Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ADEODATO BROTAS | ||
Descritores: | INVENTÁRIO SONEGAÇÃO DE BENS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
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Sumário: | Sumário (artº 663º nº 7 do CPC) 1- O instituto da sonegação de bens exige a verificação cumulativa de dois requisitos: a) - a sonegação/ocultação e; b) - o dolo. 2- Para que se possa concluir que houve sonegação de bens impõe-se que seja dado como provado que a não relacionação dos bens (certificados de aforro) foi propositada com intuito de, ocultando a sua existência, fazer seu o respectivo valor. 3- É pacífico o entendimento no sentido de caber ao alegante da sonegação o ónus de prova dos respectivos factos constitutivos: a não relacionação e o dolo de ocultação. 4- Não se provando o requisito subjectivo, dolo na ocultação do bem, não pode concluir-se pela verificação da sonegação de bens (de certificados de aforro), nem pela respectiva consequência sancionatória de perda, em benefício da requerente, do direito do cabeça-de-casal sobre o valor de 38 000 unidades de certificados de aforro. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes desembargadores que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa: I-RELATÓRIO 1-Por apenso à acção de divórcio entre BB e, AA, veio a ex-cônjuge, em 02/02/2022, requerer instauração de inventário para patilha dos bens comuns. 2-Foi designado para exercer funções de cabeça de casal o ex-cônjuge, AA. Citado, apresentou relação de bens composta pelas seguintes verbas: Activo: A)- Imóveis. Verba 1, fracção autónoma “R” que descreve; B)- Móveis Verba 2.1, mobília de sala de estar; Verba 2.2, mobília de quarto de casal; Verba 2.3, mobília de quarto da filha; Verba 3- Veículo automóvel que descreve; Passivo: 5 000€ de dívida contraída pela requerente a favor do requerido no âmbito de empréstimo por este realizado. 3- A requerente, ex-cônjuge, em 26/04/2022. veio deduzir reclamação contra a relação de bens, ao abrigo do disposto no art.º 1104º/1, al. d) do C.P.C e arguiu a sonegação de bens pelo requerido, pugnando pela aplicação do artº 2096º nº 1 do CC: a) Reclama quanto ao valor atribuído à verba n.º 1, defendendo que deve ser fixado o valor patrimonial tributário da fracção autónoma, de €109.013,03; b) Alega que não existe recheio no imóvel descrito na verba n.º 1, o qual se encontra arrendado desde 15.08.2012, sem qualquer recheio, mas que a verba n.º 2 da relação de bens deve ser retificada para incluir todo o recheio daquela que constituiu a casa de morada de família: o mobiliário de escritório (secretária, móvel de arquivo, roupeiro, estante e candeeiro, no valor de 2.500,00€), os eletrodomésticos da cozinha (arca congeladora vertical, máquina de lavar roupa, Bimby TM31 e loiças, a que atribui o valor de 2.000€), móveis do hall de entrada (espelho, móvel, mesa de madeira e pedra, bengaleiro e banco, a que atribui o valor de 1.000€), três quadros e duas serigrafias de Nadir Afonso, a que atribui o valor unitário de 2 000€ e o valor global de 10 000€. c) Quanto ao veículo automóvel o seu valor deve ser corrigido para o valor atual de 22 500€. d) Nega a verba n.º 4 do passivo, defendendo que nunca contraiu qualquer dívida perante o Requerido e que o comprovativo da transferência de €5 000,00 respeita ao reembolso acordado entre ambos aquando do processo de divórcio, como contrapartida do valor gasto por ambos na remodelação e mobiliário da sala da casa de morada de família de, aproximadamente, 10 000,00€, no ano de 2019. Quando assim não se entenda, devem ser relacionados pelo cabeça de casal os bens móveis que compõem o recheio da antiga casa de morada de família e os custos inerentes à compra de mobiliário e remodelação da mesma em 2019, sendo atribuído o valor de 10 000 €. e) Acusa a falta de relacionamento de aplicações e produtos financeiros constituídas com dinheiros comuns, resultantes dos rendimentos do trabalho dos então cônjuges e das poupanças feitas com base nos mesmos, no valor de 189 194,49 €, nas instituições financeiras SEMAPA – Sociedade de Investimento e Gestão SGPS, SA, CUF SA, HAITONG BANK, SA, GNB – Sociedade Gestora de Patrimónios, SA. Alega que sempre foi o Requerido a gerir as poupanças do casal e que até à data não prestou qualquer informação à Requerente sobre as contas e aplicações financeiras onde depositou os dinheiros comuns. Requer que o Cabeça de Casal venha relacionar estas importâncias, identificando a sua natureza, valor, as instituições financeiras onde se encontram domiciliados tais produtos financeiros e ainda os rendimentos gerados pelos mesmos, desde 24/01/2005 até 23/09/2020, ou se oficie ao Banco de Portugal IGCP para o efeito. f) Mais alega a Requerente que os ex-cônjuges são titulares de contas conjuntas constituídas durante o casamento no NOVO BANCO SA, devendo ser comprovado o saldo das referidas contas. g) Reclama um direito de crédito sobre o Requerido no valor de 1 720,59 € que deve ser relacionado, relativo ao reembolso do IRS referente aos rendimentos do ano de 2019. h) Reclama ainda que, a partir de junho de 2021, o Requerido passou a receber a totalidade das rendas geradas pelo imóvel descrito como verba n.º 1, apurando-se a este título um direito de crédito da Requerente sobre o Requerido com o valor de 1 060€, mas que operada a compensação relativa a um crédito de custas de parte reclamado pelo Requerido, o crédito da Requerente relativo aos rendimentos prediais encontra-se nesta data reduzido a 422,50 € (1060 –637,50 €), que deve ser relacionado. i)Invoca que a atuação do Cabeça de casal, ao omitir diversos bens, constitui sonegação de bens que requer seja apreciada e declarada. j) Reclama ainda para que lhe sejam restituídos pelo Requerido/Cabeça de Casal, diversos bens próprios que ficaram na posse deste, e bem assim os pertencentes à filha do ex-casal, menor de idade. Junta documentos, arrola testemunhas e solicita sejam pedidas informações a entidades bancárias e ao IGCP. 4- Ouvido o cabeça de casal, veio responder: a) Quanto à verba n.º 1 diz concordar com o valor patrimonial tributário, caso tal verba lhe seja adjudicada; caso seja para vender a terceiros, requer a avaliação do imóvel, por perito a nomear pelo tribunal, b) Quanto à reclamação da verba n.º 2 impugna a arca congeladora, por lhe ter sido doada; da Bimby por ter avariado; apenas restando a máquina de lavar roupa e as loiças, ao qual se atribui o valor de € 700; aceita o relacionamento dos móveis do hall de entrada no valor de €1 000,00, impugna os quadros, afirmando que foram bens doados pelo seu pai, ainda antes do casamento, devendo a verba n.º 2 ser atualizada para o valor total de € 9 200,00. c) Retifica o valor do veículo automóvel, concordando com a reclamante; d) Reitera que emprestou dinheiro à Requerente, não havendo qualquer acordo de reembolso, devendo manter-se a verba n.º 4 do passivo; e) Afirma que não existem quaisquer contas, porquanto com o dinheiro que conseguiram poupar proveniente do salário de ambos, única fonte de rendimento de cada um, compraram o imóvel, e os ditos produtos e instrumentos financeiros a que a Requerente se refere não são da titularidade, quer do Cabeça de Casal, quer da Requerente, são única e exclusivamente dos pais do Requerido, figurando o cabeça de casal como co- titular das referidas contas por ser filho único e para agilizar e prover a eventuais necessidades dos pais. Que a conta do Novo banco, única conta conjunta, não tinha provisão e que a Requerente realizou compras com o cartão ainda titulado por ambos, após a separação, para uso pessoal, contraindo uma dívida de €1.200.00, que o Requerido liquidou, valor esse que compensou com a parte de IRS que à Requerente dizia respeito. f) Defende nada ter a pagar a título de rendas. g) Quanto aos bens próprios da Requerente, aceita que os bens descritos no art.º 80º da reclamação pertencem à Requerente; que os bens descritos no art.º 81º pertencem à filha comum¸ que se encontram na posse do avô paterno, ou na sua casa, que também é a casa da menor. Indica prova testemunhal e requer as suas declarações de parte. 5- Por despacho de 23/09/2022 foi oficiado ao Banco de Portugal e ao IGCP – Agência para a Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, solicitando informações sobre as contas bancárias e a existência de quaisquer produtos titulados pelo requerido desde 14/01/2005 até 23/09/2020, indicando o valor contratado, data da contratação, o respectivo saldo a 23/09/2020 e data de eventual resgate anterior. 6- Por ofício de 04/10/2022, o IGCP informou que em nome do requerido AA, à data de 23/09/2020, existem os seguintes valores em Certificados de Aforro: -Série B, subscritos entre 28/04/2003 e 08/09/2004, 18 732 unidades com o valor de 50 375,31€; -Série C, subscritos a 04/07/2014, 165 000 unidades com o valor de 178 252,80€; - Série C/CPTM, subscritos em 05/06/2017, 10 000 unidades, com o valor de 10 000€; -Série C/CPTM, subscritos a 27/10/2017, 28 000 unidades, com o valor de 28 000€. Foi, igualmente, junto pelo IGCP, resumo de saldos por produtos na data do extrato: -Certificados de Aforro C, 165 000, no valor de 181 678,20€, data de subscrição: 04/07//2014; movimentador: CC - Certificados do Tesouro CPTM, data de subscrição: 27/10/2017, 28 000 unidades, no valor de 28 000€. 7- No dia 30/04/2024, teve lugar uma diligência de prova no âmbito da qual, as partes chegaram a um acordo parcial de exclusão da relação de bens comuns dos bens móveis reclamados como bens próprios da Requerente (2 móveis, quadro, serviços de loiça, roupeiro branco e outros quadros) e dos bens da filha menor (peças em ouro e mealheiro). No mais, foi concedido prazo para nomeação de perito avaliador para avaliação de bem móvel de que, posteriormente foi prescindida a respectiva avaliação. 8- No dia 01/10/2024 teve lugar a inquirição das testemunhas. 9- Com data de 03/12/2024, foi, pela 1ª instância, proferido o seguinte despacho: “Compulsados os autos para decisão da reclamação à relação de bens, constato que a informação junta aos autos a 4.10.2022 por parte da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (fls. 69 a 75) em resposta ao despacho de 23.09.2022, ponto 2, não foi oportunamente notificada aos interessados. Na informação junta, a IGCP veio comunicar que o interessado, à data de 24.01.2005, tinha na sua titularidade certificados de aforro/série B, 18732 unidades, no valor de €50.375,31. E que à data de 23-09-2020 o interessado tinha 165 000 unidades de certificados de aforro/série C (valor 178 252,80) e 38 000 unidades de certificados de tesouro (valor 38 000,00), sendo a subscrição a 04.07.2014 pela mãe do interessado, CC, valor total de €216.252,80. De acordo com as posições vertidas nos articulados, a titularidade de eventuais certificados de aforro ou certificados de tesouro era matéria controvertida, alegando o interessado que, a existirem ativos na sua titularidade, tais valores seriam pertença dos seus pais, não tendo o casal realizado quaisquer poupanças, tanto que canalizaram o produto do seu trabalho para a aquisição do bem imóvel. Não sendo líquido se as partes tiveram acesso a essa documentação, pese embora a mesma esteja acessível via citius, determino a sua notificação aos interessados, para o exercício do contraditório, por tal omissão de notificação poder influir no exame e decisão da causa (vd. art.º 195º/1 do Cód. de Processo Civil).” 10- O requerido, cabeça de casal, veio pronunciar-se, 16/12/2024, alegando, em síntese: - “…verifica-se que os certificados de aforro série B (18.732 unidades, valor €50.375,31) já existiam em 24/01/2005, data anterior ao casamento, constituindo inequivocamente bens próprios nos termos do artigo 1722º, nº 1, alínea a) do Código Civil; - Quanto aos certificados série C e de tesouro, a própria informação confirma que foram subscritos pela mãe do Requerido, CC, em 04/07/2014, constituindo assim bens próprios por via de doação; - A presente informação da IGCP vem, assim, apenas confirmar a natureza própria destes bens, seja por aquisição anterior ao casamento (certificados série B), seja por doação materna (certificados série C e de tesouro); Conclui, defendendo: - …devem os referidos certificados ser considerados bens próprios do Requerido, não integrando o património comum a partilhar.” 11- A requerente pronunciou-se, em 22/12/2024, alegando, em síntese: - “…existe um conjunto de subscrições designadamente nas datas de 5/06/2017 e 27/10/2017 efetuadas na plena vigência do casamento que inquestionavelmente terão sido subscritas pelo ex. cônjuge marido, e que naturalmente integra o património comum do casal; - …existiram várias transferências feitas pelo requerido cabeça de casal, em montantes muito significativos, retirados da conta bancária conjunta, titulada por ambos, para conta da titularidade do mesmo que foram utilizados para subscrição de aplicações financeiras, mais precisamente os certificados de aforro subscritos na data de 5/06/2017 sob o número ... no valor de 10.000 EUR bem assim como os certificados de aforro subscritos na data de 27/10/2017 subscrição sob número de registo ... no valor de 28.000 EUR; - Analisa uma série de movimentos bancários realizados, de transferências da conta conjunta para a conta bancária do requerido; Conclui que devem esses valores dos Certificados de Aforro ser relacionados, considerando-se que o requerido os sonegou porque não ignorava que existissem como bem do casal. 12- Com data de 12/02/2025 foi proferida sentença, com seguinte teor decisório: “4. Decisão Pelos fundamentos expostos: Julgo parcialmente procedente a reclamação de bens produzida pela interessada BB contra a relação de bens apresentada pelo cabeça de casal AA e, em consequência, decido: 1. Pelo relacionamento do mobiliário de escritório (secretária, móvel de arquivo, roupeiro, estante e candeeiro) no valor de €1.000,00; os eletrodomésticos da cozinha (arca congeladora vertical, máquina de lavar roupa, Bimby TM31 e loiças), a que se atribui o valor de 2.000,00€; móveis do hall de entrada (espelho, móvel, mesa de madeira e pedra, bengaleiro e banco, a que atribui o valor de 1.000€); 2. Pela exclusão da verba n.º 4 do passivo (dívida contraída pela Requerente a favor do Requerido, na quantia global de €5.000,00 (cinco mil euros); 3. Pelo relacionamento dos certificados de aforro, subscritos no dia 05/06/2017, no montante de 10.000 EUR (dez mil euros), sob o número ..., e no dia 27/10/2017, no montante de 28.000 EUR (vinte e oito mil euros), sob o número de registo .... 4. Julgo verificada a sonegação dos bens, pela não relacionação dos certificados de aforro referidos em 3) supra e, em consequência, declara-se a perda em benefício da interessada do direito do cabeça-de-casal sobre o valor de €38.000,00 (trinta e oito mil euros). No mais, improcedendo a reclamação.” 13- Inconformado, o requerido cabeça de casal interpôs o presente recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES: 1.ª O presente recurso tem por objeto a douta sentença proferida em 12.02.2025, na parte em que julgou verificada a sonegação de bens por parte do Recorrente relativamente aos certificados de aforro subscritos em 05/06/2017 e 27/10/2017, no valor total de €38.000,00, e aplicou a correspondente sanção prevista no n.º 1 do artigo 2096.º do Código Civil. 2.ª A sentença recorrida foi proferida sem que tenha havido qualquer audiência de julgamento onde pudessem ser produzidas provas e exercido o contraditório relativamente à questão da sonegação, o que constitui uma violação do direito a um processo equitativo. 3.ª A sentença recorrida, sem qualquer produção de prova em sede de julgamento, assumiu erroneamente que os valores utilizados para a aquisição dos certificados de aforro provinham da conta conjunta do casal, quando na verdade esses valores eram provenientes de contas próprias do Recorrente e do seu pai, e resultaram do vencimento e reaplicação de certificados anteriores ao casamento, não tendo sido dada ao Recorrente a oportunidade de apresentar prova documental (extratos bancários) que demonstrasse a real proveniência destes fundos. 4.ª A dinâmica financeira do casal durante o matrimónio caracterizava-se por uma clara separação patrimonial, sendo a conta conjunta utilizada essencialmente para o pagamento das prestações do crédito à habitação e despesas domésticas básicas, alimentada predominantemente pelo ordenado do Recorrente, enquanto o ordenado da Requerente nunca foi depositado na conta conjunta. 5.ª Por simples cálculo aritmético, os valores para aquisição dos certificados (€38.000,00) não poderiam provir dos rendimentos do trabalho do ex-casal depositados na conta conjunta, dada a finalidade específica dessa conta (pagamento do crédito habitação e despesas domésticas) e a inexistência de margem para acumulação de poupanças de tal montante. 6.ª A sonegação de bens, nos termos do artigo 2096.º do Código Civil, exige a verificação cumulativa de dois requisitos: (i) um elemento objetivo, consistente na ocultação ou omissão de bens que devem ser relacionados; e (ii) um elemento subjetivo, traduzido no dolo, ou seja, na intenção deliberada de subtrair esses bens à partilha. 7.ª O Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 29-05-2012 (Proc. 2220/07.2TBGMR.G1.S1), definiu que "a sonegação é o ato doloso de quem possui bens de uma herança e cala, dissimula ou nega a sua existência, com intenção de se apropriar deles", definindo como elemento essencial a intenção deliberada e dolosa. 8.ª Conforme doutrina de Pires de Lima e Antunes Varela, "não haverá sonegação quando a falta de descrição resultar não do intuito de defraudar os demais interessados, mas de erro, ignorância ou desconhecimento da sua existência" (in "Código Civil Anotado", Vol. VI, 1998, p. 174). 9.ª No caso concreto, não foi produzida qualquer prova que demonstre que o Recorrente agiu com dolo, ou seja, com a intenção deliberada de ocultar os certificados de aforro, sendo esta prova imprescindível à luz da jurisprudência consolidada dos tribunais superiores. 10.ª O Recorrente tinha conhecimento da existência dos certificados de aforro, mas entendia convictamente que estes eram seus bens próprios e não bens comuns, pelo que não os incluiu na relação de bens do inventário. 11.ª Esta convicção do Recorrente baseava-se no seu histórico patrimonial, sendo detentor de certificados de aforro série B (18.732 unidades, valor €50.375,31) desde 24/01/2005, data anterior ao casamento, constituindo inquestionavelmente bens próprios nos termos do artigo 1722º, nº 1, alínea a) do Código Civil. 12.ª Os certificados de aforro objeto do presente recurso (no valor de €38.000,00) resultaram do vencimento e reaplicação dos certificados série B anteriores ao casamento (no valor aproximado de €50.000,00), mantendo assim sua natureza de bem próprio, em conformidade com o princípio da sub-rogação real. 13.ª Adicionalmente, o Recorrente havia recebido certificados série C por via de doação, subscritos pela sua mãe, CC, em 04/07/2014, constituindo bens próprios por via de doação, conforme entendimento doutrinal e jurisprudencial pacífico. 14.ª De acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02-12-2020 (proc. 69/15.0T8PVZ.P1), "não se pode afirmar a existência de sonegação de bens, se a não inclusão na relação de bens se ficou a dever a erro ou negligência e não a intenção deliberada de subtrair à partilha". 15.ª O Recorrente não agiu com a intenção de ocultar, mas sim por saber com certeza que os certificados de aforro são bens próprios, não integrando o acervo patrimonial comum a partilhar, posição que seria comprovada se tivesse sido realizado julgamento para produção de prova. 16.ª Conforme ensina Pamplona Corte-Real, "não admitir-se o erro de direito, eventualmente de facto, sobre a natureza própria ou comum de bens, como fator excludente do dolo específico da sonegação, conduziria a resultados iníquos e contrários à própria teleologia do instituto" (in "Direito da Família e das Sucessões", Lisboa, Lex, 1996, p. 308). 17.ª Importa salientar que, relativamente aos certificados de aforro, não foi seguido o procedimento legal de quebra de sigilo bancário que foi instaurado para as contas bancárias pessoais do Recorrente, o que coloca em causa a legalidade da prova obtida. 18.ª O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido nestes mesmos autos em 11/05/2023 já havia apreciado a questão dos produtos financeiros, tendo concluído expressamente que não se justificava a derrogação do dever de segredo bancário para acesso a informações sobre contas e produtos financeiros do Recorrente. 19.ª Na inexplicável ausência de julgamento, o Recorrente foi privado do seu direito fundamental de produzir prova, tendo sido impedido de demonstrar através de extratos bancários que os valores utilizados na aquisição dos certificados de aforro provinham inequivocamente de contas próprias suas e do seu pai, e não da conta conjunta do casal, o que comprovaria a natureza própria destes bens. 20.ª O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18-11-2021 (Proc. 20642/16.0T8LSB.L1-2), concluiu expressamente que "sem a prova do elemento subjetivo da sonegação -- o dolo -- não pode ser declarada verificada a sonegação de bens, pelo que a simples omissão da inclusão de determinados bens na relação não é suficiente para se poder falar em sonegação". 21.ª O Recorrente afirma categoricamente que os certificados objeto deste recurso são bens próprios, e não comuns, sendo que, por simples cálculo aritmético, os valores para a sua aquisição não poderiam provir dos rendimentos do trabalho do ex-casal depositados na conta conjunta, mas sim de heranças e doações familiares, seguindo o mesmo padrão dos outros certificados de titularidade inequivocamente própria, fato que seria facilmente comprovado através dos extratos bancários das contas de origem dos fundos. 22.ª Assim, a douta sentença recorrida enferma de erro de julgamento quanto à verificação dos pressupostos da sonegação de bens, designadamente quanto ao elemento subjetivo (dolo) imprescindível para a aplicação da sanção prevista no artigo 2096.º do Código Civil. 23.ª Em consequência, deve a douta sentença recorrida ser revogada na parte em que declara a sonegação de bens e aplica a correspondente sanção civil, determinando-se o reconhecimento dos certificados de aforro como bens próprios do Recorrente ou, subsidiariamente, a remessa do processo à primeira instância para realização de julgamento com produção de prova sobre a natureza dos bens e origem dos fundos utilizados na sua aquisição. Nestes termos e nos melhores de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a douta sentença recorrida na parte em que declara a sonegação de bens e aplica a correspondente sanção civil prevista no artigo 2096.º do Código Civil, determinando-se que os certificados de aforro sejam reconhecidos como bens próprios do Recorrente ou, subsidiariamente, que o processo seja remetido à primeira instância para que seja realizado julgamento com produção de prova sobre a natureza dos certificados de aforro e a origem dos fundos utilizados na sua aquisição. 14- A requerente/apelada, contra-alegou, apresentando as seguintes CONCLUSÕES: a) Veio o Cabeça de Casal apresentar recurso da sentença proferida em 12/02/2025, na parte em que julgou verificada a sonegação de bens por parte do mesmo, ora recorrente, relativamente aos cerficados de aforro subscritos em 05/06/2017 e 27/01/2017, no valor total de 38.000,00 euros, e aplicou a sanção prevista no n.º 1 do argo 2096.º do Código Civil. b) Alegando, em suma, que a sentença/despacho enferma erro de julgamento quanto à verificação dos pressupostos da sonegação de bens, designadamente quanto ao elemento subjetivo – dolo; que a mesma foi proferida sem audiência de julgamento e bem assim sem produção de prova, pelo que entende ter existido violação do direito ao contraditório, em que procuraria afastar o dolo e ainda referir uma alegada situação de inadmissibilidade da prova documental por violação do sigilo bancário. c) Não pode a recorrida concordar com tais entendimentos. d) Foram as partes notificadas para exercício do direito ao contraditório da informação apresentada pelo IGCP – Instituto de Gestão da Dívida Pública – relativamente a produtos financeiros existentes durante o matrimónio e concretamente na data relevante para cessação dos efeitos patrimoniais do casamento. E concretamente “valores existentes às datas de 24/01/2005 e 23/09/2020”. e) As partes pronunciaram-se em 16/12/2024 (o recorrente) e em 22/12/2024 (a interessada) e a decisão recorrida é de 12/02/2025. f) No requerimento da aqui interessada foi suscitada e alegada – pela primeira vez de forma expressa – a questão da sonegação de bens e embora o recorrente tenha sido notificado, na pessoa da sua mandatária, do referido requerimento, nada disse. g) Se é certo que as normas processuais proíbem as “respostas a respostas”, resulta também evidente que sendo suscitada uma nova questão – em especial desta relevância – cabe à parte, no prazo geral para exercício do contraditório, responder – pela primeira vez, pois nunca havia sido levantada tal questão – ao quanto alegado. h) O que não aconteceu, pois, o recorrente permaneceu em silêncio. No limite, sempre se dirá que cabia ao recorrente, no mínimo, manifestar a sua oposição e formalizar – eventualmente requerendo fosse notificado diretamente para o efeito – o seu intuito de apresentar uma resposta. i) O recorrente teve oportunidade de exercer o contraditório e entendeu não o fazer. j) A sonegação consiste na não declaração da existência do bem, com desígnio fraudulento da sua apropriação, sendo propósito do instituto o de “reprimir a violação intencional da verdade na declaração dos bens que constituem” o acervo a partilhar. k) O recorrente sempre soube da existência dos bens, e nunca tentou sequer provar que não se tratasse de bem próprio, ou de terceiro. l) Facto é que as quantias saíram da conta bancária – bem comum do ex-casal – e foram usadas para subscrever cerficados de aforro, apenas do conhecimento e gestão do recorrente. m) Resultando provado que os valores correspondentes aos cerficados de aforro subscritos pelo recorrente provinham de conta de que a interessada era contitular e era integrada por dinheiro pertencente a ambos. n) O recorrente ocultou um bem que pertencia ao acervo comum, omitindo a existência e não relacionando. o) Existindo coincidência de datas e valores. p) Verificam-se, cumulativamente, os dois requisitos de que depende o instituto da sonegação de bens: i) A ocultação de bens que constituem património comum dos ex-cônjuges, tendo o Cabeça de Casal atuado por omissão de modo a ocultar quando tinha o dever de declarar; e ii) O dolo na ocultação, uma vez que o Cabeça de Casal tinha conhecimento – até porque representado por advogada – o dever de relacionar, tendo existindo vontade expressa de não o fazer e de os subtrair à partilha. q) Acresce que o recorrente limita-se a alegar, não indicando, sequer, de que conta bancária alegadamente saíram os montantes em causa. r) E bem assim não esclarece quando foi constituída essa alegada conta bancária, com que montantes era provisionada… nada fica esclarecido. s) E diga-se, ainda, relativamente à alegada “organização financeira do casal”, que independentemente da forma como o ex-casal se organizasse, designadamente quanto ao pagamento das despesas correntes, em nada tal colide com o regime de bens estabelecido – comunhão de adquiridos. t) Vem ainda o Cabeça de Casal alegar que “a informação relava aos cerficados de aforro foi obtida junto do IGCP sem prévia autorização do Recorrente, o que suscita questões quanto à legalidade da prova” u) Efectivamente, o IGCP prestou informações aos autos, sendo certo que as mesmas se referem a produtos financeiros – cerficados de aforro – em nome do Cabeça de Casal. Certamente não esperaria o próprio que fosse o IGCP a aferir da natureza de bem próprio ou comum das contas bancárias… v) Em qualquer caso, é extemporânea esta alegação, ainda que nem sequer seja declaradamente arguida a inadmissibilidade da prova, pois só anos depois de ter tomado conhecimento da situação – e após uma decisão que lhe é desfavorável – é que o recorrente entende tecer tais considerações. w) O segredo bancário não tem carácter absoluto, não prevalecendo sempre sobre todo e qualquer outro dever conflituante. x) O dever de colaboração com a administração da justiça tem por finalidade a satisfação de um interesse público, que é o da realização da justiça. y) Naturalmente, o processo de inventário tem como escopo conseguir o rigoroso apuramento – para lograr obter a sua subsequente distribuição de forma equitativa - dos bens que constituem o acervo patrimonial comum, sendo que, para esse rigoroso apuramento torna-se indispensável que as entidades bancarias satisfaçam o solicitado pelo Tribunal, prestando as informações necessários. z) Pelo que se entende que considerando os interesses potencialmente em causa, e de harmonia com o princípio da prevalência do interesse preponderante e com um critério de proporcionalidade na restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, a conclusão a que se chega é a de que, a não satisfazer o solicitado pelo Tribunal, poderão ficar gravemente prejudicados os legítimos interesses que o processo em causa visa satisfazer. aa) Ainda assim, sempre sem conceder, pois não é certamente o recurso a que ora se responder o meio – e muito menos está em tempo – para alegar tal inadmissibilidade de prova. bb) Não foram violadas quaisquer normas legais. cc) Não merece censura o decidido pelo tribunal a quo, porquanto foram respeitados os preceitos legais aplicáveis, não restando dúvidas quanto à adequação e bondade do decidido. NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO E COM O SEMPRE DOUTO SUPRIMENTO DE V EXAS DEVERÁ SER NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO QUE ANTECEDE, CONFIRMANDO-SE A SENTENÇA. *** II-FUNDAMENTAÇÃO. 1-Objecto do Recurso. 1-É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC) e, ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida. Assim, em face das conclusões apresentadas pelo recorrente, são as seguintes a questões que importa analisar e decidir: a)- Se há fundamento para revogar a parte da sentença sob impugnação em termos de considerar que os Certificados de Aforro (38 000 unidades) são bem próprio do requerido/apelante; b)- Subsidiariamente, determinar a baixa dos autos à 1ª instância para produção de prova sobre a origem dos fundos utilizados na respectiva aquisição. *** 2- Matéria de Facto. A 1ª instância decidiu a seguinte matéria de facto, de resto, não impugnada: Factos provados: 3.1. Os interessados BB e AA, nomeado cabeça de casal, casaram um com o outro, sem convenção antenupcial, no dia 24 e janeiro de 2005. 3.2. O interessado AA intentou contra a ora requerente BB, ação de divórcio com processo especial, cuja petição inicial deu entrada na secretaria deste tribunal no dia 23 de setembro de 2020, pedindo o decretamento do divórcio entre ambos. 3.3. Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido a 8 de junho de 2021, na ação acima referida, decretou-se o divórcio entre os ora interessados, declarando-se dissolvido o seu casamento. 3.4. No divórcio as partes chegaram a acordo sobre o destino da casa de morada de família, nos seguintes termos: “A utilização da casa de morada de família ficará atribuída ao Requerente marido, sem o pagamento de qualquer contrapartida, para nela residir até à venda da mesma (…) 3.5. No divórcio as partes chegaram a acordo sobre a relação especificada dos bens comuns, nos seguintes termos: “verba n.º 1 Fração autónoma designada pela letra “R”, correspondente ao quinto andar letra B do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua 1, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito sob o n.º ... na CRP de Lisboa, com o valor patrimonial de 109.013,03€. Verba n.º 2 Veículo automóvel, com a matrícula ..-ZE-.., marca Toyota, modelo C-HR, a q ue atribuem o valor de 30.500,00€” 3.6. As partes, para além dos bens móveis descritos na verba n.º 2 da relação de bens (mobília da sala de estar, mobília do quarto de casal, mobília do quarto da DD), adquiriram bens móveis na constância do casamento, para mobilar e equipar a casa de morada de família, a saber: a) o mobiliário de escritório (secretária, móvel de arquivo, roupeiro, estante e candeeiro) a que se atribui o valor de 1.000,00€; b) os eletrodomésticos da cozinha (arca congeladora vertical, máquina de lavar roupa, Bimby TM31 e loiças), a que se atribui o valor de 2.000,00€; c) móveis do hall de entrada (espelho, móvel, mesa de madeira e pedra, bengaleiro e banco, a que atribui o valor de 1.000€). 3.7. Os interessados são cotitulares de uma conta no Novo Banco, conta à ordem n.º ..., cujo saldo era, à data de 23-09-2020, no valor de 241,66€ e de uma conta poupança n.º ..., com saldo 0,00, à data de 23-09-2020. 3.8. A 11.05.2020 o cabeça de casal transferiu para a interessada o valor de €5.000,00. 3.9. Na constância do casamento o cabeça de casal subscreveu certificados de aforro na data de 5/06/2017 sob o número ... no valor de 10.000 EUR e certificados de aforro na data de 27/10/2017, sob número de registo ..., no valor de 28.000 EUR, com valores retirados da conta bancária conjunta, titulada por ambos. * Não provados: 1. Que o comprovativo da transferência de €5.000,00 à data de 11-05-2020 respeita ao reembolso do valor acordado entre ambos os interessados, aquando do processo de divórcio, como contrapartida do valor gasto por ambos na remodelação e mobiliário da sala da casa de morada de família. 2. Que o casal gastou aproximadamente 10.000,00€ em móveis diversos, estofagem de maple e compra de aparador, três cadeiras e uma televisão, suportando custos de pinturas e arranjos de parede, no ano de 2019. 3. Que o cabeça de casal emprestou à interessada o valor de €5.000,00, a 11.05.2020, quando já não se encontravam juntos. 4. Que tal empréstimo se verificou porque a Requerente disse precisar do dinheiro, para a casa onde iria residir com a filha de ambos. 5. Que existam aplicações e produtos financeiros constituídas com dinheiros comuns, resultantes dos rendimentos do trabalho dos então cônjuges e das poupanças feitas com base nos mesmos, no valor de 189.194,49 €, nas instituições financeiras SEMAPA – Sociedade de Investimento e Gestão SGPS, SA, CUF SA, HAITONG BANK, SA, GNB – Sociedade Gestora de Patrimónios, SA. 6. Que o Requerido deve à Requerente o valor de 1.720,59 €, relativo ao reembolso do IRS referente aos rendimentos do ano de 2019. 7. Que, a partir de junho de 2021, o Requerido passou a receber a totalidade das rendas geradas pelo imóvel descrito como verba n.º 1, apurando-se a este título um direito de crédito da Requerente sobre o Requerido com o valor de 1.060€. 8. Que na constância do casamento o casal tenha adquirido três quadros e duas serigrafias de Nadir Afonso, com o valor unitário de 2000€ e o valor global de 10.000€. 9. Que a arca congeladora tenha sido doada ao cabeça de casal pelo seu pai. 10. Que a Bimby TM31 tenha avariado. *** 3- As Questões Enunciadas. 3.1- Se há fundamento para revogar a parte da sentença sob impugnação em termos de considerar que os Certificados de Aforro (38 000 unidades) são bem próprio do requerido/apelante. O apelante elenca vários fundamentos para ver alterada a sentença na parte em que decidiu pelo relacionamento, como bem comum do ex-casal, de 38 000 certificados de aforro, com valor de 38 000€ e, julgou verificada a sonegação desses bens e declarou a perda, em benefício da interessada, do direito do cabeça de casal em relação a esses bens. Assim, invoca: a)-Que a decisão sobre a sonegação foi tomada sem produção de prova e sem exercício do contraditório; b)- Falta de prova de o requerente ter agido com dolo na não relacionação; c)- A informação dada pelo IGCP não foi precedida de prévia autorização, o que coloca em causa a legalidade da prova. Vejamos então. 3.1.1- Da invocada violação do princípio do contraditório. Entende o apelante que a decisão que julgou verificada a sonegação dos 38 000 certificados de aforro e declarou a perda, a favor da requerente, do direito do cabeça-de- casal sobre o valor desses certificados de aforro, foi tomada sem produção de prova e sem exercício do contraditório. Pois bem, salvo o devido respeito não tem o apelante, neste aspecto, razão. Na verdade, logo no requerimento apresentado em 26/04/2022, a requerente/apelada deduziu reclamação contra a relação de bens e arguiu a sonegação de bens pelo requerido, pugnando pela aplicação do artº 2096º nº 1 do CC. E nesse mesmo requerimento, solicitou que o requerido/cabeça-de-casal/apelante apresentasse documentos, designadamente extractos bancários e informações do IGCP. O requerido, teve oportunidade de responder à invocada falta de relação e de sonegação de bens e fê-lo pelo requerimento de 30/05/2022, negando que os bens sejam comuns. Arrolou testemunhas e requereu a prestação de declarações de parte. Portanto, logo por aqui se verifica que o requerido exerceu o contraditório à falta de relacionação e sonegação de bens e, ofereceu os meios de prova que entendeu. Ora, porque o requerido não juntou documentação relativa aos certificados de aforro, a 1ª instância, por despacho de 23/09/2022, oficiou, além do mais, ao IGCP para que informasse da existência de quaisquer produtos titulados pelo requerido, desde 14/01/2005 até 23/09/2020, indicando o valor contratado, data da contratação, o respectivo saldo a 23/09/2020 e data de eventual resgate anterior. Esse despacho foi notificado a cada uma das partes por acto de 27/09/2022. E nem a requerente nem o requerido reagiram contra esse despacho. Se o requerido entendia que a prestação dessa informação poderia constituir prova ilegal, deveria ter reagido, oportunamente, contra a ela: note-se que o artº 644º nº 2, al. d), ex-vi do artº 1123º nº 1, facultava-lhe a possibilidade de recurso imediato da determinação desse meio de prova. Prosseguindo. Por despacho de 03/12/2024, foi notificada às partes o teor da informação prestada pelo IGCP sobre a existência de certificados de aforro da titularidade do requerido/apelante e, foi-lhes dada a oportunidade para exercerem o contraditório quanto a essas informações. Ambas as partes se pronunciaram, sendo que o requerido o fez em 16/12/2024 e, não ofereceu quaisquer provas, como lho permitia o artº 1105º nº 2 do CPC. Á vista deste desenvolvimento processual, decorre, com clareza, que ao requerido foi dada oportunidade de exercer o contraditório à alegação de falta de relacionação e de sonegação de bens, como, efectivamente, o exerceu nos termos que entendeu. Se necessidade de outros considerandos, conclui-se que não pode proceder a alegação do requerido/apelante de violação de direito ao contraditório. 3.1.2- Da ilegalidade da prova por meio de informação prestada pelo IGCP. Invoca, igualmente, o requerido/apelante que a informação dada pelo IGCP não foi precedida de prévia autorização, o que coloca em causa a legalidade da prova. Igualmente aqui, salvo o devido respeito, somos a entender que o requerido apelante não tem razão. Na verdade, já acima se respondeu a esta questão: porque o requerido não juntou documentação relativa aos certificados de aforro, a 1ª instância, por despacho de 23/09/2022, oficiou, além do mais, ao IGCP para que informasse da existência de quaisquer produtos titulados pelo requerido, desde 14/01/2005 até 23/09/2020, indicando o valor contratado, data da contratação, o respectivo saldo a 23/09/2020 e data de eventual resgate anterior. Esse despacho foi notificado a cada uma das partes por acto de 27/09/2022. E, nem a requerente nem o requerido reagiram contra esse despacho. Se o requerido entendia que a prestação dessa informação poderia constituir prova ilegal, deveria ter reagido, oportuna e imediatamente, contra a ela: note-se que o artº 644º nº 2, al. d), ex-vi do artº 1123º nº 1, facultava-lhe a possibilidade de recurso imediato da determinação desse meio de prova. Não o fez oportunamente, não pode vir agora colocar em causa esse meio de prova. Saliente-se, ainda que de acordo com o artº 1105º nº 3 do CPC, o juiz tem o poder de determinar a realização de provas. Quer dizer, o juiz não está limitado pelos meios de prova indicados pelas partes nem está vinculado a realizar todas as provas solicitadas, bastando as que, no caso concreto, se antevejam como necessárias à semelhança do que está previsto no artº 986º nº 2 para os processos de jurisdição voluntária. (Cf. Geraldes/Pimenta/Sousa, CPC anotado, Vol. II, pág. 573, anotação 4). A esta luz chega-se à conclusão de não ser ilegal a prova obtida por meio de informação do IGCP. 3.1.3- Falta do requisito subjectivo (dolo) na sonegação. Finalmente, a invocada falta de prova de o requerente ter agido com dolo na não relacionação dos 38 000 certificados de aforro. O apelante expõe que o instituto da sonegação de bens é constituído por dois requisitos: i)- um objectivo, consistente na omissão de relacionação; ii) outro, subjectivo, traduzido no dolo ou intenção deliberada de subtrair esses bens à partilha. E que no caso dos autos não ficou provado o requisito subjectivo: que o requerido tenha agido com intenção de subtrair, deliberadamente, os 38 000 mil certificados de aforro à relação de bens. Vejamos. Concordamos com o apelante quando enuncia que o instituto da sonegação de bens impõe ou exige a verificação cumulativa de dois requisitos: a)- a sonegação e; b)- o dolo. Na verdade, estabelece o artº 2096º do CC, justamente com epígrafe “Sonegação de bens”: “1. O herdeiro que sonegar bens da herança, ocultando dolosamente a sua existência, seja ou não cabeça-de-casal, perde em benefício dos co-herdeiros o direito que possa ter a qualquer parte dos bens sonegados, além de incorrer nas mais sanções que forem aplicáveis. 2. O que sonegar bens da herança é considerado mero detentor desses bens.” O preceito é claro e tem aplicação às situações em que o herdeiro (seja ou não cabeça de casal) oculte bens dolosamente. Ou seja, a sonegação de bens da herança consiste na ocultação dolosa da existência de bens da herança. A doutrina e a jurisprudência são unânimes quanto a este entendimento. Na verdade, sem sermos exaustivos, podemos ver Rabindranath Capelo de Sousa (Lições de Direito das Sucessões, II vol., 1980, pág. 85) que esclarece “Exige-se, pois, nos termos do artº 253º do CC, a prática de sugestões ou artifícios com intenção ou consciência de enganar os co-herdeiros, ou actos de dissimulação do erro destes sobre a não existência de bens, bem como as sugestões, artifícios ou dissimulações empregues … resultem numa ocultação de bens da herança.” Na mesma linha, Lopes Cardoso (Partilhas Judiciais, Vol. I, 4ª edição, 1990, pág. 572) depois de analisar o instituto ao longo dos tempos, conclui “Em concordância com os princípios expostos, a reforma de 1961 tem como indispensável para a procedência da sonegação que esta tenha sido praticada com dolo. (…) Para que possa falar-se em sonegação de bens é mister que aquele que tem por obrigação de relacioná-los tenha em vista o apossamento ilícito ou fraudulento deles em detrimento dos demais herdeiros. Esta intenção é, por assim dizer, pedra de toque no aspecto considerado…”. Cristina Pimenta Coelho (CC anotado, AAVV, coord. Ana Prata, vol. II, 2017, pág. 1000) refere “A sonegação de bens consiste numa ocultação dolosa da sua existência, o que pressupõe, naturalmente, o dever de a declarar. (…) De destacar que só existe sonegação se a ocultação for dolosa (o mesmo se verifica aliás no artº 2086 a propósito das causas de remoção do cabeça de casal), não sendo relevante a actuação negligente. (…) devem ser abrangidas todas as modalidades de dolo, ou seja, quer o dolo directo, quer o necessário e o eventual.” De igual modo, na jurisprudência, o entendimento vai, unanimemente, no mesmo sentido. A título de exemplo: -STJ, de 28/04/2016 (Abrantes Geraldes, 155/11): “4. A sonegação de bens prevista no art. 2096º do CC pressupõe a prova de actos de ocultação dolosa de bens da herança por parte do herdeiro a quem é imputada.” - STJ, de 08/10/2019 (Maria João Vaz Tomé, 13452/15): “I - A sonegação de bens prevista no art. 2096.º, n.º 1, do CC, exige a verificação de dois requisitos: um, de natureza objectiva, traduzido na ocultação da existência de bens; outro, de natureza subjectiva, correspondente ao dolo na ocultação.” - STJ, de 27/02/2025 (Maria de Deus Correia, 6347/08): “I - Do disposto no artigo 2096.º do Código Civil, resulta que só uma atitude ilícita e dolosa por parte do herdeiro poderá integrar a qualificação de tal conduta como sonegação de bens.” -STJ, de 01/07/2010 (Serra Baptista, 1315/05): “3. A sonegação de bens, como fenómeno de ocultação de bens que é, pressupõe um facto negativo (uma omissão) e um facto jurídico de carácter positivo (o dever de declarar). 4. Podendo tais factos provir, quer do cabeça-de-casal, quer de qualquer herdeiro. 5. A omissão dos bens, ou mesmo a ocultação, têm de ser dolosas (dolo directo, indirecto ou eventual).” -TRP, de 24/10/2022 (Miguel Baldaia de Morais, 52552/21): “I - A sonegação de bens prevista no artigo 2096º, nº 1, do Código Civil, exige a verificação cumulativa de dois requisitos: (i) um de natureza objetiva, consistente na ocultação da existência de bens da herança, que pressupõe que o herdeiro (cabeça de casal, ou não) atuou, por ação ou omissão, de modo a ocultar a existência de determinados bens da herança, o dever de os declarar por parte do omitente e que essa atuação tenha por resultado a sua ocultação; (ii) e outro, de natureza subjetiva, correspondente ao dolo na ocultação, traduzido no conhecimento do herdeiro (cabeça de casal, ou não) de que os bens que devia relacionar/indicar pertencem à herança e na vontade de não declarar esses bens e de os subtrair à partilha.” -TRC, de 09/11/2022 (Henrique Antunes, 8/22): “I - A sonegação de bens consiste na ocultação dolosa, pelo herdeiro, esteja ou não investido no cargo de cabeça-de-casal, da existência de bens integrados na herança; II - É relevante qualquer forma de dolo, relevância que se explica pela eminência de um princípio sob cujo signo deve decorrer a partilha do património hereditário – o da equidade ou da justiça – que impõe que a ela sejam levados todos os bens existentes à data da abertura da sucessão.” Disto isto, vejamos o caso dos autos. A 1ª instância deu como provado, no que toca a esta problemática, que: “3.9. Na constância do casamento o cabeça de casal subscreveu certificados de aforro na data de 5/06/2017 sob o número ... no valor de 10.000 EUR e certificados de aforro na data de 27/10/2017, sob número de registo ..., no valor de 28.000 EUR, com valores retirados da conta bancária conjunta, titulada por ambos.” E percorrido todo o elenco dos factos provados (e não provados), nenhum deles se refere ao elemento subjectivo do instituto da sonegação: o dolo. A 1ª instância, para fundar a sua decisão de verificação da sonegação dos certificados de aforro, escreveu: “Apurou-se, porém, que os certificados de aforro no valor global de €38.000,00 foram subscritos pelo ex-cônjuge marido na pendência do casamento, que o pagamento da sua subscrição foi feito com dinheiro que se presume ser comum do casal e que o cabeça de casal não os relacionou. Em face do exposto, resulta que a Reclamante logrou provar que o cabeça de casal atuou, ocultando deliberadamente a existência destes certificados de aforro, sabendo que era sua obrigação legal proceder à sua relacionação e que atuou com a vontade de os subtrair à partilha, para seu proveito próprio. Estão assim provados os requisitos legais da sonegação de bens, por forma a justificar a aplicação ao CC da sanção civil contida no nº1 do citado art.º 2096º e consistente na perda, em benefício do outro interessado, do direito que teria aos bens que dolosamente ocultou, in casu, o montante de €38.000,00 (trinta e oito mil euros).” Salvo o devido respeito, não se vislumbra que a reclamante tenha provado o dolo/intenção de sonegar/ocultar os certificados de aforro. Seria necessário que se desse como provado a intenção de ocultar. O que não sucedeu. Aliás, da leitura da fundamentação da decisão da 1ª instância verifica-se que aquele requisito subjectivo, dolo, terá sido inferido (por presunção judicial?) do facto objectivo “omissão de relacionamento”. Impunha-se que se desse como provado que a não relacionação dos certificados de aforro foi propositada com intuito de, ocultando a sua existência, fazer seu o respectivo valor (veja-se, por exemplo, o acórdão da Relação do Porto, de 24/10/2022, acima mencionado, onde no elenco dos factos dados como provados consta: “A omissão dos certificados de aforro identificados no facto 1.h). foi propositada, tendo a cabeça-de-casal a intenção de ocultar a sua existência, por forma a poder, bem assim como o seu filho DD, deles usufruir em exclusivo, o que têm feito desde o levantamento dos certificados de aforro por este último, em conluio com aquela.” A esta vista, somos a concordar com o requerido/apelante quando alega a falta de prova do requisito subjectivo, dolo ou intenção de ocultar. Saliente-se que é pacífico o entendimento no sentido de caber ao alegante da sonegação o ónus de prova dos respectivos factos constitutivos: a não relacionação e o dolo de ocultação (Cf., entre outros, os acórdãos do TRP, de 24/10/2022, Miguel Baldaia de Morais; STJ, de 27/02/2025, Maria de Deus Correia); STJ, de 08/10/2019, Maria João Vaz Tomé). Assim sendo, sem a prova do referido requisito subjectivo, não pode permanecer a decisão da 1ª instância de verificação da sonegação dos certificados de aforro, nem a respectiva consequência sancionatória de perda, em benefício da requerente, do direito do cabeça-de-casal sobre o valor de 38 000 certificados de aforro. 3.1.4- Se há fundamento para revogar a sentença em termos de considerar que os certificados de aforro são bens próprios do requerido. O apelante fundava esta sua pretensão dizendo ter feito prova de a origem dos valores utilizados na subscrição de certificados de aforro ser bem próprio e, daí pugnar pela não relacionação dos certificados de aforro. Será assim? A resposta é simples: o requerido/apelante não impugnou a matéria de facto e, no ponto 3.9 dos factos provados, apurou-se que: “3.9. Na constância do casamento o cabeça de casal subscreveu certificados de aforro na data de 5/06/2017 sob o número ... no valor de 10.000 EUR e certificados de aforro na data de 27/10/2017, sob número de registo ..., no valor de 28.000 EUR, com valores retirados da conta bancária conjunta, titulada por ambos.” Tanto basta para concluir pela improcedência desta pretensão do apelante de os certificados de aforro constituírem bens próprios. 3.2- Quanto ao pedido subsidiário: ser determinada a baixa dos autos à 1ª instância para produção de prova sobre a origem dos fundos utilizados na respectiva aquisição. O apelante defende, subsidiariamente, que os autos devam baixar à 1ª instância para aí serem realizados actos de produção de prova de demonstração da origem dos fundos utilizados na aquisição dos 38 000 certificados de aforro. Pergunta-se: produção de que meios de prova? Pois bem, já acima tivemos a oportunidade de referir que o apelante, no despacho de resposta à arguição da falta de relacionação de bens e à invocação de sonegação de bens, se limitou a arrolar prova testemunhal e requereu as suas declarações de parte. Não juntou quaisquer documentos nem solicitou que fossem juntos pelo tribunal. Ora, o artº 1105º nº 2 do CPC determina que as provas são indicadas no requerimento (de oposição, reclamação impugnação e de sonegação) ou na respectiva resposta. Se o requerido não juntou quaisquer provas – além de uma testemunha e das suas declarações de parte, de que prescindiu posteriormente e, da prova testemunhal que foi produzida (acta de 01/10/2024) – e se o tinha de fazer no articulado de resposta (artº 1105º nº 2) que provas pretenderia o requerido produzir na 1ª instância? É óbvio que não há outras provas a produzir e, por conseguinte, não há fundamento para ordenar a remessa dos autos à 1ª instância para produção de provas. Em suma, o recurso procede parcialmente. *** III- DECISÃO. Em face do exposto, acordam os juízes desembargadores que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso parcialmente procedente e, por consequência, revogam a sentença sob impugnação somente no respectivo ponto 4, ou seja, na parte que em que julgou verificada a sonegação dos 38 000 certificados de aforro e declarou a perda em benefício da requerente do direito do cabeça de casal dobre o valor desses 38 000 certificados de aforro. Quanto ao mais, mantém o restante decisório da sentença sob impugnação. Custas, na fase de recurso, pelo requerido e pela requerente, na proporção de 50% para cada um deles. Lisboa, 11/09/2025 Adeodato Brotas Maria Teresa Mascarenhas Garcia Vera Antunes |