Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
661/21.7TELSB-B.L1-9
Relator: ELEONORA VIEGAS (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: RETENÇÃO DO RECURSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2025
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: NÃO PROVIDA
Sumário: Sumário (da responsabilidade da Relatora):
A retenção do recurso gera inutilidade absoluta sempre que o despacho recorrido produza um resultado irreversível seja qual for a decisão do tribunal ad quem, não bastando uma mera inutilização de actos processuais, incluindo a produção de prova na audiência de julgamento em curso.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. Relatório
O Ministério Público veio reclamar, nos termos do art. 405.º do CPP, do despacho que admitiu o recurso que interpôs, do despacho que, no decurso da audiência de julgamento, indeferiu o seu requerimento para inquirição de uma testemunha, com subida a final e efeito devolutivo.
Alega, em síntese, que a retenção do recurso impedirá que essa testemunha, essencial para a descoberta da verdade, preste o seu depoimento, ficando o mesmo subtraído à apreciação do julgador, que nele não poderá fundar a sua decisão, retirando ao recurso qualquer utilidade prática, em virtude de os despachos de acusação e de pronúncia terem sido desprovidos de parte do seu conteúdo.
Sustentando ainda que deve reconhecer-se que o recurso tem efeito suspensivo sobre a decisão recorrida, impedindo a sua produção de efeitos até apreciação do recurso interposto.
Cumpre apreciar.
*
II. Fundamentação
Da consulta dos autos resultam os seguintes factos com relevância para a decisão:
1. Na sessão da audiência de julgamento realizada no dia ........2025 o Ministério Público requereu o seguinte:
“Entende o Ministério Público efetivamente que tendo esta testemunha aceite, dado a sua concordância à prestação do seu depoimento aqui, sem prejuízo de eventual privilégio de não autoincriminação de que continuaria a beneficiar, mas sem prejuízo desse benefício, a testemunha, nos termos do artigo 133º nº2 do CPPenal, entendeu, pese embora advertido por V/Exª, como de resto deveria suceder, consentiu no seu depoimento, todavia o Tribunal decidiu ainda assim, pese embora este consentimento e pese embora aquela que na verdade foi a promoção do Ministério Público no sentido de ouvir a testemunha em face do seu consentimento, o Tribunal decidiu ainda assim considerar que existia um impedimento nos termos do nº 1 al. a), creio eu, não sei porque como V/Exª sabe não é ainda conhecida a decisão por escrito, e portanto desta forma não logrou esta testemunha ser ouvida pelo Ministério Público nem pelos Srs. Drs.
O Ministério Público no fundo com este requerimento pretende efetivamente que esta testemunha ao abrigo do artigo 133º nº2 volte a ser chamada à audiência de julgamento e venha a ser ouvida e a prestar nela depoimento se e na medida em que as suas declarações assim o possam ser prestadas sem violar o referido privilégio de não autoincriminação.
Se V/Exª assim não entender o Ministério reservará o seu direito de reagir a este novo requerimento que ora faz a V/Exª de inquirição da testemunha AA.”
2. Sobre o que foi proferido o seguinte despacho:
Uma vez que o Tribunal já se pronunciou sobre a questão suscitada pela Digníssima Procuradora da República, mostrando-se esgotado o poder jurisdicional, indefere-se o requerido.
Interrompe-se a presente sessão da audiência de julgamento para continuar no dia de amanhã, ou seja, o dia ... de ... de 2025, pelas 09:30h.
Notifique.
3. Por requerimento de ........2025 o Ministério Público interpôs recurso do despacho de ........2025;
4. Sobre o que foi proferido o seguinte despacho:
Por legal, tempestivo, apresentado por quem para tanto possui legitimidade, admito o recurso interposto pelo MP (artigos 399.º, 400.º à contrário, 401.º, n.º 1, al. a), 411.º, n.º 1, n.º 3 a n.º 6 e 412.º, todos do Código de Processo Penal).
O recurso sobe a final, nos próprios autos e com efeito devolutivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 414.º, n.º 1, 407.º, n.º 3, 408.º (à contrário), todos do Código de Processo Penal.
Notifique.
*
Dispõe o art. 407.º do CPP, sobre o momento da subida dos recursos em processo penal, que:
1 - Sobem imediatamente os recursos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis.
2 – (…)
3 - Quando não deverem subir imediatamente, os recursos sobem e são instruídos e julgados conjuntamente com o recurso interposto da decisão que tiver posto termo à causa.
A retenção do recurso gera inutilidade absoluta sempre que o despacho recorrido produza um resultado irreversível, seja qual for a decisão do tribunal ad quem, não bastando uma mera inutilização de actos processuais, ainda que contrária ao princípio da economia processual1.
Conforme se decidiu na decisão de reclamação de 14-03-2023 do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. 51/19.1T9ALD-A.C1, não basta verificar que ocorre alguma inutilidade, ela tem de ser absoluta e esta só existe como tal quando o recurso retido, seja qual for mais tarde o resultado, já não produz processualmente resultado algum útil.
Ou na decisão de reclamação, de 31.10.2022 do Tribunal da Relação de Évora, proc. 6/06.6IDSTR-A.E1: A locução “cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis”, do artigo 407.º, n.º 1, do CPP, só poderá significar que sempre que, no processo, se possa ainda voltar ao momento em que se proferiu a decisão recorrida (e depois revogada no recurso), este nunca é inútil – com custos em tempo gasto e repetições de processado, mas sempre de manifesta utilidade, pois o processo levará ainda o rumo que a decisão do recurso lhe tiver imprimido. Ou ainda, no acórdão de 30.06.2022, proc. 26/18.8PAPTL.G1, do Tribunal da Relação de Guimarães, ou na decisão sumária de 7.10.2020 deste Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 6041/17.1T9LSB-B.L1-9, de cujo sumário consta:
I. A circunstância de o recurso ter subida diferida não leva a concluir que o recorrente não poderá aproveitar-se da decisão favorável que sobre ele eventualmente venha a recair, não podendo afirmar-se que a retenção do recurso produzirá um resultado irreversivelmente oposto ao que ele visa alcançar. Com efeito, a absoluta inutilidade apenas se verificaria se, não subindo imediatamente, a decisão que sobre ele viesse a ser proferida não tivesse qualquer efeito útil no processo, dela não podendo já o recorrente retirar qualquer proveito, e já não quando a consequência da procedência do recurso é tão só a anulação dos actos processuais subsequentes, designadamente do julgamento.
II. Concluindo-se que a inutilidade absoluta do recurso, não se confunde com a eventual necessidade de repetição de actos, incluindo o julgamento, por força da anulação decorrente da procedência do recurso intercalar interposto.
Jurisprudência constante que aqui seguimos e de que resulta, em suma, que a retenção do recurso interposto pelo reclamante não o tornará absolutamente inútil, pelo que não deve ter subida imediata (art. 407.º, n.º1, à contrario, do CPP).
Com efeito, a questão é a absoluta inutilidade do recurso interposto, o que manifestamente não ocorrerá, no caso. Não se vendo, com o devido respeito, de que modo a retenção de um recurso nos termos do art. 407.º do CPP possa, no caso, violar o princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, como alegado pelo Reclamante.
A final, caso o recurso já admitido vier a ser julgado procedente e a ser admitido o depoimento da testemunha em questão, será retomado o julgamento e proferida nova decisão. Produzindo assim o recurso um efeito processualmente útil.
Quanto ao efeito (devolutivo) do recurso, a sua apreciação não cabe na previsão do art. 405.º do CPP, que apenas prevê a reclamação do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, pelo que não se conhece desse fundamento da reclamação apresentada.
Pelo que, conclui-se, a presente reclamação não pode proceder.
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III. Decisão
Pelo exposto, julgo improcedente a reclamação apresentada.
Sem custas.
Notifique.
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Lisboa, 22.10.2025
Eleonora Viegas
(Vice-Presidente, com poderes delegados)
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1. Cfr. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, Almedina, 2024, p. 157 e autores e aí citados