Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa  | |||
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| Relator: | RUI VULTOS | ||
| Descritores: |  RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL PRESCRIÇÃO CRIME DE DIFAMAÇÃO ENTREVISTA ONLINE PROTECÇÃO DE DADOS DIREITO AO APAGAMENTO DIREITO AO ESQUECIMENTO  | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/23/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
| Sumário: |  Sumário:[1] I. A prescrição aplicável aos pedidos indemnizatórios cujos factos causais constituam crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é a que resultar deste prazo. II. Não se apurando pela análise dos factos provados que os mesmos se subsumem à prática de algum crime, vale apenas o prazo de três anos estabelecido no artigo no n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil. IV. Estando demonstrado que a pessoa visada não é uma figura pública e que determinada entrevista a terceiro se encontra ainda disponível no site de internet da R., entrevista na qual é referido o nome do A. associado à prática de factos desvalorados socialmente, ainda que se mencione tratarem-se de “intrigas”, este tem o direito de ver removida a menção do seu nome, ainda que aquelas referências, no caso concreto, não constituam factos ilícitos. [1] Da responsabilidade do Relator – artigo 663.º n.º 7 do Código do Processo Civil.  | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: |  Acordam os Juízes da 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório. […], intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, Juízo Local Cível, a ação de processo comum em epígrafe contra […] S.A., e […], pedindo que: “Se obtenha a correta e completa identificação dos Réus. Se citem os Réus, nos termos do n.º 1 do art.º 561 do CPC. Mais se requer a Vossa Excelência que a presente Acão seja considerada procedente por tempestiva e provada e assim: […] condenada a pagar-me a quantia de € 2.500 (Dois mil e quinhentos euros) a titulo dos danos não patrimoniais sofridos, como consequência da sua conduta, a que acrescem juros legais desde a data da publicação até integral pagamento. […], S.A., condenada a pagar-me a quantia de € 2.500 (Dois mil e quinhentos euros) a titulo dos danos não patrimoniais sofridos, como consequência da sua conduta, a que acrescem juros legais desde a data da sua notificação até integral pagamento. Retirado o meu nome ou qualquer referência que me identifique como indivíduo da peça jornalística “[…]”, da autoria da jornalista […], publicado online no jornal […], propriedade de […] S.A.. No mesmo articulado, alegou os factos que entendeu como pertinentes, os quais não se justificam referir aqui concretamente. Contestaram os RR. alegando as exceções de ilegitimidade e prescrição, bem como os factos que entenderam como adequados, concluindo: “Deve ser considerada como precedente a prescrição, que constitui uma exceção perentória, que implica a absolvição do pedido, nos termos do nº 3 do artigo 576º do CPC e a ilegitimidade das RR. o que constitui exceção dilatória, nos termos da alínea e) do artigo 577º do CPP e determina a sua absolvição da instância, em cumprimento do nº 2 do mesmo compêndio legal, com todas as consequências legais; Se assim se não entender, o que por mera cautela de patrocínio se admite, deve a presente ação ser considerada improcedente, por não provada e, em consequência, devem ser as RR. absolvidas do pedido; deve a A. ser condenada em custas do processo e procuradoria condigna, com todas as consequências legais”. Foi realizada a instrução dos autos bem como proferido despacho saneador no qual se fixou o valor da causa, se indeferiu a exceção da ilegitimidade e se relegou o conhecimento da prescrição para final. Procedeu-se à audiência de julgamento. Em 15 de dezembro de 2023 foi proferida a respetiva sentença. Esta sentença foi anulada por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Realizada nova audiência de julgamento foi proferida nova sentença, que decidiu: “Face ao exposto, julga-se a presente ação totalmente improcedente e, consequentemente, decide-se: Absolver as Rés de todos os pedidos formulados pelo Autor. Condenar o Autor no pagamento das custas processuais, as quais se fixam em 2 UC, nos termos do artigo 6.º, n.º 1 e Tabela I do Regulamento das Custas Processuais, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário”. É desta sentença que o A. veio apresentar o presente recurso por não concordar com a mesma de facto e de direito, concluindo pela revogação total daquela sentença e a condenação dos RR. no pagamento das quantias peticionadas a título de indemnização e, também, que as condene a retirar o nome e qualquer referência que identifique o mesmo da entrevista identificada nos autos. * São as seguintes as conclusões do recurso: 1. Os Factos Provados 18 e 37 e os Não Provados iii, iv, v, vi encontram-se incorretamente julgados; 2. Quanto ao Facto Provado 18, só poderia ter sido aditado como complemento ou concretização ao alegado no art.º 114.º da PI, porque não foi alegado pelo Recorrente, nem pelas Recorridas; 3. Contudo, não estão preenchidos os requisitos para esse aditamento nos termos da alínea c) do n.º 2 do art.º 5.º do Código do Processo Civil; 4. O Recorrente não alegou na PI a data em que teve conhecimento da existência da entrevista nem quando a leu (artigo 114.º da PI); 5. O Recorrente, em declarações de parte (Min. 22:36), referiu que tal ocorreu em 23 de Março de 2018; 6. Nas certidões das Queixa-crime, Acusação Particular e Decisão Instrutória (juntas em 17/11/2023 – ref. Citius 24477282), constantes do processo originado pela referida queixa contra o entrevistado, consta que o conhecimento ocorreu em 23 de Março de 2018; 7. Se o Tribunal a quo se baseou nas declarações do Recorrente, na prova documental e não há qualquer elemento probatório que os descredibilize, o facto provado 18. da Sentença encontra-se incorretamente julgado; 8. O Facto Provado 18 tem de ser alterado para: “O Autor teve conhecimento do teor informativo da entrevista a 23 de Março de 2018;” 9. Quanto ao Facto Provado 37, além de incorretamente julgado, este desrespeita o que foi ordenado pelo Tribunal ad quem e o que foi requerido pelas partes, quanto à prova a produzir em resposta à ampliação da matéria de facto; 10. Foi ordenado que se apurasse a factualidade: z) O Autor foi acusado por responsáveis de organizações de alguns bairros, por alegado desvio de dinheiro. aa) Houve uma intriga nos bastidores das marchas populares de Lisboa de que o Autor não entregou os fatos e ficou com o dinheiro. 11. Não é admissível a junção dos dois factos e o facto z) da ampliação da matéria de facto não pode ser dado como provado; 12. O facto z), incorretamente integrado no Facto Provado 37, não pode ser extraído das notícias (Docs. 3 e 4 da Contestação), ou seja, que o Recorrente foi acusado, por responsáveis de organizações de alguns bairros, por alegado desvio de dinheiro; 13. Desses documentos apenas resulta que houve notícias disso, sem nunca terem sido ouvidas pessoas do meio, responsáveis de marchas ou os jornalistas responsáveis pelas notícias; 14. Essa factualidade foi contrariada pelas primeiras declarações do Autor (Min. 29:00 a 34:11); 15. A fundamentação também é inadmissível, porque a confirmação de que foi apresentada contra o Recorrente queixa, arquivada, por burla, não é o mesmo que haver acusações de desvio de dinheiro por responsáveis dos bairros; 16. Deve ser dado por não provado que o Autor foi acusado, por responsáveis de organizações de alguns bairros, por alegado desvio de dinheiro, alterando-se o Facto Provado 37 para: “Alguns órgãos de comunicação social, veicularam afirmações de que alguns responsáveis de algumas marchas populares afirmaram que o Autor ficou com o dinheiro que recebeu para realizar os figurinos de algumas marchas, sem cumprir com a entrega dos figurinos;” 17. Quanto à parte das intrigas, facto aa) da ampliação da matéria de facto, deve ser aditado aos factos provados, separadamente, que: “Houve uma intriga nos bastidores das marchas populares de Lisboa de que o Autor não entregou os fatos e ficou com o dinheiro;” 18. Tal resulta das regras da experiência comum e da única prova sobre esta matéria, ou seja, as segundas declarações do Recorrente (Min. 35:32 a 36:15), que esclareceu que a intriga foi a criada pela comunicação social; 19. O Facto Não Provado iii deveria ter sido dado por provado; 20. Este facto entra em contradição com os Factos Provados 28 a 32, sendo que a afirmação de insuficiência de alegação é contrariada pelo próprio acórdão do Tribunal ad quem que anulou a primeira sentença; 21. Se o tribunal deu por provados os Factos Provados 28 a 32, então, inteligiu que a informação constante da entrevista era idónea à produção de ofensa; 22. Logo, desafiando as regras da experiência comum e a coerência lógica, não poderia fundamentar no sentido de que se fez uma pergunta onde consta o nome do Autor e a resposta foi no sentido de ser um bom profissional; 23. Fica-se com a impressão de que o tribunal considera que não entregar trabalho e ficar com dinheiro ou desviá-lo é ser-se um bom profissional; 24. O Tribunal ad quem mandou apurar: m) Como consequência direta da conduta das Rés, o A. sentiu-se ofendido e dominado por um enorme sentimento de injustiça, pois, sempre foi pessoa com elevados princípios morais, estimado e honesto. n) Ao fazer uso do seu nome e da sua reputação, sem esclarecer nada, sem a sua autorização e sem o seu conhecimento, a 2.ª Ré agastou o Autor, por ser pessoa bem reputada, conceituada e respeitada no seu meio social onde vive e trabalha, sentindo-se envergonhado perante os demais. o) Após o comportamento da 2.ª Ré, e o conhecimento do mesmo, o Autor ficou perturbado e com um sentimento de aversão por ela, pelo constrangimento e humilhação a que o sujeitou, que perduraram no tempo e ainda se fazem sentir. r) Na referida peça Jornalística, o Autor sentia-se tratado como um mero, fútil e banal objeto de informação facciosa e sensacionalista. s) A atuação das Rés implica para o Autor a dor de um sentimento de agressão completamente despropositado e a dor de um sentimento de rebaixamento de um nome com boa reputação construída ao longo de 30 anos de trabalho, criatividade e empenho na sua atividade; 25. Este elementos de facto correspondem a danos não-patrimoniais e estavam alegados na PI e foram provados; 26. Dano moral é um estado de sofrimento, de uma angústia e/ou vergonha, humilhação, aversão, desgosto, ou outros, em que se encontra uma pessoa cujos valores morais, norteadores da sua relação positiva para consigo próprio e com os demais, foram traumatizados por experiências psicológicas e/ou emocionais desagradáveis; 27. Resulta da prova (primeiros testemunhos de …, Min. 11:12 a 12:04, Min. 12:22 a 13:24, e Min. 23:30 a 26:04, e de …, Min. 13:19 a 14:32) o impacto danoso da entrevista; 28. Dizer-se ou insinuar-se, publica e falsamente, que alguém é desonesto, incompetente ou criminoso é suscetível de ofender essa pessoa na sua honra, ou seja, no seu bom-nome, enquanto profissional e pessoa, alterando-o no seu estado de espírito; 29. Dano, esse, que é potenciado por ter sido feito através de um órgão de comunicação social e depois disponibilizado na internet por aproximadamente 8 (oito) anos; 30. Acresce que, como resulta do Facto Provado 3, o Recorrente era uma referência no meio em que a entrevista o ataca, pelo que foi agredido, perante os olhos de outros e perante os seus, no orgulho que tinha de si próprio; 31. É isto que resulta das regras da experiência comum e dos testemunhos salientados; 32. O tribunal erra ao afirmar que não foi possível concretizar de que modo os sentimentos foram impactantes na sua vida e se deviam à entrevista, ou que a entrevista deveria ter tido efeitos imediatos negativos na vida do Recorrente, entre outros; 33. Atendendo às primeiras declarações do Recorrente (Min - 37:29 a Min 39.52), extrai-se a conexão que o tribunal a quo não encontra; 34. A publicação aconteceu em 06/07/2017, o Recorrente alegou que não trabalhou para as marchas em 2018, logo, nessa altura, não poderia sofrer consequências profissionais no seio das marchas; 35. O Recorrente também explicou que não é fã das marchas e que os jornais em causa não são da sua leitura habitual, o que foi corroborado pela testemunha ..., referindo que não tem muito interesse por esses jornais (primeiro testemunho de ..., Min. 03:35 a 04:40); 36. Daqui se compreende que não havia nada que justificasse conhecimento imediato da entrevista e repercussões imediatas nas esferas profissional e pessoal do Recorrente; 37. A fundamentação do tribunal entra em contradição com os factos provados, porque, no Facto Provado 18, dá por provado que o conhecimento do Recorrente sobreveio em Março de 2018, logo, não poderia esperar impactos imediatos nos 08 meses que antecederam esse conhecimento; 38. A queixa-crime apresentada, em 02 de Abril de 2018, contra o entrevistado para dar o facto 18 da Sentença como provado deu entrada exatamente 10 dias após a data em que o Recorrente teve conhecimento do teor da entrevista, o que demonstra que, quando o conhecimento ocorreu, este logo reagiu e apenas à entrevista e não a quaisquer notícias; 39. A acusação particular (Doc. 8 da PI), página 6, art.º 32.º, só se dirige à entrevista e nela consegue-se verificar a quantidade de pessoas arroladas como testemunhas, pertencentes ao meio, para procurar esclarecer informações falsas (conforme páginas 16 a 25, art.º 90.º); 40. O Requerimento de Abertura de Instrução (Doc. 2 da PI) e a Decisão Instrutória também demonstram o impacto da entrevista na vida do Recorrente, bem como os Docs. 3 e 4 da PI e o Doc. 16 evidenciam a revolta por este revelada (ou seja, e-mails enviados em 23.11.2019, 22.10.2021 e em 08.11.2021 e carta ao diretor do Jornal propriedade da 1.ª Ré); 41. Destarte, os elementos probatórios existentes não permitiam deixar de dar por provado que: “O Autor sofreu danos não patrimoniais pela publicação da entrevista em causa nos autos”, devendo o Facto Não Provado iii) passar a ser facto provado; 42. O Facto Não Provado v) deveria ter sido dado por provado, ou seja: “Após o conhecimento do teor da entrevista, o Autor telefonou à 2.ª Ré solicitando que fosse retirado o seu nome da entrevista;” 43. Esse facto foi alegado no artigo 114.º da PI, havendo a seguinte prova de que esse contacto ocorreu no dia 23/03/2018: primeiras declarações do Recorrente (Min. 22:36 a 23:88); Docs 3 e 4 da PI, Doc. 16 (requerimento de 07/10/2024 – referência 26464983); 44. Segundo as regras da experiência comum, seria inconcebível que o Recorrente escrevesse, nos documentos supra-evidenciados, aquilo que consta do Facto Não Provado v) se não tivesse praticado; 45. As Recorridas, em sede de contestação, não tomaram posição certa sobre o assunto, sendo que a 2.ª Recorrida, nas suas primeiras declarações (Min: 07:21 a 09:55 Min e 07:21 a 09:55), confirma um contacto, ainda que revele incertezas sobre o teor e o recetor desse contacto, o que, por força dos artigos 352.º do Código Civil e 454.º e 574.º, n.º 3, do CPC, obrigava a dar o facto como confessado, uma vez que a declaração de incerteza, quanto a um facto pessoal, equivale à confissão; 46. Acresce que as testemunhas … e …, que testemunharam sobre o funcionamento do atendimento de chamadas da 1.ª Recorrida, não falaram directamente sobre esta chamada e a 2.ª Recorrida afirmou, claramente: “Eu não me lembro se falei com ele ou se me disseram que ele tinha ligado;” 47. A 2.º Recorrida veio, nas segundas declarações, desmentir o que afirmara nas suas primeiras declarações (Min. 01:50 a 04:25 e Min. 09:57 a 11:03), contudo, assumiu que havia muitos telefonemas e não negou essa hipótese; 48. Sem prejuízo da confissão, atendendo à prova feita, desafia as regras da experiência comum dar por não provado que o Recorrente procurou e conseguiu contactar a 2.ª Recorrida; 49. Assim, disto, conjugado com os factos provados 26 e 27, há que dar o facto não provado v) como provado; 50. O tribunal deveria ter dado por provado o Facto Não Provado vi); 51. É irrelevante para a matéria em questão se se trata de um PDF, sendo relevante, sim, se se trata de um ficheiro automatizado, ainda que … o haja afirmado em sede das suas primeiras declarações e o tribunal não ponha em causa que se trata de um ficheiro automatizado (ainda que se insurja contra a terminologia); 52. Da entrevista constam o nome do Recorrente […], a sua profissão (figurinista) e o meio onde a exerceu e era conhecido (as marchas populares de Lisboa), que são dados pessoais individualmente identificáveis e referentes ao Recorrente e à sua vida; 53. Contém, também, “factos” falsos, mas que, em conjugação com os outros, permitem identificar o Recorrente, ou seja, não entregou os fatos e ficou com o dinheiro; passou por Alfama, mas não desviou dinheiro; trabalhou para a marcha de […] se exibir, não tinha nada pronto; em termos de trabalho é brilhante; 54. Ora, o tribunal erra de direito, porque confunde o conceito de vida privada, que inclui a profissional, com vida íntima; 55. Os factos da vida privada, quando tornados públicos, não perdem a natureza de factos da vida privada; não se confundem com factos de natureza pública; 56. O tribunal deveria ter dado por provado o aludido Facto Não Provado iv), com a seguinte redação: “A entrevista encontra-se disponível online, sob a forma de um ficheiro automatizado com dados individualmente identificáveis referentes à vida privada do Autor;” 57. A conduta das Recorridas é ilícita por ação e por omissão; 58. A conduta das Recorridas preenche os elementos do tipo do crime de difamação, com ou sem publicidade e calunia (artigos 180.º, nº 1; 182.º; 183.º, n.º 1 al, a) e n.º 2, todos do Código Penal); 59. O bom nome e a honra são protegidos pelos art.ºs 70.º, 72.º e 482.º do Código Civil; 60. Imputar-se a alguém que desviou dinheiro, não entregou trabalho e ficou com o dinheiro ou que não tinha o seu trabalho pronto quando supostamente o deveria ter, em simultâneo, é, sem margem para qualquer dúvida, imputar-lhe qualidades comportamentais desprezíveis e suscetíveis de o humilhar e ofender na sua honra, difundindo falsidades capazes de prejudicar o seu crédito ou bom-nome e espoletando, por parte de terceiros, reações de censura; 61. O previsto no n.º 2 do artigo 180.º do CP não se aplica em matéria civil, sendo certo que a persecução de um interesse legítimo cumulado com fundamento sério para, em boa-fé, acreditar que os factos ou suspeitas eram verdade, em direito penal, pode afastar a punibilidade, mas não gera a atipicidade, não afastando a responsabilidade civil; 62. E, nos termos do artigo 180.º, n.º 4, do CP, mesmo essa desculpabilização obriga ao cumprimento de um dever de informação; 63. A intenção de ofender é irrelevante para o caso concreto, desde que se tenham praticado os factos e os tenham querido praticar; 64. Não se encontra em causa a intenção de cumprimento do dever de informação da 2.ª Ré para consigo própria, mas o cumprimento do dever de informação para com o grande público; 65. Ao contrário do afirmado pelo tribunal, as regras da profissão de jornalista, que se estendem aos órgãos de comunicação social, exigem extremo rigor na narração dos factos, impondo o dever de não praticar atos se esse rigor não pode ser garantido; 66. Quanto ao cumprimento do dever de informação da 2.ª Ré, esta descartou imediatamente a hipótese de ter querido ou de se ter informado suficientemente sobre o Recorrente, porque o que lhe interessava era o perfil do entrevistado e a sua opinião acerca de eventuais intrigas no meio das marchas populares; 67. O primeiro testemunho de ... (Min. 24:51 a 30:03., Min - 31:31 a 32:39 Min. 47:00 a 48:13) conjugado com as primeiras declarações da 2.ª Recorrida (Min xxx e 04:40 a 07:00) permitem concluir que esta se apercebeu de que o entrevistado não queria falar de intrigas relacionadas com o Recorrente, o que também implica dar-se por provado o Facto Não Provado iv); 68. O alegado facto de o Recorrente não ter entregado fatos e ter ficado com ou desviado dinheiro, não são aspetos relacionados com a vida do entrevistado, nem têm nada a ver com a marcha de Alfama, logo nada tinham a ver com o objeto da entrevista, tal como definida pela jornalista; 69. A ilicitude da 2.ª Ré verifica-se não só nas imputações falsas que faz ao Recorrente, mas também no seu desleixo na edição e publicação da entrevista; 70. Resultou provado que a 2.ª Ré teve bastante tempo para rever o texto da entrevista, porquanto foi feita durante os ensaios da marcha de Alfama, aproximadamente, a 20 de Junho de 2017 (data dos fogos de Pedrogão Grande), vindo apenas a ser publicada em 06 de Julho de 2017, por ter sido objeto de revisão e atualização; 71. As primeiras declarações da 2.º Recorrida (Min 17:52 a 19:02) e o primeiro testemunho de … também o confirmam (Min a Min. 06:36 a 07:38); 72. Resultou provado que o Recorrente não trabalhou para a marcha de Alfama no ano de 2015 e que tal informação não resulta da entrevista; 73. Também resultou provado que aquilo que o entrevistado quis dizer com “a cena de 2015, em que a seis horas de ir para o pavilhão não estava nada pronto para a marcha de Alfama”, foi que, por vicissitudes sobre as quais a testemunha ... se recusou a prestar “depoimento”, no ano de 2013, quando contratado por este, o Recorrente não apresentou o produto final atempadamente e na sua plenitude, mas que ainda assim a marcha de Alfama ganhou a edição desse ano e o item de figurinos também (primeiro testemunho de ..., Min: 06:16 a 07:42 e Min 36:57 a 39:20; 74. A 2.ª Recorrida depôs no sentido de apenas ter tido conhecimento das intrigas através de uma pesquisa que fez aquando da sua preparação, pouco tempo antes da entrevista, de onde resulta que tal intriga não era assim tão pública, ou seja, era necessário procurar por ela; 75. A informação que visa o Recorrente é muito concreta, mas sobre a qual não é prestado ao público qualquer esclarecimento, o que corresponde, tudo isto, ao não cumprimento do dever de informação; 76. As Recorridas não prosseguiram interesses legítimos, até porque a 2.ª Recorrida conseguiu veicular uma opinião do entrevistado sobre o Recorrente que não é a do próprio; 77. Com a edição e publicação da entrevista, tal interesse em situar o entrevistado, referindo o nome do Recorrente não se justificava nem interessava a absolutamente ninguém, nem à 2.ª Ré, nem ao entrevistado, nem ao Recorrente, nem ao grande público; 78. As Recorridas violaram o artigos 6.º e 13.º da Lei para a Comunicação Social e os 13.º e 14.º do Estatuto dos Jornalistas; 79. As Recorridas violaram os pontos 1, 2, 5 e 8 do Código Deontológico dos Jornalistas, uma vez que falhou no rigor e exatidão da narração dos factos, fazendo um enquadramento falso; não investigou a veracidade das notícias, o que a impedia de fazer alusões a factos não verificados; não procurou, mais tarde, retificar as informações falsas que consignou na entrevista; manteve-se a humilhar e a perturbar a dor do Recorrente, sabendo que estava a lesar a sua dignidade e o seu bom nome; 80. O tribunal errou de facto e nas conclusões que extraiu dos factos, como desvalorizou, contra legem e contra as próprias “leges artis” da profissão, os deveres a que as Recorridas estavam adstritas, o que desembocou numa errada aplicação do direito; 81. As Recorridas violaram o princípio da proporcionalidade, porque a não utilização do nome do Recorrente serviria para igual propósito sem ofender a honra e o bom nome deste; 82. O facto de entrevista se encontrar disponível sob a forma de um ficheiro automatizado, e na internet, releva para efeitos do crime de devassa por meio de informática, porque contém dados pessoais e da vida privada do Recorrente; 83. Com os factos que deveriam ter sido dados por não provados, alegados na Contestação, cabendo o ónus da prova às Recorridas (artigo 342.º, n.º 1, do CC), chegar-se-ia logo à conclusão de que a informação constante da entrevista é falsa; 84. Divulgar informação falsa mediante uma entrevista atenta contra a honra e o bom nome de uma pessoa, como resulta dos factos provados; 85. A sentença errou ao considerar o direito de ação prescrito, pelo que a exceção perentória invocada é manifestamente improcedente e não deveria ter sido declarada; 86. Aqui, aplica-se o prazo de prescrição mais longo pelo facto de o ilícito constituir crime (artigo 498.º, n.º 3, do CC); 87. Mesmo aplicando o artigo 498.º, n.º 1, do CC, e o prazo de 3 anos, o direito do Recorrente não estaria prescrito; 88. O prazo fixado no n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil não está dependente de queixa-crime ou de condenação pela prática de crime; 89. À difamação, com publicidade e calúnia, corresponde um prazo de prescrição de 5 anos aqui aplicável (art.º 180.º, nº 1; 182.º; 183.º, n.º 1 al, a) e n.º 2, todos do Código Penal); 90. O elemento do tipo subjetivo deste crime apenas exige o dolo genérico (artigo 14.º do Código Penal); 91. A prova e os factos provados demonstram que o conteúdo da entrevista era idóneo a produzir ofensa e as Recorridas tinham consciência disso; 92. A ofensa é duradoura e continuada, porque, ainda hoje, está a ocorrer com a disponibilização da entrevista online; 93. A queixa-crime produzida interrompeu o prazo de prescrição, independentemente de contra quem foi apresentada; 94. O prazo esteve suspenso 161 dias decorrentes da suspensão dos prazos determinada pelas Leis n.º 1-A/2020, de 19 de Março, Lei n.º4-A/2020, de 6 de Abril, e Lei n.º4B/2021, de 1 de Fevereiro, com termo em 22.04.2023 ou 22.04.2025; 95. As condutas das Recorridas preenchem os elementos do tipo do crime de devassa por meio de informática (artigo 193.º do CP), cujo prazo prescricional é de 5 anos; 96. A versão da norma incriminadora que vale para efeitos deste processo protegia os bens jurídicos vida privada e honra, tendo de ser tida em conta para efeitos desta ação; 97. A Petição Inicial foi apresentada em 4 de Julho de 2022, quando ainda não vigorava a Lei n.º 26/2023, e o Recorrente não poderia ter reclamado um direito sustentado numa lei que não existia à altura; 98. Nos termos do n.º 1 do art.º 12 do Código Civil, a lei só dispõe para o futuro e, ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular; 99. O aproveitamento da lei penal mais favorável não serve para efeitos de ação de responsabilidade civil; 100. As Recorridas criaram e usaram ficheiros automatizados com dados falsos da vida privada do Recorrente, que o permitem identificar e que são ofensivos da honra, bom nome e crédito deste; 101. Mesmo que esses dados sejam públicos e falsos ou verdadeiros, tal não implica que deixem de ser privados e não afasta a ilicitude, sendo que esta norma não pretende prevenir apenas o dano concreto, mas também o perigo de dano; 102. Quanto ao elemento subjetivo do artigo 193.º, n.º 1, do CP, este basta-se com o dolo genérico; 103. Tendo o conhecimento dos factos ocorrido em 23/03/2018, aplicando-se o prazo de três ou o de 5 anos, com as aludidas interrupções e suspensões, a prescrição só ocorreria em 23.08.2023 (3 anos) ou 23.08.2025 (5 anos); 104. O tribunal poderia haver mandado retirar a publicação ou as referências ao nome e outros dados pessoais do Recorrente da publicação online, independentemente do dano; 105. O artigo 70.º, n.º 1, do CC consagra uma cláusula geral que tutela bens pessoais não tipificados, protegendo aspetos da personalidade cuja lesão ou ameaça de violação só com a evolução dos tempos assumam um significado ilícito e, neste caso, há que ter presente a Lei de Proteção de Dados Pessoais que passou a vigorar a partir de 2019; 106. O n.º 2 estabelece que a pessoa ameaçada/ofendida pode requerer as providências para evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa cometida; 107. Esta tutela pode ser preventiva, em caso de ofensa não consumada destes direitos, bem como atenuante, nas situações em que já se deu a consumação da ofensa ou o início dessa consumação, destinando-se a mitigar os seus efeitos; 108. Providências que podem ser cumuladas umas com as outras e com o pedido indemnizatório em ação comum, ou ser requeridas no processo especial regulado nos artigos 878.º e seguintes do CPC; 109. O Recorrente encontra-se numa situação em que, para além dos danos que já sofreu, está em risco de os continuar a sofrer e de forma mais gravosa; 110. O termo ameaça usado na lei tem um significado amplo que abrange quer a iminência de ameaça, quer a ofensa em curso, qualquer que seja a intenção do agente; 111. Os direitos à honra, bom nome e crédito social são direitos de personalidade protegidos (artigo 72.º do CC); 112. O bom nome e a dignidade do Recorrente foram utilizados, contra a sua expressa vontade, para fins comerciais e em desrespeito do princípio da proporcionalidade, não havendo verdadeiro interesse de informar, mas apenas de entreter; 113. Havendo colisão de direitos, neste caso, os direitos do Recorrente têm de prevalecer (artigo 366.º do CC); 114. O pedido do Recorrente é necessário, adequado e proporcional, não impondo qualquer restrição exagerada às Recorridas, sendo que as Recorridas estão abrangidas pelo RGPD e demais legislação de proteção de dados pessoais; 115. O respeito pela vida privada e familiar (artigo 7.º da Carta dos Direitos Fundamentais) tem o mesmo sentido e alcance que o sentido e o alcance conferidos ao artigo 8.º, n.º 1, da CEDH, conforme interpretado pela jurisprudência do TEDH; 116. O tratamento de dados pessoais para a prossecução de interesses legítimos atém-se ao estritamente necessário, sendo que, neste caso, não há interesse legítimo no tratamento; 117. O direito ao esquecimento (artigo 17.º, n.º 1, alíneas a) e f) do RGPD) aplica-se ao caso concreto, não sendo necessário, para a sua aplicação, que o tratamento gere danos; 118. O tribunal não está limitado pelo direito invocado, mas sim pelos factos provados e por aquilo que é pedido; 119. O direito ao esquecimento aplica-se se o titular de dados pessoais se opuser ao tratamento, como o fez, nos termos do artigo 21.º, n.º 1, do RGPD, e se não existirem interesses legítimos prevalecentes que justifiquem o tratamento, ou os dados forem tratados ilicitamente (alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 17.º do RGPD), como entendemos acontecer neste caso, por todos os motivos acima expostos; 120. A exceção a este direito decorrente do exercício da liberdade de expressão e de informação, nos termos do n.º 3, alínea a), do artigo 17.º, não se aplica, porque o tratamento se tem de revelar necessário, o que não é o caso; 121. Este direito não tem de ser exercido junto dos motores de busca, mas sim de quem trata os dados, que podem ser os aludidos motores, como qualquer outro responsável pelo tratamento; 122. Já se passaram cerca de 8 (oito) anos após a publicação da entrevista e o Recorrente não é figura pública, como ficou provado, o que afasta a legitimidade e necessidade do tratamento; 123. Concluindo-se, assim, o tribunal violou as seguintes normas: artigos 5.º, n.º 2, alínea c), 352.º, 454.º, 574.º, n.º 3, 607.º, n.ºs 4 e 5, todos do CPC; artigos 180.º, 6.º e 13.º da Lei para a Comunicação Social e 13.º e 14.º, n.º 1, do Estatuto dos Jornalistas; art.ºs 180.º, nº 1; 182.º; 183.º, n.º 1 al, a) e n.º 2, 193.º, n.º 1, todos do Código Penal, artigo 576.º, n.º 3, do CPC, e os art.ºs 12.º, 70.º, 484.º, 498.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código Civil; artigos 70.º, 72.º e 80.º, todos do CC; artigos 336.º do CC, o artigo 7.º da Carta dos Direitos Fundamentais, o artigo 8.º da CEDH, o artigo 17.º, n.º 1 e n.º 3, alínea a), bem como o artigo 21.º, n.º 1, ambos do RGPD, tendo violado globalmente, em todas as questões, o artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC. * Os RR. apresentaram contra-alegações, aventando que o recorrente não indicou as passagens das gravações dos depoimentos a que se reportou, nem sequer precisou o início e fim das mesmas, indicando, somente, a duração da parte transcrita. Terminaram, concluindo pela improcedência do recurso. * II. Questões a decidir: Como é sabido, resulta da conjugação dos artigos 635.º n.º 4 e n.º 1 do artigo 639.º, ambos do Código de Processo Civil, que são as conclusões que delimitam a esfera de conhecimento do tribunal ad quem. Deriva assim, que este tribunal apenas se pode ocupar do objeto definido pela parte que interpôs recurso. Esta limitação não se verifica, no entanto, quanto à qualificação jurídica dos factos bem como relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo possua os elementos bastantes para tal conhecimento, conforme decorre do n.º 3 do artigo 5.º do Código do Processo Civil. Está ainda vedado ao tribunal de recurso conhecer de questões novas, que não tenham sido suscitadas e apreciadas pelo tribunal a quo e que não sejam de conhecimento oficioso. Assim sendo, as questões a apreciar e decidir consistem em apurar: se se verifica a prescrição do direito do A. relativamente à indemnização peticionada; a impugnação da matéria de facto deverá ser atendida; em caso afirmativo, se a mesma deve ser alterada no sentido propugnado pelo recorrente; se sentença em crise deve ser revogada e os RR. condenados nos pedidos efetuado pelo A./Recorrente. * III. Fundamentação – Matéria de facto provada: Foram os seguintes os factos provados e não provados pela 1ª instância: 1.O Autor exerce a atividade profissional de desenhador, cenógrafo e figurinista. 2.No ano de 2008, o Autor começou a prestar serviços no âmbito dos concursos das marchas populares, o que fez até ao ano de 2019. 3.O Autor ganhou prémios nos concursos das marchas populares pelos seus trabalhos, sendo reconhecido na sua área. 4.A 1.ª Ré, […], S.A., é uma sociedade anónima que tem por objeto a edição de jornais, revistas e outras publicações periódicas em suporte físico ou digital; edições multimédia e atividade de televisão. 5.A 1.ª Ré é proprietária do “Jornal I” desde o ano de 2015. 6.A 1.ª Ré é também proprietária do Jornal “Nascer do Sol”, cuja designação à data da entrevista era “Sol”. 7.Atualmente, o “Jornal I” designa-se “I Inevitável”. 8.A 2.ª Ré, […], desempenhou funções para o “Jornal I” desde o ano 2009 até 2022, sendo que no ano de 2017 era jornalista desse jornal. 9.No dia 6 de julho de 2017, foi publicada no “Jornal I” uma entrevista da autoria da 2.ª Ré, ao […]. 10.A entrevista tinha como objetivo abordar o percurso de vida do entrevistado. 11.[…]era coordenador da Marcha de Alfama nas marchas populares de Lisboa. 12.A propósito do tema das marchas populares de Lisboa, a 2.ª Ré formulou a seguinte questão “Há muita intriga nos bastidores? Houve o caso do […] que em tempos não entregou os fatos e ficou com o dinheiro”. 13.Ao qual o entrevistado responde: “Foi um homem que também passou por Alfama, mas nós não tivemos desvio de dinheiro. Tivemos uma cena em 2015 em que, a seis horas de ir para o pavilhão, não estava nada pronto para a marcha… Esse homem em termos de trabalho é brilhante. Depois há essa intriga de acharem que os jurados são comprados… é um caminho que nem percorro”. 14.A entrevista foi replicada pelo Jornal “Nascer do Sol”. 15.A entrevista encontra-se disponível online, no sítio do Jornal “Nascer do Sol”. 16.A responsabilidade da publicação da entrevista para o “Jornal I” é do diretor executivo, à data […]. 17.Em data anterior à da publicação da entrevista, existiam várias notícias na imprensa a respeito do Autor e uma alegada fuga do mesmo com dinheiro pertencente a verbas das marchas. 18.O Autor teve conhecimento da existência da entrevista no dia 3/11/2017, só a tendo lido em data não concretamente apurada, no mês de março de 2018. 19.Em 2021, o Autor enviou, através de correio eletrónico e carta registada com aviso de receção, à 1.ª Ré, pedidos para que o seu nome fosse retirado da entrevista. 20.O Autor não é uma figura pública. [facto a) da ampliação da matéria de facto] 21.O Autor não trabalhou para a marcha de Alfama no ano de 2015. [facto b) da ampliação da matéria de facto] 22.A Ré […] investigou a existência de notícias sobre o Autor […] consentâneas com a afirmação que proferiu na Entrevista de que “Houve o caso do figurinista […] que em tempos não entregou os fatos e ficou com o dinheiro”. [facto e) da ampliação da matéria de facto] 23.A Ré […] não investigou a veracidade das notícias sobre o Autor […] consentâneas com a afirmação que proferiu na Entrevista de que “Houve o caso do figurinista […] que em tempos não entregou os fatos e ficou com o dinheiro”. [facto e) da ampliação da matéria de facto] 24.A Ré […] proferiu a afirmação “Houve o caso do figurinista […] que em tempos não entregou os fatos e ficou com o dinheiro”, constante da Entrevista, com o objetivo de situar o entrevistado relativamente à questão das intrigas. [facto f) da ampliação da matéria de facto] 25.O Autor solicitou a retirada do seu nome da Entrevista, através do envio dos seguintes mails dirigidos a endereços de correio eletrónico do domínio da 1.ª Ré: - A 23/11/2019, para o endereço de e-mail […]; - A 22/10/2021, para os endereços de e-mail […]; - A 08/11/2021, para os endereços de e-mail[…]. [facto q) da ampliação da matéria de facto] 26.O Autor não obteve resposta aos e-mails referidos no ponto anterior. [facto d) da ampliação da matéria de facto] 27.A Entrevista encontra-se disponível online, à data desta sentença. [facto h) da ampliação da matéria de facto] 28.Como consequência da conduta das Rés, o Autor sentiu-se ofendido e injustiçado, por se considerar uma pessoa com elevados princípios morais, estimado e honesto. [facto m) da ampliação da matéria de facto] 29.A utilização do nome do Autor na entrevista, sem prévio conhecimento, prestação de esclarecimentos ou autorização por parte do Autor, agastou e envergonhou o Autor. [facto n) da ampliação da matéria de facto] 30.Ao ter conhecimento da entrevista, o Autor sentiu-se perturbado, constrangido e humilhado, sentimentos que perduraram no tempo e que ainda hoje se fazem sentir. [facto o) da ampliação da matéria de facto] 31.Ao conhecer a entrevista, o Autor sentiu-se utilizado como um objeto de informação facciosa e sensacionalista. [facto r) da ampliação da matéria de facto] 32.A atuação das Rés gera no Autor sentimentos de ter sido agredido e rebaixado na sua reputação enquanto profissional com 30 anos de trabalho. [facto s) da ampliação da matéria de facto] 33.O Autor apresentou participação criminal contra o entrevistado […] em 02/04/2018, a qual deu origem ao processo n.º 2979/18.7T9LSB. [facto t) da ampliação da matéria de facto] 34.Em 10/10/2019 deu entrada no Tribunal da Relação de Lisboa Acusação Particular e Pedido de Indemnização Cível contra […] no processo n.º 2979/18.7T9LSB. [facto u) da ampliação da matéria de facto] 35.Em 29/10/2019 […] requereu Abertura de Instrução no processo n.º 2979/18.7T9LSB. [facto v) da ampliação da matéria de facto] 36.A 02/02/2020 foi proferida Decisão Instrutória pelo Tribunal da Relação de Lisboa no processo n.º …/18.7T9LSB, a qual não pronunciou […] pela prática, como autor material, de crime de difamação agravado pela publicidade e calúnia. [facto x) da ampliação da matéria de facto] 37.Algumas pessoas ligadas às marchas populares de Lisboa, designadamente responsáveis pela organização das marchas de alguns bairros, veicularam afirmações de que o Autor ficou com o dinheiro que recebeu para realizar os figurinos de algumas marchas, sem cumprir com a entrega dos figurinos. [factos z) e aa) da ampliação da matéria de facto]. Factos Não Provados i. Em 06/07/2017, a 2.ª Ré era subdiretora executiva do “Jornal I”. ii. A tiragem média do “Jornal I” era de vinte e cinco mil exemplares diários. iii. O Autor sofreu outros danos não patrimoniais pela publicação da entrevista em causa nos autos. iv. A 2.ª Ré percebeu que o entrevistado não queria falar de intrigas relacionadas com o Autor. [facto g) da ampliação da matéria de facto] v. Após o conhecimento do teor da entrevista, o Autor telefonou à 2.ª Ré solicitando que fosse retirado o seu nome da entrevista. [factos c) e p) da ampliação da matéria de facto] vi. A entrevista encontra-se disponível online em formato PDF, sob a forma de um ficheiro automatizado com dados individualmente identificáveis referentes à vida privada do Autor. [facto h) da ampliação da matéria de facto] vii. Como consequência direta da conduta das Rés, o Autor sentiu-se dominado por um enorme sentimento de injustiça, pois, sempre foi pessoa com elevados princípios morais, estimado e honesto. [facto m) da ampliação da matéria de facto] viii. O agastamento e a vergonha que o Autor sentiu devido à utilização do seu nome na Entrevista decorreram do facto de o Autor ser pessoa bem reputada, conceituada e respeitada no seu meio social onde vive e trabalha. [facto n) da ampliação da matéria de facto] * IV. Análise dos factos – subsunção ao direito: Conforme já se referiu, as questões a apreciar e decidir consistem em apurar: se se verifica a prescrição do direito do A. relativamente à indemnização peticionada; a impugnação da matéria de facto deverá ser atendida; em caso afirmativo, se a mesma deve ser alterada no sentido propugnado pelo recorrente; se sentença em crise deve ser revogada e os RR. condenados nos pedidos efetuado pelo A./Recorrente. A primeira questão que nos ocuparemos será a de aferir se a impugnação da matéria de facto deverá ser atendida. Com efeito, é certo que o nosso sistema processual civil garante um duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão de facto. No entanto, a regras adjetivas aplicáveis e exigem que o impugnante cumpra determinados requisitos nessa impugnação. Esses requisitos resultam do plasmado no artigo 640.º do Código do Processo Civil: “1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3. O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”. A questão levantada incide apenas sobre o cumprimento da alínea b) do n.º 2 do referido artigo. Ora “a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos. c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; (…) e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente. (…)”[1]. “Em síntese, decorre do artigo 640 n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada”[2]. Quando essa deficiência ocorre nos requisitos da impugnação da matéria de facto a sanção é aquela que está prevista no artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – rejeição imediata do recurso, sem hipóteses de correção[3]. “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: (…) d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; (…) As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”[4]. O ficou dito, serve para que fiquem claras as regras aplicáveis à impugnação da prova gravada, face à alegação dos Recorridos e tendo em conta que, na generalidade da impugnação efetuada pelo A., são efetivamente indicadas as passagens com indicação do momento das gravações que o recorrente entende impor decisão diversa. Já a questão do interesse desses factos para a decisão da causa apresenta-se-nos desde já como questionável, conforme se decidirá. Com efeito, a sentença declarou o direito do A. a eventual indemnização, prescrito, sendo, desde logo, indiferente qual o dia de março em que o A. leu efetivamente a notícia, pois a consideração de qualquer dia de março sempre levaria à conclusão da prescrição. A questão acaba por ser meramente de direito e relativa à consideração dos prazos de prescrição criminais e a sua amplitude. Assim, haverá que, antes do mais, apreciar a prescrição e só após, caso se entenda que a mesma não se verifica, analisar eventualmente os factos relevantes para a restantes questões. Resulta dos factos provados que o A. teve conhecimento do texto escrito no jornal em março de 2018, o qual constitui a causa de pedir nos autos relativamente às indemnizações peticionadas. O tribunal considerou aplicável o prazo de 3 anos decorrente do artigo 498.º n.º 1, do Código Civil, que prevê que o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete. O recorrente não concorda, entendendo que, no caso dos autos, o ilícito em apreço é passível de consubstanciar a prática de um crime difamação com publicidade e calunia, previsto e punido pelos artigos 180.º n.º 1; 182.º 183.º n.º 1 alínea a) e n.º 2, todos do Código Penal, a que corresponde um prazo de prescrição de 5 anos. Prescreve o referido artigo 498.º: “1. O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso. 2. Prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis. 3. Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável. (…)” Por seu turno estabelece o artigo 180.º n.º 1 do Código Penal, que: “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias”. Estabelece ainda o artigo 183.º n.º 2 do Código Penal que: “Se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias”. Relativamente à prescrição penal, rege o artigo 118.º do Código Penal: 1. O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos: (…) c) Cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igualou superior a um ano, mas inferior a cinco anos; (…)”. Apreciemos então se os factos imputados aos recorridos eram passiveis de constituir o crime de difamação. A difamação constitui a imputação de um facto ofensivo da honra e consideração de uma pessoa perante terceiros e sem a presença do ofendido[5]. No caso em apreço, provou-se que: “A propósito do tema das marchas populares de Lisboa, a 2.ª Ré formulou a seguinte questão “Há muita intriga nos bastidores? Houve o caso do figurinista … que em tempos não entregou os fatos e ficou com o dinheiro”. Ao qual o entrevistado responde: “Foi um homem que também passou por Alfama, mas nós não tivemos desvio de dinheiro. Tivemos uma cena em 2015 em que, a seis horas de ir para o pavilhão, não estava nada pronto para a marcha. Esse homem em termos de trabalho é brilhante. Depois há essa intriga de acharem que os jurados são comprados… é um caminho que nem percorro” (factos provados 12 e 13 – não impugnados). Ora primeira coisa que “salta à vista” é que nenhum facto é imputado ao Recorrente na entrevista. Efetivamente, a pergunta é sobre intrigas nos bastidores, designadamente, quanto ao falado caso do A., que não teria entregue os fatos e ficado com o dinheiro. O que se pregunta é assim sobre a existência de “intrigas”. Logo por aqui já resulta que não se imputa um facto ao A./Recorrente, pelo contrário, insinua-se claramente que o mesmo facto “intriguista” não corresponde à realidade (o mesmo se aplica à resposta do entrevistado). Com efeito, “intriga” significa “Plano ou história que se trama com astúcia e cautela para enganar alguém. = ARDIL, CILADA, ENREDO, INSÍDIA, MAQUINAÇÃO, TRAMA, URDIDURA, Facto ou coisa contada sem conhecimento real ou em segredo. = MEXERICO” (sic.)[6]. “Maquinação destinada a obter ou destruir algo[7]” (sic.). Ou seja, ao referir-se que se tratam de “intrigas” está-se a considerar que tais vozes são apenas “maquinações” ou tramas “com astúcia e cautela para enganar”, mas nunca que se tratam de factos verdadeiros imputando os mesmo ao Recorrente, pelo contrário. É também assim que tal expressão é entendida pela generalidade das pessoas. Está-se assim a considerar como mera “intriga” as várias notícias, que em data anterior à da publicação da entrevista, existiam a respeito do Recorrente sobre uma alegada fuga do mesmo com dinheiro pertencente a verbas das marchas. O que foi dito na entrevista publicada, não preenche assim sequer o tipo objetivo do crime de difamação “imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração”. “Quanto ao elemento subjetivo do tipo, é pacífico que o crime de difamação é um crime doloso, traduzindo-se tal elemento subjetivo na vontade livre de praticar o ato com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal ato é proibido por lei (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2009, www.dgsi.pt)”[8]. Também já decidiu o STJ[9] que o objeto do crime de difamação é a imputação a outrem de um facto ofensivo da honra e consideração. Este crime não é constituído apenas pelo ato material em si, mas também pelas circunstâncias que o rodeiam, pela intenção do agente e pelo fim que este teve em vista. Para a sua existência não basta a verificação do elemento objetivo ou material, antes se torna necessário que, além dele, se verifique ainda o elemento subjetivo ou ânimo de difamar, consubstanciado na vontade de ofender a honra e consideração alheias. Com a segunda expressão utilizada não quis a arguida atingir a honra e reputação da assistente (…)”. Chegamos assim à conclusão de que não está preenchido o tipo criminal da difamação e, assim sendo, também não opera a prescrição fundada no n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil. Como consequência, haverá que reconhecer razão ao tribunal da 1ª instância quando considerou prescrito o direito do A. à indemnização peticionada. Veja-se que, conforme entendemos, os argumentos ora apresentados serviriam igualmente para descartar a condenação ao abrigo do disposto no artigo 484.º do Código Civil “Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou coletiva, responde pelos danos causados”. Ora como já referimos, os comentários efetuados na entrevista sobre o A., foram designados de “intriga”, e já tinham sido veiculados, anterior e publicamente por terceiros, ou seja, não era um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome deste. Do que ficou dito, resulta que as questões sobre os factos provados e não provados aventadas pelo recorrente são inócuas para a apreciação do recurso. Com efeito, uma eventual alteração daqueles factos nos termos pugnados pelo recorrente não se repercutiria na reapreciação da decisão já propugnada, o que sempre redundaria na prática de um ato inútil, que a lei processual civil qualifica como ilícito” (cf. artigo 130.º do Código do Processo Civil). “A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que nada impede o Tribunal da Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto por se tratar de ato inútil. Assim, “Não viola o dever de reapreciação da matéria de facto a decisão do Tribunal da Relação que não conheceu a matéria fáctica que o Apelante pretendia que fosse aditada ao factualismo provado (…) tendo subjacente a sua irrelevância para o conhecimento do mérito da causa (…)”. Efetivamente “se os factos cujo julgamento é impugnado não forem suscetíveis de influenciar decisivamente a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade a reponderação pela Relação da decisão proferida pela 1.ª instância” [10]. “Nos recursos apenas se impõe tomar posição sobre as questões que sejam processualmente pertinentes/relevantes (suscetíveis de influir na decisão da causa), nomeadamente no âmbito da matéria de facto. De acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão sujeitos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte. Deste modo, o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar os ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final do litígio”[11]. Fica assim prejudicada a apreciação das restantes questões levantadas quanto à indemnização peticionada. Haverá ainda, no entanto, que apreciar o outro pedido do A./Recorrente: que seja “Retirado o meu nome ou qualquer referência que me identifique como indivíduo da peça jornalística “Se […]”, da autoria da jornalista […], publicado online no jornal Nascer do Sol, propriedade de […], S.A.”. O recorrente pretende que a frase que se encontra publicada “houve o caso do figurinista […] que em tempos não entregou os fatos e ficou com o dinheiro” passe a conter apenas “houve o caso de um figurinista que, alegadamente, em tempos, não entregou os fatos e ficou com o dinheiro”. O tribunal recorrido, subsumindo a questão aos artigos 70.º e 72.º n.º 1, do Código Civil e 878.º do Código de Processo Civil e considerando que não existiu ilicitude na publicação em causa, indeferiu o pedido. Ora, quanto à questão da ausência de ilicitude, vale aqui o que já foi referido supra. Mas será que o direito ao apagamento de dados só existirá quando constituir um facto ilícito? Entendemos que não. Efetivamente dever-se-á atender aqui à legislação sobre esta matéria máxime, ao Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016 (RGPD). Nesta questão acompanharemos de perto o acórdão desta Relação de 2 de maio de 2023[12], reproduzindo-se algumas passagens de seguida (1), ainda que com outra estrutura, atenta a sua exaustiva a acertada fundamentação. Como se destaca logo no primeiro considerando do RGPD a proteção das pessoas singulares relativamente ao tratamento de dados pessoais é um direito fundamental. O artigo 8.º n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e o artigo 16.º n.º 1, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) estabelecem que todas as pessoas têm direito à proteção dos dados de caráter pessoal que lhes digam respeito. Este direito já se encontrava firmado, entre o mais, no artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nos artigos 8.º e 51.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, na Convenção do Conselho da Europa para a Proteção das Pessoas relativamente ao Tratamento, Automatizado de Dados de Caráter Pessoal, de 28 de janeiro de 1981 (“Série des traités européens - n° 108” - STE 108), e no artigo 16.º do TFUE. Para o que agora nos ocupa, ressaltam mais concretamente os artigos (RGPD) 14.º (direito à retificação); 17.º (direito ao apagamento/direito ao esquecimento); 21.º (direito de oposição). Já do artigo 77.º decorre que: “Sem prejuízo de qualquer outra via de recurso administrativo ou judicial, todos os titulares de dados têm direito a apresentar reclamação a uma autoridade de controlo, em especial no Estado-Membro da sua residência habitual, do seu local de trabalho ou do local onde foi alegadamente praticada a infração, se o titular dos dados considerar que o tratamento dos dados pessoais que lhe diga respeito viola o presente regulamento”. (1) O direito ao esquecimento «pode ser definido como um direito fundamental de personalidade amparado no princípio da dignidade humana, segundo o qual o titular, pessoa individual ou coletiva, tem o direito à autodeterminação informativa, isto é, pode requerer o apagamento, retirada ou bloqueio da divulgação de dados, lícitos ou não, que lhe digam respeito, encontrados nos diversos meios de comunicação e que não tenham mais interesse público, judicial, histórico ou estatístico ou ainda que não sejam vedados por lei. Não se trata, portanto, de eliminar todas as referências a factos ocorridos no passado, mas apenas de evitar a exposição desnecessária e lesiva de acontecimentos desprovidos de interesse público atual. Exprime em suma um poder de autocontrolo dos próprios dados pessoais». (1) Resulta dos trabalhos preparatórios da Diretiva 95/46 que as isenções e derrogações previstas no artigo 9.º desta diretiva são aplicáveis não só às empresas de comunicação social, mas também a qualquer pessoa que exerça a atividade de jornalismo (v., neste sentido, Acórdão de 16 de dezembro de 2008, Satakunnan Markkinapörssi e Satamedia, C-73/07, EU:C:2008:727, nº 58). (1) «O Tribunal de Justiça já declarou que, a fim de ter em conta a importância da liberdade de expressão na sociedade democrática, importa interpretar os conceitos relativos a essa liberdade, como o de jornalismo, de modo amplo (v. neste sentido, Acórdão de 16 de dezembro de 2008, Satakunnan Markkinapörssi e Satamedia, C-73/07, EU:C:2008:727, nº 56)[13]. (…) É à luz destas considerações que há que examinar em que condições o operador de um motor de busca está obrigado a deferir um pedido de supressão de referências e assim apagar da lista de resultados, exibida após uma pesquisa efetuada a partir do nome da pessoa em causa (…) a hiperligação para uma página Internet, na qual figuram dados pessoais específicos dessa pessoa, pelo facto de o conteúdo apresentado conter alegações que a referida pessoa considera inexatas[14]. [v. neste sentido, Acórdão de 24 de setembro de 2019, GC e o. (Supressão de referências a dados sensíveis), C-136/17, EU:C:2019:773, nº 60]. Noutra vertente, encontra-se provado nos presentes autos, sem oposição e entre o mais, que: “Como consequência da conduta das Rés, o Autor sentiu-se ofendido e injustiçado, por se considerar uma pessoa com elevados princípios morais, estimado e honesto; A utilização do nome do Autor na entrevista, sem prévio conhecimento, prestação de esclarecimentos ou autorização por parte do Autor, agastou e envergonhou o Autor. Ao ter conhecimento da entrevista, o Autor sentiu-se perturbado, constrangido e humilhado, sentimentos que perduraram no tempo e que ainda hoje se fazem sentir. Ao conhecer a entrevista, o Autor sentiu-se utilizado como um objeto de informação facciosa e sensacionalista. A atuação das Rés gera no Autor sentimentos de ter sido agredido e rebaixado na sua reputação enquanto profissional com 30 anos de trabalho”. Ou seja, apesar de as frases em causa não constituírem factos ilícitos, na interpretação do A., acabam por lhe causar sentimentos negativos. Também está demonstrado que o Autor não é uma figura pública, não existindo assim a limitação que se poderia ponderar quanto ao interesse público na divulgação do seu nome em tal entrevista. Assim, na ponderação de valores em causa, ressalta que deve ser mais valorada a situação no que concerne aos sentimentos que são gerados no A./Recorrente pela publicação do seu nome na entrevista (apesar de, como já suprarreferimos, se tratarem de sentimentos que, perante a realidade da vida e das coisas, no nosso entender, esses sentimentos serem exagerados, uma vez que o que se publicou referia-se apenas a “rumores”, com o sentido já apreciado), deverão prevalecer as implicações pessoais, pelo que, entendemos que na publicação que ainda se encontra online o seu nome deverá ser suprimido. Assim, o presente recurso só parcialmente poderá proceder. * V. Decisão. Por tudo o que expendeu e tendo em conta as normas legais invocadas: julga-se o recurso apresentado pelo A., parcialmente procedente e, consequentemente: 1. Revoga-se a sentença recorrida na parte em que a mesma absolve as RR. do pedido do A. de retirada do seu nome ou referência que o identifique na entrevista; 2. Condena-se a R. […] S.A., a apagar o nome do A./Recorrente da entrevista em causa publicada online no jornal “Nascer do Sol” e, onde consta: “houve o caso do figurinista […] que em tempos não entregou os fatos e ficou com o dinheiro” deverá passar a constar apenas “houve o caso de um figurinista que, alegadamente, em tempos, não entregou os fatos e ficou com o dinheiro”; 3. Confirma-se a sentença recorrida no restante decidido. * Custas a cargo de Recorrente e Recorridas na proporção de metade para cada, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao A.. * Rui Vultos Carla Figueiredo Rui Oliveira _______________________________________________________ [1] Abrantes Geraldes - Recursos em Processo Civil, 6ª ed., p. 181. [2] Ac. do STJ n.º 12/2023 de 17/10/2023 (uniformizador de jurisprudência). [3] Cf. Ac. do STJ de 27/04/2023, proc. 4696/15.0T8BRG.G1.S1. [4] António Abrantes Geraldes, op. cit., pp. 199/200. [5] Cf. Maia Gonçalves - Código Penal Português, anotação ao crime de injúria. [6] Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/intriga. [7] Infopédia – Porto Editora, (em linha) https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/intrig%C3%A1. [8] Ac. da RE de 7/11/2023, proc. 57/19.0T9NIS.E1. [9] Ac. de 18/05/2016, proc. 161/14.1TAAMT.S1. [10] Ac. do STJ de 09/02/2021, proc. 26069/18.3T8PRT.P1S1. [11] Ac. do STJ de 3/11/2023, proc. 835/15.0T8LRA.C4.S1. Vd. ainda os Acs. RP de 15/09/2025, proc. 12787/22.5YIPRT.P1 e de 11/12/24, proc. 10508/22.1YIPRT.P1. [12] Proc. 12234/21.0T8LSB.L1-7 [13] Ac. do TJUE de 14/02/2019, C-345/17. [14] Neste sentido, vd. Acórdão de 24 de setembro de 2019, GC e o C-136/17, EU:C:2019:773, nº 60] (sublinhado nosso).  |