Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | MARIA DE DEUS CORREIA | ||
Descritores: | ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA PRESCRIÇÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/26/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALEMNTE PROCEDENTE | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I - Os dois prazos de prescrição referidos no art.º 482.º do Código Civil coordenam-se da seguinte forma: por um lado, a prescrição ordinária só impera quando o direito à restituição não se haja entretanto extinto pelo decurso do prazo excepcional da prescrição de três anos; mas por outro lado, a prescrição ordinária opera sempre, mesmo que o empobrecido não chegue a ter conhecimento do seu direito e da pessoa responsável pela restituição. II - O direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva constitui uma garantia imprescindível da protecção de direitos fundamentais, sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de Direito. III - O direito dos cidadãos à tutela jurisdicional efetiva que é um direito fundamental previsto na Constituição da República Portuguesa (CRP), nos artigos 20.º e 268.º e que implica, em primeiro lugar, o direito de acesso aos tribunais para defesa de direitos individuais, não podendo as normas que modelam este acesso obstaculizá-lo ao ponto de o tornar impossível ou dificultá-lo de forma não objetivamente exigível. IV - De acordo com os princípios constitucionais que enformam o nosso sistema jurídico, considerar que a Autora não esgotou já todos os meios ao seu dispor para se ver restituída do que lhe pertence, seria intolerável, pois representaria na prática negar-lhe o seu direito de tutela jurisdicional efectiva. Fica, assim, afastada a aplicabilidade, ao caso, do disposto no art.º 474.º do C.Civil. V - O objecto da restituição, nos casos de enriquecimento sem causa fundado na utilização de bens alheios é o chamado “valor de exploração” de tais bens, pois que o objecto da obrigação de tal restituição é, primariamente, dirigido em relação ao que foi obtido à custa de outrem, e em caso de impossibilidade de restituição em espécie, ao valor correspondente. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
![]() | ![]() |
Decisão Texto Integral: | I - RELATÓRIO M…, residente em …, veio propor a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra: MUNICÍPIO …, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia global de €250.160,00, a título de enriquecimento sem causa. Para tanto, alega, em síntese, que o Réu construiu um jardim público e um estacionamento, ocupando 742 m2 de um imóvel que lhe pertence, sem qualquer fundamento legal. O Réu obteve assim um benefício à custa do património da Autora que nessa mesma medida ficou empobrecida, do que resulta para o Réu o dever legal de restituir o que recebeu indevidamente. Devidamente citado, o Réu contestou a ação quer invocando a exceção peremptória de prescrição do direito da Autora, quer impugnando os fundamentos de facto e de direito da ação. Termina pedindo a sua absolvição do pedido. Teve lugar a audiência prévia no âmbito da qual: (i) frustrou-se a tentativa de conciliação; (ii) foi proferido o despacho saneador, no qual ficou afirmada a validade e a regularidade da instância; (iii) a Autora reduziu o pedido para € 187.620,00 (cento e oitenta e sete mil e seiscentos e vinte euros); (iv) e foi proferido o despacho de verificação de inexistência de matéria de facto relevante controvertida e, por conseguinte, de que o estado dos autos permitia o imediato conhecimento do mérito da causa. Seguidamente foi proferida sentença que julgou verificada a excepção peremtória de prescrição do direito da Autora M… relativamente a factos anteriores a 08.05.2017. Julgou ainda a acção improcedente e em consequência absolveu o Réu do pedido. Inconformada com esta sentença, a Autora interpôs recurso de apelação formulando as seguintes conclusões: Primeira: o facto de a Autora, ora Apelante, desde sempre se ter arrogado como proprietária das parcelas de terreno ocupadas pelo Município … em nada conflitua com o reconhecimento, efectivo e inequívoco, do direito de propriedade – e dos direitos que a ele lhe são inerentes – por um órgão de soberania com competência, no caso o tribunal administrativo aonde correu o processo, sobre o imóvel, já que desde sempre o Apelado arrogou, para si, a mesma qualidade de proprietário. Segunda: a ter-se provado a existência de uma doação de parte do imóvel ao Apelado, ou a ter-se verificado qualquer outra forma de aquisição da propriedade (contrato ou usucapião, a título de exemplo) cairia por terra a pretensão da Autora de ver aquela parte do imóvel expropriada. Terceira: Porquanto não é possível ser-se expropriado daquilo que não é seu. Quarta: Assim, a expropriação, tendo por base a transmissão da propriedade (neste caso, por declaração de utilidade pública), pressupõe, inevitável e indubitavelmente, o reconhecimento da propriedade ao expropriado, e a consequente transmissão da propriedade à entidade expropriante. Quinta: É, portanto, apenas no momento do trânsito em julgado da sentença do Proc. n.º 304/10.4BEPDL que a Apelante tem o conhecimento efectivo do direito que lhe assiste – e, portanto, só a partir desse momento, começou a correr o prazo de prescrição do art.º 482º do Código Civil. Sexta: E mesmo que assim se não considerasse, a verdade é que é comummente aceite e defendido pela Doutrina que o prazo espelhado no art.º 482º do Código Civil não começa a correr enquanto o empobrecido tiver, por outras vias, tentado ver-se ressarcido por outros meios. Sétima: e ainda que se considere que, à data indicada nos factos provados pela Douta sentença de que ora se recorre (2010), a Apelante tinha já conhecimento do direito que lhe assiste, não esqueçamos que foi intentada acção, em Dezembro desse mesmo ano, com vista a que o Apelado expropriasse as parcelas de terreno propriedade da Apelante, e que pagasse uma indemnização, a título de sanção pecuniária compulsória, na morosidade dessa expropriação. Oitava: o que, nos termos do art.º 323.º, nº 1 do Código Civil, equivaleu a uma interrupção do prazo de prescrição do art.º 482º do mesmo diploma – importando, assim, a inutilização de todo o prazo decorrido anteriormente, e obrigando à contagem de novo prazo. Nona: O que se traduz, em termos práticos, na mesma conclusão já espelhada supra: o prazo de prescrição só começou a contar após o trânsito em julgado que reconheceu à Apelante o direito à expropriação das parcelas ocupadas pelo Apelado. Décima: Para além do mais, e tal como já considerado por jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa, o momento do conhecimento do direito, em termos de enriquecimento sem causa, não pode ser reportado apenas à vertente fáctica, mas também à vertente jurídica – não faria sentido que assim não fosse, tendo em conta o curtíssimo prazo de três anos conferido por Lei para que o empobrecido faça por se ver restituído. Décima Primeira: ao contrário do que considerou o Tribunal ad quo, não pode ser aplicada, ao caso em concreto, a responsabilidade civil extracontratual, porquanto a mera privação de uso, ao contrário do que considerou a sentença recorrida, não é susceptível de gerar indemnização. Décima Segunda: Para que se gere o direito de indemnização fundado na impossibilidade de uso de uma coisa necessário é que a impossibilidade de uso se traduza num dano, que terá de ser alegado e provado, pelo lesado. A privação desse uso terá de se provar como tendo ocorrido por acto ilícito de terceiro, cabendo ainda ao lesado comprovar a existência de uma concreta utilização relevante da coisa. Décima Terceira: este dano não ocorreu na esfera jurídica da Apelante, não podendo por ela ser alegado e provado – e até mesmo porque, ainda que ocorresse um dano decorrente da privação do uso das parcelas do imóvel de que é proprietária, não é essa a questão que se levanta e que releva. Décima Quarta: releva sim o facto de a impossibilidade de um proprietário usufruir e usar um imóvel a seu bel-prazer, por outrem se usar dessas mesmas faculdades – reservadas apenas a quem detém o direito de propriedade sobre a coisa – constituir um facto que é tutelado pelo Direito, na medida em que apenas ao proprietário de algo deve ser conferida a possibilidade de fazer da coisa aquilo que bem entender, e se usar dela como bem lhe aprouver. Décima Quinta: nesta medida, não existindo um dano concreto nem a prova de que o imóvel teria um uso específico que lhe seria destinado pelo seu proprietário, cai por terra um dos requisitos imperativos e cumulativos a que haja lugar a uma indemnização por responsabilidade civil extracontratual – o dano. Décima Sexta: pelo que não poderia, obviamente, a Apelante ter-se socorrido do instituto da responsabilidade civil para fazer valer o seu direito, porquanto não se trata aqui de querer ver-se indemnizada pela impossibilidade de uso do seu imóvel, mas sim de ser ressarcida pela prática de direitos reservados única e exclusivamente ao detentor do direito de propriedade por parte de quem está longe de ser proprietário do imóvel. Décima Sétima: ainda que, como nos parece ser a opinião da sentença recorrida, quisesse a Apelante socorrer-se do instituto da perda de chance, também este seria manifestamente inaplicável. Décima Oitava: para que a perda de chance – que não tem acolhimento na letra da nossa lei e que (muito dificilmente) é aplicada pelos nossos Tribunais se verifique, é necessário que se comprove que existia uma chance ou probabilidade, séria e real, de que não fosse a actuação que impossibilitou essa chance, o lesado obteria uma determinada vantagem que seria, em termos probabilísticos, razoável supor que quisesse obter. Décima Nona: ora, mais uma vez seria a questão focada no dano – ou aliás, na impossibilidade de evitar esse dano – causado à Apelante, havendo ainda a obrigatoriedade de o correlacionar e comprovar, com recurso a juízo probabilístico relativamente elevado e sério, que a perda da chance da proprietária havia sido causada pelo Município. Vigésima: caindo assim por terra o preenchimento dos requisitos do dano e do nexo de causalidade, não sendo, então, lícito à Apelante socorrer-se desta via para fazer valer o seu direito. Vigésima Primeira: assim, não podendo o direito da Apelante ficar desprovido de tutela jurídica, restava-lhe apenas – como se tem vindo a invocar desde a instauração da instância – o recurso ao instituto jurídico do enriquecimento sem causa. Vigésima Segunda: O enriquecimento sem causa pressupõe a locupletação, por parte de alguém, à custa de outrem, sem para tal ter um qualquer motivo justificativo. Vigésima Terceira: São, assim, requisitos do enriquecimento sem causa a existência de um enriquecimento, a falta de causa justificativa para esse enriquecimento, e que o enriquecimento tenha ocorrido às custas de quem requer a restituição. Vigésima Quarta: o Apelado viu-se, de facto, enriquecido: a construção dos instrumentos públicos (parque de estacionamento e jardim) nas parcelas de terreno da Apelante foi levada a cabo sem quaisquer custos na aquisição do terreno. Vigésima Quinta: Para além do mais, foi através dessa mesma construção de equipamentos públicos que a freguesia obteve uma maior afluência de visitantes; tendo sido também às custas da instalação do parque de estacionamento na propriedade privada da Apelante que a Junta de Freguesia acabou por mudar as suas instalações para próximo do mencionado equipamento público – de forma a facilitar o acesso dos residentes nas suas deslocações à Junta. Vigésima Sexta: É igualmente claro e inequívoco que o enriquecimento do Apelado carece de causa justificativa, não detendo o mesmo qualquer título que possa legitimar a sua ingerência no direito de propriedade alheio. Vigésima Sétima: E, da mesma forma, é inegável que esse enriquecimento tenha acontecido às custas da Apelante, que se viu privada de utilizar a sua propriedade. Vigésima Oitava: É entendimento doutrinário e jurisprudencial uniforme que ao enriquecimento do enriquecido não tem de corresponder um efectivo empobrecimento de quem pede a restituição. Vigésima Nona: com efeito, o enriquecimento injusto não tem de se correlacionar, directa e necessariamente, com um empobrecimento da outra parte. Este enriquecimento injusto pode tão-somente traduzir-se numa intromissão na utilização de bens e direitos alheios, atingindo uma vantagem patrimonial que estava reservada ao titular da coisa. São estes os casos de enriquecimento por intervenção. Trigésima: nos termos e para os efeitos do que até agora se alegou e provou, a derradeira conclusão é a de que estamos perante um caso de enriquecimento sem causa, na modalidade de enriquecimento por intervenção. Trigésima Primeira: a acrescer aos argumentos acima aduzidos, não se pode desqualificar como irrelevante a circunstancia da Apelada ter mentido ao Tribunal Administrativo, de forma reiterada de que tinha provas da transmissão da propriedade a seu favor, criando com isso a dúvida no processo administrativo e na Apelante – no processo que se arrastou penosamente durante anos – e ainda assim ser premiada por uma utilização pela qual beneficiou, porquanto a Apelada não é um mero particular que pode usar uma artimanha processual só para, “enquanto o pau vai e vem folgam as costas”, quando está obrigada aos deveres que constam dos artigos 3º e ss do CPA. Trigésima Segunda: Ou seja, a forma – com o devido respeito para o tribunal a quo – leviana como sentenciou o caso em que: resumindo a Apelante já sabia que era proprietária e deveria então ter actuado para evitar a prescrição – quando do outro lado estava um município local que garantia que o proprietário era ele – e que, enquanto órgão local é suposto ter um conhecimento privilegiado daquilo que acontece localmente – premeia a chicana processual de um órgão da administração pública. Terminou pedindo que seja alterada a decisão do tribunal a quo, substituindo a mesma por decisão que defira o peticionado pela Apelante na sua Petição Inicial, assim se alterando a matéria de direito relevante ao caso – mormente a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa ao caso concreto, e a tempestividade da restituição, assim se dando como não provada a excepção peremptória de prescrição. Não foram apresentadas contra alegações. II - OS FACTOS Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos: 1. A Autora é proprietária do prédio rústico 1 F, com área de 9.480 metros quadrados, sito na freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº … da dita freguesia. 2. O Réu procedeu à construção, sobre parte do prédio rústico, de um jardim público, com a área de 421 metros quadrados, na década de 1980, e de um parque de estacionamento, com a área de 321,40 metros quadrados, na década de 1990. 3. O parque de estacionamento tem capacidade para dez veículos; 4. O jardim e parque de estacionamento são plenamente utilizados pelo Réu para fins públicos a que o mesmo, unilateralmente, decidiu dar destino; 5. À data da instauração da ação, o Réu não havia requerido a declaração de utilidade pública da parte do prédio correspondente ao jardim e ao parque de estacionamento. 6. Não obstante, o Réu reconheceu perante a Autora, por diversas vezes, que pretendia dar início ao processo de expropriação, tendo sido efetuadas diversas comunicações entre as partes, iniciadas em janeiro de 2010, após esta ter solicitado o agendamento de uma reunião que veio a ter lugar no dia 27 desse mês; 7. Após troca de variada comunicação entre as partes, e porque o Réu não iniciou o processo de expropriação sobre o prédio, a Autora, em 21 de dezembro de 2010, instaurou contra este a ação administrativa comum que correu os seus termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada, sob o nº 304/10.4BEPDL; 8. A sentença foi proferida em 28 de dezembro de 2018 e transitou em julgado em 6 de fevereiro de 2019; 9. A ação foi julgada parcialmente procedente por provada, tendo o Réu sido condenado a “iniciar um processo com vista à atribuição da justa indemnização pela expropriação de parte do prédio”; 10. Consta da sentença, para além do mais e no que ao caso releva, o seguinte: “(…) Não provado (…) A Autora ou representante da família da Autora cedeu gratuitamente o prédio (…) ao Município … (…). Resulta do Probatório que o Município … construiu no terreno, ora propriedade da Autora adquirido por partilha, um jardim público e um parque de estacionamento público, sem qualquer título jurídico, dado que não ficou provada a existência de doação verbal (cujo ónus da prova recai sobre o Réu), não tendo o Réu iniciado o processo expropriativo do terreno privado. (…). Assim, a parte do terreno propriedade da Autora relativa ao jardim público e parque de estacionamento encontra-se afecto ao interesse público, sem que se tenha iniciado o processo expropriativo pelo Município … (…)”. 11. A Autora remeteu ao Réu uma carta datada de 7 de fevereiro de 2019, na qual indicou que, em sequência do trânsito em julgado da sentença supramencionada, deveria ser declarada a utilidade pública da parte ocupada do prédio e, consequentemente, iniciado o processo de expropriação; 12. Em 12 de julho de 2019, a Autora intentou, por apenso ao referido processo, a execução para prestação de facto, na qual pediu quer a condenação do Réu à prática do ato devido, quer uma indemnização a título de responsabilidade civil pela inexecução ilícita da sentença; 13. Por sentença de 22 de julho de 2020, transitada em julgado, a execução foi julgada improcedente e, em consequência, o Réu foi absolvido do pedido, por se ter considerado que, à data da propositura da ação executiva, este havia acatado o dever de cumprimento da decisão proferida pela sentença exequenda pois já havia iniciado o procedimento de expropriação por utilidade pública. III - O DIREITO Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal, as questões que importa conhecer são as seguintes: 1 - Prescrição do direito invocado pela Autora/Apelante; 2 - Verificação dos requisitos do enriquecimento sem causa; 3 - Verificados os requisitos supra, determinar a obrigação do Réu derivada do enriquecimento sem causa. 1 - Relativamente à questão da prescrição, argumentou a decisão da 1.ª instância: “A Autora peticiona a condenação do Réu no pagamento de determinadas quantias como valor de restituição pela utilização de parte do prédio de que é proprietária que este injustificadamente ocupa há duas décadas, talqualmente como se de uma “expropriação de facto” se tratasse, ante a declaração de enriquecimento indevido assente no instituto do enriquecimento sem causa. A primeira questão, cujo conhecimento antecede as demais, consiste em saber se o direito da Autora está, ou não, prescrito (ainda que parcialmente), à luz do disposto no art.º 482º do Código Civil (CC). Dispõe aquele preceito que o “direito à restituição por enriquecimento sem causa prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável (…). No caso dos autos, a Autora arrima o seu direito na ocupação indevida, pelo Réu, ao longo dos últimos vinte anos, à razão de um valor anual quanto ao parque de estacionamento e de um valor mensal quanto ao jardim, e de acordo com os critérios espelhados nos artigos 81º a 85º da petição inicial. Assim sendo, tratando-se de uma violação permanente do direito invocado (e não, por hipótese, de um ato isolado no tempo), o prazo prescricional deve ser visto dinamicamente, correndo numa linha de continuidade temporal, porque a ofensa ao direito é, também ela, e nessa mesma medida, contínua. Significa isto, pois, que a questão prescrição apenas se coloca, em boa verdade, quanto aos factos subjacentes relativos aos três anos anteriores à data da instauração da presente ação, ou seja, anteriores a 08.05.2017. Posto isto, e ressalvado o hiato temporal correspondente aos últimos três anos (relativamente ao qual a prescrição não opera), acompanhamos o entendimento do Réu: a Autora desde sempre se arrogou conhecedora do direito de propriedade de que é titular, cuja ofensa decorrente da indevida ocupação (isto é, sem qualquer título que a legitime) também por si conhecida... é quanto baste, pois, para o início do prazo de prescrição à data do primeiro dia da ocupação e seguintes, sucessivamente (cit. art.º 482º do CC). Por seu turno, não se mostra comprovado nos autos que a Autora procurou a montante, sem êxito, outro remédio ou meio processual tendente à salvaguarda do direito aqui invocado, de forma a obstar o início do curso do prazo (art.º 306º nº 1 do CC), designadamente através da ação administrativa comum nº 304/10.4BEPDL [notamos que a indemnização pelo inexecução ilícita da sentença que veio a requerida no âmbito da execução que correu termos por apenso (e que veio a naufragar) nada tem que ver com o direito invocado nos autos], que teve por escopo, tão só e apenas, a condenação do Réu a iniciar o processo com vista à atribuição da justa indemnização pela expropriação. Ademais, muito embora nessa ação o Réu tenha defendido que era ele, e não a Autora, o legítimo titular da parte ocupada do prédio, a causa não importou o pedido de reconhecimento da Autora como proprietária (é dizer, não tinha natureza de ação real), em razão do que nada obstava a esta, querendo, lançar mão da presente ação… (não se pode sustentar, pois, que somente viu reconhecido o seu direito como proprietária quando do trânsito em julgado daquela ação…). Impõe-se, assim, a procedência da exceção perentória de prescrição do direito da Autora atinente a factos anteriores a 08.05.2017, permitindo ao Réu, por conseguinte, nessa parte e só com este fundamento, impedir o cumprimento da prestação (art.º 304º nº 1 do CC.” Adiantamos desde já que não podemos subscrever este entendimento, dado que se nos afigura que o mesmo não contempla os demais preceitos legais aplicáveis ao instituto jurídico da prescrição e, por conseguinte, não analisa com a necessária profundidade a matéria, em confronto com a factualidade concreta. Vejamos, pois: É certo que, tal como reconhece o Tribunal a quo, a ora Apelante peticiona a condenação do Réu, ora Apelado, no pagamento de determinadas quantias como valor de restituição pela utilização de parte do prédio de que é proprietária que este injustificadamente ocupa há duas décadas, tal como se de uma “expropriação de facto” se tratasse, ao abrigo do instituto jurídico do enriquecimento sem causa. Ora, estipula o art.º 482.º do Código Civil que “o direito à restituição por enriquecimento sem causa prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do enriquecimento.” Nos termos do disposto no art.º 309.º do Código Civil, “o prazo ordinário de prescrição é de vinte anos”. Importa ainda convocar o disposto no art.º 323.º n.º 1 do Código Civil que estipula o seguinte, sob a epígrafe “interrupção da prescrição”: “A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.” Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito legal, “se a citação ou notificação não se fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.” Sucede que, após longas conversações entre a Autora, através do seu Mandatário, e o Réu, espelhadas na documentação junta aos autos e que decorreram durante anos, sem sucesso, a Autora viu-se na necessidade de interpor acção judicial contra o Réu, a fim de tentar fazer valer o seu direito. Instaurou então, em 21 de dezembro de 2010 a ação administrativa comum que correu os seus termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada, sob o nº 304/10.4BEPDL (vide ponto 7.º dos factos provados). Deve, pois, ter-se por interrompido o prazo de prescrição, no dia 26 de Dezembro de 2010. Assim, interrompida a prescrição, o tempo já corrido é desconsiderado definitivamente e o prazo reinicia o seu curso desde o início como se nenhum tempo tivesse até então corrido (art.º 326.º do C.C.) E, neste caso, “o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo”, conforme esclarece o art.º 327.º do Código Civil. Na mencionada acção, foi proferida sentença em 28 de dezembro de 2018 que transitou em julgado em 6 de fevereiro de 2019 (vide ponto 8.º dos factos provados). É nesta data que, finda a interrupção da prescrição, se inicia a contagem do novo prazo de prescrição que novamente se tem por interrompido em 2020, na data da citação do Réu para o presente processo. Não obstante, poderá objectar-se que, em 26 de Dezembro de 2010, já eventualmente teria decorrido, pelo menos em relação a um dos pedidos o prazo da prescrição ordinária de vinte anos. Com efeito, segundo consta do ponto 2.º dos factos provados, “o Réu procedeu à construção, sobre parte do prédio rústico, de um jardim público, com a área de 421 metros quadrados, na década de 1980, e de um parque de estacionamento, com a área de 321,40 metros quadrados, na década de 1990. Teria, em 2010, decorrido o referido prazo de prescrição que inutilizaria o que supra ficou referido? Cremos que tal objecção também não procede pelo seguinte: Por um lado, estabelece o art.º 325.º do Código Civil que “a prescrição é ainda interrompida pelo reconhecimento do direito, efectuado perante o respectivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido”. Ora, conforme está provado no ponto 6.º dos factos assentes, “o Réu reconheceu perante a Autora, por diversas vezes, que pretendia dar início ao processo de expropriação, tendo sido efetuadas diversas comunicações entre as partes, iniciadas em janeiro de 2010, após esta ter solicitado o agendamento de uma reunião que veio a ter lugar no dia 27 desse mês”. Não há assim, qualquer dúvida de que, em Janeiro de 2010, se tem de considerar interrompido o prazo de prescrição ordinário a que se refere a parte final do art.º 482.º do C.C. Porém, o enriquecimento ocorreu “na década de 1990” quanto á área onde foi construído o parque de estacionamento, não estando provado o ano. Por isso, não é possível saber ao certo, qual o tempo decorrido, até Janeiro de 2010. Contudo, esse facto, devendo ser provado pelo Réu, cujo ónus de prova lhe incumbe, nos termos do disposto no art.º 342.º n.º 2 do C.C., a falta dessa prova conduz a que seja o Réu a sofrer as desvantagens dessa falta, ou seja, sempre levaria à improcedência da excepção da prescrição invocada. Já quanto ao facto ocorrido na década de 1980, apesar de não estar provada essa data, ainda que se considere o facto ocorrido em Dezembro de 1989, último mês da década, o prazo de 20 anos estaria completado em Dezembro de 2009, pelo que já não operaria o facto interruptivo da prescrição, ocorrido em Janeiro de 2010. Na verdade, os dois prazos referidos no art.º 482.º coordenam-se da seguinte forma: por um lado, a prescrição ordinária só impera quando o direito à restituição não se haja entretanto extinto pelo decurso do prazo excepcional da prescrição de três anos; mas por outro lado, a prescrição ordinária opera sempre, mesmo que o empobrecido não chegue a ter conhecimento do seu direito e da pessoa responsável pela restituição.”[1] Este o motivo pelo qual não é aqui aplicável a jurisprudência citada pelo ora Apelante nos termos da qual “apenas após o trânsito em julgado da decisão proferida em processo a que o empobrecido recorreu em primeira linha é que se inicia o prazo prescricional relativamente ao direito de restituição baseado no enriquecimento sem causa.”[2] É certo que, em consonância com o regime estabelecido no artigo 306º, nº 1, CC, de acordo com o qual o prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido, o STJ tem entendido que o prazo de prescrição não se inicia enquanto o empobrecido utilizou, de boa-fé, outro meio para ser restituído ou indemnizado[3]. Contudo, tal jurisprudência tem de se entender no pressuposto de que não decorreu ainda o prazo de vinte anos antes que o empobrecido tenha começado a utilizar os referidos meios para ser restituído ou indemnizado. Não se aplica, caso no momento em que essa acção é proposta, já tiver decorrido o prazo de 20 anos, como é o caso. Por conseguinte, quanto ao facto ocorrido na década de 1980, verificou-se efectivamente a prescrição, por decurso do prazo ordinário de vinte anos, ressalvado na parte final do art.º 482.º do Código Civil. 2 - Importa agora analisar a verificação dos requisitos do enriquecimento sem causa como fundamento do direito reclamado pela Autora, ora Apelante. Dispõe o art.º 473.º n.º 1 do Código Civil o seguinte: “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”. E o art.º 474.º do C.C. define a natureza subsidiária da obrigação de restituir com fundamento em enriquecimento sem causa dizendo que “não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído (…)”. Com base nesta natureza subsidiária, o Tribunal a quo julgou improcedente a pretensão da Autora pois “tendo a Autora desprezado a via da responsabilidade civil extracontratual, no âmbito da qual o seu direito teria cobertura (notamos que o prazo prescricional é idêntico, pelo que, neste âmbito, inexiste qualquer diminuição da garantia do direito – art.º 498º nº 1 do CC), consideramos que o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa – figura, como explanámos, residual, excecional e de última ratio – não lhe é lícito, precisamente por violação da subsidiariedade em relação àquele meio específico de tutela cit. art.º 474º do CC)”. Entende, pois, o Tribunal a quo que a Apelante não esgotou previamente todos os meios de ser indemnizado ou restituído, antes de instaurar a presente acção com fundamento em enriquecimento sem causa. Com todo o respeito, não subscrevemos tal entendimento. Lembremos que, em 12 de Julho de 2019, a Autora intentou, por apenso ao já referido processo n.º 304/10.4BEPDL que correu os seus termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada, a execução para prestação de facto, na qual pediu quer a condenação do Réu à prática do ato devido, quer uma indemnização a título de responsabilidade civil pela inexecução ilícita da sentença.[4] Conforme consta do ponto 13.º dos factos provados, “Por sentença de 22 de julho de 2020, transitada em julgado, a execução foi julgada improcedente e, em consequência, o Réu foi absolvido do pedido, por se ter considerado que, à data da propositura da ação executiva, este havia acatado o dever de cumprimento da decisão proferida pela sentença exequenda pois já havia iniciado o procedimento de expropriação por utilidade pública.” Ora, através da indemnização a título de responsabilidade civil pela inexecução ilícita da sentença, é patente que a Autora visava precisamente ressarcir-se do mesmo dano sofrido em consequência de se ver privada, a favor do Réu, de uma parcela de um imóvel que lhe pertence, sem qualquer fundamento legal. Ou seja, a Autora instaurou uma acção no Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada, em 21 de Dezembro de 2010. Instaurada a execução por apenso, onde deduziu um pedido de indemnização a título de responsabilidade civil, veio a ser proferida sentença que indeferiu a pretensão da Autora, em Julho de 2020. Assim, a Autora litigou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada, durante dez longos anos, sem que tivesse conseguido o reconhecimento do seu direito. Fará sentido que depois disso, instaurada esta acção perante os Tribunais comuns, a Justiça ainda entenda que a Autora não esgotou todos os meios ao seu alcance para ser indemnizada? Afigura-se-nos que um tal entendimento configura uma violação do direito dos cidadãos à tutela jurisdicional efetiva que é um direito fundamental previsto na Constituição da República Portuguesa (CRP), nos artigos 20.º e 268.º e que implica, em primeiro lugar, o direito de acesso aos tribunais para defesa de direitos individuais, não podendo as normas que modelam este acesso obstaculizá-lo ao ponto de o tornar impossível ou dificultá-lo de forma não objetivamente exigível. O direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva constitui uma garantia imprescindível da protecção de direitos fundamentais, sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de Direito[5]. Efectivamente, nas condições descritas, de acordo com os princípios constitucionais que enformam o nosso sistema jurídico, nos termos expostos, considerar que a Autora não esgotou já todos os meios ao seu dispor para se ver restituída do que lhe pertence, seria intolerável, pois representaria na prática negar-lhe o seu direito de tutela jurisdicional efectiva. Afastada a aplicabilidade ao caso do disposto no art.º 474.º do C.Civil, dúvidas não restam em relação à verificação dos requisitos do enriquecimento sem causa previstos no art.º 474.º do C.C: “(i)A existência de um enriquecimento; (ii)Que esse enriquecimento se obtenha à custa de outrem; (iii)A falta de causa justificativa”.[6] Na verdade, como decorre da factualidade apurada, a Autora é proprietária do prédio rústico 1 F, com área de 9.480 metros quadrados, sito na freguesia …, concelho …, descrito na Conservatória do Registo Predial … sob o nº … da dita freguesia. Sem qualquer fundamento legal, designadamente através de um processo de expropriação, que nunca existiu, o Réu procedeu à construção, em parte do referido prédio rústico, no que ora releva, de um parque de estacionamento, com a área de 321,40 metros, na década de 1990. Tal significa, como é óbvio, que a Autora está privada da utilização dessa parcela de terreno, sendo o Réu quem, desde aquela data retira as utilidades inerentes à respectiva utilização de forma gratuita, sem qualquer justificação legal, à custa da Autora. Decorre, pois, dos factos mencionados, a verificação de todos os supramencionados requisitos do enriquecimento sem causa. 3 - Sobre a pessoa ou entidade que se locupletou injustamente recai a obrigação de restituir ao empobrecido tudo quanto haja obtido à sua custa. Deve proceder-se a uma restituição em espécie, mas não sendo esta possível, entregar-se-á o valor correspondente, como dispõe o art.º 479.º n.º 1 do C.C. A lei refere ainda que a obrigação de restituir não pode exceder a medida do locupletamento (art.º 479.º n.º 2 do CC). Estes são os princípios legais básicos, dos quais decorre que o objecto da obrigação de restituição se encontra submetido a um duplo limite: o do enriquecimento e o do empobrecimento. Ou seja, o beneficiado deve entregar, em princípio, na medida do respectivo locupletamento, isto é, atendendo-se ao seu enriquecimento patrimonial ou efectivo e não ao enriquecimento real[7], nunca mais, todavia, do que o quantitativo do empobrecimento do lesado, caso este se mostre inferior àquele. De contrário, a obrigação de restituir determinaria, por seu turno, um enriquecimento injustificado. No caso que nos ocupa, em que o enriquecido ocupa um imóvel da empobrecida, a restituição abrangerá tudo o que se conseguiu a expensas do titular da coisa, mediante o uso, fruição indevidos dela – e que pode não coincidir com o valor objectivo[8]. A intromissão em direitos ou bens jurídicos sob a forma de uso ou fruição é mesmo um dos casos típicos de crédito por restituição do enriquecimento sem causa[9]. Importa ainda resolver a questão de saber a que momento deve reportar-se a avaliação do enriquecimento à custa de outrem. Responde a esta questão o n.º 2 do art.º 479.º. Conforme determina este preceito, o objecto da obrigação de restituição não pode exceder a medida do locupletamento à data em que se verifique um dos seguintes factos: a) A citação judicial do enriquecido para a restituição; b) O conhecimento, pelo enriquecido, da falta de causa do seu enriquecimento (…)”.` À luz do mencionado preceito legal, a data a que deve reportar-se a avaliação do dano da Autora terá de ser pelo menos a referente à citação da acção proposta em 21 de Dezembro de 2010. Importa agora proceder ao cálculo do valor a restituir. Como é óbvio, é impossível restituir em espécie o uso e o aproveitamento que o Réu fez do prédio da Autora ao longo dos muitos anos em que a Autora tem vindo a litigar em Juízo pelo reconhecimento dos seus direitos (cerca de 12 anos). Qual então o valor correspondente a esse “tudo …obtido à custa do empobrecido” a que se refere o art.º 479.º do CC? “Uma das vias para neutralizar as deslocações patrimoniais em que se analisa o enriquecimento por intervenção em bens alheios (como é o caso sub judice) é a restituição pelo interventor do valor da utilização desses bens na impossibilidade óbvia de “desfazer” o passado e restituir a própria utilização em si; o valor da restituição corresponderá ao preço objectivo, comum e adequado da utilização dos bens alheios e não ao interesse do lesado, maxime aos lucros cessantes que lhe causou a intervenção; não se trata, pois, de uma indemnização por dano, mas tão só de uma restituição (“indemnização”) de valor…(cfr. Karl Larenz, Derecho de Obligaciones, vol. II, p. 553). Este critério do valor objectivo do uso dos bens alheios é o mais conforme aos princípios que regem o enriquecimento sem causa, nos casos como o presente (…). Por conseguinte, o objecto da restituição nos casos de enriquecimento sem causa fundado na utilização de bens alheios ´o chamado “valor de exploração” de tais bens, pois que o objecto da obrigação de tal restituição é, primariamente dirigido em relação ao que foi obtido à custa de outrem, e em caso de impossibilidade de restituição em espécie, ao valor correspondente, o qual, coincidirá, também segundo o Prof. Menezes Leitão, em caso de ocupação, durante as férias, de casa alheia ao valor locativo da mesma (cfr Direito das Obrigações, vol I, 2000, p. 413). Isto porque, de harmonia com a doutrina da destinação ou afectação dos direitos reais, o uso, gozo e fruição de tais direitos é reservado, segundo a ordem jurídica, ao titular daqueles direitos; logo, sempre que alguém tenha retirado da coisa objecto de direito real determinada vantagem, obteve um enriquecimento à custa do titular desse direito, uma vez que se apropriou de determinadas utilidades que a ordem jurídica reservava exclusivamente a esse titular, segundo o direito da ordenação dos bens. Assim, há lugar à restituição do enriquecimento, independentemente da circunstância de o titular do direito real pretender ou não realizar o mesmo aproveitamento da coisa. Pode afirmar-se que, nesses casos, quem aproveitou as vantagens da utilização que fez de coisa alheia, poupou despesas, a saber, a do valor correspondente a essa utilização, sendo que a poupança de despesas é também uma das fontes de enriquecimento sem causa.”[10] Também no mesmo sentido foi decidido pelo Acórdão do STJ de 23-03-1999, Proc. nº 147/99, Col. Jur – Ac STJ, 1999, tomo I, p. 172 e segs, a propósito do chamado enriquecimento por intervenção de terceiros em bens alheios, em que se insere o caso vertente: “No enriquecimento por intervenção, o dano patrimonial do lesado pode não existir nas hipóteses de utilização de bens alheios. Mesmo que o proprietário nenhum proveito tirasse dos bens, sempre o intrometido estará obrigado a indemnizá-lo, restituindo-lhe o "valor da exploração". Apesar de o lesado entender que os factos alegados integram um caso de responsabilidade civil e não de enriquecimento, nada impede que o Tribunal, na falta de dano reparável, ordene a restituição do montante do enriquecimento. Ocupando a intrometida um imóvel sem título, deverá ser condenada a pagar à proprietária o valor do uso de que ilegitimamente beneficiou, de acordo com as regras que disciplinam o enriquecimento sem causa. É que, a procedência do pedido indemnizatório não está dependente da prova de qualquer dano sofrido pela proprietária do imóvel, mas apenas da prova de que a intrometida o usou, sem título legítimo. O valor locativo do prédio como medida da obrigação de restituição, nos casos de enriquecimento por intervenção consistente na utilização de imóveis alheios no aproveitamento das respectivas vantagens representa, portanto, o valor equivalente a “tudo o que foi obtido à custa do empobrecido” na impossibilidade de restituição in natura do aproveitamento.” Embora não se tenha provado o concreto valor locativo da parcela do prédio ocupado pelo Réu, a partir da concreta utilização que do mesmo é feito, como parque de estacionamento e com base no Regulamento Geral de Taxas da Câmara Municipal da Ribeira Grande, é possível obter com objectividade o valor dessa ocupação. Na verdade, estabelece o Regulamento Geral de Taxas da Câmara Municipal da Ribeira Grande, quanto à ocupação do espaço público, no seu artigo 3.º n.º 3, o valor de €312,70, por lugar de estacionamento reservado, por viatura e por ano. Uma vez que o parque de estacionamento em causa tem capacidade para dez veículos (ponto 3.º da matéria provada) resulta que a receita anual que o Réu obtém à custa do património da Autora é de €3.127,00. Durante os 12 anos que devem ser considerados nos termos supra expostos, totaliza o valor de €37.524,00. A este valor acrescem juros vencidos desde a data da citação e vincendos até integral pagamento. Acresce ainda o valor de €3127,00, por ano, enquanto se mantiver a ocupação do terreno da Autora pelo Réu. IV - DECISÃO Face ao exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa em revogar a decisão recorrida e julgando o recurso parcialmente procedente: a) Julgar procedente a excepção peremptória da prescrição apenas relativamente a parte do pedido. b) Condenar o Réu a restituir à Autora, a título de enriquecimento sem causa, a quantia de €37.524,00, acrescida de juros vencidos desde a data da citação e vincendos até integral pagamento. c)Mais se condena o Réu a restituir à Autora, com igual fundamento, o valor de € 3127,00, por ano, enquanto se mantiver a ocupação da parcela de terreno da Autora, onde está implantado um parque de estacionamento. d)Custas pela Autora e Réu, na proporção de 1/3 para a Autora e 2/3 para o Réu. Lisboa, 26 de Janeiro de 2023 Maria de Deus Correia Maria Teresa Pardal Octávia Viegas (vencida conforme declaração que segue)) Voto de vencido A Autora M… fundamentou o pedido que formulou nos autos no enriquecimento sem causa do Réu Município …. A sentença recorrida considerou que esse fundamento só pode ser invocado subsidiariamente e considerou que se aplicava a responsabilidade civil extracontratual quanto à pretensão deduzida na acção, considerou também verificar-se a prescrição de parte do pedido formulado, de acordo com a responsabilidade civil extracontratual, para além do período de três anos antes da acção e quanto à parte que considerou não prescrita, entendeu que não estavam preenchidos todos os requisitos e absolveu o Réu do pedido. A decisão foi proferida no âmbito do despacho saneador. Foi interposto recurso da decisão. Os recursos são meios de reapreciação de decisões judiciais pelos quais é pretendia a reapreciação e consequente alteração ou revogação das decisões objecto do recurso. Por considerar que não estavam apurados os factos que resultavam dos articulados e permitiriam várias soluções plausíveis de direito, entendo que os autos não permitiam que fosse proferida decisão de mérito no despacho saneador, devendo prosseguir para apuramento de factos que se mostrem importantes para ser proferida decisão de mérito. Por outro lado, a prescrição considerada na decisão refere-se ao direito da Autora assente na responsabilidade civil extracontratual e não ao direito invocado pela Autora com base no enriquecimento sem causa. A prescrição de direitos não é de conhecimento oficioso (art.º 303 do C.Civil e 570 do CPCivil). Assim, entendo que a decisão recorrida deve ser revogada e ordenado o prosseguimento dos autos para apuramento dos factos controvertidos que resultam dos articulados de acordo com as várias soluções plausíveis de direito. 26.01.2023 Octávia Viegas _______________________________________________________ [1] Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª edição, Almedina, p.516. [2] Acórdão do TRL de 10-12-2009, Processo 3189/08.7TVLSB-A.L1-6, disponível em www.dgsi.pt [3] Vide Acórdãos do STJ de 02-12-2004, Processo 04B3828, de 26-02-2004, Processo 03B3798; de 27-11-2003, Processo 03B3091 e de 24-02-1999, Processo 98B1201, todos disponíveis em www.dgsi.pt.jstj. [4] Vide o ponto 12.º dos factos provados. [5] Maria Amália Santos, in «O Direito constitucionalmente garantido dos cidadãos à tutela jurisdicional efectiva», Revista JULGAR on line, Novembro 2019. [6] Mário Júlio de Almeida Costa, Ob.cit.p.491. [7] Enriquecimento real corresponde ao valor objectivo e autónomo da vantagem adquirida, enquanto o enriquecimento patrimonial reflecte a diferença, para mais, produzida na esfera económica do enriquecido e que resulta da comparação entre a sua situação efectiva (situação real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não houvesse verificado (situação hipotética). [8] Vide Mário Júlio de Almeida Costa, Ob. cit., p.512-513. [9] Antunes Varela Das obrigações em geral, vol I, 5ª ed., p.429. [10] Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-10-2013, Processo 1261/07.0TBOLHE.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt. |