Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA DE FÁTIMA R. MARQUES BESSA | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO IN DUBIO PRO REO EVASÃO VOZ DE DETENÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/11/2025 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | (da responsabilidade da Relatora) I. Para ser conhecida, pelo Tribunal de recurso, a impugnação ampla da matéria de facto (erro de julgamento), uma das formas de impugnação da matéria de facto, tem o recorrente, nas suas conclusões, o ónus de especificar os pontos concretos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas concretas que impõe decisão diversa da recorrida, as provas que, sendo caso disso, devem ser renovadas, bem como, estando a prova gravada, de transcrever ou indicar a passagem ou passagens das declarações/depoimentos da gravação áudio, que suportem entendimento diverso, com indicação do início e termo desses segmentos em cumprimento do previsto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, sob pena de não pode ser conhecida, por incumprimento das formalidades legalmente prescritas, nos referidos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º, do CPP. II. Se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, não podendo subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do Julgador construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade, só podendo, a reapreciação da prova, determinar a alteração à matéria de facto se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. III. O uso do princípio in dubio pro reo (regra de decisão da prova) só deve ocorrer quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o Julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, se lhe impunha decidir a favor do arguido. IV. Como princípio que se projecta em sede de apreciação da prova, a sua violação é tradicionalmente tratada como erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal) e, por isso, tal como sucede com os demais vícios da sentença, tem que resultar ou decorrer do próprio texto da decisão recorrida. V. Porém, no caso de impugnação alargada da matéria de facto a Relação, que conhece de facto, pode também censurar a aplicação do princípio in dubio pro reo se, reapreciada a prova, não chegou a qualquer estado de dúvida razoável, pelo contrário, lida a prova produzida, criticamente à luz das regras de experiência comum e da livre convicção (art.º 127.º, do CPP), a mesma impõe uma decisão diversa da recorrida, nos termos do art.º 412.º, n.º3, alínea b) do CPP. VI. No caso em apreciação, este Tribunal de recurso procedeu à audição da prova gravada, indicada pelo recorrente, e reapreciada esta, não ficou com dúvida razoável sobre os factos não provados e impugnados pelo recorrente, impondo, a sua reapreciação decisão diversa da proferida pela 1.ª instância, dando-se os mesmos como provados, ocorrendo quanto a eles manifesto erro de julgamento do Tribunal recorrido. VII. São dois os elementos do tipo objectivo do ilícito do crime de evasão previsto e punido pelo art.º 352.º, do CP: (1) encontrar-se o agente legalmente privado da liberdade e (2) evadir-se, admitindo ao nível do tipo subjetivo de ilícito qualquer modalidade de dolo. VIII. Legalmente privado da liberdade, implica que o agente se encontre vigiado, guardado sob custódia, electrónica, pessoal ou material e aplica-se à pessoa legalmente presa em prisão preventiva ou em cumprimento de pena; detida; internada em estabelecimento destinado à execução de reações criminais privativas da liberdade; sujeita à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância por meios técnicos de controlo à distância; e em cumprimento de pena em regime de permanência na habitação, em cumprimento de pena, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância. IX. Evadir-se significa escapar de, escapar furtivamente, fugir às ocultas – o que, para acontecer, implica que o agente esteja vigiado, guardado, sob custódia. Electrónica, pessoal ou material. X. No caso em que foi dada voz de detenção ao agente, pela autoridade policial, e colocado o mesmo no interior da viatura policial, encontrando-se sob custódia dos agentes de autoridade, ainda que não tenha sido algemado, a detenção mostra-se totalmente concretizada e executada, sendo encetada e concretizada fuga, pelo agente, com o objetivo concretizado de se furtar à detenção que sobre este impendia, o que o agente representou e realizou, agindo de forma livre deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, mostram-se preenchidos todos os elementos objectivo e subjectivo do crime de evasão p.º e p.º pelo art.º 352.º, do CP, impondo-se a sua condenação. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes Desembargadores, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I- RELATÓRIO 1. Em processo comum, o Ministério Público deduziu acusação contra AA, filho de BB e de CC, nascido a .../.../2006, solteiro, residente na ...; e contra DD, filho de EE e de FF, natural de ..., nascido a .../.../1998, solteiro, canalizador, residente na ..., imputando-lhes: - Ao arguido AA, em autoria material e na forma consumada, um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto – Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro, e um crime de evasão, p. e p. pelo artigo 352.º, n.º 1, do Código Penal; - E ao arguido DD, em autoria material e na forma consumada, um crime de evasão, p. e p. pelo artigo 352.º, n.º 1, do Código Penal, e em instigação e na forma consumada, um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto – Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro 2. Realizado o julgamento, foi proferida sentença em .../.../2024, em que foi decidido o seguinte: V. Dispositivo Face ao exposto, tudo visto e ponderado, o Tribunal julga a acusação do Ministério Público parcialmente procedente e, consequentemente, decide: a) Absolver o arguido DD da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de evasão, p. e p. pelo artigo 352.º, n.º 1, do Código Penal. b) Absolver o arguido DD da prática, em instigação e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto – Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro. c) Absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de evasão, p. e p. pelo artigo 352.º, n.º 1, do Código Penal. d) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto – Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à razão diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz o valor total de €400,00 (quatrocentos euros). e) Sem custas para DD, nos termos dos artigos 513.º, n.ºs 1 e 3, e 514.º, n.º 1, a contrario, todos do Código de Processo Penal. f) Condenar o arguido AA no pagamento individual das custas processuais, fixando em 2 UC a taxa de justiça (artigos 513º e 514º do CPP e artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e respetiva Tabela III, anexa ao mesmo), bem como nos demais encargos do processo a que a atividade de cada uma vier a dar causa (artigos 16.º do Regulamento das Custas Processuais e 514.º do Código Processo Penal), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário. * O arguido AA deverá ficar ciente de que, até à extinção da pena, manter-se-á sujeito ao Termo de Identidade e Residência, já prestado, e às suas obrigações – conforme o artigo 214.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal. * Após trânsito: - Remeta o boletim à Direção de Serviços de Identificação Criminal, conforme artigo 6.º, alínea a), da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio. - Proceda-se à liquidação da pena de multa e das custas processuais. *** A leitura da presente sentença equivale à sua notificação a todos os sujeitos processuais que se devem considerar presentes (artigo 372.º, n.º 4, do Código de Processo Penal). Lida, vai a sentença ser depositada na secretaria, entregando-se a cópia da mesma a quem o solicitar (artigo 372.º, n.º 5, do Código de Processo Penal). 3. Inconformado com a Sentença na parte em que absolveu o arguido o arguido AA da prática do crime de evasão, o veio o Ministério Público interpor recurso, no dia .../.../2025, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição): 1) O presente Recurso tem por objecto a Sentença proferida nos presentes autos, a ... de ... de 2024, e que decidiu absolver o arguido AA da prática do crime de evasão, tanto no que respeita à decisão da matéria de facto dada por não provada bem como, bem como, consequentemente, ao preenchimento de todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de evasão. 2) Entende o Ministério Público que o Tribunal a quo errou ao decidir dar como não provado que, no dia .../.../2023, depois de ter sido detido, o arguido AA foi colocado no veículo da PSP para, de seguida, ser transportado para a esquadra da PSP e, por conseguinte, decidiu o Tribunal absolver o arguido AA da prática do crime de evasão por que vinha acusado. 3) Entende o Ministério Público que o Tribunal a quo errou ao entender não ter sido produzida prova suficiente que permita concluir e dar por provado que o arguido AA foi efectivamente colocado no interior do veículo da PSP de onde, posteriormente, saiu e se colocou em fuga. 4) Em consequência, mal decidiu o Tribunal ao entender não estarem preenchidos todos os elementos do crime de evasão por entender que, na sequência da voz de detenção, tal detenção não foi concretizada e executada com a colocação do detido sob a custódia do poder público. 5) São assim dois os fundamentos do presente recurso, o primeiro fundamento prende-se com a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, por se entender existir erro da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, e, o segundo fundamento, prende-se com a aplicação do direito aos factos provados entendendo o Ministério Público que estão preenchidos todos os elementos do tipo de crime de evasão. 6) Da impugnação da matéria de facto - Erro de julgamento em matéria de facto, da especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados: Entende o Ministério Público que o Tribunal mal decidiu ao dar como não provado que o arguido AA, no dia .../.../2023, depois de ter sido surpreendido em flagrante delito pela prática do crime de condução sem habilitação legal, foi-lhe dada voz de detenção e foi colocado no interior do veículo da PSP, na condição de detido, para ser transportado à esquadra da PSP. 7) Entende o Ministério Público que o Tribunal a quo mal decidiu ao dar como não provado que: (factos d) e parcialmente e) dos factos não provados) “d. Já junto à viatura policial, o arguido AA entrou para o interior da viatura policial, no banco de trás da viatura policial, permanecendo o arguido DD junto dos elementos policiais, mas fora da viatura policial, à espera de entrar. e. (…) abriu a porta lateral direita traseira do veículo policial e colocou-se em fuga o arguido AA. O que ocorreu.” 8) São estes, especificamente, os factos mal decididos pelo Tribunal no entender do Ministério Público. 9) Das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida: Entende o Ministério Público que o Tribunal a quo mal apreciou e mal ponderou tanto o depoimento prestado pela testemunha GG, agente da PSP, bem como das declarações do co-arguido DD, os quais afirmaram de forma clara e inequívoca que houve lugar a voz de detenção do arguido AA e que este foi colocado no interior do veículo da PSP para ser transportado para a esquadra da PSP tendo o arguido aproveitado o ajuntamento de populares que gritavam para sair do veículo policial pela porta oposta à da sua entrada e colocou-se em fuga a correr. 10) Na verdade, o depoimento da testemunha GG, agente da PSP que foi quem colocou o arguido no interior do veículo automóvel da PSP em conjugação com os demais elementos de prova, mormente declarações do co-arguido DD e segundo as regras de experiência comum, impunham a decisão de que o arguido AA foi efectivamente colocado no interior do veículo da PSP na qualidade de detido. 11) Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, na apreciação que o Tribunal a quo fez dos depoimentos das testemunhas, agentes da PSP, entendeu o Tribunal que “Ora, face às regras da vida e da experiência comum, estranha-se que os agentes da PSP que, desde logo, tinham a intenção de algemar os arguidos, tenham colocado dentro da viatura AA sem proceder, primeiro, a tal ato.” (conforme sentença proferida). 12) Ora, salvo o devido respeito, que é muito, in casu, o Tribunal interpretou erradamente a realidade dos factos. 13) Segundo as regras de experiência comum, no caso concreto, não causa qualquer estranheza que “os agentes da PSP que, desde logo, tinham a intenção de algemar os arguidos, tenham colocado dentro da viatura AA sem proceder, primeiro, a tal ato” uma vez que, conforme mencionado pelo co-arguido DD, pelas testemunhas, agentes da PSP GG, HH e II, durante a detenção, os agentes da PSP foram rodeados por vários populares, entre 10 a 30 pessoas aos gritos a oporem-se à intervenção policial. 14) As pessoas estavam exaltadas e a gritar e a tentar impedir a PSP de concretizar a detenção dos arguidos e o transporte dos mesmos para a esquadra. A PSP teve de interromper a intervenção e fugir do local sem levar qualquer detido. 15) Ora, não causa qualquer estranheza, segundo as regras de experiência comum, que os agentes da PSP não tenham conseguido algemar os detidos porque tal acto seria o acto que ira inflamar mais os ânimos dos populares que já estavam exaltados e aos gritos. 16) Em suma, nada na prova produzida permite suscitar qualquer dúvida quanto à veracidade do depoimento da testemunha, agente da PSP, GG e das declarações do co-arguido DD que afirmam, com clareza, que houve lugar a voz de detenção e que o arguido AA foi colocado no interior do veículo da PSP. 17) Declarações do co-arguido DD, gravadas em áudio: 18) “o AA disse que não tinha carta de condução e eles (PSP) deram voz de prisão – minuto 1:30 das declarações. Minuto 1:35, “disseram para acompanhar para esquadra eu disse porquê, eles disseram só para acompanhar, o AA já estava dentro do carro”, minuto 1:40, o AA já estava dentro do carro (leia-se carro da PSP). 19) Minuto 1:55 das declarações do co-arguido DD: “ok vamos (para a esquadra) veio pessoal que estava sentado, todo o mundo veio, aí, o AA saiu do carro e correu”. Minuto 5:50 “a policia pediu os documentos e identificação, ele (o AA) disse que não tinha carta de condução, disseram que estava detido e tinha que ir para a esquadra, (…) minuto 6:10, “disseram que tínhamos que ir para a esquadra, o AA já estava dentro do carro e ele saiu” (leia-se carro da policia). 20) Minuto 6:30, perante a resposta do AA que não tinha carta de condução, eles, (a policia), “disseram que tinham de ir para a esquadra e meteram ele no carro” (da PSP). 21) Minuto 11:10, o AA já estava dentro do carro (da PSP), “estava sentado no canto direito, eu tava na porta esquerda”, já com a multidão ali presente, o AA saiu do carro e fugiu sendo que a PSP entrou no carro da PSP e foram-se embora do local. 22) Minuto 15:50, à pergunta da Mmª Juiz, o arguido concretiza, “o AA já estava dentro do carro da policia e que o AA entrou pela porta esquerda e saiu pela porta da direita”. 23) Do depoimento da testemunha GG, agente da PSP, que no dia em questão estava no exercício de funções em patrulhamento normal e viu o arguido AA a conduzir e iniciaram a fiscalização ao mesmo. 24) Minuto 2:30 do depoimento da testemunha, foram abordar o condutor, “o Sr. AA que disse logo que não tinha carta”, (…), minuto 3:00, foi dada voz de detenção a ambos os arguidos AA e DD, até esse momento estava tudo calmo, tudo tranquilo, uma vez que é uma zona urbana sensível, levaram os arguidos para próximo da viatura policial para os algemarem junto da viatura policial e colocar os detidos dentro dessa viatura policial, os ânimos começaram a exaltar-se e vieram populares na direcção dos agentes da PSP, minuto 3:40, quando os populares chegam próximo dos agentes da PSP o AA que já estava dentro do carro policial, ali colocado pela testemunha que estava a depor, o arguido AA saiu pela porta do outro lado do carro e fugiu e nunca mais o viram. 25) Minuto 5:50: foi dada de voz de detenção aos dois arguidos, mas naquela circunstância não foi possível algemar os detidos por não haver condições de segurança, quando começam a vir (os populares), minuto 6:25, meteram o AA no carro da PSP e ele saiu pela porta do outro lado. 26) Minuto 6:45, juntaram-se muitas pessoas, “seguramente aí umas 30 pessoas”. 27) Minuto 7:35, quando as pessoas começam a dirigir-se na nossa direcção, “metemos o AA dentro do carro (da PSP) e ele saiu pelo outro lado do carro a correr”. Perante as pessoas que ali estavam a PSP não conseguiram ir atrás do AA por temerem pela própria segurança dos agentes da PSP. 28) Ao minuto 21:45, a testemunha GG voltou a confirmar que o AA foi colocado no carro da PSP pela testemunha, e depois saiu e fugiu, a testemunha só não conseguiu esclarecer se alguém lhe abriu a porta, mas julga que não, mas que o arguido AA foi colocado no veículo policial e que, de seguida, este saiu do carro e “desapareceu”. 29) Entende o Ministério Público que a prova constante dos autos impunha que tivessem sido dados como provados os seguintes factos: “1. No dia ... de ... de 2023, pelas 16h40m, o arguido DD seguia no interior do automóvel ligeiro de passageiros, marca PEUGEOT, modelo 206, com a matrícula ..-..-RS, no lugar do pendura, na ..., em .... 2. Este veículo era conduzido pelo arguido AA, que não dispõe de título de condução que o habilite a conduzir este tipo de veículos. 3. Nestas circunstâncias, o arguido AA ao visualizar um veículo policial da PSP, imediatamente decidiu parar a marcha da viatura automóvel. 4. No entanto, antes que o conseguisse fazer foi abordado por elementos policiais da PSP devidamente identificados e uniformizados que imediatamente lhe solicitaram os documentos pessoais e da viatura. 5. Por não ser detentor de carta de condução foi dada voz de detenção a AA e, igualmente a DD por os agentes acreditarem que o mesmo tinha se disponibilizado a ensinar o arguido AA a conduzir. 6. Para o efeito, saíram ambos os arguidos da viatura automóvel referida e foram encaminhados para a viatura policial que se encontrava parada também nessa rua. (facto a dar como provado) Já junto à viatura policial, o arguido AA foi colocado no interior da viatura policial, no banco de trás da viatura policial, permanecendo o arguido DD junto dos elementos policiais, mas fora da viatura policial, à espera de entrar. 7. Neste breve hiato de tempo, aproximou-se da viatura policial um número indeterminado de indivíduos com o objetivo de libertar os arguidos. 8. Assim que o arguido AA percecionou a oportunidade de fugir, o arguido abriu a porta do lado direito e imediatamente abandonou o veiculo, pondo-se em fuga em passo de corrida para local incerto. 9. Nestas circunstâncias, um número indeterminado de indivíduos puseram-se entre o arguido DD e os agentes policiais, de forma a estes perderem o contacto com este arguido. 10. O arguido AA sabia que para conduzir o veículo automóvel supra descrito precisava de documento válido que o autorizasse a conduzir este tipo de veículo, e ainda assim, sabendo que não dispunha de nenhum documento de tal tipo, decidiu-se por conduzi-lo, sabendo que não o podia fazer. 11. O arguido AA ao fugir do local depois de lhe ter sido dado voz de detenção, fê-lo, com o objetivo concretizado de se furtar à detenção que sobre este impendia, o que representou e realizou. 12. O arguido AA agiu sempre de forma livre deliberada e consciente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. 30) Do preenchimento de todos os elementos do tipo do crime de evasão: 31) In casu, o arguido AA foi surpreendido em flagrante delito na prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal – crime público. 32) O arguido foi interceptado por agentes da PSP e foi-lhe dada ordem de detenção. 33) Os agentes da PSP colocaram o arguido AA, na condição de detido, no interior do veículo policial com vista a transportarem-no para a esquadra da PSP. 34) Neste momento, em que o arguido AA está, contra a sua vontade e na qualidade de detido, no interior do veículo da PSP, já o visado está privado da sua liberdade, tanto privado da liberdade de movimentos como liberdade de mobilidade. 35) Tal privação não se traduz na “mera” voz de detenção que lhe foi dada e comunicada instantes antes ainda no exterior do carro, mas está materializada num acto em que o visado tem a sua liberdade de mobilidade subtraída. 36) O arguido aproveitou o aglomerado de pessoas aos gritos que se insurgiam contra a actuação da PSP para abrir a porta do veículo da PSP e colocar-se em fuga a correr. 37) O arguido AA, ao fugir do local depois de lhe ter sido dado voz de detenção e de ter sido colocado no interior do carro da PSP, fê-lo, com o objetivo concretizado de se furtar à detenção que sobre ele impendia, o que representou e realizou. 38) Tais factos preenchem todos os elementos do tipo de crime de evasão. 39) Porque os autos encerram todos os elementos necessários à escolha da pena, entende o Ministério Público que deverá ser aplicada a arguido uma pena de prisão substituída por multa. Por todo o exposto, pugna-se pela alteração da decisão proferida pelo tribunal a quo por outra que decida dar como provados os factos supra mencionados e que, por conseguinte, decida condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de evasão, previsto e punido, pelo artigo 352.º, n.º 1, do Código Penal, aplicando-lhe uma pena de prisão substituída por multa. V. Exas. Venerandos Desembargadores, porém, encontrarão a decisão que for justa! 4. O recurso foi admitido pelo seguinte despacho, proferido em .../.../2025: Por a decisão ser recorrível, se mostrar tempestivo, motivado, apresentado por quem tem legitimidade, admito o recurso interposto pelo Ministério Público perante o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual tem efeito suspensivo, sobe imediatamente e nos próprios autos (artigos 399.º, 401.º, n.º 1, alínea a), 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2, alínea a), 408.º, n.º 1, alínea a), 411.º, 412.º, 414.º, n.º 1, 427.º todos do Código de Processo Penal). Notifique. Cumpra o disposto no artigo 411.º, n.º 6, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1, do CPP. Após, sendo apresentada resposta, dê cumprimento ao prescrito no artigo 413.º, n.º 3, do CPP. 5. O arguido veio apresentar resposta ao recurso no dia .../.../2025, pugnando pela improcedência do recurso, dela são as seguintes conclusões (transcrição): 1. O recurso interposto pelo Ministério Público visa a revogação da decisão absolutória proferida em primeira instância, defendendo a condenação do AA pela prática do crime de evasão, p. e p. pelo artigo 352.º, nº 1, do Código Penal. 2. Todavia, e como se demonstrará infra, tal pretensão não encontra fundamento na prova produzida, nem no preenchimento de todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de evasão. 3. O tipo objectivo do crime de evasão (artigo 352.º do Cód. Penal) exige que o agente esteja legalmente privado da liberdade e que se evada, ou seja, que se retire voluntariamente dessa situação. O tipo subjectivo, por sua vez, é a consciência e vontade de se evadir, ou seja, o dolo. 4. A jurisprudência e a doutrina têm vindo a esclarecer que a privação da liberdade exigida para efeitos do tipo penal em causa deve ter carácter formal e efectivo, ou seja, deve existir um acto claro e inequívoco de detenção ou prisão, emanado de autoridade competente. 5. Com efeito, conforme refere a douta sentença, no caso concreto da voz de detenção por autoridades policiais, tem-se entendido que não basta que seja dada voz de detenção à pessoa visada, mas antes que se concretize efectivamente a detenção, só nesse caso se considerando a pessoa como privada da liberdade. 6. Até lá, aquele a que é dada voz de detenção, se fugir antes da sua efectiva concretização, antes da sua execução ser levada à prática, com a inerente diminuição de liberdade de movimentos e de livre mobilidade, não comete qualquer ilícito penal e designadamente o crime de evasão. 7. No caso em apreço, resultou inequivocamente provado que o AA não foi algemado pelos agentes policiais, sendo que a prova produzida em audiência de julgamento não permite afirmar, com o grau de certeza exigível, isto é, para além da dúvida razoável, que o AA tenha sido efectivamente colocado dentro do carro-patrulha, elementos esses que são indispensáveis para a configuração de uma situação de privação de liberdade. 8. As versões prestadas pelas testemunhas policiais são contraditórias quanto ao momento e forma da suposta detenção, existindo incertezas sobre se o AA foi colocado no interior da viatura policial. 9. No caso concreto, quem deteve o DD foi a testemunha GG e o AA foram os seus colegas, ou seja, as testemunhas HH e II, os quais negaram que tivessem algemado o AA, bem como que o tivessem colocado dentro do carro da polícia. 10. Sendo certo que, da prova produzida em audiência de julgamento não resultou provado, de forma inequívoca, que o AA tenha sido privado da sua liberdade de forma legal e efectiva, prevalecendo uma dúvida razoável quanto à concretização da detenção e, por conseguinte, não se verificam os elementos constitutivos do crime de evasão. 11. Como é sabido, em processo penal vigora o princípio in dubio pro reo, pelo que, perante a existência de dúvidas sobre a verificação dos pressupostos do crime, nomeadamente sobre se efectivamente se concretizou a alegada detenção, deve o tribunal decidir em favor do Arguido. 12. Com efeito, e tal como bem salientou o Tribunal “a quo”, persistem dúvidas razoáveis e fundadas sobre se o AA foi, de facto, colocado no interior da viatura policial antes de se afastar do local. 13. Na verdade, a prova produzida não permitiu afastar, com a certeza exigível em processo penal, a possibilidade de o AA se ter afastado antes de ser introduzido no veículo policial. As imprecisões e contradições nos depoimentos dos agentes da autoridade, conforme detalhadamente exposto nas alegações supra e na douta sentença recorrida, não permitem formar uma convicção segura e inequívoca sobre este facto. 14. Ora, a ausência de prova cabal de que o AA se encontrava sob custódia efectiva dentro da viatura policial fragiliza irremediavelmente a acusação pelo crime de evasão. A voz de detenção dada pelos agentes policiais não configura, por si só, uma situação de privação da liberdade nos termos exigidos pelo tipo penal em questão. 15. Pelo que, não poderia a decisão ser outra que não fosse a absolvição do AA, aqui Recorrido, perante as dúvidas que subsistem quanto à verificação dos pressupostos legais do crime, impondo-se a aplicação do princípio in dubio pro reo, consagrado no art. 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, e reiterado pelo art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. 16. Deste modo, bem andou o Tribunal “a quo” ao absolver o Arguido e ora Recorrido AA, uma vez que não resultou provado que o mesmo tenha praticado o crime de evasão. 17. A ausência de prova do algemamento e as dúvidas razoáveis sobre a colocação do AA na viatura policial impedem a formação de uma convicção segura sobre a prática do crime de evasão. 18. Pelo que, a decisão da 1.ª instância não merece censura, porquanto valorou correctamente a prova produzida nos autos e decidiu com base no princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo. 19. Assim sendo, atento todo o exposto, não deve ser concedido provimento ao recurso do Ministério Público, mantendo-se "in totum" a decisão de absolver o AA, da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de evasão. Termos em que, conforme o supra exposto e no mais de Direito aplicável, requer-se que não seja concedido provimento ao recurso do Ministério Público, mantendo-se na íntegra a decisão proferida na 1ª Instância, assim se realizando a tão costumada JUSTIÇA! 6. Remetidos os autos a este Tribunal, nos termos e para os efeitos no art.º 416º do C.P.P., foram os autos com vista à Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, que formulou em ... o seguinte Parecer - Artigo 416.º, n.º 1 do Código de Processo Penal – I - O recurso incide sobre a sentença do Juízo Local Criminal de ... - Juiz 1, na parte em que absolveu o arguido AA da prática do crime de evasão, p. e p. pelo artigo 352.º, n.º 1, do Código Penal, que lhe era imputado decidiu absolver o arguido da prática do crime de evasão, tanto no que respeita à decisão da matéria de facto dada por não provada bem como, bem como, consequentemente, ao. II – O Ministério Público interpôs recurso, por não concordar com a decisão sobre a matéria de facto determinante da referida absolvição e consequente entendimento do tribunal quanto ao preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime de evasão, pugnando pela correspondente alteração e condenação do arguido nos termos da acusação deduzida. III - O recurso não suscita objeções quanto à sua admissibilidade, tempestividade, legitimidade, espécie, forma, momento de subida e efeito fixado. IV - A motivação de recurso analisa a prova produzida em audiência de julgamento, fundamentando a discordância com a apreciação que dela foi feita pelo tribunal a quo, de forma correta e completa, com observância do formalismo legal a que se refere o art. 412.º do Código de Processo Penal, pelo que com ela concordamos integralmente. V – Pelo exposto, secundando a posição expressa na motivação de recurso, emite-se parecer no sentido de que o recurso merece provimento, devendo ser alterada a matéria de facto em conformidade com o sugerido pelo Ministério Púbico e a sentença substituída por outra que condene o arguido pela prática do aludido crime imputado na acusação. * Cumprido o n.º2 do art.º 417.º, do CPP, não houve resposta. * No exame preliminar considerou-se que o objecto do recurso interposto deveria ser conhecido em conferência. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419º do Código de Processo Penal, cumpre decidir. II-DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO: Constitui jurisprudência e doutrina assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 417º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP1, os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).2 Na Doutrina, por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Volume II, 5.ª Edição atualizada, pág. 590, “As conclusões do recorrente delimitam o âmbito do poder de cognição do tribunal de recurso. Nelas o recorrente condensa os motivos da sua discordância com a decisão recorrida e com elas o recorrente fixa o objecto da discussão no tribunal de recurso… A delimitação do âmbito do recurso pelo recorrente não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente das nulidades insanáveis que afetem o recorrente… não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente dos vícios do artigo 410.º, n.º2 que afetem o recorrente…” Nos termos do art.º 410.º, do CPP (Fundamentos do recurso) 1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. Mais dispõe o art.º 412.º, n.ºs 1 e 2 do CPP: (Motivação do recurso e conclusões) 1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. 2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada. Estruturalmente o recurso pode ter como fundamentos concretos: i. Questões processuais, traduzidas em nulidades ou irregularidades do processado ou nulidades ou irregularidades da sentença (art.os 379.º e 410.º, n.º3, do CPP). ii. Questões formais que dizem respeito à patologia da sentença, traduzida em erros endógenos da sentença, resultantes sem mais da leitura da sentença, sem elementos exteriores a ela, os designados vícios da sentença-Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação, a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão ou erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, n.º2, do CPP) ou vício da falta de fundamentação e exame crítico da prova (art.º 374.º, n.º2, do CPP) e iii. Questões materiais, traduzidas em erro de julgamento em matéria de facto ou erros de julgamento em matéria de direito (art.º 412.º, n.ºs 2 e 3 do CPP). (neste sentido Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª Edição, Almedina pág. 947). No caso concreto, atentas as conclusões do recurso, as questões colocadas à apreciação deste Tribunal, em síntese, são as seguintes por ordem de precedência logico-jurídica: i. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto (art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP): Se ocorre erro de julgamento relativamente aos pontos d) e parte do e) dos factos não provados, devendo ser dados como provados. ii. Do enquadramento jurídico-penal dos factos no crime de evasão em relação ao arguido AA, na afirmativa, medida da pena parcelar e da pena única. III -FUNDAMENTAÇÃO Factos relevantes para apreciação das questões a decidir: III.1- foram dados como provados e não provados pelo Tribunal de primeira instância na sentença recorrida os seguintes factos: Factos Provados - Da acusação pública: 1. No dia ... de ... de 2023, pelas 16h40m, o arguido DD seguia no interior do automóvel ligeiro de passageiros, marca PEUGEOT, modelo 206, com a matrícula ..-..-RS, no lugar do pendura, na ..., em .... 2. Este veículo era conduzido pelo arguido AA, que não dispõe de título de condução que o habilite a conduzir este tipo de veículos. 3. Nestas circunstâncias, o arguido AA ao visualizar um veículo policial da PSP, imediatamente decidiu parar a marcha da viatura automóvel. 4. No entanto, antes que o conseguisse fazer foi abordado por elementos policiais da PSP devidamente identificados e uniformizados que imediatamente lhe solicitaram os documentos pessoais e da viatura. 5. Por não ser detentor de carta de condução foi dada voz de detenção a AA e, igualmente a DD por os agentes acreditarem que o mesmo tinha se disponibilizado a ensinar o arguido AA a conduzir. 6. Para o efeito, saíram ambos os arguidos da viatura automóvel referida e foram encaminhados para a viatura policial que se encontrava parada também nessa rua. 7. Neste breve hiato de tempo, aproximou-se da viatura policial um número indeterminado de indivíduos com o objetivo de libertar os arguidos. 8. Assim que o arguido AA percecionou a oportunidade de fugir, imediatamente abandonou, pondo-se em fuga em passo de corrida para local incerto. 9. Nestas circunstâncias, um número indeterminado de indivíduos puseram-se entre o arguido DD e os agentes policiais, de forma a estes perderem o contacto com este arguido. 10. O arguido AA sabia que para conduzir o veículo automóvel supra descrito precisava de documento válido que o autorizasse a conduzir este tipo de veículo, e ainda assim, sabendo que não dispunha de nenhum documento de tal tipo, decidiu-se por conduzi-lo, sabendo que não o podia fazer. 11. O arguido AA ao fugir do local depois de lhe ter sido dado voz de detenção, fê-lo, com o objetivo concretizado de se furtar à detenção que sobre este impendia, o que representou e realizou. 12. O arguido AA agiu sempre de forma livre deliberada e consciente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. - Mais se provou: 13. Os arguidos não têm antecedentes criminais. 14. AA, após ter encetado fuga, apresentou-se voluntariamente na esquadra da PSP. 15. DD chegou a Portugal, pela primeira vez, no dia ...-...-2023. 16. DD encontra-se desempregado, residindo com o irmão, cunhada, sobrinha, a sua companheira e filha, em casa arrendada. 17. DD paga de renda o montante de €570,00. 18. A sua filha tem menos de 1 ano de idade. 19. DD completou o 9.º ano de escolaridade. * Factos Não Provados a. No dia ...-...-2023, o arguido DD disponibilizou-se para ensinar AA a conduzir veículos automóveis. b. AA tentou trocar de lugar com DD, titular de carta de condução, ao visualizar um veículo policial da PSP. c. Os arguidos foram algemados pelos agentes da PSP. d. Já junto à viatura policial, o arguido AA entrou para o interior da viatura policial, no banco de trás da viatura policial, permanecendo o arguido DD junto dos elementos policiais, mas fora da viatura policial, à espera de entrar. (provado) e. Com este desiderato, um individuo de identidade não apurada, abriu a porta lateral direita traseira do veículo policial possibilitando, desta forma, a fuga do arguido AA. O que ocorreu. f. DD aproveitou a chegada de um número indeterminado de indivíduos e, imediatamente, pôs-se em fuga, em passo apressado para local incerto. g. O arguido DD, apesar de saber que o arguido AA não era possuidor de título de condução que o habilitasse a conduzir, em ato prévio à condução do veículo por AA, o arguido DD convenceu-o a assumir a condução deste veículo, levando-o a que o mesmo aceitasse e assumisse a condução do veículo, o que este fez. h. Este arguido sabia que AA não era titular de nenhum título de condução que legalmente o habilitasse a conduzir o veículo referido em 1., e, não obstante esse conhecimento, determinou AA a encetar a condução, bem sabendo que ele não o podia conduzir e que assim, desta forma, incorreria na prática de um crime, o que representou e realizou. i. O arguido DD ao fugir do local depois de lhe ter sido dado voz de detenção, fê-lo, com o objetivo concretizado de se furtar à detenção e à privação da liberdade que sobre este impendia, o que representou e realizou. j. O arguido DD agiu sempre de forma livre deliberada e consciente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Não foi considerada matéria conclusiva, de direito ou irrelevante para a boa decisão da causa.” III.2- E a seguinte a Motivação da decisão de facto do Tribunal de primeira instância na sentença recorrida: “A motivação da matéria de facto implica a exposição dos motivos factuais que fundamentam a decisão, devendo o Tribunal indicar e realizar um exame crítico das provas produzidas que serviram para formar a sua convicção. Como tal, todos os factos têm de ser motivados. Neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24-03-2022, Proc. n.º 24/19.4PBPTM.S1, Relator ANTÓNIO GAMA: A regra de que os factos que não se podem motivar, não existem, isto é, não podem ser considerados provados, é uma regra de ouro de orientação para os juízes no julgamento da matéria de facto em processo penal. Assim, a fundamentação de facto permite a que qualquer pessoa, exterior, ou não, ao processo, consiga perceber os motivos a que levaram o Tribunal a decidir num determinado sentido e qual o raciocínio lógico, estribado na prova produzida, que o mesmo usou para chegar à decisão. In casu, no que respeita à matéria de facto, o Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, tal como a prova documental constante dos autos, o depoimento das testemunhas e, ainda, as declarações do arguido, DD. A análise crítica da prova produzida estribou-se nas regras da vida e da experiência comum, em obediência ao princípio da livre apreciação da prova, constante no artigo 127.º do Código de Processo Penal. * O arguido DD decidiu prestar declarações, oferecendo a sua versão dos factos, o que foi suscetível de criar uma dúvida insanável na convicção do Tribunal, uma vez que a sua versão se demonstra plausível face às regras da vida e da experiência comum, sendo que em grande parte a mesma foi corroborada pelo depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento. Em sede de audiência de julgamento foram ouvidas quatro testemunhas, a saber: HH, II e GG, agentes da PSP com conhecimento direto dos factos, uma vez que foram os próprios a abordar os arguidos no dia da prática dos factos; e …, primo de DD e proprietário do veículo em causa nos autos, conhecendo AA por serem vizinhos. Os depoimentos das testemunhas foram parcialmente valorados positivamente, à exceção de algumas incongruências, como infra se escrutinará. * Posto isto, quanto aos factos 1 a 4, os mesmos resultaram provados pelas declarações do arguido DD, conjugado com o depoimento das testemunhas agentes da PSP que procederam à interceção. Como tal, o arguido, de modo plausível, elucidado e coerente, localizou espácio-temporalmente os factos, tendo referido que o seu primo, proprietário do automóvel, tinha lhe emprestado o veículo para que o mesmo fosse às compras e pediu ao arguido, AA, que acompanhasse DD, visto ser o primeiro dia do mês em Portugal. Ora, tal versão demonstra-se como credível, uma vez que decorre do teor do passaporte de DD que o mesmo apenas chegou a Portugal no dia ...-...-2023 (facto 15), tendo o próprio declarado que nunca tinha antes vindo a Portugal, o que foi corroborado pelo depoimento de …, primo do arguido que, por sua vez, o recebeu e foi busca-lo ao aeroporto, merecendo assim a credibilidade ao Tribunal. Declarou DD que conduziu o automóvel até uma loja, todavia AA pediu-lhe que o deixasse conduzir de volta para casa, uma vez que o mesmo não conhecia o caminho e, assim, seria mais simples. Por outro lado, os três agentes da PSP ouvidos como testemunhas foram inequívocos ao afirmar que era AA que se encontrava no controlo do veículo, pelo que dúvidas não restaram ao Tribunal de que seria o arguido AA que conduzia o referido veículo automóvel. Quanto à falta de titularidade de carta de condução por AA, tal resulta provado não só pelo depoimento das testemunhas HH, II e GG que, de modo escorreito e uniforme, todos referiram que AA não era portador de título de condução que o habilitasse a conduzir, sendo que tal foi corroborado pelo resultado da pesquisa à base de dados do IMT. Nesta senda, afirmaram as referidas testemunhas que visualizaram AA a tentar imobilizar o veículo automóvel logo que se deparou com o veículo policial, o que consideraram como um comportamento suspeito. Por seu turno, foi confirmado pelas declarações de DD, bem como pelo depoimento dos três agentes da PSP, de modo uniforme e inequívoco, que foram solicitados os documentos da viatura e os pessoais dos arguidos, aquando da abordagem pelos agentes da PSP. Quanto ao facto 5, o mesmo resultou provado pelo depoimento das testemunhas HH, II e GG que, de modo unânime e uniforme, afirmaram que foi dada voz de detenção aos arguidos, porquanto verificaram que AA não era portador de título de condução e por considerarem que DD estava a ensiná-lo a conduzir. Quanto aos factos 6 a 9, os mesmos resultaram provados pelas declarações do arguido, conjugado com o depoimento das testemunhas HH, II e GG, todos agentes da PSP, que de modo uniforme e escorreito, confirmaram tais factos da acusação pública. Como tal, por todos foi referido que encaminharam os arguidos para junto do veículo policial e que, em breves momentos, surgiu um grupo indeterminado de pessoas descontentes com a situação. No mais, foi também referido por todos que AA se ausentou do local, fugindo apeado, a correr, para local incerto. Por último, foi também confirmado por todos, merecendo assim a credibilidade ao Tribunal, que indivíduos se puseram entre o arguido DD e o agente da PSP, mormente GG, que seria o mais próximo do mesmo. No que respeita aos factos 10 a 12, referentes ao tipo subjetivo do crime, é evidente que, pertencendo aquele ao foro interno, psíquico e emocional do agente, insuscetível, por isso, de imediata apreensão, esta terá necessariamente de decorrer de forma indireta. Tal aferição resulta da análise de factos materiais que permitem concluir, num raciocínio lógico de plausibilidade, normalidade e experiência comum, a existência dos factos integrantes dos elementos subjetivos da norma. Atento o exposto, ponderando a globalidade da matéria provada nos presentes autos, entendemos que existem factos materiais comuns e objetivos que, segundo as regras da experiência comum e da normalidade, permitem apreender com relativa clareza que o arguido agiu com o propósito concretizado de conduzir o veículo automóvel ligeiro de passageiros na via pública, ciente de que não possuía título de condução que o habilitasse, bem como sabia que após ter sido dada voz de detenção, ao encetar fuga quis e logrou furtar-se da detenção. Por outro lado, importa sublinhar que estamos perante um tipo de crime que não é axiologicamente neutro, pelo que a “consciência da ilicitude material” decorre das regras da experiência comum e será de se presumir. Conclui-se, pois, que o arguido bem sabia – não podendo desconhecer – que as suas condutas eram proibidas por lei e penalmente punidas, agindo sempre de forma livre, voluntária e consciente. Importa, ainda, referir que o facto 14, foi dado como provado não só pelas declarações de DD, bem como por todos os agentes da PSP, testemunhas destes autos, que confirmaram que AA se dirigiu à esquadra voluntariamente, após cerca de 15 a 30 minutos da prática dos factos. * Quanto à prova dos antecedentes criminais dos arguidos, constante do facto 13, a mesma resultou da valoração dos seus Certificados de Registo Criminal atualizados junto aos autos. * Por fim, relativamente às condições socioeconómicas do arguido DD, presente nos factos 16 a 19, o Tribunal valorou as declarações do arguido por se revelarem credíveis e não contrariadas por nenhum elemento probatório constante dos autos. * No que concerne à factualidade não provada, importa referir que a mesma não foi corroborada de forma inequívoca pela prova produzida. Como tal, os depoimentos das testemunhas agentes da PSP foram contraditórios em relação ao que foi afirmado pelo arguido DD aquando da sua detenção, porquanto HH, numa primeira análise, afirmou que DD tinha admitido estar a ensinar AA a conduzir, sendo que ao longo do depoimento corrigiu, referindo que afinal não tinha ouvido ao certo o que foi dito por DD. Por outro lado, também II referiu que não sabia ao certo o que tinha sido dito por DD a esse respeito, porquanto teria sido GG a realizar a abordagem junto de DD. Ora, GG, por sua vez, afirmou que DD tinha referido que sabia que AA não tinha carta de condução, estando apenas a ajudá-lo por serem amigos. No entanto, face às regras da vida e da experiência comum, não se poderá deixar de considerar que a versão oferecida pelo arguido DD merece maior credibilidade. Vejamos. O arguido tinha chegado a Portugal há menos de 24 horas aquando da prática dos factos, pelo que é plausível que o mesmo não conhecesse as localidades, nem os trajetos para se dirigir aos destinos que pretendia. Por outro lado, também se concebe que o arguido não conhecesse bem AA, visto que nunca tinha estado antes em Portugal. Assim, não é descabido que DD não tivesse conhecimento de que AA não era portador de título de condução que o habilitasse a conduzir, sendo que presumindo que o mesmo fosse, é também razoável que o mesmo preferisse que aquele tomasse o controlo do veículo, por conhecer melhor os trajetos. Por último, importa, ainda, referir que o depoimento da testemunha GG, agente da PSP, a respeito da referida matéria, não foi concretizado, afirmando que não sabia as palavras concretas proferidas por DD e que teria sido uma “conversa cruzada”, pelo que não se conferiu uma credibilidade significativa ao depoimento, em virtude de como suprarreferido, não ser o mais compatível com as regras da vida e da experiência comum. Por seu turno, tanto DD, como os três agentes da PSP testemunhas destes autos afirmaram que os arguidos não foram algemados e que, por sua vez, DD se manteve sempre no local dos factos, nunca tendo fugido para qualquer outro local, pelo que a corroboração de tais factos pelos agentes da PSP ofereceu credibilidade às declarações do arguido. A respeito da entrada de AA no veículo policial da PSP, importa concretizar que a prova produzida não foi clara nesta matéria. Vejamos. GG afirmou perentoriamente que AA teria entrado no veículo policial e, segundo o mesmo, “ele senta-se, abre a porta e sai, foi tudo em ato contínuo” (palavras da testemunha). Todavia, tanto HH, como II, não conseguiram concretizar se AA terá entrado no veículo policial, tendo inclusive HH afirmado que “achava” que não tinham conseguido, o que foi suscetível de criar a dúvida na convicção do Tribunal, uma vez que terão sido tais agentes da PSP a dar voz de detenção ao arguido. Por outro lado, GG afirmou que a intenção dos agentes da PSP era conduzir os arguidos até ao veículo policial, para algemá-los e transportá-los até à esquadra. Contudo, conforme suprarreferido, os agentes da PSP não algemaram os arguidos. Ora, face às regras da vida e da experiência comum, estranha-se que os agentes da PSP que, desde logo, tinham a intenção de algemar os arguidos, tenham colocado dentro da viatura AA sem proceder, primeiro, a tal ato. Por último, nenhuma testemunha confirmou que algum terceiro tenha procedido à abertura da porta do veículo policial para que AA conseguisse sair do mesmo. Destarte, face à prova produzida que foi contraditória, tal foi suscetível de criar uma dúvida insanável na convicção do Tribunal a respeito da veracidade dos referidos factos. Ademais, face à falta de prova que permita concluir que o arguido DD soubesse que AA não era portador de título de condução que o habilitasse a conduzir, bem como de que o DD se tenha ausentado do local da prática dos factos aquando da abordagem policial, criou-se uma dúvida insanável sobre a veracidade dos factos constantes da seleção de factos não provados, pelo que tal dúvida deve ser desfeita a favor dos arguidos, em aplicação do princípio in dubio pro reo. Neste sentido, veja-se o Acórdão do STJ, de 12-03-2009, Proc. N.º 07P1769, Relator SORETO DE BARROS: O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa (…) Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo. (sublinhado nosso). Face ao exposto, perante a dúvida insanável criada na convicção do Tribunal, consideraram-se como não provados os referidos factos constantes da acusação pública pelos quais os arguidos vêm acusados. III.3- O Tribunal de primeira instância na sentença recorrida realizou o seguinte enquadramento jurídico-penal: - Do crime de condução sem habilitação legal O arguido vem acusado da prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de janeiro. Dispõe o artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de janeiro que: 1 - Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 - Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias. O bem jurídico protegido no crime sob análise é a segurança de circulação rodoviária, tutelando, ainda que indiretamente outros bens jurídicos, como a vida, a integridade física e os bens patrimoniais, sendo, portanto, um crime de perigo abstrato, ou seja, o perigo não é elemento do tipo legal, mas apenas motivo da proibição. Quanto ao elemento objetivo do tipo, o mesmo concretiza-se na colocação do veículo a motor em circulação por parte do agente, em via pública ou equiparada (via de comunicação terrestre do domínio privado aberta ao trânsito público, segundo o artigo 1.º do Código da Estrada), sem que o mesmo tenha habilitação para o efeito. Relativamente ao elemento subjetivo do tipo, o crime é doloso, sendo que segundo o Acórdão do TRL, de 27-04-2022, Proc. N.º 911/19.0PFAMD.L1-3, Relatora ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA, [n]o crime de condução sem habilitação legal o dolo contém-se no ato de conduzir, querer conduzir e realizar a ação, sabendo o agente que não possui título que para tanto o habilite. * Retomando ao caso dos autos, mediante a factualidade dada como provada resulta, inequivocamente, que a conduta do arguido AA preenche o tipo objetivo de ilícito. Ora, face à factualidade dada como provada, ficou demonstrado que o arguido se encontrava a conduzir um veículo a motor, matrícula ..-..-RS, na ..., em ..., sem que para tal fosse titular de carta de condução ou de qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir veículos a motor. Assim, não restam dúvidas que o arguido, com a sua conduta, preencheu os elementos do tipo objetivo do crime de crime de condução sem habilitação legal. Do ponto de vista do elemento subjetivo do tipo, o arguido agiu com dolo direto, nos termos do artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal, porquanto conduziu um veículo a motor na via pública, querendo fazê-lo, tendo conhecimento de que não possuía título que o habilitasse para tal. * Em sede de culpa, o arguido é imputável, agiu com liberdade de decisão e com consciência da ilicitude, sabendo que a sua conduta era punida criminalmente, não se coibindo, mesmo assim, de praticar a factualidade dada como provada, quando lhe era exigível que assim o fizesse. * Inexistem factos que constituam causas de exclusão da ilicitude ou da culpa do arguido. * Assim sendo, encontram-se preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito, sendo forçoso concluir que o arguido AA incorreu na prática do crime de condução sem habilitação legal pelo qual vem acusado. * No que concerne ao arguido DD, não resultou provado que o mesmo tivesse conhecimento de que AA não fosse portador de título de habilitação legal que lhe permitisse conduzir veículos a motor, nem que tão-pouco tenha incentivado e determinado o arguido AA a conduzir o referido veículo, pelo que não se encontram preenchidos os elementos do tipo de ilícito, devendo, sem necessidade de mais considerações, ser o arguido DD absolvido do crime pelo qual vem acusado. ** - Do crime de evasão Os arguidos vêm acusados da prática de um crime de evasão, previsto e punido pelo artigo 352.º do Código Penal. Dispõe o referido artigo: 1 - Quem, encontrando-se legalmente privado da liberdade, se evadir é punido com pena de prisão até 2 anos. 2 - Se o agente espontaneamente se entregar às autoridades até à declaração de contumácia, a pena pode ser especialmente atenuada. O bem jurídico protegido consiste na autoridade pública do sistema estadual de justiça, quando profere decisões de privação da liberdade (neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª Edição, pág. 1114; e Acórdão do TRL, de 21-03-2018, Proc. N.º 659/99.0TAOER-A.L1-3, Relator VASCO FREITAS – disponível em www.dgsi.pt, bem como os demais). . Quanto à caracterização do crime, o mesmo é um crime de dano, quanto ao grau de lesão do bem jurídico, e de mera atividade, quanto à forma de consumação. O tipo objetivo consiste na evasão (fuga, saída, abandono) por uma pessoa que está legalmente privada da liberdade. Importa desenvolver com mais pormenor o conceito de “pessoa legalmente privada da liberdade”. Como tal, a norma foi alterada aquando da reforma do Código Penal de 1995, com o propósito de alargar o âmbito da tipicidade, de modo a incluir todas as formas de privação da liberdade, tal como medidas de segurança, a prisão preventiva e a própria obrigação de permanência na habitação. Assim, devem entender-se por decisões privativas da liberdade todas as que ordenem prisão, detenção, ou internamento, quer sejam definitivas ou transitórias, visem adultos ou jovens imputáveis ou inimputáveis, seja no âmbito do processo penal ou do processo de extradição (neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª Edição, pág. 1111). Não se afigura necessário tecer o que se tem como “liberdade”, desde logo, porque libertar é subtrair à clausura, é conferir disponibilidade de movimentação a alguém que se encontra sob a alçada de autoridade pública e por mando dela. Por outro lado, tem sido discutido na jurisprudência o conceito de privação da liberdade, sendo que no caso concreto da voz de detenção por autoridades policiais, tem-se entendido que não basta que seja dada voz de detenção à pessoa visada, mas antes que se concretize efetivamente a detenção, só nesse caso se considerando a pessoa como privada da liberdade. A este respeito, o Acórdão do TRP, de 20-11-2013, Proc. N.º 195/11.8GBLMG.P1, Relator ERNESTO NASCIMENTO: Condição fundamental e pressuposto exigível para a consumação do tipo é a legalidade da captura ou da privação da liberdade pelo que, para alguém cometer o crime de evasão, é necessário estar, efectivamente, privado da sua liberdade. A detenção inicia-se com a ordem de, com a voz de, e termina na sua efectiva - e não meramente declarativa - concretização e execução. Apenas quando o agente passa a estar sob a custódia do poder público é que, furtando-se à acção da justiça, se verifica a violação do interesse jurídico tutelado pela incriminação em causa. Até lá, aquele a que é dada voz de detenção, se fugir antes da sua efectiva concretização, antes da sua execução ser levada à prática, com a inerente diminuição de liberdade de movimentos e de livre mobilidade, não comete qualquer ilícito penal e designadamente o crime de evasão. (sublinhado nosso). No que toca ao tipo subjetivo de ilícito, esse admite qualquer modalidade de dolo, nos termos do artigo 14.º do Código Penal. Por último, cumpre apenas fazer referência que a atenuação especial da pena, nos termos do artigo 352.º, n.º 2, do Código Penal, é facultativa. * Baixando aos autos, mediante a factualidade dada como provada não resulta que a conduta dos arguidos preencha o tipo objetivo e subjetivo de ilícito. Vejamos. No que concerne a DD, não se logrou provar que o mesmo tenha sequer encetado fuga do local das práticas dos factos, nem que tenha tido a intenção de fazê-lo, pelo que não se encontram preenchidos os elementos objetivo e subjetivo de ilícito, devendo, assim, o arguido ser absolvido da prática do crime pelo qual vem acusado. Quanto a AA, resulta provado que o arguido encetou fuga do local da prática dos factos após ter sido dada voz de detenção. No entanto, coloca-se a questão se o arguido já estaria efetivamente privado da liberdade. Quanto a nós, a resposta é negativa. Concretizando. Segundo a factualidade dada como provada, resulta que foi dada voz de detenção aos arguidos, mas que os mesmos não chegaram a ser algemados. Por outro lado, também é inequívoco que foi um curto espaço de tempo entre ter sido dada voz de detenção e terem surgido uma quantidade indeterminada de pessoas no local, o que impediu a concretização da detenção por circunstâncias exteriores às condutas dos arguidos, ou seja, não foi possível concretizar a detenção por completo, a mesma não foi finalizada. Assim, na esteira da jurisprudência suprarreferida, a qual perfilhamos, para se verificar a violação do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é necessário que a detenção seja totalmente concretizada e executada, verificando-se uma diminuição da liberdade de movimentos e de mobilidade, não bastando que a mesma seja apenas iniciada, porquanto só assim se poderá considerar como uma efetiva privação da liberdade. Destarte, resultando da factualidade privada que a detenção de AA não foi totalmente concretizada, na medida em que o arguido nem sequer foi algemado, nem tendo resultado provado qualquer diminuição da liberdade dos seus movimentos ou mobilidade, não sendo, assim, possível concluir que estejam preenchidos os elementos objetivos do tipo de crime, pelo que deverá o arguido ser absolvido da prática do crime pelo qual vem acusado. * Pelo exposto, haverá que concluir que, da matéria de facto provada em audiência de julgamento, resultam preenchidos, pela conduta do arguido AA, todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de janeiro; devendo ser os arguidos absolvido dos restantes crimes pelos quais vêm acusados. ** Escolha e Medida Concreta da Pena Realizado o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa determinar a natureza e medida da sanção a aplicar. O crime de condução sem habilitação legal, previsto no artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de janeiro, é punido com pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias. A escolha e determinação da medida da pena obedecem às disposições 40.º, 70.º, e 71.º, do Código Penal. O artigo 70.º do Código Penal dispõe que, se ao crime for aplicável, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o Tribunal deverá dar preferência à segunda, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Ora, de acordo com o artigo 40.º, n.º 1, do mesmo diploma, a finalidade da punição será a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Por seu turno, o n.º 2 do referido artigo, prevê que a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa. Como tal, para aferir se uma pena não privativa da liberdade é adequada e suficiente para acautelar as finalidades da punição, devemos atender ao grau de exigência de prevenção geral e de prevenção especial. Neste sentido, explica-nos o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10-03-2010, Proc. n.º 1452/09.9PCCBR.C1, Relator RIBEIRO MARTINS: Pela prevenção geral (positiva) faz-se apelo à consciencialização geral da importância social do bem jurídico tutelado e pelo outro no restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efetiva tutela penal dos bens tutelados; pela prevenção especial pretende-se a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva) e a dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa). In casu, importa aferir que as exigências de prevenção geral relativas ao crime de condução sem habilitação legal são muito elevadas, porquanto é um crime frequentemente praticado no nosso país, sendo Portugal um dos países com mais sinistralidade rodoviária da Europa, sendo incontáveis as situações de condução sem habilitação legal que, por si só, potenciam a ocorrência de acidentes de viação. No que concerne às exigências de prevenção especial, essas afiguram-se diminutas, porquanto o arguido não tem quaisquer antecedentes criminais, não havendo nos autos nada que permita concluir que o arguido faça do crime um estilo de vida, sendo possível conceber que se tratará de um caso isolado na vida do mesmo. Por outro lado, conclui-se que a medida da necessidade de proteção dos bens jurídicos violados, ou de reafirmação contra fáctica da norma violada, não exige a aplicação ao arguido de uma pena privativa da liberdade. Assim, de acordo com o disposto no artigo 70.º do Código Penal e, por seu turno, com as finalidades de prevenção geral - reafirmação à sociedade da tutela penal aos respetivos bens jurídicos - e de prevenção especial - reintegração do agente na sociedade -, entende-se que, in casu, uma pena de multa é adequada e suficiente para acautelar as finalidades da punição. * Feita a escolha pela pena de multa, é necessário determinar a medida concreta da pena, atendendo aos critérios previstos nos artigos 40.º, n.º 2, e 71.º ambos do Código Penal. Na escolha da medida concreta da pena é necessário realizar um juízo de proporcionalidade, concretamente delimitado pelos limites legais, determinando-se um patamar mínimo estabelecido pelas necessidades de prevenção geral e um patamar máximo definido pela medida da culpa do agente. Assim, será necessário encontrar dentro dos limites previamente referidos, o ponto ótimo da medida da pena, tendo em consideração as exigências de prevenção especial e as circunstâncias que depuserem a favor ou contra o agente, constantes do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal. Consigna-se, ainda, que no caso concreto não será de aplicar o Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de setembro, sobre o regime penal aplicável a jovens delinquentes, uma vez que a atenuação especial prevista no artigo 4.º apenas é aplicável aos casos em que o Tribunal opta por aplicação de pena de prisão (neste sentido, os Acórdãos do TRP, de 11-10-2017, Proc. N.º 1468/15.6PBMTS.P1, Processo Comum (Tribunal Singular) Relatora MARIA LUÍSA ARANTES; e do TRL, de 08-02-2022, Proc. N.º 1315/18.7PAALM.L1-5, Relator JORGE GONÇALVES). * Ora, à luz do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, importa verificar que: - O grau de ilicitude da conduta do arguido é mediano, porquanto o arguido decidiu conduzir um veículo sem para tal estar habilitado na companhia de uma outra pessoa, colocando assim em risco não só a vida e integridade física dos outros utentes, como de quem o acompanhava. - A intensidade do dolo, na modalidade de direto; - As necessidades de prevenção geral são elevadas, conforme suprarreferido; - A idade jovem do arguido aquando da prática dos factos (apenas 17 anos); - O arguido não tem antecedentes criminais. * Assim, na determinação da pena de multa é necessário determinar os dias de multa a aplicar através do recurso aos fatores suprarreferidos, como também impõe-se fixar o quantitativo diário por cada dia de multa, sendo esse aferido a partir das condições económicas do agente, conforme o artigo 47.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal. * Face ao exposto, atendendo às elevadas necessidades de prevenção geral que o crime acarreta; às exigências de prevenção especial; e aos elementos supramencionados sobre o arguido e a sua conduta; tudo ponderado, considera-se justa, adequada e proporcional a aplicação ao arguido de: - Uma pena de 80 (oitenta) dias de multa, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, n.º 2 do DL 2/98, de 03-01. * Quanto à determinação do quantitativo diário, de acordo com a norma vertida no artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal, cada dia de multa corresponde a uma quantia entre €5,00 e €500,00, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais. Em função da matéria factual considerada provada nos presentes autos, no que respeita à situação económica do arguido não foi possível apurar qualquer informação, pelo que o Tribunal decide como adequado fixar o quantitativo diário da multa no montante de €5,00 (cinco euros). Assim, o arguido é condenado na pena de multa de 80 (oitenta) dias, à razão diária de €5,00, o que perfaz o valor total de €400,00 (quatrocentos euros). (fim de transcrição) IV- FUNDAMENTOS DO RECURSO E RESPECTIVA APRECIAÇÃO Apreciando, agora, as questões objecto do recurso: IV.1- Impugnação (ampla) da decisão sobre a matéria de factos (art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP): Se ocorre erro de julgamento relativamente aos pontos dos factos d) e parte do e) não provados. O ordenamento jurídico-processual-penal consagra duas formas de impugnação da matéria de facto. Uma designada por impugnação ampla (erro de julgamento), que consiste na reapreciação da prova gravada e que tem de ser invocada pelo recorrente, pois não é de conhecimento oficioso, recaindo sobre o recorrente o duplo ónus de especificação previsto no art.º412º, nº3 e 4 do CPP. Outra, designada por impugnação restrita, (revista alargada) que consiste na invocação dos vícios previstos nas alíneas a), b) e c) do nº2 do art.410º, do CPP que, aliás, são de conhecimento oficioso. São duas formas distintas de “atacar” a matéria de facto, estando por isso sujeitas a regimes processuais diferentes. No que respeita à impugnação alargada, dispõe o art.º 412.º, do CPP: (Motivação do recurso e conclusões) 3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. 5 - Havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse. 6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal. Tratando-se de impugnação ampla, porém, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E, é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal. Assim, impõe-se-lhe: i. a especificação dos “concretos pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado; ii. a especificação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, acrescendo que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa. iii. a especificação das “provas que devem ser renovadas”, sendo caso disso, que só se satisfaz com a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento no tribunal de primeira instância, dos vícios referidos nas alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo – cfr. artigo 430º, nº 1, do citado diploma. iv. Quando as provas tenham sido gravadas as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão recorrida, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente. Como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.03.2012, publicado no D.R. I Série, nº 77, de 18.04.2012, “Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório. A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas. O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto. Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.” Retornando ao caso dos autos, alega o recorrente quanto a esta questão, ademais, que: O Tribunal mal decidiu ao dar como não provado que o arguido AA, no dia .../.../2023, depois de ter sido surpreendido em flagrante delito pela prática do crime de condução sem habilitação legal, foi-lhe dada voz de detenção e foi colocado no interior do veículo da PSP, na condição de detido, para ser transportado à esquadra da PSP. Entende o Ministério Público que o Tribunal a quo mal decidiu ao dar como não provado que: (factos d) e parcialmente e) dos factos não provados) Sendo as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida as seguintes: Entende o Ministério Público que o Tribunal a quo mal apreciou e mal ponderou tanto o depoimento prestado pela testemunha GG, agente da PSP, bem como das declarações do co-arguido DD, os quais afirmaram de forma clara e inequívoca que houve lugar a voz de detenção do arguido AA e que este foi colocado no interior do veículo da PSP para ser transportado para a esquadra da PSP tendo o arguido aproveitado o ajuntamento de populares que gritavam para sair do veículo policial pela porta oposta à da sua entrada e colocou-se em fuga a correr. Em suma, nada na prova produzida permite suscitar qualquer dúvida quanto à veracidade do depoimento da testemunha, agente da PSP, GG e das declarações do co-arguido DD que afirmam, com clareza, que houve lugar a voz de detenção e que o arguido AA foi colocado no interior do veículo da PSP. O Ministério Público/recorrente respeita a especificação supra referidas, dos “concretos pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, mais indica “concretas provas que (a seu ver) impõem decisão diversa da recorrida”, insertas no nºs 3 e 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal. Recordemos, os factos não provados em causa que são os seguintes: d. Já junto à viatura policial, o arguido AA entrou para o interior da viatura policial, no banco de trás da viatura policial, permanecendo o arguido DD junto dos elementos policiais, mas fora da viatura policial, à espera de entrar. e. Com este desiderato, um individuo de identidade não apurada, abriu a porta lateral direita traseira do veículo policial possibilitando, desta forma, a fuga do arguido AA. O que ocorreu. São concretamente as seguintes passagens dos depoimentos do arguido AA e da testemunha em que o Ministério Público GG funda a impugnação. 17) Declarações do co-arguido DD, gravadas em áudio: 18) “o AA disse que não tinha carta de condução e eles (PSP) deram voz de prisão – minuto 1:30 das declarações. Minuto 1:35, “disseram para acompanhar para esquadra eu disse porquê, eles disseram só para acompanhar, o AA já estava dentro do carro”, minuto 1:40, o AA já estava dentro do carro (leia-se carro da PSP). 19) Minuto 1:55 das declarações do co-arguido DD: “ok vamos (para a esquadra) veio pessoal que estava sentado, todo o mundo veio, aí, o AA saiu do carro e correu”. Minuto 5:50 “a policia pediu os documentos e identificação, ele (o AA) disse que não tinha carta de condução, disseram que estava detido e tinha que ir para a esquadra, (…) minuto 6:10, “disseram que tínhamos que ir para a esquadra, o AA já estava dentro do carro e ele saiu” (leia-se carro da policia). 20) Minuto 6:30, perante a resposta do AA que não tinha carta de condução, eles, (a policia), “disseram que tinham de ir para a esquadra e meteram ele no carro” (da PSP). 21) Minuto 11:10, o AA já estava dentro do carro (da PSP), “estava sentado no canto direito, eu tava na porta esquerda”, já com a multidão ali presente, o AA saiu do carro e fugiu sendo que a PSP entrou no carro da PSP e foram-se embora do local. 22) Minuto 15:50, à pergunta da Mmª Juiz, o arguido concretiza, “o AA já estava dentro do carro da policia e que o AA entrou pela porta esquerda e saiu pela porta da direita”. 23) Do depoimento da testemunha GG, agente da PSP, que no dia em questão estava no exercício de funções em patrulhamento normal e viu o arguido AA a conduzir e iniciaram a fiscalização ao mesmo. 24) Minuto 2:30 do depoimento da testemunha, foram abordar o condutor, “o Sr. AA que disse logo que não tinha carta”, (…), minuto 3:00, foi dada voz de detenção a ambos os arguidos AA e DD, até esse momento estava tudo calmo, tudo tranquilo, uma vez que é uma zona urbana sensível, levaram os arguidos para próximo da viatura policial para os algemarem junto da viatura policial e colocar os detidos dentro dessa viatura policial, os ânimos começaram a exaltar-se e vieram populares na direcção dos agentes da PSP, minuto 3:40, quando os populares chegam próximo dos agentes da PSP o AA que já estava dentro do carro policial, ali colocado pela testemunha que estava a depor, o arguido AA saiu pela porta do outro lado do carro e fugiu e nunca mais o viram. 25) Minuto 5:50: foi dada de voz de detenção aos dois arguidos, mas naquela circunstância não foi possível algemar os detidos por não haver condições de segurança, quando começam a vir (os populares), minuto 6:25, meteram o AA no carro da PSP e ele saiu pela porta do outro lado. 26) Minuto 6:45, juntaram-se muitas pessoas, “seguramente aí umas 30 pessoas”. 27) Minuto 7:35, quando as pessoas começam a dirigir-se na nossa direcção, “metemos o AA dentro do carro (da PSP) e ele saiu pelo outro lado do carro a correr”. Perante as pessoas que ali estavam a PSP não conseguiram ir atrás do AA por temerem pela própria segurança dos agentes da PSP. 28) Ao minuto 21:45, a testemunha GG voltou a confirmar que o AA foi colocado no carro da PSP pela testemunha, e depois saiu e fugiu, a testemunha só não conseguiu esclarecer se alguém lhe abriu a porta, mas julga que não, mas que o arguido AA foi colocado no veículo policial e que, de seguida, este saiu do carro e “desapareceu”. Procedendo este Tribunal à audição integral da prova gravada relevante para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, nos termos dos n.ºs 4 e 6 do art.º 412.º, do C. Processo Penal, em particular, as passagens indicadas pelo arguido nas suas motivação e conclusões de recurso e fazendo uma súmula dos depoimentos reapreciados: -O arguido DD, prestando declarações, na sessão de audiência de .../.../2024, explicou que era a primeira vez que se encontrava em Portugal, tendo chegado no dia anterior, foi descansar, foi para ... para casa do seu tio. Na manhã seguinte quanto estava na Rua foi ao ..., comprar uma escova para os sapatos. O AA estava na rua e foi com ela à loja. Foi ele DD a conduzir e o AA ia ao lado. De regresso, conduziu o arguido AA, porque o DD não conhecia a zona, garante que não sabia que ele não tinha carta de condução nem a idade dele e nunca tinha falado com ele antes. Entretanto apareceu a polícia e pediu os documentos ao AA e como ele não tinha carta de condução disse a polícia que tinham que ir para a esquadra, deram voz de detenção ao AA. O arguido questionou os policiais porque teria que ir para a esquadra que não fez nada. O AA já estava no carro mas ninguém foi algemado. E a ele arguido não deram voz de detenção disseram que tinha que acompanhar os polícias à esquadra. Entretanto começaram a chegar outras pessoas a gritar, umas 10. O AA saiu do carro e começou a correr. Os policiais foram buscar o carro e foram embora. Ele pegou no carro Peugeot e foi à esquadra porque os polícias levaram os seus documentos. Nenhum deles foi algemado. O AA foi também à esquadra e foi-se entregar e lá algemaram-no. Ele, arguido, foi atrás da polícia, em momento algum fugiu. Reafirma que o AA entrou e estava no canto direito saiu do carro e fugiu. Não conhecia quem estava na multidão tirando o seu primo JJ que era o dono do carro. A porta esquerda do carro onde estava o AA estava aberta, não viu se alguém abriu a porta. Confirma que a polícia foi-se embora, acha que sentiram uma pressão por causa das pessoas. Esclarece que foi a primeira vez que veio a Portugal. -…, ouvido na sessão de audiência de .../.../2024 agente da PSP no aeroporto de ..., tendo exercido funções na esquadra de ..., até .... Conhece os arguidos apenas da actividade policial. Confirmou que mandaram parar o carro conduzido por AA, que não tinha carta de condução e que o DD confirmou que sabia disso. Deram voz de detenção aos dois. De repente aglomeraram-se 15/20 pessoas para impedir a detenção, perderam de vista o AA e o DD tomou uma postura agressiva. O DD foi atrás deles, pararam abordaram o DD e quando chegaram à esquadra apareceu o AA minutos depois a entregar-se voluntariamente. Reafirma que deram voz de detenção aos dois. Tentaram manietar os suspeitos, para os algemar e metê-los no carro da polícia. Não conseguiram algemá-los. Apareceu um aglomerado de pessoas e não conseguiram algemar. Acha que não conseguiram pôr o AA no carro da PSP. Não reparou. Eram três agentes. Saíram do local antes de acabarem o serviço por causa da quantidade de pessoas numa posição agressiva a questionar porque estavam a deter. Era um bairro problemático e então acharam que era melhor sair dali, por questões de segurança. Houve uma viatura que lhes tentou bloquear a passagem. Refere que as portas do carro da polícia por norma abrem por dentro. Normalmente se conduzidos no carro da polícia vão algemados. Não se recorda se tinham documentos do DD. KK, que depôs na sessão de audiência de .../.../2024 agente da PSP. Conhece os arguidos apenas da situação em causa. Identificou a hora e o local da situação, fazia parte da patrulha. Confirma que viram um carro a sair do estacionamento e mal os viram fizeram marcha atrás para voltar a estacionar. Foram averiguar, o condutor AA não tinha habilitação para conduzir, fiscalizaram-no. Deram voz de detenção, o AA fugiu. Deram voz de detenção aos dois porque o DD sabia que o AA não tinha carta de condução. Formou-se um ajuntamento de umas 20 pessoas que começaram a gritar. Por razões de segurança ausentaram-se para a esquadra. Diz que estavam a tentar algemar o DD, não conseguiram. Não se recorda se o arguido AA chegou a entrar no carro. O colega ia tentar algemar os dois, mas não houve tempo para o efeito. O DD foi atrás deles e foi levado para a esquadra e o AA foi depois também ter à esquadra. Não chegaram algemar o AA não se recorda se conseguiram pô-lo no carro, mas pensa que sim. Não se apercebeu se alguém abriu a porta do carro. Confirma que levaram documentos do DD, o passaporte e o documento da viatura. Não visualizou o AA a ir-se embora. O colega tentou manietar o DD para o algemar e apareceram as pessoas. O DD não fugiu, mas puxaram-no. -…, ouvido na sessão de audiência de .../.../2024, motorista, conhece os arguidos dos autos, o DD é seu primo. Conhece o AA. O DD veio para Portugal a ..., ele nunca cá tinha estado em Portugal, não conhecia nada, veio para trabalhar. No dia seguinte estava na esquadra. A testemunha foi busca-lo ao aeroporto. Não presenciou os factos. GG, ouvidos na sessão de .../.../2024, agente da PSP, no ..., há 7 meses, antes estava em .... Conhece o AA de outras operações policiais e o DD só desta situação. Confirma que viram um carro a sair do estacionamento e mal os viram fizeram marcha atrás para voltar a estacionar. Foram averiguar, o condutor AA não tinha habilitação para conduzir, fiscalizaram-nos, por o comportamento deles ser suspeito. Os colegas foram abordar o AA e ele disse que não tinha carta. O DD disse que tinha carta. Ele deu voz de detenção ao DD e os colegas ao AA. Estava tudo calmo, iam para junto do carro, para os algemar e por dentro da viatura. Os populares começaram a aproximar-se e os ânimos desses populares começaram a exaltarem-se com o intuito de os retirar. O AA já tinha sido introduzido dentro do carro, mas sem estar algemado, ele saiu logo pela outra porta do carro e fugiu, tudo em acto continuo. Os populares aproximaram-se do DD. Confirma que foi dada voz de detenção aos dois. Não foram algemados, as pessoas começaram a aproximar-se e por questões de segurança não prosseguiram a diligência. Juntaram-se para aí 30 pessoas. Reafirma que o AA já tinha sido colocado dentro do carro mais entrou por um lado e saiu por outro. Quando o AA sai do carro já estava um aglomerado de pessoas. Volta a reafirmar que o AA entrou no carro, viu-o a entrar e a sair, não sabe se alguém lhe abriu a porta. Ele e os colegas foram embora. Entretanto repararam que o DD estava a conduzir atrás do carro da polícia e abordaram-no. O AA depois também apareceu na esquadra. A testemunha foi autor do auto de notícia. Confirma que chegou a ver os documentos do DD e tinha chegado a Portugal há menos de 24 horas. Afirma que os dois arguidos foram colaborantes até aparecerem os populares O DD e o primo foram atrás deles. O AA foi ter à esquadra depois. Como decorre da súmula supra dos depoimentos, o arguido DD e a testemunha GG confirmaram efectivamente que foi dada voz de detenção a ambos e que o AA chegou a ser posto no carro da polícia, e que este saiu do carro pela porta do lado direito e fugiu. As outras testemunhas LL e HH não se lembravam se o arguido AA tinha sido colocado no carro da polícia. Ora, o Tribunal em sede de motivação explicou porque não deu como provados os factos referidos pelo Ministério público. Porém, assiste razão ao Ministério Público não havendo fundamento para não se considerar provados os factos tal como referido pelo recorrente, porquanto a prova efectivamente o impõe (declarações do arguido DD e da testemunha MM), não posta, aliás, em causa pelas demais testemunha, não havendo razões para lhes ser retirada credibilidade quanto aos factos impugnados . Na verdade, em caso de impugnação alargada e reapreciação da matéria de facto, o tribunal ad quem deverá avaliar “se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si e, consequentemente, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, de manifesto erro na apreciação da prova. O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade. (...) Por outro lado, reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão (Acórdão da Relação de Coimbra de 12-09-2012, proferido no processo n.º 245/09.8 GBACB.C1) destaque nosso. Como se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2010, proferido no processo nº 11/04.7 GCABT.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, “Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.”. É certo que a livre convicção não se confunde com convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, no ensinamento do Professor Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, vol. I, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 201 a 206, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana. De acordo com o aludido princípio da livre apreciação da prova, o julgador é livre ao apreciar as provas, estando tal apreciação apenas vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório sendo que “A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspetivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento. Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional.” – cfr. Professor Figueiredo Dias, ob. e loc. citados e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08.02.2012, proferido no processo nº 38/10.0 TAFIG.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc. A actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente. Isto é, a perceção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal. Ao Tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Ora, no caso dos autos, a convicção do Tribunal quanto aos factos não provados em causa não tem suporte adequado na gravação da prova produzida em audiência e reapreciada, a qual impõe outra decisão, tal como exigido pelo art.º 412.º, n.º3, alínea b). O Tribunal recorrido, ao dar como não provados esses factos sustentou a existência de dúvida razoável. É certo que o princípio in dubio pro reo, emanado do princípio político-jurídico da presunção de inocência, até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (art. 32.°, n.° 2, da CRP), vem sendo assumido, genericamente, que se encontra, intimamente ligado ao da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP), do qual constitui faceta, e este último apenas comporta as excepções integradas no princípio da prova legal, ou tarifada, ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida e ofensiva das regras da experiência comum. O princípio in dubio não é uma regra para a apreciação da prova, pois que apenas se aplica depois de finalizada a valoração e apreciação crítica da prova. O princípio in dubio pro reo é, assim, apenas uma regra de decisão da prova. O uso do princípio in dubio pro reo só deve ocorrer quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, se lhe imponha decidir a favor do arguido. Não se trata, pois, de uma dúvida hipotética, abstrata ou de uma mera hipótese. Neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de novembro de 2002, Proc. nº 3316/02-5ª in www.dgsi.pt: “I – O princípio in dubio pro reo constitui um princípio probatório segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto tem sempre de ser valorada favoravelmente ao arguido, e traduz o correspetivo do princípio da culpa em direito penal, sendo a dimensão jurídico processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena”. Se o juiz não lograr tal convicção, isso equivale a duvidar. Na dúvida in dubio pro reo. A dúvida que fundamenta o apelo ao princípio in dubio pro reo deve ser insanável, razoável e objetivável. (neste sentido Ac. STJ de 12/01/2023 processo n.º 569/20.3JAAVR.P1.S1 relatora LEONOR FURTADO in www.dgsi.pt). A doutrina e a jurisprudência têm, assim, adotado o critério anglo-saxónico da dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given). Como escreve FERNANDO GAMA LOBO “O princípio in dubio pro reo não é mais do que um corolário da presunção de inocência, consagrado constitucionalmente no art.º 32.º, n.º2 da CRP. Produto da Revolução Francesa, repousa na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.º 11.º) e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art.º 6.º). Tem na apreciação da prova o seu campo jurídico de aplicação natural e lógico, a qual é da competência do Juiz. Com efeito enquanto não for demonstrada a culpabilidade do arguido, não é admissível a sua condenação. Tal princípio, serve para resolver a dúvida que surjam numa situação probatória incerta. Mas a dúvida tem que ser do juiz e não dos restantes intervenientes processuais(…).” in Código de Processo Penal Anotado, 4.ª edição. Como em parte sumariado no Acórdão da Relação de Coimbra de 12-09-2018 proc. 28/16.9PTCTB.C1Relator ORLANDO GONÇALVES: “(…)IV - O princípio do “in dubio pro reo” é exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos, ao passo que o princípio da presunção de inocência se impõe aos juízes ao longo de todo o processo e diz respeito ao próprio tratamento processual do arguido. V- O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet. VI -A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados.” O Tribunal de recurso pode também censurar a violação desse princípio em sede de impugnação alargada, se, reapreciada a prova, chegou a um estado de dúvida insanável, que se impunha, isto é chegou à conclusão que, com a prova produzida que reapreciou, existem dúvidas que impõem o in dubio, ainda que o Tribunal recorrido não tenha manifestado ou sentido dúvida. Neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/09/2020 processo 3773/12.4TDLSB.L1-5, relator Jorge Gonçalves in www.dgsi.pt: “(…)Na reapreciação da prova importa articular os poderes de conhecimento do tribunal de recurso com os princípios relativos à produção e à valoração da prova no tribunal de 1.ª instância, especialmente com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do C.P.P., princípio que vale também para o tribunal de recurso. Essa articulação há-de necessariamente ter em conta que as condições de que beneficia a 1.ª instância – em particular, a oralidade e a imediação – para avaliar os depoimentos prestados, no contexto de toda a prova produzida, se não verificam (pelo menos em toda a extensão) quando o tribunal de recurso vai julgar. Traduzindo-se a livre apreciação das provas numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, a falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, a não vivência do julgamento, sede do contraditório, com privação da possibilidade de intervir na produção da prova pessoal, serão, por assim dizer, limites epistemológicos a que a Relação deverá atender na sua apreciação, ainda que não barreiras intransponíveis a que faça a ponderação, em concreto e autónoma, das provas identificadas pelo recorrente, que pode conduzir à conclusão de que tais elementos de prova impõem um juízo diverso do contido na decisão recorrida. Os diversos elementos de prova não devem ser analisados separadamente, antes devem ser apreciados em correlação uns com os outros, de forma a discernir aqueles que se corroboram e aqueles que se contradizem, possibilitando ou a remoção das dúvidas ou a constatação de que o peso destas é tal que não permite uma convicção segura acerca do modo como os factos se passaram. Assim, procedeu-se à audição da gravação da prova pessoal indicada, importando cotejá-la com a motivação da decisão de facto e verificar se as provas indicadas pelo recorrente (e agora reapreciadas), impõem decisão diversa da proferida pela 1.ª instância.(…) Sendo o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal de revista, compreende-se o entendimento, repetidamente afirmado na jurisprudência do Supremo, de que não resultando da decisão que o tribunal ficou num estado de dúvida sobre os factos e que «ultrapassou» essa dúvida, dando-os por provados, contra o arguido, ao S.T.J. fica vedada a possibilidade de decidir sobre a violação do princípio «in dubio pro reo» dado o quadro dos respectivos poderes de cognição, restritos a matéria de direito. Por isso se diz que no S.T.J. só pode conhecer-se da violação desse princípio quando da decisão recorrida resultar que, tendo o tribunal a quo chegado a um estado de dúvida sobre a realidade dos factos, decidiu em desfavor do arguido; ou então quando, não tendo o tribunal a quo reconhecido esse estado de dúvida, ele resultar evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, nos termos do vício do erro notório na apreciação da prova. Não se compreende que se siga o mesmo raciocínio na Relação. Realmente, a recondução da violação do princípio “in dubio” ao erro notório na apreciação da prova enunciado na alínea c) do n.º2 do artigo 410.º do C.P.P., leva a que se diga, por vezes, que não se trata de “dúvidas” que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e devia ter tido, pois o “in dubio…” não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas” e que a apreciação pelo Tribunal da Relação da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto do artigo 410.º, n.º 2 (cfr. acórdãos da Relação de Coimbra, de 9/09/2009, processo 363/08.00GAACB.1, de 4/02/2015, processo 421/13.6GCMBR.C1 e de 25/02/2015, processo 28/13.0GAAGD.C1). Para quem entenda que apenas o estado de dúvida subjectivamente sentida pelo julgador constitui o pressuposto específico do princípio in dubio pro reo, aquele princípio não se mostrará violado quando o tribunal de julgamento não se confrontou com dúvida séria sobre a prova do facto desfavorável ao arguido. Uma outra abordagem da questão é a de que o princípio in dubio pro reo deve ser entendido objectivamente, não se exigindo a dúvida subjectiva ou histórica, para que possa ocorrer a sua violação. Nesta perspectiva – que é a nossa -, no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida. A Relação, diversamente do S.T.J., conhece de facto. Mesmo que a violação do princípio in dubio não resulte do texto da decisão recorrida, só por si ou conjugada com as regras da experiência comum, enquanto erro notório na apreciação da prova [cfr al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P.), pode a mesma ser detectada no âmbito de impugnação ampla da decisão proferida sobre a matéria de facto. Ou seja: fora dos limites do erro notório na apreciação da prova, o recurso da decisão de facto, no âmbito da impugnação ampla, habilita a Relação, que conhece de facto, a reapreciar as provas, a formular a sua livre convicção quanto às mesmas e a determinar se o tribunal de 1.ª instância, independentemente de se ter visto subjectivamente confrontado com a situação de dúvida, julgou provado facto desfavorável ao arguido apesar de a prova disponível não permitir, de forma racional e objectiva, à luz das regras da experiência e/ou de regras legais ou princípios válidos em matéria de direito probatório, ultrapassar o estado de dúvida sobre a realidade do facto (neste sentido, o acórdão da Relação de Évora, de 13/09/2016, processo 89/15.8GTABF.E2, relator António João Latas).(…)” O in dubio pro reo é convocável em matéria de prova quando o tribunal, mesmo o de recurso, se encontre numa situação de dúvida razoável quanto a algum ponto da matéria de facto, circunstância em que a deve resolver em benefício do arguido; e, inversamente, já não colhe pertinência o in dubio pro reo quando o tribunal, com apoio nos meios de prova disponíveis e lendo-os criticamente à luz das regras da experiência comum, não tem qualquer dúvida razoável quanto aos factos a deles extrair ou, tendo-a tido em algum momento, a esclareceu, convencendo-se positivamente do facto em causa (entre tantos outros, vide o Acs. do STJ de 7.11.2002, da RC de 12.09.2018 e da RP de 28.10.2015, relatados por Oliveira Guimarães, Orlando Gonçalves e Ernesto Nascimento, respetivamente, in www.dgsi.pt; vide ainda Paulo Pinto de Albuquerque, ob cit., pg. 1121). Regressando ao caso concreto, este Tribunal de recurso, procedeu à audição da gravação da prova pessoal indicada pelo recorrente, e reapreciada esta, não ficou com dúvida razoável sobre os factos não provados e impugnados pelo recorrente, impondo, a sua análise decisão diversa da proferida pela 1.ª instância, não se impondo o princípio in dúbio pro reo, ocorrendo quanto a eles manifesto erro de julgamento pelo Tribunal recorrido. Para além de não bastar contrapor-se à convicção do julgador uma outra convicção diferente para provocar uma modificação na decisão de facto, é necessário demonstrar-se que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados é, pelo menos, desprovida de razoabilidade, e no caso dos autos, manifestamente, o é, considerando os supra referidos depoimentos. Há, assim, que se proceder à modificação da matéria de facto em conformidade, e aditar à factualidade assente os seguintes factos: “6. Para o efeito, saíram ambos os arguidos da viatura automóvel referida e foram encaminhados para a viatura policial que se encontrava parada também nessa rua.. Já junto à viatura policial, o arguido AA entrou para o interior da viatura policial, para o banco de trás da viatura policial, permanecendo o arguido DD junto dos elementos policiais, mas fora da viatura policial. 7. Neste breve hiato de tempo, aproximou-se da viatura policial um número indeterminado de indivíduos com o objetivo de libertar os arguidos. 8. Assim que o arguido AA percecionou a oportunidade de fugir, imediatamente abandonou o veiculo pela porta do lado direito, pondo-se em fuga em passo de corrida para local incerto. E, consequentemente, eliminar da matéria de facto não provada os factos d) e o do e) que seja incompatível com a modificação operada. Concluindo-se, assim, pela existência de erro de julgamento, merecendo esta questão provimento por este Tribunal de recurso. IV.2-Do enquadramento jurídico-penal dos factos no crime de evasão. Entende o recorrente Ministério Público encontrarem-se verificados os elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de evasão p. e p. no art.º 352.º, CPenal no que respeita à conduta do arguido AA. Este preceito legal, sob a epígrafe “ Evasão”, preceitua: “1 - Quem, encontrando-se legalmente privado da liberdade, se evadir é punido com pena de prisão até 2 anos (…)”. O bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime de evasão é a autoridade pública do sistema estadual de justiça quando profere decisões de privação da liberdade, e/ou, também para alguma doutrina, a segurança da custódia oficial e a efectiva prossecução da medida de privação imposta, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 1114. Na sua caracterização e quanto ao grau de lesão desse bem jurídico trata-se de um crime de dano e quanto á forma de consumação trata-se de um crime de mera actividade. Consistindo o tipo objectivo na evasão (fuga, escapamento, saída, abandono, deserção) por pessoa legalmente privada da liberdade, como bem se refere na sentença recorrida, “…divergindo da redação original do artigo 392º no Código Penal de 1982 – em que o crime de evasão era aplicável “à pessoa legalmente presa, detida ou internada em estabelecimento destinado à execução de reações criminais privativas da liberdade”, isto é, ao evadido que se encontrasse em prisão preventiva ou em cumprimento de pena de prisão ou de internamento – o legislador da reforma de 1995 (Decreto-Lei 48/95, de 15/3) veio introduzir, no atual artigo 352º do Código Penal, a expressão abrangente “encontrando-se legalmente privado da liberdade”. Recorrendo-se, em termos interpretativos, ao elemento histórico, verifica-se que, com esta expressão substitutiva, quis a Comissão Revisora abranger precisamente as pessoas submetidas a medida de segurança privativa da liberdade, prisão preventiva e obrigação de permanência no domicílio, como resulta da discussão que teve lugar nas 35ª e 51ª sessões (cfr. Actas da CRCP/Figueiredo Dias, 1993: Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, Lisboa, Rei dos Livros, mormente página 409). Também Maia Gonçalves, in Código Penal Português, 18ª edição (2007), Almedina, na anotação nº 2 ao artigo 352º, página 1059, nos diz que “a evasão abrange todos os casos em que o agente se encontra legalmente privado da liberdade, (…) aqui se incluindo, portanto, a medida de segurança privativa da liberdade e a obrigação de permanência no domicílio” – em idêntico sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal (…), 2ª edição (2010), UCE, nota 6 ao artigo 349º e nota 5 ao artigo 352º, respetivamente a páginas 916-917 e 920, e M. Miguez Garcia/J.M. Castela Rio, Código Penal, Parte geral e especial, com notas e comentários, Almedina, 2014, nota 3 ao artigo 349º e nota 2 ao artigo 352º, páginas 1180 e 1183, respetivamente. (neste sentido Acórdão da Relação de Guimarães, 20.06.2022 Armando Azevedo–Relator Acórdão da Relação de Lisboa, 21 de Março de 2018 Relator (Vasco Freitas). Quer isto dizer serem dois os elementos do tipo objectivo do ilícito: (1)encontrar-se o agente legalmente privado da liberdade e (2) evadir-se. Evadir significa escapar de, escapar furtivamente, fugir às ocultas – o que, para acontecer, implica que o agente esteja vigiado, guardado, sob custódia. Electrónica, pessoal ou material. A detenção inicia-se com a ordem de, com a voz de, e termina na sua efectiva - e não meramente declarativa - concretização e execução. Apenas quando o agente passa a estar sob a custódia do poder público é que, furtando-se à acção da justiça, se verifica a violação do interesse jurídico tutelado pela incriminação em causa. Até lá, aquele a que é dada voz de detenção, se fugir antes da sua efectiva concretização, antes da sua execução ser levada à prática, com a inerente diminuição de liberdade de movimentos e de livre mobilidade, não comete qualquer ilícito penal e designadamente o crime de evasão. No que toca ao tipo subjetivo de ilícito, esse admite qualquer modalidade de dolo, nos termos do artigo 14.º do Código Penal. Por último, cumpre apenas fazer referência que a atenuação especial da pena, nos termos do artigo 352.º, n.º 2, do Código Penal, é facultativa. Baixando aos autos quanto ao AA, resulta provado que o arguido encetou fuga do local da prática dos factos após ter sido dada voz de detenção. No entanto, coloca-se a questão se o arguido já estaria efetivamente privado da liberdade. Quanto a nós, a resposta é positiva. Ora se é insofismável a verificação do primeiro, também o é a existência do segundo dos apontados elementos objectivo e sujectivo do tipo em apreciação. Concretizando: Segundo a factualidade dada como provada, resulta que foi dada voz de detenção ao arguido, mas o mesmo não chegou a ser algemado. Concorda-se que, para se verificar a violação do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é necessário que a detenção seja totalmente concretizada e executada, verificando-se uma diminuição da liberdade de movimentos e de mobilidade, não bastando que a mesma seja apenas iniciada, porquanto só assim se poderá considerar como uma efetiva privação da liberdade. Destarte, resulta da factualidade provada que a detenção de AA foi totalmente concretizada, ainda que não tenha sido algemado, porquanto foi-lhe dado voz de detenção e colocado o mesmo no interior da viatura policial, encontrando-se sob custódia dos agentes que se encontravam a realizar a diligência, tendo o mesmo, depois de concretizada a detenção, encetado e concretizado fuga. Ademais, foi dado como provado que: 11. O arguido AA ao fugir do local depois de lhe ter sido dado voz de detenção, fê-lo, com o objetivo concretizado de se furtar à detenção que sobre este impendia, o que representou e realizou. 12. O arguido AA agiu sempre de forma livre deliberada e consciente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Tais factos preenchem todos os elementos do tipo de crime de evasão. Por todo o exposto, terá que ser alterada a decisão proferida pelo tribunal, condenando-se o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de evasão, previsto e punido, pelo artigo 352.º, n.º 1, do Código Penal. Importa agora, aferir a medida concreta da pena. O crime de evasão, previsto e punido, pelo artigo 352.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de prisão até dois anos. Prevendo o n.º 2 que “Se o agente espontaneamente se entregar às autoridades até à declaração de contumácia, a pena pode ser especialmente atenuada”. Será de atenuar especialmente a pena dado que o arguido se entregou voluntariamente às autoridades num curto espaço de tempo (facto provado 14), face ao n.º2, com redução de 1/3 do limite máximo, que passa a ser de 16 meses. A determinação da medida concreta da pena faz-se, nos termos do art.º 71.º do Cód. Penal, em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (estas já foram tomadas em consideração ao estabelecer-se a moldura penal do facto), deponham a favor do agente ou contra ele. Sem violar o princípio da proibição da dupla valoração pode ainda atender-se à intensidade ou aos efeitos do preenchimento de um elemento típico e à sua concretização segundo as especiais circunstâncias do caso, já que o que está aqui em causa são as diferentes modalidades de realização do tipo. Assim, há que ponderar as exigências de prevenção geral positiva de integração, que constituirão o limiar da punição, sob pena de ser posta em risco a função tutelar do direito e as expectativas comunitárias na validade da norma violada. Ainda há que atender, às exigências de culpa do agente, limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, por respeito ao princípio político-criminal da necessidade da pena e ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (artigos 1º e 18º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa). Por último, cumpre considerar as exigências de prevenção especial de socialização, sendo elas que irão determinar, em último termo, e dentro dos limites referidos, a medida concreta da pena. Ora, considerando o art.º 71.º, n.º 2, do Código Penal, importa verificar que: - O grau de ilicitude da conduta do arguido é mediano, porquanto o arguido acabou por se entregar, pouco tempo depois, às autoridades, apresentando-se voluntariamente na esquadra da PSP. - A intensidade do dolo, na modalidade de direto; - As necessidades de prevenção geral que são elevadas; - A idade jovem do arguido aquando da prática dos factos (apenas 17 anos); a ausência de antecedentes criminais por crime. Assim sendo, atenta a moldura penal aplicável, ponderando, então, todo o circunstancialismo descrito, sopesando as atenuantes e, globalmente, a culpa do arguido, sendo esta reconduzível a um juízo valorativo que atende a todos os elementos aduzidos e conjugando-os com regras de experiência comum e com apelo, ainda, aos critérios legais de determinação da pena já mencionados, entende o Tribunal, como justa, proporcional, adequada e necessária a condenação do arguido na pena de 100 dias de prisão. Considerando o disposto no art.º 45.º, do CP não sendo a execução da pena de prisão exigida pela necessidade de prevenir o cometimento futuro de crimes pelo arguido, determina-se a substituição da pena de prisão por igual tempo de multa, à razão diária de 5€. Considerando a prática pelo arguido dos dois crimes (80 dias de multa e 100 dias de multa), há que fixar a pena conjunta. Para aferir a pena concreta da moldura do concurso há que atender ao disposto no artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal que estabelece que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». Assim, essencial é que a medida da pena do concurso resulte de uma avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente. Decorre do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, para escolha da medida da pena única, importará, pois, ter em conta «em conjunto, os factos e a personalidade do agente». A pena única do concurso de crimes, assenta no sistema de pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes (princípio da acumulação), deve ser fixada dentro da moldura do cúmulo, tendo em conta os factos e a personalidade do agente. Na consideração do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, devendo ter-se em conta a possível conexão existente entre os factos em concurso. Na consideração da personalidade do agente, tal como se manifesta na globalidade dos factos, devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente. A determinação da pena do concurso exige, pois, um exame crítico de ponderação conjunta sobre a conexão e interligação entre todos os factos praticados, acentua-se, todos os factos, e a personalidade do seu autor. Impõe-se, portanto, que se proceda a uma nova reflexão sobre os factos, em conjunto com a personalidade do condenado, em ordem a adequar a medida da pena à personalidade que se revelou em toda a factualidade. Como vem sendo decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 27-05-2015, proferido no processo n.º 220/13.8TAMGR.C1.S1-3ª Secção, Relator Manuel Augusto de Matos, retomando o acórdão de 12-09-2012, proferido no processo n.º 605/09.4PBMTA.L1.S1 – 3.ª Secção (www.dgsi.pt) que, «com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente. Como doutamente diz Figueiredo Dias, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado”, e, assim, [i]mportante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos (-), tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele…». A pena única do concurso, formada nesse sistema de pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes, deve ser, pois, fixada, dentro da moldura do cúmulo, tendo em conta os factos e a personalidade do agente. Por seu lado, lê-se no mesmo acórdão, «na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente». Sendo que, tem considerado o Supremo Tribunal de Justiça, na determinação da pena conjunta, impõe-se atender aos princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso . Efectivamente, pronuncia-se o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão do de 10-12-2014, proferido no processo n.º 659/12.6JDLSB.L1.S1- 3.ª Secção (www.dgsi.pt), «[a] decisão que efectua o cúmulo jurídico de penas, tem de demonstrar a relação de proporcionalidade que existe entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação – conjunta - dos factos e da personalidade, importando, para tanto, saber (…) se os crimes praticados são resultado de uma tendência criminosa ou têm qualquer outro motivo na sua génese, por exemplo se foram fruto de impulso momentâneo ou actuação irreflectida, ou se de um plano previamente elaborado pelo arguido», Como salienta no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-06-2012, proferido no processo n.º 70/07.0JBLSB-D.S1 – 3.ª Secção: «[a] medida da pena única, respondendo num segundo momento também a exigências de prevenção geral, não pode deixar de ser perspectivada nos efeitos que possa ter no comportamento futuro do agente: a razão de proporcionalidade entre finalidades deve estar presente para não eliminar, pela duração, as possibilidades de ressocialização (embora de difícil prognóstico pelos antecedentes)». Também no Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 29/04/2020, proferido no processo n.º 928/08.0TAVNF.G1.S1, relator Lopes da Mota (www.dgsi.pt): “VII - Como se tem sublinhado na jurisprudência constante deste Tribunal, com a fixação da pena única, de acordo com o critério especial do art. 77.º, do CP, pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento.” Sendo que, quanto ao modo de pôr em prática os mencionados critérios definidos no número 1 do artigo 77.º do Código Penal, diz Figueiredo Dias : «Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)». Por sua vez, dispõe o número 2 do artigo 77.º do Código Penal que «A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes». Quer isto dizer que a medida concreta da pena do concurso (dentro da moldura abstracta aplicável, que é calculada a partir das penas impostas aos diversos crimes que integram o mesmo concurso) é determinada, tal qual sucede com a medida das penas parcelares, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.º, número 1 do Código Penal), que é o critério geral, e a que acresce, tratando-se de concurso (quer do artigo 77.º quer do artigo 78.º do Código Penal), o critério específico, consistente, como visto, na necessidade de ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente. Porém, como também adverte Figueiredo Dias, tratando-se de determinar a medida da pena do concurso, os factores de determinação da medida das penas parcelares, por via do princípio da proibição da dupla valoração, funcionam ora apenas como guia, a menos que se refiram, não a um dos concretos e específicos factos ilícitos singulares mas, ao conjunto deles. Constituindo, como já referido, estes os critérios a que o julgador há-de ater-se em sede de determinação da medida concreta da pena conjunta. A ilicitude global dos factos, aferida em função da medida das penas singulares, em si mesmas e em relação ao conjunto, e o tipo de conexão que intercede entre os crimes, revela-se mediana, não podendo esquecer-se a forma eficiente, desembaraçada, ousada como o arguido cometeu os crimes. Correlativamente, a culpa do arguido, face ao conjunto dos factos, e bem assim as exigências de prevenção geral (a especial e, em particular, a positiva), situando-se a um nível semelhante, impõem que a pena do concurso se situe em medida algo distanciada do limite mínimo da respectiva moldura abstracta, mas não muito acentuadamente. Por outro lado, ao nível da prevenção especial, importa não perder de vista a ausência de antecedentes criminais e a juventude do arguido. Tal como resulta da factualidade assente, é de salientar ainda que os factos e crimes foram todos praticados na mesma ocasião, numa situação meramente ocasional, sem evidência de especiais prejuízos, o que sustenta a conclusão, de uma ilicitude global sem especial dimensão. Ponderando, pois, todo o condicionalismo que, exógeno aos tipos legais, depõe a favor e contra o arguido julga-se adequada à sua culpa e proporcional às exigências de prevenção geral e especial a pena de 130 dias de multa, dentro da moldura que tem como limite mínimo 100 dias correspondente à pena mais grave e como limite máximo 180 dias, correspondente ao somatório das duas, sem prejudicar a sua reinserção social, cumpre satisfatoriamente os critérios definidos nos artigos 40.º, 71.º, 77.º, todos do Código Penal. Há assim, que fixar-se a pena única em 130 euros à razão de €5. O que perfaz um total de €650. *** V. DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente o recurso do Ministério Público e, em consequência: V.1 julgar verificado erro de julgamento, nos termos do art.º 412.º, do CPP quanto aos factos não provados supra referidos e, em consequência: i. proceder à alteração da matéria de facto provada, em conformidade com a verificação do aludido vício, aditando-se à factualidade assente os seguintes factos sublinhados e realçados: 1. No dia ... de ... de 2023, pelas 16h40m, o arguido DD seguia no interior do automóvel ligeiro de passageiros, marca PEUGEOT, modelo 206, com a matrícula ..-..-RS, no lugar do pendura, na ..., em .... 2. Este veículo era conduzido pelo arguido AA, que não dispõe de título de condução que o habilite a conduzir este tipo de veículos. 3. Nestas circunstâncias, o arguido AA ao visualizar um veículo policial da PSP, imediatamente decidiu parar a marcha da viatura automóvel. 4. No entanto, antes que o conseguisse fazer foi abordado por elementos policiais da PSP devidamente identificados e uniformizados que imediatamente lhe solicitaram os documentos pessoais e da viatura. 5. Por não ser detentor de carta de condução foi dada voz de detenção a AA e, igualmente a DD por os agentes acreditarem que o mesmo tinha se disponibilizado a ensinar o arguido AA a conduzir. 6. Para o efeito, saíram ambos os arguidos da viatura automóvel referida e foram encaminhados para a viatura policial que se encontrava parada também nessa rua. Já junto à viatura policial, o arguido AA foi colocado no interior da viatura policial, no banco de trás da viatura policial, permanecendo o arguido DD junto dos elementos policiais, mas fora da viatura policial. 7. Neste breve hiato de tempo, aproximou-se da viatura policial um número indeterminado de indivíduos com o objetivo de libertar os arguidos. 8. Assim que o arguido AA percecionou a oportunidade de fugir, saiu pela porta do lado direito e imediatamente abandonou o veiculo policial, pondo-se em fuga em passo de corrida para local incerto. 9. Nestas circunstâncias, um número indeterminado de indivíduos puseram-se entre o arguido DD e os agentes policiais, de forma a estes perderem o contacto com este arguido. 10. O arguido AA sabia que para conduzir o veículo automóvel supra descrito precisava de documento válido que o autorizasse a conduzir este tipo de veículo, e ainda assim, sabendo que não dispunha de nenhum documento de tal tipo, decidiu-se por conduzi-lo, sabendo que não o podia fazer. 11. O arguido AA ao fugir do local depois de lhe ter sido dado voz de detenção, fê-lo, com o objetivo concretizado de se furtar à detenção que sobre este impendia, o que representou e realizou. 12. O arguido AA agiu sempre de forma livre deliberada e consciente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. ii) proceder à eliminação dos factos não provados d) e esta parte do e) “a fuga do arguido AA ocorreu”, mantendo-se o demais. V.2) condenar o arguido AA, como autor material e na forma consumada, de um crime de evasão, p. e p. pelo art.º 352º nº1.º do C.Penal, na pena de 100 dias de prisão, que se substitui por igual tempo de multa (100 dias) à razão diária de €5 e na pena única relativa ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas aos crimes de crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto – Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro e de evasão, p. e p. pelo art.º 352º nº1.º do C.Penal de 130 dias de multa à razão diária de €5,00, num total de €650, mantendo-se a sentença no demais. Notifique. Sem custas (art.º 513.º, n.º1 a contrario). * Lisboa, 11/09/2025 (Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários) Maria de Fátima R. Marques Bessa Ana Marisa Arnêdo (com declaração de voto infra) Eduardo de Sousa Paiva Declaração de voto de vencida Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22 de Setembro de 2015, processo n.º 2619/12.8GBABF.E1, in www.dgsi.pt., «(…) o juiz que, em 1.ª instância, julga de facto, goza de ampla (conquanto vinculada) liberdade de movimentos ao erigir os meios de que se serve na fixação dos factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção e apreciação da prova. Nos termos expressamente prevenidos no artigo 127.º, do CPP, as provas são livremente valoradas pelo juiz sem obediência a regras pré-fixadas. Ora, há-de conceder-se, essa liberdade de apreciação com base no conjunto do material probatório recolhido pela percepção global, traduzido numa síntese decisória, é insindicável por este Tribunal. Como assim, o Tribunal de recurso só em casos excepcionais de manifesto erro de apreciação da prova poderá comutar a decisão levada na instância – será, por exemplo e caricatura, o caso de o depoimento de uma testemunha ter um sentido diametralmente oposto ao que foi considerado na sentença recorrida. Vale dizer que, por força do referido princípio da livre apreciação da prova (não estando em causa, como, no caso, não está, prova tarifada ou legal), o processo de formação da livre convicção do julgador na apreciação da prova não é questionável pelo tribunal de recurso. A esta instância caberá apenas indagar se tal apreciação e julgamento são contrariados pelas regras da experiência comum ou pela lógica do homem médio (diga-se mesmo, do julgador médio) suposto pela ordem jurídica. (…) Importa ademais ter presente que a impugnação do julgamento levado, na instância, sobre a matéria de facto, não conduz a um novo julgamento nem pode supri-lo. Na verdade, a prova gravada e, em parcelas, transcrita, nunca poderá suprir a abundância de pormenores (a cor e o cheiro) que a oralidade e a imediação proporcionam ao juiz quando aprecia a prova que, pela irrepetível primeira vez, se desenrola no Tribunal. O modo como o arguido, o declarante, como a testemunha depõem, as suas reacções, as suas reticências, a sua mímica, são factores decisivos na formação de uma convicção e não podem ser captados pela frieza asséptica de quaisquer meios mecânicos. Pode mesmo dizer-se que, na convicção, desempenham papel de relevo não apenas a actividade puramente cognitiva mas também elementos que, racionalmente, não são explicitáveis (em muitos casos, v.g., a credibilidade que se concede a um meio de prova) e mesmo elementos puramente emocionais - cfr. Figueiredo Dias, «Direito Processual Penal», I, Coimbra Editora, 1974, pp. 204/205 e in «Direito Processual Penal», Lições 1988-1989, pp. 135 e segs. Ensinava o Prof. José Alberto dos Reis que a livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade, «entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), e condição indispensável para actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal». Citando Chiovenda, concluía que «ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar» - Código de Processo Civil, Anotado, Vol. IV, pág. 566 (…) Tendo em conta o princípio da apreciação da prova nos termos do art. 127.º do CPP, uma coisa é a valoração da prova efectuada pelo tribunal e outra, o modo da sua impugnação em recurso sobre a matéria de facto, de forma processualmente válida, que não se traduz em mera exposição pelo recorrente como em seu entendimento faz a valoração da prova, sob pena de se limitar a impugnar a convicção do tribunal recorrido. O que a lei pretende ao vincular o recorrente à indicação das provas que impõem decisão diversa, não é, certamente, que este formule uma outra versão da prova produzida. (…) E as provas que impõem essa diversa decisão são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que tendo sido, ponham em causa ou contradigam o entendimento decantado para a decisão recorrida. Se a tais provas faltam esses pressupostos, não conduzem a outra decisão». Ora, no caso, estamos em crer que a procedência do recurso, quanto ao erro de julgamento, assenta no equívoco de que o Tribunal ad quem, alavancado na audição da prova produzida, procede verdadeiramente a um novo julgamento. Com efeito, se é certo que a prova efectuada também consente a avaliação e o julgamento rogados pelo recorrente, não é de olvidar que tal circunstância, por si só, não configura erro de julgamento. Na verdade, não se vislumbra - nem em rigor é afirmado - que a Sra. Juíza do Tribunal a quo tenha incorrido em evidente falha na análise da prova ou em juízo ilógico ou arbitrário. Teria, pois, julgado improcedente o recurso. Ana Marisa Arnêdo _______________________________________________________ 1. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995 2. Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção. |