Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
550/13.9TMPDL-A.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: ALTERAÇÃO DA REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INCOMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESIDÊNCIA DO MENOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- Quando está em causa a alteração do regime pelo qual está regulado o exercício das responsabilidades parentais, os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para tal acção, na medida em que a residência habitual do menor não se situe em Portugal, no momento da propositura da acção.
2- Por residência habitual entende-se o local onde o menor se encontra radicado e tem organizada a sua vida quotidiana, ainda que não seja esse o local anteriormente definido como o da sua residência, e na medida em que não se tenha tratado de qualquer deslocação ilícita, mas de uma deslocação efectuada por acordo entre o progenitor guardião e o progenitor não guardião.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

Em 13/10/2022 PP. intentou contra NM. acção para alteração da regulação das responsabilidades parentais relativas ao filho de ambos, HM. (nascido a ...), apresentando para tanto requerimento inicial com o seguinte teor (na parte que aqui releva):

Por douta sentença de fols., no âmbito do Processo de Regulação de que este é Apenso, de 04.11.2015 (transitada em Julgado em Dezembro de 2015), a qual homologou o acordo de exercício das responsabilidades parentais entre a ora Requerente e o Requerido, ficou estabelecido que o menor ficaria à guarda e cuidados da mãe, com quem residiria. (doc. 1) Porém,

O menor actualmente ficou a viver com o pai, nos Estados Unidos da América, na morada deste, acima referida.

Ao que não se opõe a ora Requerente. No entanto,

Para o menor poder ter a sua autorização de residência regularizada necessita que o Tribunal entregue a guarda ao pai.

Mantendo-se o demais acordado, nomeadamente o regime de visitas e a pensão de alimentos, mas neste caso para a mãe”.
Seguidamente foi proferido o seguinte despacho liminar:
Compulsados os autos, verifica-se que a requerente PP. propôs a presente acção de alteração da regulação das responsabilidades parentais contra o requerido NM., referente ao filho HM., nascido em …, e residente nos Estados Unidos da América com o pai (artigo 2.º da peça apresentada).
Apreciando.
Considerando a causa de pedir e face à situação jurídica do menor, a competência internacional dos tribunais portugueses, nesta matéria, é aferida pelo critério da residência habitual da criança (artigos 59.º e 62.º, do C.P.Civil).
O artigo 5.º, n.º 1, da Convenção relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças, adoptada em Haia em 19 de Outubro de 1996, aprovada, entre nós, pelo Decreto-Lei 52/2008, de 13 de Novembro, de que os Estados Unidos da América (EUA) são parte contratante, consagra que as “autoridades judiciárias ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à protecção da pessoa ou bens da criança”.
Retornando ao caso em apreço, e de acordo com a petição apresentada, resulta que o progenitor e o menor residem nos EUA. Tal circunstância, e considerando a competência internacional dos tribunais portugueses em matéria de responsabilidades parentais, é determinante para se aferir do critério da residência habitual da criança, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 59.º e 62.º, do C.P.Civil, e 9.º do RGPTC.
Pelo exposto, e nos termos e para os efeitos dos artigos 96.º, al. a), 98.º, 99.º, n.º 1 e 100.º, todos do C.P.Civil, declaro o Juízo de Família e Menores de Ponta Delgada – Juiz 1 absolutamente incompetente para conhecer da alteração da regulação das responsabilidades parentais relativas ao menor HM., nascido em …, conduzindo à subsequente absolvição do requerido da instância, ao abrigo do disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.º 2 e 577.º, al. a), todos do C.P.Civil”.
A requerente recorre desta decisão, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
A) O menor não reside no estrangeiro, nem isso foi alegado, mas sim que “ficou a viver com pai”, pois que a residência oficial, de cidadão, fiscal, da Segurança Social e, claro, determinada na Regulação continua a ser com a mãe;
B) Caso assim não se entendesse estaria derrogada a possibilidade de requerer o regresso de um menor que permanecesse no estrangeiro além da visita;
C) O menor necessita desta alteração à Regulação para se poder legalizar como residente nos Estados Unidos, pois que neste momento não o é, ao menos e seguramente de direito;
D) O conceito de residência exige que esta seja habitual (até aqui esteve com a mãe) e com intuito de permanência (aguarda legalização) - - Vide o Douto Acórdão da Relação de Coimbra de 14.06.2016, no Processo 4756/13.2TBLRA.C1;
E) O direito ao menor residir com o pai só se pode efectivar após acção de Alteração da Regulação, estando por isso impossibilitados a Requerente e o Requerido de solicitar esta alteração ao Tribunal americano;
F) Nos termos da al. c) do art. 62º do CPC o Tribunal Português é internacionalmente competente quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real;
G) Foram assim violados, entre outros, os artigos 62º e 607º n.º 4 do CPC.
O Ministério Público apresentou alegação de resposta, aí terminando com as seguintes conclusões:
1- Por despacho proferido a 26/10/2022, nos autos referenciados em epígrafe foi declarado o Juízo de Família e Menores de Ponta Delgada-Juiz 1, absolutamente incompetente para conhecer da alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais relativo ao menor HM., nascido a ....
2- Pugnando o recorrente pela procedência do recurso e dessa forma ser declarado nulo o douto Despacho ou revogado e substituindo por outro que determine o prosseguimento da acção.
3- Em nosso entendimento, não assiste razão à ora recorrente.
4- O menor HM. deslocou-se para os EUA aí se encontrando a viver com o progenitor e com a concordância da progenitora.
5- Os factores de atribuição de competência internacional previstos nos artigos 62º e 63º do CPC só se aplicam se não houver regulamento europeu ou outro instrumento internacional que não previna essa competência e havendo, é este que prevalece, nos termos do art.º 59º do mesmo código.
6- A Convenção relativa à Competência, à Lei Aplicável, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças, adoptada em Haia em 19 de Outubro de 1996 e aprovada entre nós pelo Decreto nº 52/2008 de 13/11, tem por objecto e atento o artigo 1º, nº 1, al. c) determinar a lei aplicável à responsabilidade parental.
E atento o nº 2, para os efeitos desta Convenção, a expressão «responsabilidade parental» designa a autoridade parental ou qualquer outra relação análoga de autoridade que determine os direitos, poderes e responsabilidades dos pais, tutores ou outros representantes legais relativamente à pessoa ou bens da criança.
7- Assim a Convenção de Haia relativa à Competência, à Lei Aplicável, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças, nas situações de competência internacional sobrepõe-se ao referido normativo da lei interna.
8- A competência internacional é determinada pela residência habitual da criança, à data em que o processo é instaurado e regra geral, a competência reside nas autoridades do Estado onde a criança, tem a sua residência habitual.
9- Ora na fixação da competência do tribunal, deverá tomar-se em consideração o critério da proximidade, enquanto critério que melhor assegura a protecção do superior interesse da criança, sendo o conceito de residência habitual um critério aferidor da proximidade do Estado-Membro com a criança.
10- Em matéria de competência e de acordo com a Convenção de Haia (Decreto Lei 52/2008, de 13 de Novembro) mostra-se estabelecido que as autoridades jurídicas ou administrativas do Estado no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à protecção da pessoa ou bens da criança (art.º 5º, n.º 1). Com ressalva do art.º 7º [que tem por objecto situações de “afastamento ou de retenção ilícita da criança”], em caso de mudança da residência habitual da criança para outro Estado Contratante, as autoridades do Estado da nova residência habitual terão a competência (n.º 2).
11- Ora, a criança encontra-se a residir com o progenitor nos EUA, para onde se deslocou com a aceitação/concordância de ambos os progenitores e aí se quer manter a viver e, para tal, pretende obter autorização de residência.
12- Assim, a criança saiu legitimamente do país e reside de facto (onde tem centrada a sua vida) com o progenitor nos EUA, sendo o exercício da responsabilidade parental regido pela Lei do Estado da residência da criança.
13- Na verdade, de acordo com o artigo 17º da Convenção de Haia (Decreto-Lei 52/2008, de 13 de Novembro), o exercício da responsabilidade parental é regido pela lei do estado da residência habitual da criança. Se a residência habitual da criança se alterar, será regido pela lei do Estado da nova residência habitual.
14- Ora, o direito da criança residir com o pai só se concretiza/efectiva com a alteração da regulação, e nenhuma impossibilidade existe de tal ser solicitada ao tribunal americano.
15- Daí que se mostra insustentável a pretensão da ora recorrente, não nos merecendo qualquer reparo o douto despacho recorrido.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, a única questão submetida a recurso prende-se com a determinação da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da alteração pretendida pela requerente.
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A materialidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório que antecede.
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Como se alcança da alegação da requerente, a mesma funda a sua discordância, quanto à afirmada incompetência internacional dos tribunais portugueses, quer numa errada interpretação e aplicação do conceito de residência habitual do menor, quer na desconsideração do disposto na al. c) do art.º 62º do Código de Processo Civil.
Com efeito, resulta do nº 1 do art.º 9º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível que “para decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado”.
Do mesmo modo, decorre do art.º 5º, nº 1, da Convenção da Haia de 1996 (relativa à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento, à execução e à cooperação em matéria de responsabilidade parental e medidas de protecção das crianças, aprovada pelo D.L. 52/2008, de 13/1, e de que os Estados Unidos da América são igualmente parte contratante), que “as autoridades jurídicas ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à protecção da pessoa ou bens da criança”.
Como explica António José Fialho (Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado, Almedina, 2021, pág. 136), “a residência é o lugar onde a criança reside habitualmente, ou seja, o local onde tem organizada a sua vida, com maior estabilidade, frequência, permanência e continuidade, onde desenvolve habitualmente a sua vida e se encontra radicada”. Mais explica (pág. 137) que “o critério da atribuição da competência em função da residência, com carácter de estabilidade, permanência e frequência, é também aquele que adequa as disposições de direito interno às disposições de direito convencional ou europeu que regulam a competência internacional (art.º 5º da Convenção da Haia de 1996 e 8º do Regulamento Bruxelas II bis)”.
Do mesmo modo, e fazendo apelo ao afirmado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/6/2019 (relatado por Raimundo Queirós e disponível em www.dgsi.pt), para efeitos de determinação da competência internacional dos tribunais portugueses, há que considerar que “a “residência habitual” de um menor é o local onde se encontra organizada a sua vida familiar em termos de maior estabilidade e permanência, onde desenvolve habitualmente a sua vida, em suma, onde está efectivamente radicado”.
Do mesmo modo, ainda, este Tribunal da Relação de Lisboa afirmou já, no acórdão de 5/3/2020 (relatado por Inês Moura e disponível em www.dgsi.pt), que “o elemento determinante para a aferição da competência internacional do tribunal em matéria das responsabilidades parentais relativa a uma criança (…) é o da residência habitual da criança, quer em face da Lei nacional, quer do direito internacional expresso na Convenção de Haia de 19 de Outubro de 1996”, determinando tal residência habitual, no caso concreto daquela apelação, não em face do decidido anteriormente em sede de regulação das responsabilidades parentais, quanto ao local de residência do menor, mas fazendo apelo ao “que é referido pelo Requerente quando interpõe a presente providência, até invocando um acordo dos pais na residência semanal alternada da criança com cada um deles”.
Ou seja, quando está em causa a alteração do regime pelo qual está regulado o exercício das responsabilidades parentais, os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para tal acção, na medida em que a residência habitual do menor não se situe em Portugal, no momento da propositura da acção.
Assim, e se nesse momento o menor não está radicado em Portugal, mas num outro país, aí tendo organizada a sua vida quotidiana, junto do progenitor que aí reside, há que concluir que a residência habitual do menor não se situa em Portugal, mas nesse outro país.
E não é a circunstância de anteriormente ter ficado decidido que o local de residência do menor era em território nacional que faz com que se afirme que o local da sua residência habitual se situa em Portugal, para efeitos da determinação da competência internacional dos tribunais nacionais. É que tal raciocínio contraria a razão de ser da norma atributiva de competência internacional, a qual se prende com a necessidade de uma relação de proximidade entre o menor e a jurisdição que vai decidir da regulação das responsabilidades parentais do mesmo.
Não se ignora, é certo, que tal critério não pode ser utilizado quando está em causa uma deslocação ilícita do menor para fora do país da residência que lhe foi fixada. Mas se tal deslocação é efectuada por acordo entre o progenitor guardião e o progenitor não guardião, dando lugar a uma alteração de facto da guarda do menor, que passa a residir noutro país e com o progenitor que anteriormente não detinha a sua guarda, por razões que se prendem com o seu desenvolvimento, então há que afirmar que se está perante uma situação em que o local da vida quotidiana do menor é no novo local convencionado entre os progenitores, e já não naquele que havia ficado decidido pelo tribunal.
Assim, e reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, logo se alcança que a circunstância, alegada pela requerente, de o menor se encontrar a viver com o requerido, nos Estados Unidos da América, com o consentimento da requerente, e estando em causa, para além do mais, a obtenção de autorização de residência do mesmo naquele país estrangeiro, autoriza a conclusão de que o menor deixou de estar radicado em Portugal, para passar a estar radicado nos Estados Unidos da América.
O que equivale a afirmar que, ainda que a “residência oficial” do menor (utilizando a expressão da requerente) seja em Portugal, a sua residência habitual é nos Estados Unidos da América.
Nessa medida, e face ao disposto no art.º 9º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível e no art.º 5º, nº 1, da Convenção da Haia de 1996, carecem os tribunais portugueses de competência internacional para decidir a acção proposta pela requerente, na medida em que não se verifica o factor de conexão a que alude a al. a) do art.º 62º do Código de Processo Civil.
Acresce ainda que, como já se disse, os Estados Unidos da América são parte contratante da referida Convenção da Haia de 1996. Assim, a regra do referido nº 1 do art.º 5º desse instrumento de direito internacional é igualmente aplicável na jurisdição desse país. Pelo que não se alcança como é que a requerente sustenta que o direito do menor a ver reguladas as suas responsabilidades parentais nos termos pretendidos não pode ser exercitado perante as autoridades judiciais ou administrativas dos Estados Unidos da América, assim carecendo de ser exercitado perante os tribunais nacionais, e sob pena de ausência de tutela efectiva do mesmo.
O que é o mesmo que dizer que não tem aplicabilidade ao caso concreto o critério de conexão a que alude a al. c) do art.º 62º do Código de Processo Civil, na exacta medida em que não é necessário convocar o princípio da necessidade que aí se concretiza, como única forma de tornar efectivo o direito do menor à regulação das responsabilidades parentais, alterando o regime do seu exercício de acordo com o superior interesse do mesmo.
Assim, na total improcedência das conclusões do recurso da requerente, há que manter a decisão recorrida, face à verificação da falta de competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da alteração pretendida.
*
DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pela requerente, sem prejuízo do apoio judiciário de que eventualmente beneficie.

12 de Janeiro de 2023
António Moreira
Carlos Castelo Branco
Orlando Nascimento (vencido, nos termos da declaração de voto que segue)
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Declaração de Voto Vencido.
Teria concedido provimento à apelação, revogando a decisão recorrida, por entender que a residência do menor que releva para decisão é a residência fixada pelo tribunal, que não foi alterada por acordo homologado pelo tribunal, e não a residência de fato.
Orlando Nascimento