Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2410/21.0T8VFX.L1-4
Relator: ALBERTINA PEREIRA
Descritores: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO ADMINISTRATIVA
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE
NORMA PENAL EM BRANCO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: MANTIDA A DECISÃO
Sumário: I–Por força do disposto no art.º 205.º, da nossa Constituição, a decisão da autoridade administrativa deve estar fundamentada, pois só assim o Arguido pode conhecer as razões que presidiram à sua condenação, ponderar sobre a oportunidade e conveniência de deduzir impugnação judicial e o tribunal conhecer o processo lógico que presidiu à formação da referida decisão.

II–Uma vez que a decisão administrativa é proferida num contexto de celeridade e simplicidade processuais, o dever de fundamentação não deve ser qualitativamente tão exaustivo e exigente como sucede na decisão judicial.

III–Por ser assim, prevê o art.º 25.º, n.º 5, da Lei 107/2009, de 14 de Setembro (Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais e de Segurança Social - RPCOLSS), que a “fundamentação da decisão pode consistir em mera declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas de decisão elaborados no âmbito do respectivo processo de contra-ordenação”.

IV–Na presente situação, mostra-se respeitado o supra mencionado preceito, uma vez que a decisão em causa contém a indicação das normas segundo as quais se pune o infrator, bem como a respectiva fundamentação.

V–Importa ainda reter que no plano contraordenacional, o princípio da legalidade, na vertente nullum crime sine lege”, não assume a intensidade que vigora no direito penal, embora seja de exigir que exista um mínimo de previsibilidade, ou seja, um grau suficiente de precisão que permita identificar o comportamento do agente e associá-lo a um tipo legal de contraordenação

VI–É isso que se retira do referido art.º 15.º, n.º 2 alínea c), da Lei 102/2009, setembro (Regime jurídico da promoção da saúde e segurança no trabalho), do qual decorre o dever de identificação dos riscos previsíveis da atividade em questão, reportada não apenas a essa atividade, mas também aos equipamentos para a mesma utilizados e às instalações em que tem lugar.

VII–Atendendo à natureza da Arguida, à atividade por si desenvolvida e à circunstância de continuamente usar nas suas instalações meios de arrefecimento através da água, e de já anteriormente ter agido em sintonia com o referido normativo, impunha-se à mesma proceder à prevenção dos riscos decorrentes da bactéria Legionella Pneumophila (Lp) - tanto mais que a proteção da segurança e saúde de trabalhadores contra riscos de exposição a agentes biológicos na prestação laboral estava prevista no DL 84/97, de 16 de Abril, na redação da Lei 113/99, de 3 de Agosto.


(Elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:Acordam em Conferencia no Tribunal da Relação de Lisboa


1.Relatório:


1.1.Recorre a Arguida, AAA, da decisão proferida pelo Juízo 2,  do Juízo do Trabalho de Vila Franca de Xira - Tribunal  Judicial da Comarca de Lisboa Norte, a qual, confirmando a ­­­decisão da autoridade administrativa, a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), a condenou na coima de 9.180,00€ (nove mil centos e oitenta euros) e na sanção acessória de publicidade, pela prática da contraordenação prevista e punível no art.º 15.º, n.º 2, alínea a), e n.º 14, da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro. Finaliza a sua motivação, concluindo do seguinte modo:
(…)

1.2.Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
1.3.–O recurso foi admitido por despacho de fls. 665.
1.4.–Remetidos os autos a esta Relação, deles teve vista a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta, tendo emitido parecer no sentido do não provimento do recurso e confirmação da sentença recorrida.
1.5.–A Arguida respondeu ao parecer, pugnando pelo provimento do recurso.
1.6.Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

Cumpre apreciar e decidir

2.– Objeto do recurso

O objeto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respetiva motivação, nos termos dos artigos 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal CPP), aplicáveis, subsidiariamente, por força do disposto, sucessivamente, no artigo 60.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais e de Segurança Social (RGCOLSS), aprovado pela Lei 107/2009, de 14 de Setembro e nos artigos 41.0, n.º 1 e 74.0 n.º 4, do Regime Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo DL 433/82, de 27 de Outubro (RGCO), diploma este com as alterações introduzidas pelo DL356/89, de 17 de Outubro, pelo DL 244/95, de 14 de Setembro, pelo DL 323/2001, de 17 de Dezembro e pela Lei 109/2001, de 24 de Dezembro. Assim, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal consistem em saber se o auto de notícia e a decisão condenatória são nulos nos termos, respetivamente, dos artigos 283.º, n.º 3, s 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), todos do CPP “ex vi” do art.º 41.º, n.º 1, do RGCO;  se o art.º 15.º, da Lei 102/2009, de 4 de Setembro, sem concretização normativa, é inconstitucional por violação dos artigos 2.º, 18.º e 29.º da Constituição da República Portuguesa (CRP); se o art.º 550.º do Código do Trabalho é também inconstitucional; se a Arguida agiu sem consciência da ilicitude, e,  em caso de condenação, se não deve ser-lhe aplicada sanção superior à admoestação.

3.–Fundamentação de facto

3.1.-Encontram-se provados os seguintes factos:
1.–A AAA dedica-se ao fabrico de adubos químicos ou minerais e de compostos azotados.
2.–Possuindo estabelecimento industrial na (…).
3.–(…) o Relatório de Avaliação de Riscos Profissionais, que havia sido elaborado pelo ISQ em Fevereiro desse ano, com referência aos equipamentos (escadas, plataformas de trabalho, mobiliário, objetos/equipamentos diversos, camiões, empilhadores, locomotivas e automóveis) identificava riscos de atropelamento, queda ao mesmo nível, escorregamento/tropeçamento, queda de objetos/equipamento, queda em altura, colisão e perturbações fisiológicas (surdez ocupacional), para todos estabelecendo medidas e de controle e de prevenção.
4.–No mesmo relatório e em relação a matérias (diversas substancias químicas) identificava riscos de libertação de gases/vapores, projeção de líquidos e emissão de poeiras para todos estabelecendo medidas e ações de controle e de prevenção.
5.–À data a arguida possuía licença ambiental com o nº 173/2008, emitida pela Agencia Portuguesa do Ambiente.
6.–No exercício da sua atividade industrial de produção de adubos a arguida utiliza um sistema de arrefecimento dos equipamentos de produção através de três circuitos de torres de refrigeração e de bacias.
7.–Nas quais circula água com a qual procede ao arrefecimento dos equipamentos de produção de adubos.
8.–A água circula em circuitos autónomos do processo de produção dos adubos e dos circuitos onde circulam os materiais de produção.
9.–E que é proveniente quer de furos realizados pela arguida, quer da rede pública de abastecimento.
10.–Na ausência de indicação específica de qualquer entidade oficial ou de menção nas licenças inerentes ao exercício da sua atividade a arguida tinha como referência as metodologias técnicas disponíveis em documento emitido pela Comissão Europeia em 2001 sobre prevenção e controle integrado da poluição, com referência sobre as melhores técnicas disponíveis nos sistemas de refrigeração industrial.
11.–No qual se refere “Os aspetos de risco dos sistemas de refrigeração têm a ver com fugas dos permutadores de calor, a armazenagem de produtos químicos e a contaminação microbiológica (como a doença do legionário) dos sistemas de refrigeração húmidos. (…). Aconselha-se um programa de tratamento de água adequado para prevenir o desenvolvimento de Legionella Pneumophila (Lp). Não foi possível determinar limites de concentração máximos para a Lp, medidos em unidades de formação de colonias (CFU por litro), abaixo dos quais está afastada a existência de risco. Este risco deverá ser tomado em consideração sobretudo durante operações de manutenção”.
12.–A arguida mantinha, e mantém, contrato com empresas especializadas com vista à gestão e tratamento das águas que utiliza nos circuitos de refrigeração, manutenção e controle dos sistemas de refrigeração com vista a assegurar a boa circulação hidráulica, através da realização de análises e controle da água e da limpeza dos equipamentos e circuitos de refrigeração.
13.–Nas análises regularmente realizadas em execução de tais serviços tinha lugar, desde 2012, a análise à presença de Legionella.
14.–(…) a arguida cessou contrato com a empresa que vinha assegurando os referidos serviços e contratou outra empresa para os mesmos serviços.
15.–Com a qual contratou a realização de monotorização microbiológica quinzenal com implementação de ações imediatas, controle e prevenção de Legionella com análises trimestrais nos circuitos de refrigeração.
16.–No relatório único (…) previsto na Portaria 55/2010, de 21de Janeiro, a arguida indicou 220 trabalhadores e registo de um volume de negócios de 232 787 462,00€.
17.–(…) foi detetado surto de doença do legionário em freguesias do concelho de Vila Franca de Xira.
18.–Antes desse surto nenhuma das diversas entidades que fiscalizara, a atividade da arguida, incluindo a ACT (Autoridade para as Condições do Trabalho), ou que procedeu ao licenciamento da sua atividade determinou ou questionou qualquer atuação direcionada para a bactéria da Legionella.
19.–(…) renunciou ao cargo de administrador da AAA em 20 de julho de 2015.

3.2.– Factos não provados

Não se provou que:

Quantos ou quais os trabalhadores da arguida, ou trabalhadores prestando funções em instalações desta, foram infetados pela doença do legionário, nem quais as consequências dessa infeção para cada um.

4.–Fundamentação de Direito

4.1. Questão Prévia

Insurge-se a Arguida contra o teor do art.º 35.º, do RGCOLSS, por este fazer depender a atribuição do efeito suspensivo da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa da prestação de caução, de montante igual ao valor da coima aplicada. Sustenta que o referido normativo é inconstitucional, constituindo uma restrição desproporcionada do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva e por violação dos princípios da proporcionalidade e da presunção de inocência, consagrados nos artigos 18.º, n.º 2, 20.º, 268.º, n.º 4, e 32.º, números 2 e 10, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Adianta-se, desde já, não assistir razão à Arguida.

Em primeiro lugar, importa assinalar, que no presente domínio (onde pontificam atos administrativos e atos integradores de contraordenações), para efeitos de impugnação das decisões da autoridade administrativa, o regime a considerar é o do ilícito de mera ordenação social e, subsidiariamente, o do Código de Processo Penal (CPP). Neste caso, por força do disposto no art.º 41.º, n.º 1, do RGCO Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal”.

Por sua vez, o art.º 55.º do mesmo diploma legal prescreve que:
1- As decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo são suscetíveis de impugnação judicial por parte do arguido ou da pessoa contra as quais se dirigem.
2- O disposto no número anterior não se aplica às medidas que se destinem apenas a preparar a decisão final de arquivamento ou aplicação da coima, não colidindo com os direitos ou interesses das pessoas.
3- É competente para decidir do recurso o tribunal previsto no artigo 61.º que decidirá em última instância”.

Referindo o art.º 46.º, também do mesmo diploma, o seguinte:
1- Todas as decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas serão comunicadas às pessoas a quem se dirigem.
2- Tratando-se de medida que admita impugnação sujeita a prazo, a comunicação revestirá a forma de notificação, que deverá conter os esclarecimentos necessários sobre admissibilidade, prazo e forma de impugnação”.

E porque a sobredita problemática foi suscitada no âmbito do presente recurso, deve ter-se em consideração o previsto nos artigos 49.º a 51.º do RPCOLSS.

Aí se dispõe:
“Artigo 49.º Decisões judiciais que admitem recurso

1Admite-se recurso para o Tribunal da Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 39.º, quando:
a)- For aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente;
b)- A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c)- O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa competente tenha aplicado uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente, ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d)- A impugnação judicial for rejeitada;
e)- O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 39.º
2 Para além dos casos enunciados no número anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infrações ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infrações ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso sobe com esses limites.

Artigo 50.º Regime do recurso
1- O recurso é interposto no prazo de 20 dias a partir da sentença ou do despacho, ou da sua notificação ao arguido, caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste.
2- Nos casos previstos no n.º 2 do artigo anterior, o requerimento segue junto ao recurso, antecedendo-o.
3-Nestes casos, a decisão sobre o requerimento constitui questão prévia, que é resolvida por despacho fundamentado do tribunal, equivalendo o seu indeferimento à retirada do recurso.
4- O recurso segue a tramitação do recurso em processo penal, tendo em conta as especialidades que resultem desta lei.

Artigo 51.º Âmbito e efeitos do recurso
Se o contrário não resultar da presente lei, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.

2 A decisão do recurso pode:
a)-Alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida;
b)-Anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido.”

Havendo ainda que atender ao disposto no art.º 60.º, do RGCOLSS, onde se estipula que Sempre que o contrário não resulte da presente lei, são aplicáveis, com as devidas adaptações, os preceitos reguladores do processo de contraordenação previstos no regime geral das contraordenações”, e também ao constante no art.º 41.º, n.º 1, do RGCO, por via do qual, relembra-se, são aplicáveis, devidamente adaptados “os preceitos reguladores do processo criminal”.

Conforme prescrito no art.º 399.º do CPP É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei”.

Determinando o art.º 401.º, do CPP:
1-Têm legitimidade para recorrer:
(…)
b)- O arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas (…).

De ponderar é ainda o disposto quanto aos princípios gerais que regem a matéria dos recursos no processo penal e as regras respeitantes à sua tramitação, naquilo que seja transponível para o processo contraordenacional. Para a economia da presente decisão é ponderável, ainda, o preceituado no art.º 411.º, n.º 3, segundo o qual O requerimento de interposição do recurso é sempre motivado, sob pena da sua não admissão (…)”; o previsto no art.º 406.º, n.º 1, “Sobem nos autos os recursos interpostos de decisões que ponham termo à causa e os que com aqueles deverem subir”, e o decorrente do art.º 407.º, n.º 3 por via do qual Quando não deverem subir imediatamente, os recursos sobem com e são instruídos e julgados conjuntamente com o recurso que tive sido interposto da decisão que tiver posto termo à causa”. 

Feito o enquadramento, importa agora analisar a tramitação seguida nos autos e a postura neles assumida pela Arguida.

E, dos autos, resulta o seguinte:
- Após ter sido proferida decisão condenatória da Arguida por parte da ACT, foi emitida Guia Depósito Caução, a favor da ACT, no montante total de € 9.333,00 (Coima € 9.180,00, Custas €153,00).
- Esta quantia foi, oportuna e voluntariamente, paga pela Arguida, nada tendo a mesma suscitado ou requerido a esse respeito (fls. 604 e 605), quando poderia, pelo menos, ter requerido a substituição da caução por garantia bancária, na modalidade de «à primeira solicitação» (art.º 35.º n.º 3), o que não fez.
- Na sequência, veio a Arguida a apresentar, em 21-12-2018, impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa (fls. 480-603).
- Em 27-09-2021 foi proferido despacho pela Mma. Juíza do Tribunal a quo” a admitir a impugnação apresentada, tendo fixado ao recurso o efeito suspensivo, face do disposto no art.º 35.º, n.º s 2 e 3, do RGCOLSS (fls. 665).

Também nessa sede a Arguida, nada invocou ou requereu quanto ao facto de ter prestado caução para ser fixado efeito suspensivo ao recurso por si interposto.

Os recursos, são, como é sabido, meios de impugnação de decisões judiciais, com vista a permitir a sua reapreciação por tribunal de categoria hierarquicamente superior. Essa reapreciação está, porém, dependente de determinados requisitos formais, onde se contam a legitimidade para recorrer.

É necessário, consoante assinalado, que a decisão tenha sido proferida contra o Arguido, ou seja, deve tratar-se de decisão que lhe seja desfavorável.

A legitimidade é um pressuposto processual relativo às partes e à sua posição perante o objeto da causa. Através dela obtém-se a coincidência entre os sujeitos que em nome próprio impulsionam e conduzem o processo e aqueles em cuja esfera jurídica a decisão judicial irá produzir efeitos, emergindo essa pertinência relativamente à relação jurídica processual do interesse direto em demandar ou contradizer, consoante, o desfecho da causa se apresente potencialmente benéfico ou prejudicial aos interesses ou direitos em confronto. No âmbito dos recursos, a legitimidade traduz-se na posição do sujeito perante o processo. Refere-se a mesma ao conteúdo da decisão, a justificar que esta possa por ele ser impugnada através de recurso, aferindo-se tal justificação pelo prejuízo decorrente dessa decisão (Vd. o Ac. do TRL de 16-10-2019, proc. 345/18.3IDLSB.L1-3. E também, Gonçalves da Costa, in “Jornadas de Processo Penal”, pág. 412. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4.ª Edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa 2011, pág. 1051, e ainda Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 1988, pág. 32, também citados no dito acórdão).

No presente caso, a Arguida limitou-se a observar a tramitação legalmente prevista nada tendo suscitado sobre a matéria agora invocada. Não se vislumbra, assim, que tenha sido proferida decisão contra si, pelo que sempre careceria a mesma de legitimidade para recorrer. E, ainda que assim não fosse, e porventura (e por hipótese) se pudesse considerar ter sido a mesma afetada pela decisão tomada no que ao efeito do recurso se refere, deveria essa decisão ter sido oportunamente impugnada pela Arguida, o que tão pouco se demostra tenha ocorrido.

Face ao exposto, carecendo a Arguida de legitimidade para recorrer, o recurso no segmento referido não é admissível. Para além disso, mesmo que por hipótese se pudesse considerar ter existido decisão desfavorável à Arguida, não se demonstrando que esta tenha interposto o competente recurso, sempre seria de rejeitar o recurso quanto à matéria assinalada.

Assim, uma vez que a decisão de admissão do recurso não vincula o tribunal superior (art.º 414.º, n.º 3, do CPP), não reunindo a Arguida as condições para recorrer (art.º 414.º, n.º 2 e art.º 420.º, alínea b)), não se conhece do mesmo na referida vertente. Termos em que improcede, sem mais, a presente questão.

4.2.–Da nulidade do auto de notícia e decisão condenatória nos termos, respetivamente, dos artigos 283.º, n.º 3, s 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), todos do CPP “ex vi” do art.º 41.º, n.º 1, do RGCO.
- Sustenta a Arguida que o auto de notícia e a decisão recorrida, ao não indicarem a norma específica que terão querido aplicar, em concretização dos princípios gerais de prevenção relativamente à doença da Legionella, impossibilitam uma defesa minimamente sustentada por parte da Recorrente, obrigando-a a um exercício especulativo a partir de uma imputação fundada em princípios, mas vazia de normas.

Entende, por isso, que são nulos, o auto de notícia e a decisão, nos termos, respetivamente, dos artigos 283.º, n.º 3, 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), todos do CPP “ex vi” do art.º 41.º, n.º 1, do RGCO).

Vejamos,

Decorre do art.º 13.º, n.º 2 do RPCLSS, que sem prejuízo do disposto em legislação especial, há lugar a auto de notícia quando, no exercício das suas funções o inspetor do trabalho ou da segurança social, verificar ou comprovar, pessoal e diretamente, ainda que por forma não imediata, qualquer infração a normas sujeitas à fiscalização da respetiva autoridade administrativa sancionada com coima”.

Dispondo, por seu turno, o art.º 15.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, que «[o] auto de notícia, a participação e o auto de infração referidos nos artigos anteriores mencionam especificadamente os factos que constituem a contraordenação, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foram cometidos e o que puder ser averiguado acerca da identificação e residência do arguido, o nome a categoria do autuante ou participante e, ainda, relativamente à participação, a identificação e a residência das testemunhas».

A materialidade do referido documento significa que nele devem “ser relatados os factos materiais sensorialmente percetíveis que constituem a contraordenação, especificando-se o dia, a hora, o local, e as circunstâncias em que foram cometidos, bem como a identificação do arguido, dos ofendidos e do autuante”.

No presente caso, consta do auto de notícia de fls. 1-5, a identificação do autuante (Inspetor do Trabalho – …) e da arguida AAA nele se tendo consignado a disposição legal infringida, o artigo 15º, n.º 1 e 2 do Regime Jurídico da Promoção da Segurança e Saúde no trabalho, aprovado pela Lei nº 102/2009, de 10 de Setembro, de acordo com a republicação da Lei nº 3/2014, de 28 de Janeiro, tipificada como contraordenação Muito Grave, nos termos do artigo 15º nº 4 da mesma disposição legal”.
Mais consta do referido auto que “16. Ao não contemplar na avaliação de riscos efectuada a exposição dos trabalhadores a riscos biológicos, nomeadamente à bactéria Legionella pneumophila, não cumpriu a arguida a obrigação atrás referida, em violação do disposto no artigo 15º , nº 2 2 , al a) da Lei nº 102/2009, de 10 de Setembro, que estipula que o empregador deve zelar , de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador , tendo em conta a identificação dos riscos previsíveis em todas as atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando tal seja inviável , à redução dos seus efeitos”.

Face ao disposto no citado art.º 15.º, o que deve constar do auto de notícia são os factos integrantes da contraordenação e suas circunstâncias. Isto é, do enunciado do auto deve poder obter-se resposta quanto às seguintes questões: quê, quem, como, onde e porquê.

E isso emerge claramente referido auto de notícia, onde até se fez constar a norma jurídica violada com a conduta da arguida, nada havendo assim a objetar-lhe.

Relativamente a este aspeto, a Arguida, pese embora se refira à nulidade do auto de notícia, não lhe assaca qualquer desconformidade com o previsto na lei.

Todavia, invocando a mesma a violação do seu direito de defesa, pressupõe-se que se está a referir ao preceituado no art.º 17.º do mesmo diploma, onde se prescreve: 1- O auto de notícia, a participação e o auto de infração são notificados ao arguido, para, no prazo de 15 dias, proceder ao pagamento voluntário da coima. 2- Dentro do prazo referido no número anterior, pode o arguido, em alternativa, apresentar resposta escrita ou comparecer pessoalmente para apresentar resposta, devendo juntar os documentos probatórios de que disponha e arrolar ou apresentar testemunhas, até ao máximo de duas por cada infração. 3- Quando tiver praticado três ou mais contraordenações a que seja aplicável uma coima única, o arguido pode arrolar até ao máximo de cinco testemunhas por todas as infrações.”

No presente caso, da notificação feita à Arguida (fls. 30), não consta a norma jurídica violada. Porém, uma vez que essa notificação foi acompanhada do referido auto de notícia, onde tais elementos estão indicados, é de concluir ter sido dada a conhecer à arguida a norma jurídica segundo a qual se pune.
Uma vez que no processo de contraordenação, a apresentação dos autos ao juiz pelo Ministério Público, vale como acusação (art.º 37.º do RPCOLSS), emergindo destes autos a indicação das normas jurídicas em questão, é de considerar ter sido dado cumprimento ao preceituado no art.º 283.º n.º 3, alínea d), do CPP.

“A acusação contém, sob pena de nulidade: (…)

d)- A indicação das disposições legais aplicáveis; (…)”.
- Invoca também a Arguida a nulidade da decisão recorrida por esta não ter declarado a nulidade da decisão (administrativa) condenatória nos termos do art.º 25.º, n.º 1, alínea c), do RPCOLSS.

A redação desse normativo, é a seguinte:
1-A decisão que aplica a coima e ou as sanções acessórias contém: (…);
c)- A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; (…)”

Por seu turno, no art.º 374.º, n.º 2, do CPP determina-se, quanto aos requisitos da sentença, que Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

Determinando o art.º 379.º, n.º 1, alínea a), entre mais, e para o que aqui releva, que:
É nula a sentença: Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º (…)”.
Não se ignora a controvérsia existente no referente à inobservância dos requisitos a que deve obedecer a decisão condenatória. Sustentam alguns autores estar-se perante mera irregularidade, a que se aplica o regime previsto no artigo 123.º, do Código de Processo Penal (Vd. Beça Pereira, in Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, Almedina 2013, 9.ª Edição, pág. 154).

Para outros, trata-se de nulidade, aplicando-se subsidiariamente o previsto no processo criminal relativamente às decisões condenatórias, por força do artigo 41.º do RGCO e dos artigos 374.º, n.ºs 2 e 3 e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal (Vd. Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, “Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral”, 2.ª Edição, dezembro de 2002, Vislis Editores, págs. 334 e 335. E, entre outros, também o Ac. do TRP de 27-02-2002, proc. 0111558, disponível em www.dgsi.pt).

Pese embora essa divergência, por força do disposto no art.º 205.º, da nossa Constituição, não pode a decisão administrativa deixar de estar fundamentada, pois só assim o arguido pode conhecer as razões que presidiram à sua condenação e se possibilita ao mesmo formular um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e em sede judicial permitir ao tribunal conhecer o processo lógico de formação da aludida decisão administrativa (Vd. Oliveira Mendes, José Santos Cabral, “Notas ao Regime das Contra-Ordenações”, Almedina, 2003, pág. 155).

Ponderando, porém, que a dita decisão é proferida num contexto de celeridade e simplicidade processuais, tal dever de fundamentação não deve ser qualitativamente tão exaustivo como sucede na decisão judicial.

Por ser assim, e à semelhança do que já antes era entendido pela jurisprudência (Vg. Ac. do TRL de 23-05-2006, proc. 1661/2006-5, de 23-05-2006), o legislador consagrou no art.º 25.º, n.º 5, do RPCOLSS, que a fundamentação da decisão pode consistir em mera declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas de decisão elaborados no âmbito do respectivo processo de contra-ordenação”.

Ponderando os referidos considerandos, e retornando ao presente caso, verifica-se que nos autos em análise, a decisão da autoridade administrativa (fls. 390 a 420), contém a indicação das normas, segundo as quais se pune o infrator, bem como a fundamentação da decisão.

A Arguida discorda dessa indicação. Pretendendo que na decisão não consta a norma específica que se terá pretendido aplicar para a sancionar. Todavia, essa é uma matéria que relevará, eventualmente, em sede de outra questão, e não como elemento integrador revelador de nulidade da decisão – que, no caso, se não verifica.

Nos presentes autos, uma vez que tanto a decisão administrativa, como a decisão recorrida contêm a indicação das normas em que se baseia a condenação da Arguida, apenas nos resta concluir pela improcedência da referida questão.

4.3.Da inconstitucionalidade do art.º 15.º, da Lei 102/2009, de 4 de setembro, à luz dos artigos 2.º, 18.º e 29.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), por falta de concretização normativa.

Invoca a Arguida, a respeito da presente questão, que o art.º 15.º da Lei 102/2009, norma que serviu de base à sua condenação, é uma norma em branco por não prever o comportamento a adotar pela Recorrente no que se refere à identificação do risco de Legionella no relatório de avaliação dos riscos profissionais. Não existindo à data da inspeção da ACT qualquer disposição legal ou regulamentar ou obrigações impostas por autoridades competentes a respeito da identificação do risco de Legionella.

Salvo o devido respeito, não tem razão a Arguida.

Nos termos do art.º 59.º da Constituição
1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito: (…)
c)- A prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde;

Em linha com o prescrito na Constituição, preceitua o art.º 281.º do Código do Trabalho que:
1- O trabalhador tem direito a prestar trabalho em condições de segurança e saúde.
2- O empregador deve assegurar aos trabalhadores condições de segurança e saúde em todos os aspetos relacionados com o trabalho, aplicando as medidas necessárias tendo em conta princípios gerais de prevenção”.

A propósito do art.º 273.º nº 2 do anterior Código do Trabalho (com redação semelhante à do citado art.º 281.º), salienta Milena Rouxinol, in Obrigação de Segurança e Saúde do Empregador, que sendo diversíssimas as normas que compõem a obrigação de segurança do empregador, todas devem ter-se como concretizações da cláusula geral constante do n.º 1, e do corpo do n.º 2, do art.º 273.º do CT. O âmbito da obrigação em análise afere-se, pois, por referência a esta cláusula geral, que, conferindo-lhe um carácter genérico, geral e universal, na mesma inscreve não só as medidas previstas naquelas normas específicas, categorias, ou sectoriais, mas todas reclamadas pelo desiderato visado.

Perante realidade tão multifacetada, o art.º 15.º da Lei 102/2009, de 10 de setembro (Regime jurídico da promoção da saúde e segurança no trabalho) define as obrigações gerais do empregador no domínio da segurança e saúde no trabalho nos seguintes termos:
1O empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do seu trabalho.
2 O empregador deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, tendo em conta os seguintes princípios gerais de prevenção:
a)- Evitar os riscos;
b)- Planificar a prevenção como um sistema coerente que integre a evolução técnica, a organização do trabalho, as condições de trabalho, as relações sociais e a influência dos fatores ambientais;
c)- Identificação dos riscos previsíveis em todas as atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na seleção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos;
d)- Integração da avaliação dos riscos para a segurança e a saúde do trabalhador no conjunto das atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, devendo adotar as medidas adequadas de proteção;
e)- Combate aos riscos na origem, por forma a eliminar ou reduzir a exposição e aumentar os níveis de proteção;
f)- Assegurar, nos locais de trabalho, que as exposições aos agentes químicos, físicos e biológicos e aos fatores de risco psicossociais não constituem risco para a segurança e saúde do trabalhador;
g)- Adaptação do trabalho ao homem, especialmente no que se refere à conceção dos postos de trabalho, à escolha de equipamentos de trabalho e aos métodos de trabalho e produção, com vista a, nomeadamente, atenuar o trabalho monótono e o trabalho repetitivo e reduzir os riscos psicossociais;
h)- Adaptação ao estado de evolução da técnica, bem como a novas formas de organização do trabalho;
i)- Substituição do que é perigoso pelo que é isento de perigo ou menos perigoso;
j)- Priorização das medidas de proteção coletiva em relação às medidas de proteção individual;
l)-Elaboração e divulgação de instruções compreensíveis e adequadas à atividade desenvolvida pelo trabalhador.
3Sem prejuízo das demais obrigações do empregador, as medidas de prevenção implementadas devem ser antecedidas e corresponder ao resultado das avaliações dos riscos associados às várias fases do processo produtivo, incluindo as atividades preparatórias, de manutenção e reparação, de modo a obter como resultado níveis eficazes de proteção da segurança e saúde do trabalhador.
4 Sempre que confiadas tarefas a um trabalhador, devem ser considerados os seus conhecimentos e as suas aptidões em matéria de segurança e de saúde no trabalho, cabendo ao empregador fornecer as informações e a formação necessárias ao desenvolvimento da atividade em condições de segurança e de saúde.
5 Sempre que seja necessário aceder a zonas de risco elevado, o empregador deve permitir o acesso apenas ao trabalhador com aptidão e formação adequadas, pelo tempo mínimo necessário.
6O empregador deve adotar medidas e dar instruções que permitam ao trabalhador, em caso de perigo grave e iminente que não possa ser tecnicamente evitado, cessar a sua atividade ou afastar-se imediatamente do local de trabalho, sem que possa retomar a atividade enquanto persistir esse perigo, salvo em casos excecionais e desde que assegurada a proteção adequada.
7 O empregador deve ter em conta, na organização dos meios de prevenção, não só o trabalhador como também terceiros suscetíveis de serem abrangidos pelos riscos da realização dos trabalhos, quer nas instalações quer no exterior.
8O empregador deve assegurar a vigilância da saúde do trabalhador em função dos riscos a que estiver potencialmente exposto no local de trabalho.
9O empregador deve estabelecer em matéria de primeiros socorros, de combate a incêndios e de evacuação as medidas que devem ser adotadas e a identificação dos trabalhadores responsáveis pela sua aplicação, bem como assegurar os contactos necessários com as entidades externas competentes para realizar aquelas operações e as de emergência médica.
10 Na aplicação das medidas de prevenção, o empregador deve organizar os serviços adequados, internos ou externos à empresa, estabelecimento ou serviço, mobilizando os meios necessários, nomeadamente nos domínios das atividades técnicas de prevenção, da formação e da informação, bem como o equipamento de proteção que se torne necessário utilizar.
11As prescrições legais ou convencionais de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas para serem aplicadas na empresa, estabelecimento ou serviço devem ser observadas pelo próprio empregador.
12 O empregador suporta a totalidade dos encargos com a organização e o funcionamento do serviço de segurança e de saúde no trabalho e demais sistemas de prevenção, incluindo exames de vigilância da saúde, avaliações de exposições, testes e todas as ações necessárias no âmbito da promoção da segurança e saúde no trabalho, sem impor aos trabalhadores quaisquer encargos financeiros.
13 Para efeitos do disposto no presente artigo, e salvaguardando as devidas adaptações, o trabalhador independente é equiparado a empregador.
14 Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto nos n.os 1 a 12.
15 Sem prejuízo do disposto no número anterior, o empregador cuja conduta tiver contribuído para originar uma situação de perigo incorre em responsabilidade civil.” 

A norma em questão é a do art.º 15.º, n.º 2 alínea c), onde se consagra o dever de ação de identificação de riscos previsíveis na atividade da empresa, reportada não apenas a concreta atividade nela desenvolvida, mas também aos equipamentos para a mesma utilizados e às instalações em que tem lugar. 

Porque nos situamos no plano contraordenacional, e a propósito do normativo em causa, é mister destacar que o princípio da legalidade, na vertente nullum crime sine lege”, não assume a intensidade que vigora no direito penal.

Com efeito, embora se utilize o conceito de tipo (“Constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preenche um tipo legal no qual se comine uma coima – art.º 1.º do RGCO), as condutas integradoras das contraordenações não são na generalidade dos casos individualizadas por referencia a uma norma análoga à norma incriminadora penal, isto é, uma norma onde se descreve uma determinada conduta e se define a sanção que lhe corresponde. “Ao lado de casos em que o legislador ensaia a estruturação de um tipo a integrar por apelo à normatividade administrativa concreta, noutros casos estabelecem-se verdadeiras cláusulas gerais através das quais se sanciona como contraordenação o incumprimento ou indisciplina que resulta de concretos dispositivos do regime administrativo considerado” (Vd. Leones Dantas “Estrutura da Infração Contraordenacional”, PDT, 2018-I, págs. 223 e segs.).

Para além desses tipos de normas, existem também as chamadas leis penais em branco, as que remetem para outra fonte normativa a definição dos seus próprios pressupostos de aplicação, ou alguns dos elementos constitutivos da infração para outras normas de valor hierarquicamente inferior (regulamentos, posturas, prescrições das autoridades, etc.), e ainda as normas que definindo embora os pressupostos de aplicação, remetem a sua precisa fixação para outro ato legislativo de valor hierarquicamente inferior ou para um futuro ato administrativo, condição da sua exequibilidade (Vd. Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Ob. Cit. pág. 50).

No presente domínio, uma vez que são muito menores as exigências relativamente à tipificação, abundam ainda os ilícitos contraordenacionais «em que é muito difusa, genérica ou inconcretizada a descrição do tipo objetivo de ilícito, que corresponde, muitas vezes, à mera violação de uma norma legal» (Vd. Joaquim Oliveira Martins, “Contraordenações laborais e da segurança social”, PDT 2021-I, pág.139).

Desta feita, embora se admita alguma sorte de inconcretização, sendo menos intensas, como se viu, as exigências de tipicidade – e sem que com isso se considere violado  o princípio da legalidade, impõe-se que  exista um mínimo de previsibilidade, ou seja, um grau suficiente de precisão que permita identificar o comportamento do agente e associá-lo a um tipo legal de contraordenação (Vd. A. Silva Dias e Rui Soares Pereira, “Direito das Contraordenações”, Almedina, 2.ª Edição, pág. 128. E também Tiago Lopes Azevedo “Lições de Direito das Contraordenações”, Almedina 2022, pág. 138).

Ora, isso é o que resulta do art.º 15.º n.º 2 alínea c), da Lei 102/2009. Na verdade, dele se retira o dever de identificação dos riscos previsíveis da atividade. No caso, atenta a natureza da Arguida e  à atividade por si desenvolvida e à circunstância de continuamente usar nas suas instalações meios de arrefecimento através da água, e de já anteriormente ter agido em sintonia com o referido normativo, impunha-se à mesma proceder à prevenção dos riscos decorrentes daquela bactéria - tanto mais que a proteção da segurança e saúde de trabalhadores contra riscos de exposição a agentes biológicos na prestação laboral estava prevista no DL 84/97, de 16 de Abril, na redação da Lei 113/99, de 3 de Agosto. Acresce, serem relevantes “na delimitação do âmbito do dever as noções de local de trabalho, componentes materiais de trabalho, perigo e risco que constam do art.º 4.º, da Lei 102/2009.  De acordo com a al e) o local relevante será o lugar em que o trabalhador se encontra ou de onde ou para onde deva dirigir-se em virtude do seu trabalho, no qual esteja directa ou indirectamente sujeito ao controlo do empregador. Particularizando o local e os elementos envolvidos na prestação da actividade a al f) identifica como “«Componentes materiais do trabalho» o local de trabalho, o ambiente de trabalho, as ferramentas, as máquinas, equipamentos e materiais, as substâncias e agentes químicos, físicos e biológicos e os processos de trabalho”. O perigo para a saúde e segurança é visto como a propriedade intrínseca de uma instalação, actividade, equipamento, um agente ou outro componente material do trabalho com potencial para provocar dano– al g).  A noção de risco consta do art.º 4.º alínea  h), como a probabilidade de concretização do dano em função das condições de utilização, exposição ou interacção do componente material do trabalho que apresente perigo;”.  Será assim, ponderadas estas noções e conceitos, que ao empregador se impõe a orientação da sua conduta na identificação de riscos para execução do principio geral do art.º 5.º da Lei 102/2009 de garantia que a prestação de trabalho tem lugar em condições que respeitem a segurança e a saúde do trabalhador. Essa identificação terá de ser efectuada em função da concreta actividade desenvolvida e dos concretos termos/meios em que a mesma tem lugar, factos estes que são do conhecimento do empregador, um conhecimento que se pode considerar privilegiado na medida em que se trata de actividade, meios e modos que o mesmo, por via sua qualidade de detentor dos mesmos, domina directamente. (…). Os riscos previsíveis são os riscos inerentes à actividade, ao modo como a mesma tem lugar e ao local onde é desenvolvida. Não se ignora que toda a actividade comporta riscos e que não é possível antever todos os riscos. Contudo, para além do referido conhecimento privilegiado do empregador sobre a concreta actividade/processo que desenvolve, não se pode ignorar que a actividade económica é objecto de diversa regulamentação, seja condicionante do seu funcionamento, seja delimitadora do mesmo. Aliás, a regulamentação da área da segurança e saúde no trabalho, na qual se enquadra o art.º 15.º e por cuja violação a arguida foi sancionada, caracteriza-se por uma dispersão de fontes normativas, por uma sistematização a partir de um regime geral acompanhado por específicas regulamentações sectoriais ou em função de riscos, pela definição de patamares mínimos de protecção e, fruto de progressivo apuramento de sedimentação de realidades e soluções técnicas e jurídicas, pela substituição de Directivas por Regulamentos, isto no âmbito da legislação comunitária – Vd. David Carvalho Martins, em Segurança e Saúde no trabalho: breves notas introdutórias, publicada em Prontuário de Direito do Trabalho, ano 2019 – I, a pág. 335. Ora, pese embora a especialização de actividades produtivas, as técnicas e os meios utlizados na prossecução de cada actividade não deixam de envolver meios ou equipamentos, ou mesmo procedimentos, que são igualmente utilizados noutras actividades produtivas mais ou menos afins. Quando a norma se reporta a “riscos previsíveis” não se vê como os mesmos não possam ser vistos em função dos riscos conhecidos como envolvidos no modo ou meios utilizados na actividade desenvolvida em função do conhecimento e experiência técnica e científica anterior, independentemente da sua específica previsão legal ou particularização para uma concreta actividade. Atenta a diversidade, complexidade e especificidade das actividades desenvolvidas em contextos laborais a identificação, legal ou regulamentar, de todos os riscos previsíveis não só terá de ter lugar através de recurso ou remissão para regulamentações mais ou menos técnicos, como será sempre um processo em constante evolução, acompanhando quer os desafios que a prossecução da actividade económica e laboral implica, como a evolução da técnica e conhecimento científico que a acompanha, ou que a impulsiona. (…). (…). O facto de a actividade da arguida não se encontrar expressamente incluída na listagem de actividades a que se reporta o art.º 1º do citado DL 84/97, ou mesmo de o teor deste se mostrar mais orientado para actividades que envolvem o manuseamento/contacto directo de agentes biológicos e microorganismos na execução da actividade, não se afigura que determine a desconsideração do destaque que o diploma revela quanto a riscos microbiológicos como, no caso da Legionella, se e na media em que o processo produtivo ou as características das instalações da arguida possuem características que potenciam o seu surgimento. (…). Conclui-se, assim, que por via do disposto no art.º 15.º n.º 2 alínea c), complementado pelo dito diploma, impunha-se à Arguida a identificação do risco Legionella como resultante do seu processo industrial, na medida que este envolvia sistema de refrigeração de equipamentos com recurso a água que circulava nos circuitos das denominadas torres de refrigeração, entre estas e as bacias. Perante isto, apenas nos resta concluir pela improcedência da presente questão.

4.4.Da inconstitucionalidade do art.º 550.º do Código do Trabalho
Sustenta a Arguida a inconstitucionalidade do art.º 550.º do Código do Trabalho em virtude de o tribunal ter concluído pela sua negligencia.
Nos termos do art.º 550.º do Código do Trabalho A negligência é sempre punível.”
A Arguida sustenta que a decisão recorrida assentou a sua condenação com base no citado art.º 550.º, segundo o qual é licito presumir a sua culpa. Também aqui não tem razão. Na verdade, não se retira da norma em causa a existência de qualquer presunção de culpa. Aceitando-se atualmente à luz da Constituição e da lei, a aplicação no ilícito contraordenacional do princípio da inocência, e como sua decorrência, nomeadamente, o princípio do in dubio pro reu e o da proibição da presunção de culpabilidade.

Refere João Soares Ribeiro,Contra-Ordenações Laborais”, Almedina 2.ª Edição, pág. 80, que o direito contraordenacional se consubstancia num conjunto de normas que impõem ao empregador deveres ou obrigações de conduta em que é razoável supor que o agente as conheça ou deva conhecer.

É nesse âmbito que se afere existência da negligência, com recurso, inclusive, às regras da experiencia ou por via do uso de presunções naturais ou judiciais (Vd. Ac. Acórdãos do TRL de 03-03-2008, proc. 141/09.TBVFL.L1 e de 08-02-2012, proc. 272/11.5TTBRR.L1-4 e do TRG de 5-4-2018 proc. 4016/17.0T8VNF.G1, in ww.dgsi.pt). 

Assertivamente salienta, Leones Dantas in Ob. Cit., pág. 230, que “haverá conduta negligente quando o agente tenha atuado sem ter consciencializado o dever que lhe impunha que atuasse de foram diversa, o que é censurável porque evidencia uma violação do cuidado devido ou quando tendo conhecimento dessa normatividade, não atua de forma a moldar a sua conduta por essa normatividade”. 

A esse respeito, consoante se assinalou na sentença recorrida, nas sociedades modernas qualquer ação, em particular as que possuem relevo económico e social, mostram-se altamente regulamentadas. Aos empregadores, enquanto detentores da exploração económica, a partir do momento em que iniciam a mesma exige-se que acautelem o cumprimento dos normativos que sobre si a lei impõe, sendo um facto notório que a atividade económica, o relacionamento dos sujeitos no contexto da mesma (seja dentro da unidade de exploração seja com o seu exterior) obedece a regras mínimas de conduta, mais ou menos particularizadas.

A arguida possuía mais de 200 trabalhadores ao seu serviço, o que revela não se tratar de uma pequena empresa, exercia actividade que era objecto de licenciamento especifico e possuía uma organização que determinava mesma a recorrer a serviços de empresas externas para controle, gestão e tratamento de águas.
Desta factualidade, a experiencia diz-nos que a arguida não podia desconhecer os normativos relativos ao exercício da sua atividade e às suas obrigações no domínio da segurança e saúde no trabalho”.

Subscrevem-se estas considerações, sendo de concluir ter a Arguida agido com negligência, não se vislumbrando qualquer inconstitucionalidade.

4.5.–De a Arguida ter agido sem consciência da licitude

Também quanto a esta matéria falta a razão à Arguida, subscrevendo-se o teor da decisão recorrida.
Com efeito,

Nos termos do art.º 8.º do DL 433/82, de 27 de Outubro,
1- Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
2- O erro sobre elementos do tipo, sobre a proibição, ou sobre um estado de coisas que, a existir, afastaria a ilicitude do facto ou a culpa do agente, exclui o dolo.
3- Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.

Por sua vez o art.º 9.º, do mesmo DL 433/82, estatui que:
1- Age sem culpa quem atua sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.
2- Se o erro lhe for censurável, a coima pode ser especialmente atenuada.

Ora, estando em causa uma contraordenação, ao existir um erro sobre a proibição, nos termos do citado art.º 8.º, existe necessariamente falta de consciência da ilicitude do facto, nos termos do art.º 9.º, mas, se a conduta for punível a título de negligência, como ressalvado no n.º 3 daquela primeira norma, a mesma só se tem por excluída se o erro não for censurável, nos termos do n.º 1, da segunda norma.” Ac. RG de 05-03-2020, processo n.º 2481/19.0T8GMR.G1, em www.dgsi.pt/jtrg.

Como anteriormente referido a conduta – omissão de revisão do risco Legionella no Relatório de Avaliação de Risco – é imputável à arguida sob a forma de negligencia. A sua falta de consciência da ilicitude ou o seu erro sobre a norma – pouco compagináveis com os cuidados que mantinha na gestão e tratamento de águas, mas que não traduzia no Relatório de Avaliação de Riscos, sendo esta a infração -não poderiam deixar de, considerando a sua dimensão, seja de trabalhadores, seja de volume de negócios (por referência ao valor constante do Relatório Único), lhe ser censuráveis , sendo-lhe “exigível que averiguasse e apreendesse as obrigações legais a que estava sujeita, na medida em que as empresas, se querem operar no mercado, têm o dever ético-jurídico de diligenciar por colmatar as lacunas de conhecimento, informando-se e esclarecendo-se em matéria de deveres inerentes à utilização de recursos humanos, em geral, e de segurança e saúde no trabalho, em particular” – ult Ac cit. Daí que se considere inexistir obstáculo à afirmação da culpa negligente.

Conclui-se, assim, também pela improcedência desta questão.

4.6.–Da condenação da Arguida numa admoestação
Pretende a Arguida, que a ser condenada, se lhe deve aplicar uma simples admoestação.

Segundo o art.º 51.º do RGCO,
1- Quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.
2- A admoestação é proferida por escrito, não podendo o facto voltar a ser apreciado como contra-ordenação”.

No presente caso, a contraordenação em causa praticada pela Arguida é qualificada como muito grave, tendo-lhe a coima sido fixada no mínimo. Por outro lado, embora não se mostre muito acentuada a sua culpa, a mesma não é reduzida. Acresce que a sua postura foi sempre negatória ao longo dos autos. Para além disso, trata-se de uma empresa de grande dimensão, cujo comportamento no plano analisado tem reflexos sociais no meio onde exerce a sua atividade e para além dele. Não se considera, por isso, ajustado ao caso a aplicação de mera admoestação.

5.–Decisão

Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela Arguida.

Comunique à ACT (art.º 45.º, n.º 3. da Lei 107/2009, de 14 de setembro)



Lisboa, 2022.11.09



Albertina Pereira
Leopoldo Soares
Eduardo Sapateiro



Decisão Texto Integral: