Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa  | |||
| Processo: | 
  | ||
| Relator: | CRISTINA ISABEL HENRIQUES | ||
| Descritores: |  CONCURSO DE INFRACÇÕES CRIME CONTRA-ORDENAÇÃO  | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/22/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: |  Sumário (da responsabilidade da Relatora): I. Entende este Tribunal que se a mesma conduta integra em simultâneo a prática de crime e de contra-ordenação, as regras do concurso impõem que o agente seja condenado pela incriminação mais grave, ou seja, pelo crime, sendo a punição pela contra-ordenação consumida pela punição do crime. II. Deste modo, tendo o arguido sido condenado pela prática do crime de homicídio por negligência, previsto e punido nos termos dos artigos 69º, nº 1, alínea b) e 137º, nº 1, por referência ao artigo 15º, alínea b), todos do Código Penal e por referência aos artigos 18º, nºs 1 e 4 e 24º, nºs 1 e 3, ambos do Código da Estrada, numa pena de prisão de 1 (um) ano e 6 (seis) meses; não deverá igualmente ser punido pela prática das contra-ordenações graves previstas e punidas pelo artigo 18º, nºs 1 e 4 do Código da Estrada, e pelo artigo 24º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada.  | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: |  Acordam em Conferência os Juízes da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa 1. Relatório Nos autos de processo comum com intervenção do Tribunal Singular com o n.º 54/23.1GTALQ.L1 foi proferida sentença na qual foi decidido: 1) condenar o arguido, AA, pela prática do crime de homicídio por negligência, previsto e punido nos termos dos artigos 69º, nº 1, alínea b) e 137º, nº 1, por referência ao artigo 15º, alínea b), todos do Código Penal e por referência aos artigos 18º, nºs 1 e 4 e 24º, nºs 1 e 3, ambos do Código da Estrada, numa pena de prisão de 1 (um) ano e 6 (seis) meses; 2) suspender a indicada pena de prisão pelo período de 2 (dois) anos; 3) condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir, pelo período de 6 (seis) meses, com a advertência de que, se não entregar a carta de condução na secretaria deste tribunal ou qualquer posto de polícia, em 10 dias a contar do trânsito da presente decisão, incorrerá na prática de um crime de desobediência, sem prejuízo da apreensão da mesma, (artigos 69º nº 3 do Código Penal e 500º nº 2 do Código de Processo Penal). Fica ainda o arguido advertido de que incorre num crime de violação de proibições ou interdições, caso venha a efectuar a condução de veículos, durante o período de inibição de conduzir. 4) condenar o arguido, AA, pela prática da contraordenação grave prevista e punida pelo artigo 18º, nºs 1 e 4 do Código da Estrada, numa coima de € 135,00 (cento e trinta e cinco) e numa sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias; 5) condenar o arguido, AA, pela prática da contraordenação grave prevista e punida pelo artigo 24º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada, numa coima de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) e numa sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias; 6) efectuar o cúmulo jurídico e condenar o arguido numa coima única no valor de €325,00 (trezentos e vinte e cinco euros); 7) condenar o arguido no pagamento das custas criminais, fixando a taxa de justiça na quantia de 1 (uma) UC; Não conformado, veio o arguido AA, melhor identificado nos autos, interpor recurso para este Tribunal, juntando, para tanto, as motivações que constam destes autos, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, concluindo nos seguintes termos, que se transcrevem: 1. Vem o arguido, ora Recorrente, recorrer de parte da sentença condenatória de que foi notificado, mormente, da condenação pela prática das duas contraordenações graves de que vinha sendo acusado pelo Ministério Público. 2. Vinha o arguido acusado da prática de: - um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 69º, nº 1, alínea b), 137º, nº 1, 13º e 15º do Código Penal e por referência aos artigos 18º, nºs 1 e 4 e 24º, nºs 1 e 3, ambos do Código da Estrada; - duas contraordenações graves, previstas e punidas pelos artigos 18º, nºs 1 e 4 e 24º, nºs 1 e 3 e 145º, nº 1, alínea e), todos do Código da Estrada. 2. Na sentença de que agora se recorre, entendeu o tribunal condenar o arguido nos seguintes termos: pela prática do crime de homicídio por negligência, numa pena de prisão de 1 (um) ano e 6 (seis) meses suspensa pelo período de 2 (dois) anos; condenou ainda o arguido na pena acessória de proibição de conduzir, pelo período de 6 (seis) meses e condenou ainda o arguido, ora Recorrente, AA, pela prática da contraordenação grave prevista e punida pelo artigo 18º, nºs 1 e 4 do Código da Estrada, numa coima de € 135,00 (cento e trinta e cinco) e numa sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias; e ainda pela prática da contraordenação grave prevista e punida pelo artigo 24º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada, numa coima de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) e numa sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias; efetuar o cúmulo jurídico e condenar o arguido numa coima única no valor de €325,00 (trezentos e vinte e cinco euros) 3. Entende o Recorrente que a parte da sentença de que agora recorre é ilegal e inconstitucional, por violação da lei e da constituição (art.29.º, n.º 5 da CRP). 4. A condenação do arguido pela prática das contraordenações de que vinha sendo acusado consubstancia vício de violação da lei, mais exatamente, das normas do concurso, que impõem que o agente seja condenado pela incriminação mais grave, ou seja, pelo crime, sendo a punição pela contraordenação consumida – consunção impura - pela punição do ilícito penal. 5. Na sentença, na fundamentação relativa ao crime de homicídio por negligência, teceu o tribunal a quo as seguintes considerações: “Veja-se também as invocadas normais do Código da Estrada e que foram violadas pelo arguido com a sua conduta, designadamente o artigo 18º, nº1, nos termos do qual “o condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste, tendo em especial consideração os utilizadores vulneráveis” e o artigo 24º, nº1, segundo o qual “o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”. Ademais, olhando aos factos dados como provados, verifica-se que resultou provado que ao actuar da forma supra descrita, o arguido procedeu de forma livre, conduzindo de forma desatenta e descuidada e não logrando controlar o veículo que conduzia no espaço livre e visível à sua frente, nem manter entre o seu veículo e o veículo que o precedia uma distância suficiente que permitisse evitar colisão em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade do mesmo, de modo a evitar o mencionado embate no veículo conduzido pelo ofendido, agindo sem o cuidado que o dever geral de prudência aconselha, omitido as precauções de segurança exigidas no exercício da condução, que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para evitar um resultado que podia e devia prever, mas que não previu, dando, assim, causa às lesões sofridas pela vítima BB, que foram causa adequada da sua morte, pelo que se preenche o tipo de negligência prevista na indicada alínea b) e assim considera-se verificado o elemento subjectivo deste tipo de crime. Uma vez que esse comportamento negligente do arguido se traduziu na morte de uma pessoa, neste caso da vítima BB, considera-se igualmente preenchido o elemento objectivo do tipo de crime em análise.” 6. Pelo que, para justificar e materializar a imputação ao Recorrente da prática do crime de homicídio por negligência, o tribunal de 1.ª instância procedeu à análise da violação pelo arguido do preceituado pelos artigos 18º nºs 1 e 4 e 24º nº1 e 3, ambos do Código da Estrada. 7. E concluiu pela verificação da prática do crime de homicídio por negligência por parte do arguido, por violação das normas do Código da Estrada supra melhor mencionadas. 8. O tribunal de 1.ª instância analisa novamente as referidas normas, e os mesmos factos praticados pelo Recorrente, cuja violação novamente lhe imputa, mas para levar a cabo uma segunda condenação, desta vez, pela prática contraordenacional. 9. Transcrevendo, a este respeito, as conclusões do tribunal na sentença recorrida: “Da contraordenação grave prevista e punida pelo artigo 18º, nºs 1 e 4 do Código da Estrada: Refere o artigo 18º, nºs 1 e 4 do Código da Estrada que: “1. O condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste, tendo em especial consideração os utilizadores vulneráveis. (…) 4. Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de (euro) 60 a (euro) 300”. * Pela observação da norma, verifica-se que o elemento objectivo desta contraordenação se preenche precisamente com a não manutenção da a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste. Ora, dos factos dados como provados verifica-se que o arguido não manteve essa distância, pelo que se encontra preenchido este elemento objectivo. * Por sua vez, o elemento subjectivo pode e para o que aqui releva, atenta a análise que já foi feita em cima relativamente à conduta do arguido, ser preenchido por negligência, sendo também aqui aplicável por força do disposto no artigo 133º do Código da Estrada, porquanto o arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado e para a qual tinha capacidade. Vejamos. Estando fora da equação a verificação de um comportamento doloso – com o que se concorda, uma vez que não resultou provada essa intenção – cumpre apreciar se se verifica, ou não, um comportamento negligente. Começando pelo conceito de negligência, tem-se em atenção que, de acordo com o disposto no artigo 15º do Código Penal, aplicável por força do artigo 32º do RGCO, considera-se que age com negligência quem não procede com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, o que tem como consequência a realização do facto proibido por lei. No presente caso, atento o que resultou provado, verifica-se um comportamento negligente, mais se atendendo ao artigo 133º do Código da Estrada, nos termos do qual “nas contraordenações rodoviárias a negligência é sempre sancionada”. Assim, face a tudo o exposto e à definição de negligência supra apresentada, conclui-se que o arguido actuou com negligência aquando da verificação da contraordenação em causa, verificando-se também preenchido o elemento subjectivo. Da contraordenação grave prevista e punida pelo artigo 24º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada Refere o artigo 24º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada que: “1. O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente. (…) 3. Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600”. * Pela observação da norma, verifica-se que o elemento objectivo desta contraordenação se preenche precisamente com a não manutenção de uma velocidade adequada a executar manobras em condições se segurança e que permitam fazer para o veículo no espaço livre e visível à sua frente. Ora, dos factos dados como provados verifica-se que o arguido não a sua conduta dessa forma, pelo que se encontra preenchido este elemento objectivo. * Por sua vez, o elemento subjectivo pode e para o que aqui releva, atenta a análise que já foi feita em cima relativamente à conduta do arguido, ser preenchido or negligência, sendo também aqui aplicável por força do disposto no artigo 133º do Código da Estrada, porquanto o arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado e para a qual tinha capacidade. Vejamos. Estando fora da equação a verificação de um comportamento doloso – com o que se concorda, uma vez que não resultou provada essa intenção – cumpre apreciar se se verifica, ou não, um comportamento negligente. Começando pelo conceito de negligência, tem-se em atenção que, de acordo com o disposto no artigo 15º do Código Penal, aplicável por força do artigo 32º do RGCO, considera-se que age com negligência quem não procede com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, o que tem como consequência a realização do facto proibido por lei. No presente caso, atento o que resultou provado, verifica-se um comportamento negligente, mais se atendendo ao artigo 133º do Código da Estrada, nos termos do qual “nas contraordenações rodoviárias a negligência é sempre sancionada” Assim, face a tudo o exposto e à definição de negligência supra apresentada, conclui-se que o arguido actuou com negligência aquando da verificação da contraordenação em causa, verificando-se também preenchido o elemento subjectivo. “ “10. Ora, se a violação das normas do Código da Estrada supra citadas foi dada como provada e levaram à condenação do arguido pelo ilícito criminal, então não podia o tribunal a quo, como fez, destacar novamente os exatos mesmos factos para condenar novamente o arguido, desta vez, pela prática de contraordenação. 11. Ao condenar, simultaneamente, e pelos mesmos factos, o arguido pela prática do crime de homicídio por negligência, previsto e punido nos termos dos artigos 69º, nº1, alínea b) e 137º, nº 1, por referência ao artigo 15º, alínea b), todos do Código Penal e por referência aos artigos 18º, nºs 1 e 4 e 24º nºs 1 e 3, ambos do Código da Estrada e ainda pela prática de duas contraordenações graves, previstas e punidas pelos artigos 18º, nºs 1 e 4 e 24º, nºs 1 e 3 e 145º, nº 1 alínea e), todos do Código daa Estrada, o tribunal a quo violou, de forma clara e flagrante, a norma constitucional que proíbe a dupla incriminação e o julgamento pela prática do mesmo crime, prevista no artigo 29º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa. 12. Se estamos perante factos que integram, em simultâneo, a prática de crime e de contraordenação, então ao abrigo das normas do concurso e em cumprimento do princípio do ne bis in idem, o arguido só pode ser condenado uma vez e pela incriminação mais grave, leia-se, pelo crime. 13. As normas sancionadoras aplicadas no caso pelo tribunal a quo, a título penal e contraordenacional, têm pressuposto um desvalor jurídico-social idêntico, pelo que a sanção por uma delas esgota o sentido de ilicitude da conduta do arguido. 14. Mais, foi a prática pelo agora Recorrente das referidas contraordenações - leia-se, não ter mantido a distância suficiente entre o seu veículo e o veículo que o precedia e não ter regulado a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, conseguisse, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente (previstas e punidas pelos artigos 18.º e 24.º do Código da Estrada), - que foram causa direta do embate que veio a provocar o dano morte, assumindo a prática das referidas contraordenações o fator determinante para que o tribunal de 1ª instância fundamentasse a negligência do crime. 15. A prática das contraordenações fundamentou a negligência do crime, materializando-a. 16. Assim, a situação de perigo que o legislador procurou tutelar pelas infrações contraordenacionais foi materialmente consumada pela prática do crime, não sendo possível dissociar as infrações. 17. Estamos perante um concurso aparente – na modalidade de consunção – entre o crime e a contraordenação, esgotando o crime o significado, efeito ou ilicitude da contraordenação, absorvendo-a e consumindo-a. 18 No caso, o Recorrente apenas poderia ter sido punido pelo crime, pelo que ao ter condenado o arguido pela prática do crime e das contraordenações o tribunal de 1.ª instância violou, de forma flagrante, o princípio ne bis in idem, tendo sido o Recorrente punido duplamente pela mesma conduta. 19. Neste sentido já se pronunciou o Tribunal da Relação de Coimbra, no seu Acórdão de 06/06/2018, onde pode ler-se no sumário: “Se a mesma conduta integra, em simultâneo, a prática de crime e de contra-ordenação, as regras do concurso impõem que o agente seja condenado pela incriminação mais grave, ou seja, pelo crime, sendo a punição pela contra- ordenação consumida - consunção impura - pela punição do ilícito penal.”. 20. Ora, revertendo tal entendimento ao caso concreto, concluímos que no caso em apreço, o arguido tem de ser absolvido da prática das contraordenações que lhe vêm imputadas, sendo apenas condenado pela prática do crime. 21. Ao ter condenado o Recorrente pela prática do crime de homicídio por negligência e ainda pela prática de duas contraordenações, pelos mesmos factos, proferiu o tribunal a quo, uma decisão que, com o devido respeito, é manifestamente ilegal e inconstitucional. 22. Pelo que desde já se requer a revogação parcial da sentença, devendo o recorrente ser absolvido da prática das duas contraordenações graves, previstas e punidas pelos artigos 18º, nºs 1 e 4 e 24º, nºs 1 e 3 e 145º, nº 1, alínea e), todos do Código da Estrada. Em obediência ao estatuído no artigo 412.º do Código de Processo Penal, cumpre ainda indicar: - As normas jurídicas violadas: 29.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa. * O recurso foi admitido e respondeu o Ministério Público, concluindo pela procedência do recurso nos seguintes termos: Vem o recorrente nas suas alegações invocar que as contraordenações estradais pelas quais veio a ser condenado se encontram numa relação de concurso aparente com o crime de homicídio por negligência pelo qual também foi condenado. Efetivamente, e sem descurar a posição jurisprudencial contrária, a nosso ver, assiste total razão ao recorrente, porquanto descendo à matéria de facto dada como provada verifica-se que as contraordenações praticadas pelo recorrente, isto é, não ter mantido a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade (artigo 18.º, n.º 1, do Código da Estrada) e não ter regulado a velocidade a que seguia de modo a fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente (artigo 24.º, n.º 1, do Código da Estrada), constituem o meio para a prática do crime de homicídio por negligência, o qual, por seu turno, surge como o crime-fim, ou seja, aquelas contraordenações constituem, face a tal ilícito principal, unicamente um meio de o realizar e nessa realização esgotam o seu sentido e os seus efeitos. Na verdade, resulta da matéria de facto a existência de uma conexão espácio-temporal das realizações típicas, isto é, uma contemporaneidade consequencial das ações contraordenacional e criminal, verificando-se uma relação de consunção do tipo legal de crime relativamente às contraordenações, e, desta maneira, por via deste concurso aparente de normas e da relação de consunção entre elas, apenas poderá prevalece o crime de homicídio por negligência. IV - CONCLUINDO: Deverá o recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser o arguido absolvido da prática da contraordenação grave prevista e punida pelo artigo 18.º, n.º 1, do Código da Estrada, e da prática da contraordenação grave prevista e punida pelo artigo 24º, n.º 1, do Código da Estrada, por as mesmas se encontrarem numa relação de concurso aparente com a prática de um crime homicídio por negligência, previsto e punido nos termos dos artigos 69.º, n.º 1, alínea b), e 137.º, n.º 1, por referência ao artigo 15.º, alínea b), todos do Código Penal e por referência aos artigos 18.º, n. os 1 e 4, e 24.º, n. os 1 e 3, ambos do Código da Estrada, em que o arguido foi condenado Nesta instância, foi cumprido o disposto no art. 416º nº 1 do Código de Processo Penal. A Digna Procuradora-Geral Adjunta proferiu parecer, pugnando pelo provimento do recurso, aderindo à fundamentação da Exma Procuradora da República. *** Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º nº 2 do CPP, foram os autos aos vistos e procedeu-se à Conferência. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. 2. Fundamentação: Cumpre assim apreciar e decidir. A decisão recorrida tem o seguinte teor: Dão-se como provados os seguintes factos que têm interesse para a decisão da presente causa: 1. No dia ... de ... de 2023, o ofendido BB conduzia o ciclomotor de matrícula ..-GE-.., no IC2, no sentido ..., a uma velocidade não concretamente apurada, usando, para o efeito, um capacete de protecção. 2. Na mesma faixa, circulava atrás o arguido, que conduzia o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ..-QI-.., também a uma velocidade não concretamente determinada. 3. No dia acima referido, o tempo estava seco, inexistindo quaisquer condições climatéricas adversas ou obstáculos que impedissem o arguido de avistar, em toda a sua largura e extensão, a via em que circulavam. 4. A referida estrada possui uma via de trânsito em cada sentido, separada por uma linha longitudinal descontinua, cujo piso é asfaltado e liso, encontrando-se em bom estado de conservação. Sucede, porém, que 5. Pelas 13h30, no Km 52,298, o arguido embateu com a parte frontal direita do veículo que conduzia na roda traseira do ciclomotor onde circulava BB. 6. Com a colisão, a roda do ciclomotor bloqueou e o ofendido foi projectado cerca de 2,60 metros, tendo ido embater com a cabeça no lado direito do vidro frontal (pára-brisas) do veículo conduzido pelo arguido, vindo após a cair no pavimento, no sentido da faixa onde seguiam, junto à linha de guia, onde ficou imobilizado. 7. Como consequência directa e necessária do embate, o ofendido sofreu lesões crânio encefálicas, torácicas e vertebro-medulares, nomeadamente: - Cabeça: escoriação na região parietal, com 12X10 cm; ferida contusa supraciliar esquerda, com 2X2cm de maiores dimensões; escoriação frontal esquerda, com 8X6 cm; escoriação na região malar esquerda, com 6X1,5 cm; escoriação na região mentoniana esquerda, com 4,5X2 cm; infiltração sanguínea subjacente à ferida contusa supracilar; hemorragia subdural perieto-temporo-occipital direita; edema ligeiro no encéfalo; - Toráx: fracturas dos 3.º e 7.º arcos costais anteriores, dos 2.º ao 8.º médios e dos 2.º ao 5.º posteriores, alguns com laceração pleural associada; - Coluna vertebral e medula: fracturas de C7 e D10, com exposição do canal medular. 8. Estas lesões determinaram, directa e necessariamente, a morte de BB. 9. Conhecedor do percurso, da sua configuração e das condições da via, ou pelo menos podendo, naquelas circunstâncias, apercebê-los, impunha-se ao arguido que mantivesse entre o seu veículo e o que o lhe precedia a distância suficiente para parar em segurança em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste e, bem assim, que mantivesse uma velocidade que lhe permitisse parar em espaço livre à sua frente, sem causar acidentes. 10. O arguido, contudo, não adoptou a conduta que lhe era exigível, como podia e devia, não agindo com o cuidado a que estava obrigado, dando causa ao embate do seu veículo no veículo do ofendido. 11. Independentemente de tal facto se ficar a dever, ora porque assim o quis, ora porque conduzia o veículo de uma forma desatenta, descuidada e temerária, o certo é que o arguido agiu com manifesta falta de consideração pelas normas legais relativas à circulação rodoviária. 12. Ao conduzir o veiculo identificado em 2 do modo e nas condições descritas, o arguido não agiu com a diligência e cautela que lhe eram exigíveis e que estavam ao seu alcance, omitindo o cuidado normal de prever as consequências da sua conduta, para evitar um resultado que podia e devia prever, dando assim causa às lesões para a vitima, que foram causa adequada da sua morte. 13. Sabia ainda o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. 14. O arguido não tem antecedentes criminais registados. (…) Perante os factos dados como provados, cumpre, agora, subsumi-los às normas do Direito Penal, por forma a decidir se deverá o arguido ser responsabilizado criminalmente pela prática de factos típicos, ilícitos e culposos. Assim, cumpre em primeiro lugar apreciar, através da análise dos factos dados como provados, se estes consubstanciam a prática de um ilícito típico, devendo assim apreciar-se se a conduta do arguido preenche objetiva e subjetivamente os elementos de um tipo legal de crime em causa e das contraordenações que lhe são imputadas. Ora, o Ministério Público imputou ao arguido, na sua acusação, a prática, em autoria material e na forma consumada, de - um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 69º, nº 1, alínea b), 137º, nº 1, 13º e 15º do Código Penal e por referência aos artigos 18º, nºs 1 e 4 e 24º, nºs 1 e 3, ambos do Código da Estrada; - duas contra-ordenações graves, previstas e punidas pelos artigos 18º, nºs 1 e 4 e 24º, nºs 1 e 3 e 145º, nº 1, alínea e), todos do Código da Estrada. Passemos então a analisar o quadro legal relativo ao tipo de crime e das contraordenações em causa, em simultânea análise com o caso concreto, de modo a averiguar a possível subsunção. Do crime de homicídio negligente Refere o artigo 137º, nº1 do Código Penal que: “1. Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. Após, refere o artigo 13º do Código Penal que: “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”. De seguida, refere o artigo 15º do Código Penal que: “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”. Por fim, refere o artigo 69º, nº1, alínea b) do mesmo Diploma que: “1. É condenado na proibição de conduzir veículos com motor ou na proibição de pilotar aeronaves com ou sem motor, consoante os casos, por um período fixado entre 3 meses e 3 anos quem for punido (…) b) Por crime cometido com utilização de veículo ou de aeronave com ou sem motor e cuja execução tiver sido por estes facilitada de forma relevante”. * Ora, o bem jurídico protegido no tipo de ilícito é a vida humana. * Neste seguimento, é perceptível pela observação das normas que o tipo objectivo da incriminação em causa se preenche com a violação de normas de cuidado a que, segundo as circunstâncias, o agente estaria obrigado e seria capaz e que tal resulte em morte. * Por sua vez, o tipo subjectivo da incriminação em causa pode ser preenchido apenas por negligência. * Assim, atento o exposto, por facilidade de análise e exposição, analisar-se-á a verificação de ambos os elementos em simultâneo. * O legislador pretendeu, com a presente norma, proteger o bem jurídico vida contra as agressões que surgem não como resultado de uma conduta dolosa do agente, mas de uma conduta negligente. Nos termos do artigo 13º do Código Penal, “só é punível o facto praticado com dolo, ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”, como ocorre no tipo legal em apreço. Conforme afirma Figueiredo Dias, em “Comentário Conimbricense do Código Penal”1 , o homicídio por negligência tornou-se um “fenómeno maciço, dadas as inúmeras fontes de perigo para a vida imanentes à «sociedade do risco» contemporânea”, referindo-se, designadamente à circulação rodoviária. Assim, a primeira questão a apreciar nos presentes autos é a de determinar se o arguido actuou com negligência, designadamente se, como melhor se verá, agiu violando o dever de cuidado que sobre ele impendia e se a morte da vítima lhe pode ser imputada. É assim necessário e essencial, desde logo, apreciar a figura da negligência. Antes de mais, cumpre referir que existe a negligência consciente e inconsciente, conforme é perceptível pela leitura da já mencionada norma, artigo 15º do Código Penal, tratando-se da primeira quando o agente "representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização" (alínea a) do artigo 15º) ou inconsciente se o agente "não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto" (alínea b) do artigo 15º). Ora, no caso dos autos, é desde logo manifesto, atentos os factos dados como provados que o arguido não previu a possibilidade de realizar um facto que fosse resultar no resultado típico do crime em apreço, morte. Pelo que, antes de mais, refere-se que não se verifica um caso de negligência consciente. É necessário assim averiguar da ocorrência da negligência inconsciente, ou seja, não admitindo a possibilidade da realização do resultado típico, mas sem o cuidado a que, segundo as circunstâncias estaria obrigado e era capaz. Veja-se também as invocadas normais do Código da Estrada e que foram violadas pelo arguido com a sua conduta, designadamente o artigo 18º, nº1, nos termos do qual “o condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste, tendo em especial consideração os utilizadores vulneráveis” e o artigo 24º, nº1, segundo o qual “o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”. Ademais, olhando aos factos dados como provados, verifica-se que resultou provado que ao actuar da forma supra descrita, o arguido procedeu de forma livre, conduzindo de forma desatenta e descuidada e não logrando controlar o veículo que conduzia no espaço livre e visível à sua frente, nem manter entre o seu veículo e o veículo que o precedia uma distância suficiente que permitisse evitar colisão em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade do mesmo, de modo a evitar o mencionado embate no veículo conduzido pelo ofendido, agindo sem o cuidado que o dever geral de prudência aconselha, omitido as precauções de segurança exigidas no exercício da condução, que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para evitar um resultado que podia e devia prever, mas que não previu, dando, assim, causa às lesões sofridas pela vítima BB, que foram causa adequada da sua morte, pelo que se preenche o tipo de negligência prevista na indicada alínea b) e, assim considera-se verificado o elemento subjectivo deste tipo de crime. Uma vez que esse comportamento negligente do arguido se traduziu na morte de uma pessoa, neste caso da vítima BB, considera-se igualmente preenchido o elemento objectivo do tipo de crime em análise. Da contraordenação grave prevista e punida pelo artigo 18º, nºs 1 e 4 do Código da Estrada Refere o artigo 18º, nºs 1 e 4 do Código da Estrada que: “1. O condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste, tendo em especial consideração os utilizadores vulneráveis. (…) 4. Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de (euro) 60 a (euro) 300”. * Pela observação da norma, verifica-se que o elemento objectivo desta contraordenação se preenche precisamente com a não manutenção da a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste Ora, dos factos dados como provados verifica-se que o arguido não manteve essa distância, pelo que se encontra preenchido este elemento objectivo. * Por sua vez, o elemento subjectivo pode e para o que aqui releva, atenta a análise que já foi feita em cima relativamente à conduta do arguido, ser preenchido por negligência, sendo também aqui aplicável por força do disposto no artigo 133º do Código da Estrada, porquanto o arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado e para a qual tinha capacidade. Vejamos. Estando fora da equação a verificação de um comportamento doloso – com o que se concorda, uma vez que não resultou provada essa intenção – cumpre apreciar se se verifica, ou não, um comportamento negligente. Começando pelo conceito de negligência, tem-se em atenção que, de acordo com o disposto no artigo 15º do Código Penal, aplicável por força do artigo 32º do RGCO, considera-se que age com negligência quem não procede com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, o que tem como consequência a realização do facto proibido por lei. No presente caso, atento o que resultou provado, verifica-se um comportamento negligente, mais se atendendo ao artigo 133º do Código da Estrada, nos termos do qual “nas contraordenações rodoviárias a negligência é sempre sancionada”. Assim, face a tudo o exposto e à definição de negligência supra apresentada, conclui-se que o arguido actuou com negligência aquando da verificação da contraordenação em causa, verificando-se também preenchido o elemento subjectivo. Da contraordenação grave prevista e punida pelo artigo 24º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada Refere o artigo 24º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada que: “1. O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente. (…) 3. Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600”. * Pela observação da norma, verifica-se que o elemento objectivo desta contraordenação se preenche precisamente com a não manutenção de uma velocidade adequada a executar manobras em condições se segurança e que permitam fazer para o veículo no espaço livre e visível à sua frente. Ora, dos factos dados como provados verifica-se que o arguido não a sua conduta dessa forma, pelo que se encontra preenchido este elemento objectivo. * Por sua vez, o elemento subjectivo pode e para o que aqui releva, atenta a análise que já foi feita em cima relativamente à conduta do arguido, ser preenchido por negligência, sendo também aqui aplicável por força do disposto no artigo 133º do Código da Estrada, porquanto o arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado e para a qual tinha capacidade. Vejamos. Estando fora da equação a verificação de um comportamento doloso – com o que se concorda, uma vez que não resultou provada essa intenção – cumpre apreciar se se verifica, ou não, um comportamento negligente. Começando pelo conceito de negligência, tem-se em atenção que, de acordo com o disposto no artigo 15º do Código Penal, aplicável por força do artigo 32º do RGCO, considera-se que age com negligência quem não procede com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, o que tem como consequência a realização do facto proibido por lei. No presente caso, atento o que resultou provado, verifica-se um comportamento negligente, mais se atendendo ao artigo 133º do Código da Estrada, nos termos do qual “nas contraordenações rodoviárias a negligência é sempre sancionada” Assim, face a tudo o exposto e à definição de negligência supra apresentada, conclui-se que o arguido actuou com negligência aquando da verificação da contra-ordenação em causa, verificando-se também preenchido o elemento subjectivo. *** Mais se acrescenta que o arguido agiu de forma livre e com consciência de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, ou seja, agiu culposamente, pelo que, dúvidas não restam que o mesmo deverá ser responsabilizado pela conduta que adoptou, que foi contra as regras do direito penal e contraordenacional e da convivência em sociedade, quando, por outro lado, poderia ter conformado o seu comportamento de acordo com as mesmas. Conclui-se assim que, de acordo com a factualidade dada como provada e a apreciação aqui efectuada, inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, subsume-se as condutas descritas à prática de: - um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 69º, nº 1, alínea b) e 137º, nº 1, por referência ao artigo 15º, alínea b), todos do Código Penal e por referência aos artigos 18º, nºs 1 e 4 e 24º, nºs 1 e 3, ambos do Código da Estrada; - uma contraordenação grave prevista e punida pelo artigo 18º, nºs 1 e 4 do Código da Estrada; - uma contraordenação grave prevista e punida pelo artigo 24º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada. (…) ii. Determinação da medida concreta da pena Ponderando todos estes factores, as exigências de prevenção geral e especial, a culpa e as condições pessoais do arguido, o tribunal entende por ajustada e adequada a seguinte pena: - pena de prisão de 1 ano e 6 meses pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 69º, nº 1, alínea b) e 137º, nº 1, por referência ao artigo 15º, alínea b), todos do Código Penal e por referência aos artigos 18º, nºs 1 e 4 e 24º, nºs 1 e 4, ambos do Código da Estrada. (…) iv. da medida concreta das coimas O arguido vai ainda condenado pela prática de uma contraordenação grave prevista e punida pelo artigo 18º, nºs 1 e 4 do Código da Estrada e uma contraordenação grave prevista e punida pelo artigo 24º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada. A primeira contraordenação verificada e atentas as normas transcritas supra prevê uma coima de € 60,00 a 300,00 e a segunda uma coima de € 120,00 a € 600,00. Conforme se refere no artigo 18º, nº1 do Regime Geral das Contraordenações e das Coimas, “a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação”. Em concreto, refere-se no artigo 139º, nº2 do Código da Estrada que “na fixação do montante da coima, deve atender-se à gravidade da contraordenação e da culpa, tendo em conta os antecedentes do infrator relativamente ao diploma legal infringido ou aos seus regulamentos, e a situação económica do infrator, quando for conhecida”. Posto isto e atendendo ao que já foi sendo exposto sobre a conduta do arguido, designadamente a gravidade das consequências do incumprimento destas normas, a sua prática a título de negligência e a ausência de antessentes criminais e contraordenacionais, consideram-se adequadas as seguintes coimas: - coima de € 135,00 pela prática da contraordenação grave prevista e punida pelo artigo 18º, nºs 1 e 4 do Código da Estrada; e - coima de € 250,00 pela prática da contraordenação grave prevista e punida pelo artigo 24º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada *** Em suma, a única questão a decidir é a seguinte: Saber se tendo o arguido sido condenado pela prática do crime de homicídio por negligência, previsto e punido nos termos dos artigos 69º, nº 1, alínea b) e 137º, nº 1, por referência ao artigo 15º, alínea b), todos do Código Penal e por referência aos artigos 18º, nºs 1 e 4 e 24º, nºs 1 e 3, ambos do Código da Estrada, numa pena de prisão de 1 (um) ano e 6 (seis) meses; deveria igualmente ter sido punido pela prática das contra-ordenações graves previstas e punidas pelo artigo 18º, nºs 1 e 4 do Código da Estrada, numa coima de € 135,00 (cento e trinta e cinco) e numa sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias; e pelo artigo 24º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada, numa coima de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) e numa sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias; *** A questão prende-se com a difícil correlação entre o direito penal e contra-ordenacional, sendo certo que são cada vez mais as situações em que têm âmbitos de aplicação coincidentes. Com o crescimento do direito contra-ordenacional, é frequente que o mesmo facto jurídico seja punido por normas sancionatórias criminais e contraordenacionais, o que traz consigo o risco associado de uma dupla punição ou de um duplo julgamento, com a consequente violação do princípio ne bis in idem consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição Não obstante decorrer da letra do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, que o ne bis in idem se refere ao “mesmo crime”, tem sido pacífico o entendimento de que aquele princípio se estende, por analogia, aos demais ramos do direito sancionatório (máxime, ao direito de mera ordenação social e ao direito disciplinar), numa lógica interna, proibindo que dentro do mesmo sistema sancionatório se puna ou se julgue duplamente a mesma infração praticada pelo agente. De acordo com o Acórdão da Relação de Coimbra, de 06.06.2018, relatado pelo Senhor Desembargador Jorge França, se a mesma conduta integra, em simultâneo, a prática de crime e de contra-ordenação, as regras do concurso impõem que o agente seja condenado pela incriminação mais grave, ou seja, pelo crime, sendo a punição pela contra-ordenação consumida - consunção impura - pela punição do ilícito penal. A norma constitucional do artº 29.º, 5 da CRP proíbe a dupla incriminação e julgamento pela prática do mesmo crime. Crime, aqui, deve ser entendido como o substracto factual integrador da incriminação, pois que o julgamento não é pela prática de crimes mas sim pela prática dos factos em que eles se consubstanciam (daí ser até compreensível a permissão legal da alteração da incriminação, mesmo que os factos da acusação se mantenham inalterados). Se a mesma conduta integra em simultâneo a prática de crime e de contra-ordenação, as regras do concurso impõem que o agente seja condenado pela incriminação mais grave, ou seja, pelo crime, sendo a punição pela contra-ordenação consumida pela punição do crime. Estamos perante uma consunção impura pois que, apesar de a conduta do arguido ter integrado em simultâneo a prática dessa contra-ordenaçao, não pode ser por ela também condenado. Na verdade, resulta da matéria de facto a existência de uma conexão espácio-temporal das realizações típicas, isto é, uma coincidência das ações contraordenacional e criminal, verificando-se uma relação de consumpção do tipo legal de crime relativamente às contraordenações, e, desta maneira, por via deste concurso aparente de normas e da relação de consunção entre elas. De acordo com o Sr. Juiz Conselheiro Mota Pinto, no acórdão do processo n.º 143/04., de 14.04.2004: O princípio ne bis idem tem expressão constitucional na afirmação de que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” (artigo 29.º, n.º 5, da Constituição). Significa ele que os mesmos factos não podem ser valorados mais do que uma vez contra o mesmo agente; que o mesmo agente não pode ser punido mais do que uma vez pelos mesmos factos. Expressa, por isso, uma proibição de dupla valoração dos mesmos factos. O que releva, para efeitos da apreciação da violação do princípio, é a análise dos factos, ou seja, saber se estão a ser considerados mais do que uma vez os mesmos factos, em nada relevando o número de processos ou as entidades em que são instaurados os processos, para esse efeito. Num único e mesmo processo pode configurar-se uma violação do princípio ne bis in idem. Uma vez que, constituindo o mesmo facto simultaneamente crime e contra-ordenação, o agente é punido a título de crime, o processo que deve prosseguir é sempre o processo criminal. Também de acordo com o entendimento expresso no Ac da RP de 7/12/2018, CJ, XLIII, tomo V, pg. 179; Ao prever a aplicação da sanção acessória prevista para a contra-ordenação nos casos em que o mesmo facto constitui simultaneamente crime e contra-ordenação do Código da Estrada e o agente é punido a título de crime, o legislador não pretendeu criar urna situação de dupla punição. Aderindo aos fundamentos expressos nos doutos acórdãos supra citados, também este Tribunal entende que se a mesma conduta integra em simultâneo a prática de crime e de contra-ordenação, as regras do concurso impõem que o agente seja condenado pela incriminação mais grave, ou seja, pelo crime, sendo a punição pela contra-ordenação consumida pela punição do crime. Deste modo, tendo o arguido sido condenado pela prática do crime de homicídio por negligência, previsto e punido nos termos dos artigos 69º, nº 1, alínea b) e 137º, nº 1, por referência ao artigo 15º, alínea b), todos do Código Penal e por referência aos artigos 18º, nºs 1 e 4 e 24º, nºs 1 e 3, ambos do Código da Estrada, numa pena de prisão de 1 (um) ano e 6 (seis) meses; não deverá igualmente ser punido pela prática das contra-ordenações graves previstas e punidas pelo artigo 18º, nºs 1 e 4 do Código da Estrada, e pelo artigo 24º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada. Deverá, pois, o recurso ser julgado procedente. 3. Decisão: Assim, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, revogando-se a decisão na parte respeitante à condenação do arguido pelas contra-ordenações previstas e punidas nos artigos 18º, nºs 1 e 4 do Código da Estrada, e pelo artigo 24º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada. Sem custas. Notifique. Lisboa, 22 de Outubro de 2025 Cristina Isabel Henriques Rui Miguel Teixeira Francisco Henriques  |