Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6074/24.1T8LSB-G.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: VENDA JUDICIAL
COMODATO
OPONIBILIDADE
CADUCIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário:
I – O comodatário do imóvel que foi vendido judicialmente a terceiro não tem um direito incompatível com a entrega do imóvel a esse terceiro, visto que o comodato apenas lhe atribui um direito pessoal de gozo, que é inoponível a esse terceiro (art. 406/2 do CC), pelo que os embargos que deduziu foram – como tinha de ser indeferidos liminarmente por manifesta improcedência.
II – O comodato caduca, por impossibilidade objectiva superveniente, com a venda da coisa a terceiro.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

A 03/03/2024, a Sociedade de Construções Quinta do Bispo, S.A., veio requerer, contra BB e outras 17 pessoas, a entrega de um imóvel que tinha adquirido numa venda judicial efectuada no âmbito de uma acção de divisão de coisa comum (isto depois de ter depositado a totalidade do preço em 28/12/2023, de o imóvel lhe ter sido adjudicado e de lhe ter sido emitido o título de transmissão da propriedade a 09/01/2024, de ter sido requerido o registo da compra a seu favor em 10/01/2024 e de ter pedido a entrega do imóvel na execução em data anterior a 15/02/2024).
AA, que não é nenhum dos executados, veio deduzir embargos de terceiro à entrega, alegando, em síntese, que:
i\ é legitima detentora de parte daquele imóvel, residindo no rés do chão esquerdo do mesmo, de forma contínua, à vista de todos e de total boa fé, desde Setembro de 2015, por lhe ter sido cedido a título gratuito, para seu, e do seu companheiro, uso e habitação, com autorização expressa de parte dos anteriores comproprietários, incluindo aquele que tinha a cargo a administração do imóvel, e conhecimento dos restantes, que anuíram tacitamente com a sua permanência naquele parte do imóvel não tendo, até à presente data, deduzido qualquer oposição ou accionado qualquer mecanismo de extinção de tal autorização; a aludida cedência em nenhum momento foi denunciada;
ii\ não obstante a eficácia meramente obrigacional do contrato de comodato celebrado, o artigo 1133.º, n.º 2 do Código Civil, permite que o comodatário, quando perturbado no exercício do seu direito de uso e fruição da coisa, possa lançar mão dos meios de tutela possessória, entre os quais, os embargos de terceiro, nos termos do artigo 1285 do CC;
iii\ O direito fundamental à habitação e a protecção especial de que deverá beneficiar a casa de morada de família encontra-se protegido pela norma do artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa e pelo regime da Lei 83/2019, de 03/09, principalmente pelas normas dos artigos 10.º e 13/1-2-6-a-b-c-d-e, o que terá, no caso, que ser considerado em paralelo ao próprio direito decorrente do contrato de comodato;
iv\ no caso concreto, nunca a duração do comodato firmado entre as partes poderá ser balizada por uma duração distinta da duração máxima prevista para o contrato de arrendamento, ou seja, 30 anos (cf. artigo 1095/2 do CC);
v\ a protecção da casa de morada de família, enquanto direito fundamental, justifica a transmissão do contrato de comodato para a adquirente, em termos análogos ao que sucede no regime do arrendamento, sendo o mesmo oponível à exequente, o que erradica o direito à restituição que a mesma pugna.
Os embargos foram liminarmente indeferidos por serem manifestamente improcedentes (arts. 345 e 590/1 do CPC. Isto com base numa extensa fundamentação, que este TRL sintetiza assim:
No que respeita ao requisito da ofensa ou lesão da posse ou de um direito incompatível com o acto ordenado na execução (art. 342/1 do CPC), de acordo com o que a própria embargante refere, esta reside no imóvel com base num contrato de comodato. Ora, o contrato de comodato tem eficácia meramente obrigacional, isto é, apenas produz efeitos entre as partes que o celebraram, não vinculando terceiros (art. 406/2 do CC). No regime legalmente fixado para o comodato, [não] existe norma semelhante à do artigo 1057 do CC, para a locação, que imponha a transmissão da posição de comodante para o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato (o que se compreende, atendendo, designadamente, à natureza gratuita do comodado). A única situação em a que situação do comodatário se mantém, apesar da alienação do direito em que se funda o comodato, é a prevista nos artigos 1130/2 e 1052/b do CC, de que decorre que não obstante a alienação do direito usufrutuário, na base do qual foi celebrado o comodato, este se mantém e só caduca pelo termo normal do usufruto, situação que não é, manifestamente, a dos autos. Em suma, o contrato de comodato confere ao comodatário, um direito pessoal de gozo (e não um direito real), inoponível a terceiros (veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 01/02/2012, proc. 1961/08.7TVLSB-A.L1-6).
No caso dos autos, o imóvel cuja entrega é pedida nos autos de execução, foi adquirido pela exequente no âmbito de acção de divisão de coisa comum, nos termos do disposto art. 929/2 do CPC. Tal venda, conforme decorre do art. 549/2 do CPC, «é feita pelas formas estabelecidas para o processo de execução.». Trata-se, assim, de uma venda executiva, a qual configura um contrato especial de compra e venda com características de acto de direito público (cf. Lebre de Freitas, A acção executiva à luz do CPC de 2013, 6.ª ed., Coimbra Editora, 2014, páginas 400-401). Face à natureza de tal venda, é-lhe aplicável o disposto no art. 824/2 do CC, segundo o qual «[o]s bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo» (vejam-se os acs. do TR de Guimarães, de 18/04/2024, proc. 3831/22.7T8BRG-E.G1, e do Supremo Tribunal de Justiça, de 30/03/2017, proc. 149/09.4TBGLG-E.E1-A.S1]). Por conseguinte, sendo o comodatário titular de um mero direito pessoal de gozo, com a posição de mero detentor, a invocação desse título apenas seria legítima relativamente ao comodante.
Refira-se, por fim, que esta solução não contende com a tutela constitucional do direito à habitação, prevista no artigo 65 da CRP, tendo em atenção o que é dito sobre este nos acórdãos do Tribunal Constitucional 50/2022, 151/92 e 299/2020. No confronto entre o direito à habitação invocado pela embargante e o direito de propriedade da exequente, é este último inteiramente merecedor de tutela, não sendo constitucionalmente exigível que o direito à propriedade privada (que é igualmente constitucionalmente tutelado – cf. art. 62 da CRP) sofra uma limitação que, neste caso, seria intolerável e desproporcionada, atenta a inoponibilidade, ao adquirente do imóvel, do direito invocado pela embargante decorrente de um contrato de comodato. Acresce que a protecção do direito de habitação, decorrente da Lei 83/2019, se insere na dimensão positiva do direito à habitação, enquanto direito fundamental de natureza social, cujo principal destinatário é o Estado, enquanto garante do direito à habitação (cf. o artigo 3/1 da referida Lei). Daí que, da referida lei não decorra qualquer imposição, dirigida ao proprietário do imóvel em causa nos autos, no sentido de tal direito ser limitado tendo em vista garantir o direito à habitação da embargante.
A embargante recorre deste despacho – para que seja revogado e substituído por outro que receba os embargos e determine o prosseguimento deles – terminando as suas 38 páginas de alegações com 64 conclusões em que, em síntese feita por este TRL, diz:
i/ Não se encontram preenchidos os pressupostos que determinem a possibilidade de decisão liminar de rejeição dos embargos, ínsitos nos artigos 345 e 590 do CPC;
ii/ Impunha-se a realização das diligências probatórias requeridas, concretamente a tomada de depoimento das testemunhas arroladas.
iii/ A conclusão da caducidade por resultado da alegada “venda executiva” do imóvel, apresenta-se pouco consentânea com a circunstância de a comodatária permanecer no imóvel a habitar;
iv/ A exequente deslocou-se ao imóvel em Janeiro de 2024 para efectivar a sua posição e não adoptou nenhum mecanismo face ao uso pela embargante, pelo que, desde então, podem ter ocorrido comportamentos que conduziram à aceitação do comodato pela exequente, isto é, que ela tenha assumido a obrigação do comodante, ficando vinculado nos precisos termos do comodante.
v/ A transmissão do direito de propriedade não implica, só por si e necessariamente, a extinção da posse do comodatário sobre a coisa. Assim, o adquirente do direito com base no qual tenha sido celebrado o contrato de comodato sucede nos direitos e obrigações do comodante (sumário do ac. do STJ de 15/06/1993, proc. 082426).
vi/ Deve ser feita uma interpretação extensiva dos arts. 1130/2 e 1052/-b do CC ou por maioria de razão: Se no caso do usufrutuário, que dá de comodato o uso do imóvel a terceiro, tal direito não se extingue quando aquele aliena/transmite o respectivo direito que titula o comodato concedido, por maioria de razão e equivalência, também se deverá concluir que em caso de alienação do direito de propriedade do comodante inicial, prevalece, ainda assim, o direito do comodatário até ao termo normal do contrato celebrado.
vii/ No regime do comodato existe norma especial que o mesmo caduca única e exclusivamente “pela morte do comodatário”, que é a do artigo 1141 do CC; esta norma prevalece sobre o art. 824 do CC.
viii/ O direito de propriedade e/ou o direito do usufrutuário não se reveste de maior merecimento de tutela face aquele que a própria lei desenha e aponta a favor do comodatário.
ix/ O contrato de comodado resulta manifesto que «[o] contrato de comodato não caduca ope legis» (ac. do TRP de 04/07/2013, 3362/10.8TBFUN.L1-2).
x/ No caso em apreço, não se está verdadeiramente face uma venda executiva, uma vez que inexiste na acção de divisão de coisa comum a citação dos credores reclamantes e outros, não tendo, nessa medida, sido assegurada qualquer possibilidade de defesa ou contraposição da embargante que naquela sede não foi parte.
xi/ Tal como o contrato de arrendamento, constituído em data anterior, não caduca nos termos do artigo 824/2 do CC, em caso de venda do prédio, por via de arrematação, em processo de execução – vide, neste sentido, v.g., acs. do TRL de 19/04/1988 e do TRE de 19/01/1995 - também o contrato de comodato, com a mesma natureza de direito pessoal de gozo não caduca.
xii/ Tal como não caducam quaisquer direitos de garantia ou reais que onerem o imóvel adquirido, constituídos em data anterior e que produzam efeitos em relação a terceiro, independentemente de registo.
xiii/ Dada a analogia entre o contrato de arrendamento e o contrato de comodato, importa, por recurso a uma interpretação extensiva do artigo 1057 do CC, aportar a esta sede o princípio do emptio non tollit locatum.
xiv/ Continuando a servir-se do prédio, por efeito do contrato de comodato, o comodatário possui título legitimo para a ocupação do prédio.
xv/ Deve ser determinada a inconstitucionalidade da interpretação da norma do artigo 1137 do CC quando interpretada da forma em que o Tribunal a quo o faz, ou seja, quando aquele entende que, tendo o comodato por finalidade o uso do imóvel locado, pode o comodante reclamar a qualquer momento a sua restituição, apesar de persistir tal uso, estando o comodatário sujeito à obrigação de restituição, nos termos previstos no artigo 1137/2 do CC, o que expressamente se argui.
Apreciação:
Quanto a i/: dispõe o art. 345 do CPC, quanto à fase introdutória dos embargos, que, “[s]endo apresentada em tempo e não havendo outras razões para o imediato indeferimento da petição de embargos, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos ou rejeitados conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante.”
Portanto, havendo razões para o indeferimento liminar, os embargos não devem ser recebidos.
O que aliás também resulta do art. 590/1, também invocado pelo despacho recorrido: “Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente […].”
Ou seja, sendo manifesta a improcedência dos embargos, eles deviam ser, como foram, liminarmente indeferidos.
E é manifesta essa improcedência, porque o comodatário não tem um direito incompatível com a entrega da coisa ao adquirente dela no âmbito de uma venda executiva, como o disse o despacho recorrido, com a invocação de acórdão pertinente para a situação: se o comodato foi celebrado com quem não é o exequente e se este é o actual proprietário da coisa, por a ter adquirido depois de celebrado o comodato, o comodato não lhe pode ser oposto porque ele é terceiro em relação ao contrato (art. 406/2 do CC); o comodatário terá, eventualmente, direito a uma indemnização perante o comodante, por não ter agido de modo a poder cumprir o contrato, mas não tem um direito incompatível com a entrega do imóvel ao terceiro adquirente.
No mesmo sentido, veja-se, por exemplo, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC, vol. 1.º, 4.ª edição, Almedina, 2021, pág. 675: “Com a apreensão na acção executiva para entrega de coisa certa […] são incompatíveis os direitos reais de gozo que implicam a usufruição da coisa, os direitos reais de garantia que, como o penhor e o direito de retenção, impliquem a sua posse e o direito ao arrendamento; mas não o são os direitos reais cujo conteúdo não abranja a usufruição ou a posse da coisa nem outros direitos pessoais de gozo que não o arrendamento.” E o ac. do STJ de 30/03/2017, proc. 149/09.4TBGLG-E.E1-A.S1 (que cita vários outros no mesmo sentido): “II. O contrato de comodato atribui ao comodatário um direito pessoal de gozo, mas, atenta a eficácia relativa do contrato, esse direito é inoponível ao que adquire o bem da esfera do comodante. […]”
Note-se que não interessa ao caso, a incompatibilidade de posses, porque o possuidor que embarga de terceiro tem de se basear numa presunção de propriedade (ou de outro direito real de gozo), o que é manifesto não estar em causa, visto que a embargante não invoca uma posse causal nem põe em dúvida que a exequente seja a actual proprietária do bem (veja-se Lebre de Freitas, A acção executiva, obra citada pelo despacho recorrido, agora na 8.ª edição, 2024, pág. 348),
Nunca ninguém defendeu o contrário, isto é, que o comodatário tivesse um direito incompatível com a entrega da coisa ao adquirente dela na venda executiva posterior à constituição do comodato.
Só assim não seria se existisse uma norma equivalente ao art. 1057 do CC, por força da qual o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo.
Norma que não existe, não havendo ninguém que diga o contrário, antes se reconhecendo o carácter excepcional de tal norma, sendo que a situação do arrendatário, parte num contrato oneroso, não tem nada a ver com a do comodatário num contrato gratuito (o que já era referido no despacho recorrido).
*
Quanto a ii/ e iv/: só se impunha a realização de diligências probatórias se tivessem sido alegados factos que, provados, pudessem implicar uma solução diversa do indeferimento liminar, como se, por exemplo, a embargante tivesse alegado quaisquer factos dos quais pudesse resultar que a exequente, actual proprietária do imóvel, tinha assumido a posição do comodante no contrato. Mesmo aquilo que consta de iv/ não tinha sido alegado pela embargante na PI e o juiz não tem que especular sobre hipóteses de causas de pedir que não foram invocadas no processo. De resto, o que consta de iv/ não tem qualquer sentido: do comportamento da exequente, que logo a seguir a ter o prédio registado a seu favor vai requerer a entrega na execução e pouco mais de um mês depois requer uma execução para entrega do imóvel adquirido, não é concebível concluir-se, mesmo que por via das declarações tácitas (art. 217 do CC), que possa ter aceitado colocar-se na posição contratual do comodante (veja-se ainda o ac. do STJ de 22/09/2016, proc. 1448/12.3TBTMR.E1.S1).
*
Não tendo a embargante, admitindo-se que seja comodatária de parte do imóvel tal como o afirma na PI, qualquer direito incompatível com a entrega dessa parte ao adquirente do imóvel, tanto basta para a justificação do indeferimento liminar.
Sendo o eventual direito de comodato da embargante inoponível à exequente, não tem interesse estar a discutir se esse direito caducou ou não porque mesmo que não tivesse caducado, a embargante não o poderia opor à exequente.
Pelo que tudo o que se disser a seguir, a propósito da caducidade do direito, é dito a benefício da discussão. Ou seja, o fundamento do indeferimento é do da inexistência da incompatibilidade do direito com a entrega.
Posto isto,
Quanto a iii\: a circunstância de a comodatária permanecer no imóvel a habitar, por via de facto, não é “pouco consentânea com a caducidade do comodato devido à venda executiva”. Quer dizer apenas que a comodatária se encontra a ocupar uma coisa sem título para o efeito, em prejuízo para o seu proprietário, isto é, a fazer algo de ilícito.
Quanto a v\: trata-se apenas de um sumário de um acórdão do STJ não publicado, pelo que dele não se retira qual é a situação de facto a que se refere. Sendo possível que se reporte à situação idêntica à do ac. do TRL referido pela embargante em ix/ e que não tem, manifestamente, o sentido que a embargante lhe atribui.
Quanto a vi/: trata-se de um comodato constituído por um usufrutuário. Nestes casos, o nu proprietário tem o seu direito limitado pela existência do usufruto pelo que a sua posição não se altera com a não caducidade do comodato contratado pelo usufrutuário. A situação não tem qualquer comparação com a posição de um proprietário que adquire uma coisa que não tem qualquer limitação real.
Precisamente a propósito desta norma (a do art. 1130 do CC), dizem Joana Farrajota e Inês Palma Ramalho, CC anotado, Cedis/Almedina, 2.ª edição, 2019, pág. 1445: “É de destacar a natureza excepcional desta norma, decorrente do facto de apenas se poder aplicar em casos de usufruto e com os contornos resultantes do preceito (v., sobre a incapacidade de o comodato celebrado pelo proprietário vincular futuros terceiros adquirentes do imóvel, ac. do STJ de 22/09/2016, proc. 1448/12.3TBTMR.E1.S1).” [: II. Um comodato celebrado entre os proprietários de um imóvel e terceiros não vincula futuros adquirentes do mesmo imóvel. III. Nem as partes do contrato de comodato lhe poderiam atribuir semelhante eficácia, por a tanto se opor a regra da tipicidade dos direitos reais.]
Quanto a vii/: não há ninguém que defenda a tese da embargante, qual seja de que o art. 1141 do CC regula a única causa de caducidade do comodato e que esta norma prevalece sobre o art. 824 do CC, até porque esta norma não é aplicável aos direitos pessoais de gozo. O comodato cessa pela venda porque o contrato perde o seu objecto. Ou seja, há uma caducidade, mas por via da impossibilidade superveniente (arts. 790, 791, 801 e 799/1 – Pedro Romano Martinez, Da cessação do contrato, 2.ª edição, Almedina, 2006, págs. 48-49), presumivelmente culposa. Com isto está-se a dizer, também, que não se concorda com a aplicação ao caso do art. 824 do CC, feita pelo despacho recorrido, mas o essencial está certo: com a venda da coisa a terceiro o contrato de comodato caduca.
Quanto a viii/: a afirmação não tem qualquer base: o direito do proprietário da coisa que foi emprestada pelo anterior proprietário não vale menos que o direito daquele a quem a coisa foi emprestada temporária e gratuitamente.
Quanto a ix/: trata-se da transcrição truncada de uma passagem do acórdão. O acórdão não diz: “«[o] contrato de comodato não caduca ope legis», o que o acórdão diz é que: “na hipótese considerada, o contrato de comodato não caduca ope legis.” Ora, a hipótese considerada é a do falecimento do comodante. É apenas para esta hipótese que a doutrina tem defendido que os herdeiros do comodante sucedem nos direitos daquele, como dá conta o acórdão citado (no mesmo sentido, Júlio Vieira Gomes, no Comentário ao CC, Direito das obrigações, das obrigações em geral, UCP/FD/UCP Editora, 2023, páginas 600-601). Acórdão que, por isso, não defende, em termos genéricos, a não caducidade do comodato, ao contrário do que a embargante sugere.
Quanto a x/: está errado; como é evidente também na venda que se faz na acção de divisão de coisa comum se verifica a citação dos credores que sejam titulares de direito real de garantia, por força do disposto no art. 549 do CPC, o que aliás não tem qualquer interesse para a questão dos autos, porque a requerente não é uma credor titular de um direito real de garantia.
Quanto a xi\ e xii\: Já se disse que o art. 824 do CC não é aplicável aos direitos pessoais de gozo; embora a maioria da jurisprudência e da doutrina façam a aplicação do art. 824/2 do CC ao direito do arrendatário, tal justifica-se pelas características peculiares deste direito que o direito do comodatário não tem.
Quanto a xiii: não há nenhuma analogia entre o contrato de arrendamento e o contrato de comodato que tenha o efeito de fazer aplicar a regra excepcional do art. 1057 do CC aos comodatos, o que já foi visto.
Quanto a xiv/: é o mesmo tipo de afirmação já discutida em iii/ acrescida de uma petição de princípio: pressupõe que o comodato está de pé, que é o que tinha de ser demonstrado.
Quanto a xv\: como o fundamento do indeferimento é o da inexistência da incompatibilidade do direito com a entrega e para este o tribunal não se serviu minimamente da norma do art. 1137 do CC, não tem qualquer sentido estar a discutir a suposta inconstitucionalidade de uma interpretação que não foi feita.
Em suma, nenhum dos argumentos da embargante está certo.
*
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pela embargante, sem prejuízo do que tiver sido decidido quanto ao apoio judiciário.

Lisboa, 23/10/2025
Pedro Martins
Fernando Alberto Caetano Besteiro
Laurinda Gemas