seja, o dinheiro. A acessibilidade funcional da máquina (i.e., poder usá-la nos seus termos próprios, como inserir moedas ou receber troco) não equivale à acessibilidade física do numerário no seu interior. O conceito jurídico de "exposição" exige potencialidade imediata de apropriação, o que está ausente quando o bem está inserido em compartimento protegido com fecho mecânico. Assim, a mera disponibilidade da máquina no espaço comercial não satisfaz, de forma alguma, a exigência de "exposição" nos termos do artigo 207.º, n.º 2. Outro argumento, acolhido no acórdão recorrido, consiste em afirmar que, não sendo alegado o valor concreto do numerário que se encontrava no interior da central de pagamentos, deve presumir-se que se trata de valor diminuto (inferior a € 102,00, nos termos do artigo 202.º, alínea c), do Código Penal), com todas as consequências daí decorrentes quanto à desqualificação do crime e à dependência de acusação particular. Este raciocínio é falacioso pela seguinte razão: O artigo 207.º, n.º 2, exige a verificação cumulativa dos requisitos de subtracção de bem de valor diminuto e recuperação imediata do mesmo. Ora, no caso concreto, o arguido não chegou a subtrair o numerário, pelo que não houve qualquer “recuperação imediata”. Estaríamos perante uma tentativa (não consumada), o que por si só inviabiliza a aplicação do regime da acusação particular, que pressupõe crime consumado com reintegração material correspondente à lesão. Estas incorrecções interpretativas têm como efeito prático subverter o modelo do Ministério Público como titular exclusivo da acção penal em crimes públicos, desresponsabilizando o Estado da perseguição penal de condutas lesivas da propriedade sempre que falte ao ofendido a iniciativa de se constituir assistente. Não se desconhece a argumentação que vai no sentido de que, uma vez desqualificada a conduta de furto qualificado para furto simples, impõe-se automaticamente a aplicação do artigo 207.º, n.º 2, se os demais requisitos estiverem preenchidos. Ora, esta leitura é formalista e incompatível com os princípios do processo penal. A desqualificação do tipo penal em julgamento não deve afectar a regularidade processual da acusação pública validamente deduzida, quando o bem jurídico tutelado exigia tutela reforçada à partida. Na verdade o momento da qualificação relevante é o da dedução da acusação, não sendo admissível a declaração posterior de ilegitimidade do Ministério Público com base em requalificação. Analogamente, no domínio do furto, a posterior desqualificação não pode operar retroactivamente no plano da legitimidade processual. Caso contrário, a consequência seria absurda: o arguido beneficia de absolvição por simples efeito de valoração jurídica, independentemente da gravidade factual da conduta. A leitura extensiva do artigo 207.º, n.º 2, do Código Penal no sentido de afastar a legitimidade do Ministério Público em crimes de furto simples — mesmo quando o objecto visado não se encontra efectivamente exposto ao público e a subtracção não se consumou — acarretaria consequências graves e sistémicas no plano do direito constitucional, da política criminal e da coerência do sistema processual penal. Veja-se: A Constituição da República Portuguesa consagra, no seu artigo 32.º, n.º 1, o princípio do processo criminal justo e equitativo, o qual se materializa, entre outros, no princípio da legalidade processual penal, que impõe que o processo penal decorra de acordo com as regras legalmente previstas, não se admitindo obstáculos arbitrários ou formalistas ao exercício da acção penal. Ao considerar-se que, por desqualificação da acusação, o Ministério Público perde legitimidade para prosseguir com o processo por tentativa de furto simples — ainda que o bem jurídico tenha sido severamente posto em causa — está-se a admitir uma obstrução arbitrária ao exercício da função pública da acção penal, que compromete os fins de realização da justiça material e da protecção dos bens jurídicos essenciais. Mais ainda, está-se a permitir que a tipificação penal dos factos seja utilizada como pretexto para excluir o escrutínio jurisdicional de condutas gravemente ofensivas da propriedade, com base numa cláusula restritiva (acusações particulares) desenhada para proteger apenas situações de lesividade mínima. A imposição da acusação particular fora dos casos expressamente previstos para crimes de reduzidíssima ofensividade contradiz esta arquitectura. É expectável — e juridicamente inaceitável — que, por falta de conhecimento técnico, recursos ou acompanhamento jurídico, a vítima de um furto com intrusão e dano em equipamento de segurança não se constitua assistente. A consequência será, nesse caso, a absolvição do arguido não por falta de prova, mas por defeito meramente formal, subvertendo o princípio da verdade material. Mais grave: permite-se que os agentes conhecedores desta mecânica processem condutas lesivas com a expectativa razoável de impunidade, confiando na ausência de formalização do assistente. Tal cria uma disfunção no sistema e incentiva práticas reiteradas de criminalidade de oportunidade, em especial contra máquinas de pagamento, distribuidores automáticos e outros dispositivos não vigiados. O princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado no artigo 13.º da CRP, seria também posto em causa quando se admite que a legitimidade do Estado para punir dependa do local onde se encontra o bem, ou da precária distinção entre “acesso visível” e “receptáculo fechado”, gerando decisões potencialmente contraditórias e imprevisíveis. Acresce que a própria ideia de intervenção mínima do direito penal — frequentemente invocada como justificação para a acusação particular — é aqui manipulada. A intervenção mínima exige que o direito penal não intervenha quando existam outros meios eficazes de protecção do bem jurídico. Ora, no caso da tentativa de subtracção de numerário em receptáculo seguro, não existe alternativa tutelar fora da justiça penal. A acção civil não tem eficácia dissuasora, e a criminalidade que incide sobre máquinas automáticas tende a repetir-se com grande frequência em contextos urbanos e de marginalidade social, onde o grau de organização e persistência criminosa impõe resposta penal eficaz. Pelo exposto, é procedente a questão suscitada pelo Ministério Público quanto à natureza pública do crime de furto simples tentado nos presentes autos, por se entender que o numerário visado não se encontrava exposto ao público na acepção do artigo 207.º, n.º 2, do Código Penal, encontrando-se protegido no interior de um receptáculo dotado de mecanismo de segurança, o que afasta a aplicação do regime de acusação particular e confirma a legitimidade do Ministério Público para a prossecução da acção penal. Mas, ainda que a problemática da legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal nos casos em que a qualificação jurídico-penal dos factos evolui de crime público para semi-público — por força da desqualificação do tipo legal — possa ser objecto de discussão dogmática, no caso dos autos tal questão não se coloca sequer, porquanto a própria lesada manifestou expressamente a vontade de ver instaurado procedimento criminal contra o arguido. Com efeito, conforme resulta do auto de notícia por detenção em flagrante delito, junto aos autos, lê-se que: “Após a lesada ter desejado procedimento criminal na 78.ª Esquadra – Camarate, foi dada VOZ DE DETENÇÃO ao suspeito, tendo-lhe sido lidos os seus direitos e deveres enquanto detido.” (sublinhado nosso) Tal declaração expressa de vontade por parte da ofendida dissipa qualquer eventual dúvida quanto à legitimidade do Ministério Público, reforçando a regularidade do exercício da acção penal nos presentes autos. Assim, ainda que se entendesse, por hipótese, que a subtracção tentada poderia integrar um crime de natureza particular, a existência de declaração voluntária da lesada de intenção de procedimento criminal bastaria para legitimar a actuação do Ministério Público. * 4.2. Deve ser aplicada pena de multa, proporcional à conduta e antecedentes do arguido A escolha e determinação da pena são momentos centrais na dogmática penal e no exercício da jurisdição criminal. Em face de crimes patrimoniais de execução não consumada – como os furtos tentados – torna-se particularmente relevante o princípio da proporcionalidade, que opera como critério de contenção do poder punitivo do Estado e como instrumento de ajustamento da pena à culpa do agente e às exigências preventivas do caso concreto. In casu, o tribunal de primeira instância absolveu o ora arguido, ao qual havia sido imputada a prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, por desqualificação jurídica dos factos para furto simples tentado. Tal decisão foi objecto de recurso por parte do Ministério Público, o qual, entre outros fundamentos, defende que: i. os factos integram a tentativa de furto simples; ii. os factos devem ser punidos com aplicação de pena de multa, proporcional à culpa e aos antecedentes do arguido. Uma correcta apreciação da pretensão do Ministério Público de ver aplicada pena de multa ao arguido AA exige, desde logo, a clarificação de um ponto essencial: a tentativa de furto simples é legalmente punível no ordenamento jurídico português. Esta constatação resulta de forma inequívoca da redacção do artigo 203.º, nº 2 do Código Penal. Trata-se de uma formulação expressa, que afasta qualquer necessidade de recurso à regra geral do artigo 23.º, n.º 1, do Código Penal — a qual exige, para a punibilidade da tentativa, que o crime consumado seja punido com pena de prisão superior a três anos, salvo disposição em contrário. Ora, essa disposição em contrário existe expressamente no caso do furto simples: o legislador, atento à frequência, relevância social e reincidência deste tipo de ilícito, optou por tornar punível também a tentativa, mesmo sendo o crime consumado punido com pena de prisão até três anos ou multa. In casu, ficou provado que o arguido, munido de um pé-de-cabra, tentou forçar a abertura de uma central de pagamentos automática instalada no interior de uma lavandaria self-service, não logrando, contudo, aceder ao numerário devido à rápida intervenção policial. A máquina apresentava sinais de arrombamento e danos estruturais. O arguido confessou a tentativa de apropriação. A factualidade descrita preenche os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de furto simples (artigo 203.º, n.º 1), em conjugação com os artigos 22.º e 23.º, relativos ao conceito e à punibilidade da tentativa. Dado que o objecto visado — numerário guardado — não estava exposto ao público, e que a tentativa é punível, é juridicamente inadmissível sustentar a absolvição com fundamento na não punibilidade da conduta. Esta errónea subsunção por parte do tribunal a quo conduziu à prolação de uma decisão materialmente injusta e juridicamente infundada, ao absolver o arguido por não ver reconhecida a tentativa como punível. Tal equívoco afecta a realização da justiça, a função dissuasora da pena e o respeito pelas normas legais vigentes, comprometendo a coerência do sistema. A pena de multa, no sistema penal português, é uma pena principal e autónoma, com dignidade própria, prevista nos artigos 47.º a 49.º do Código Penal. Longe de constituir uma pena subsidiária ou de menor valia, a pena de multa é uma expressão legítima da intervenção penal, especialmente vocacionada para a repressão de condutas que, embora penalmente relevantes, não justifiquem a aplicação de uma pena privativa da liberdade, por razões de proporcionalidade e adequação. Nos termos do artigo 47.º, n.º 1, do Código Penal: “A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º, sendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360.” Já o artigo 70.º do mesmo diploma dispõe que: “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.” Trata-se de uma consagração normativa do princípio da menor intervenção possível com eficácia suficiente. A pena de multa, ao permitir uma sanção proporcional, não estigmatizante e compatível com a reintegração social, é a medida idónea nos casos em que a ilicitude da conduta não exige o sacrifício da liberdade. Estão estabelecidos critérios bem definidos para a aplicação da pena de multa como pena principal: i. Que a moldura penal permita a alternativa entre multa e prisão (como sucede no art. 203.º, n.º 1); ii. Que os factos, o grau de culpa e a personalidade do agente não imponham a pena de prisão. O caso sub judice cumpre todos os requisitos legais para a aplicação de uma pena de multa como sanção principal: O crime imputado — furto simples tentado — encontra-se punido com pena de prisão até 3 anos ou multa (art. 203.º, n.º 1), sendo legalmente admissível a opção pela pena de multa; A tentativa, punível (art. 203.º, n.º 2), representa uma diminuição do desvalor do resultado, reduzindo o grau de ilicitude; A conduta, apesar de dolosa e reincidente, não envolveu violência contra pessoas, nem causou danos materiais irreparáveis; O arguido confessou integralmente os factos, demonstrando cooperação processual. Estes elementos tornam manifesta a suficiência da pena de multa para a realização das finalidades preventivas da punição, tanto geral como especial, sem necessidade de recurso a pena privativa da liberdade. Escolhida a pena de multa face à pena de prisão, nos termos do artigo 70.º do Código Penal, importa agora determinar a medida concreta da pena, com base nos critérios legais estabelecidos no artigo 71.º do mesmo diploma legal. De acordo com esta norma, a determinação da pena concretiza-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo a todas as circunstâncias que não façam parte do tipo de crime, nomeadamente: O grau de ilicitude do facto; O modo de execução; A intensidade do dolo; As circunstâncias do agente e da vítima; A conduta anterior e posterior ao facto. In casu, estamos perante a prática de um crime de furto simples na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.ºs 1 e 2, 22.º e 23.º do Código Penal. O arguido, utilizando um pé-de-cabra, tentou forçar a abertura de uma central de pagamentos automática existente no interior de uma lavandaria self-service, não tendo conseguido subtrair qualquer numerário devido à pronta intervenção policial. O equipamento apresentava danos visíveis, e o arguido confessou integralmente os factos em audiência de julgamento. Quanto ao grau de ilicitude, embora se trate de crime patrimonial sem consumação, o facto de ter havido instrumentalização, escolha de um alvo protegido por dispositivo mecânico de segurança, tentativa de arrombamento e ingresso em estabelecimento comercial evidencia um desvalor objectivo da acção que não pode ser ignorado. Ainda que não se tenha verificado ofensa directa à integridade física de terceiros, nem se tenha logrado acesso ao bem visado, os actos executados pelo arguido ultrapassam o mero propósito impulsivo. Revelam um dolo directo e determinado, sendo que a execução só não se completou por razões alheias à sua vontade. No que respeita à culpa do agente, constata-se que o arguido revelou uma vontade criminosa clara, agindo de forma autónoma, com consciência da ilicitude e da probabilidade de causar dano patrimonial significativo, tanto pelo objectivo pretendido (subtracção de numerário) como pelos prejuízos causados no equipamento. Não obstante, importa sublinhar que o arguido confessou integralmente os factos e cooperou com o tribunal, o que constitui uma atenuante relevante na medida da pena. A sua postura em audiência permite aferir que não agiu sob impulso irreflectido, mas também não demonstrou especial persistência ou organização criminosa que justifique agravação substancial da pena. Relativamente à prevenção geral, o crime de furto, mesmo tentado, afecta um bem jurídico de inegável valor social – a propriedade – e é susceptível de abalar o sentimento de segurança patrimonial da comunidade, sobretudo quando se trata de intrusões em equipamentos de acesso público. O aumento da frequência com que tais dispositivos são alvo de tentativa de subtracção em zonas urbanas confere particular acuidade à necessidade de reafirmação da norma penal, ainda que através de uma pena proporcional e não privativa da liberdade. Também no plano da prevenção especial, o facto de o arguido apresentar antecedentes por crimes patrimoniais justifica uma resposta penal que não seja simbólica ou puramente pedagógica. Todavia, os antecedentes não são de tal ordem que justifiquem o abandono da multa como pena, nem há indicação de incumprimento reiterado ou insensibilidade às respostas penais anteriormente aplicadas. Quanto à capacidade económica do arguido, é possível inferir, da prova produzida, que este aufere rendimentos baixos e possui escassos recursos, situação que deve ser considerada para a fixação da taxa diária da multa. A proposta do Ministério Público – 50 dias de multa à taxa de €6,00 – revela-se, neste quadro, proporcional, equilibrada e exequível, traduzindo uma pena que não compromete a subsistência mínima do arguido, mas que, ainda assim, representa um sacrifício adequado à censura do seu comportamento. Desta forma, à luz dos princípios da culpa e da proporcionalidade, e ponderando tanto as exigências de prevenção geral como especial, considera-se inteiramente adequada e legalmente justificada a pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à razão diária de €6,00 (seis euros), perfazendo o montante total de €300,00 (trezentos euros). Esta medida representa uma resposta penal justa, suficientemente onerosa para cumprir a sua função punitiva, e compatível com as possibilidades económicas do arguido. Permite alcançar os fins da pena com recurso à sanção menos gravosa necessária. Termos em que o recurso do MP procede. * V-DECISÃO Nestes termos, acordam os Juízes da 3ª Secção desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo MP e, em consequência: a. Revogar o acórdão recorrido na parte em que absolveu o arguido AA da prática do crime de furto simples na forma tentada, e declarou extinto o procedimento criminal com fundamento em falta de legitimidade do Ministério Público; b. E, em substituição, condenar o arguido AA pela prática de um crime de furto simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 203.º, n.ºs 1 e 2, 22.º e 23.º do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à razão diária de €6,00 (seis euros), o que perfaz o montante global de €300,00 (trezentos euros); c. Manter, no mais, o acórdão recorrido, designadamente no que respeita à desqualificação jurídica da conduta relativamente ao crime de furto qualificado. Sem custas. Notifique. * Lisboa e Tribunal da Relação, 14 de julho de 2025 Processado e revisto pelo relator (artº 94º, nº 2 do CPP). Ortografia conforme pré-acordo Alfredo Costa Cristina Almeida e Sousa Rosa Vasconcelos Declaração de voto da Srª Juiz Desembargadora, na qualidade de 1ª adjunta: Concordo com o sentido final da decisão, quer no que se refere à qualificação do comportamento do arguido AA, nas instalações da lavandaria “BBLavandaria Self-Service”, no dia …-…-2023, como crime de furto simples na forma tentada, quer no que se refere à espécie e medida concreta da pena e com a esmagadora parte da argumentação. Mas não concordo com o seguinte excerto: «A desqualificação do tipo penal em julgamento não deve afectar a regularidade processual da acusação pública validamente deduzida, quando o bem jurídico tutelado exigia tutela reforçada à partida. Na verdade o momento da qualificação relevante é o da dedução da acusação, não sendo admissível a declaração posterior de ilegitimidade do Ministério Público com base em requalificação.», porque, se por vicissitudes de prova, o que vier a demonstrar-se for, por exemplo, uma forma simples e não qualificada de um determinado tipo de crime, que envolva a sua diferente qualificação de crime público para crime semipúblico, como sucede no presente caso, se não tiver sido apresentada queixa, considero que o Mº.Pº. perde a legitimidade para o exercício da acção penal. Consequentemente, também discordo do excerto, no qual se diz: «Ao considerar-se que, por desqualificação da acusação, o Ministério Público perde legitimidade para prosseguir com o processo por tentativa de furto simples — ainda que o bem jurídico tenha sido severamente posto em causa — está-se a admitir uma obstrução arbitrária ao exercício da função pública da acção penal, que compromete os fins de realização da justiça material e da protecção dos bens jurídicos essenciais.» Esta divergência, porém, não tem qualquer relevância para o desfecho do recurso, porque, ao ter declarado que desejava procedimento criminal contra o arguido por estes factos, a legal representante da lavandaria ofendida, exerceu válida, eficaz e atempadamente o direito de queixa (cfr. o auto de denúncia com a referência Citius 13291340 de … de … de 2023), deixando, pois incólume a legitimidade do Mº. Pº. para o exercício da acção penal. |