Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10384/20.9T8SNT.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: NULIDADES DE SENTENÇA
MAIOR ACOMPANHADO
MEDIDA DE INTERNAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROVIMENTO
Sumário: I - Conforme decorre expressamente do disposto no art.º 900.º do CPC, num processo de acompanhamento de maior como o dos autos, as questões a decidir dizem respeito à designação do acompanhante (e eventualmente de acompanhante substituto, de vários acompanhantes e, sendo o caso, do conselho de família) e à definição das medidas de acompanhamento, nos termos do artigo 145.º do CC e, quando possível, à fixação da data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes.
II - Tendo a sentença recorrida fixado - bem ou mal, aqui não importa - uma “data do início da incapacidade do beneficiário” (ao determinar que as medidas decretadas se tornaram-se convenientes desde 01-03-2018), não tendo omitido pronúncia sobre nenhuma questão concreta que devesse ser apreciada - cf. art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC -, não pode ser considerada nula por (supostamente) não se ter pronunciado quanto a relatórios do INML e ao “testemunho” das peritas, pois estes meios de prova não correspondem a nenhuma questão submetida à apreciação do Tribunal.
III - Tão pouco se verifica a causa de nulidade (parcial) prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 615.º se da análise da sentença resulta terem sido especificados, em termos apreensíveis pelas partes, os fundamentos do decidido quanto às duas questões ora indicadas pela Apelante (data da fixação do começo da incapacidade e decisão de internamento do beneficiário), estando evidenciado pela motivação da decisão de facto que o Tribunal a quo teve em consideração os factos provados, com base na perícia realizada, nos documentos juntos aos autos e nos depoimentos prestados pelas testemunhas, designadamente, pese embora não tenha sido indicado no elenco dos factos provados, que “a doença (do beneficiário) terá iniciado em 2017” e que “desde Março de 2018 que o beneficiário deixou de cumprir por si, pessoal e livremente os seus deveres e exercer os seus direitos”, e a circunstância de a sua mulher, cuidadora, ter apresentado sinais de burnout, conforme mencionado no relatório pericial e em informação social citados na sentença.
IV - É de rejeitar o recurso no tocante à impugnação da decisão da matéria de facto por inobservância por parte da Apelante do ónus principal consagrado no art.º 640.º do CPC, não se podendo considerar que tenha especificado os concretos pontos de facto da sentença que considera incorretamente julgados quando, nas conclusões da sua alegação recursória, o único ponto a que faz referência é a alínea u) do elenco dos factos provados (na qual consta que “O beneficiário começou apresentar deterioração cognitiva desde 2017”), mas, de modo algum para concluir que o facto aí vertido esteja incorretamente julgado, limitando-se a afirmar que: “O ponto u) dos factos provados não autoriza, por si, a conclusão de que a incapacidade do beneficiário remonta à data de 01.03.2018”.
V - Na sentença não se tomou posição, nem cumpria fazê-lo, a respeito da validade de quaisquer atos do acompanhado, sendo certo que, quanto aos atos anteriores ao anúncio do início do processo, se aplica o regime da incapacidade acidental previsto no art.º 257.º do CC – cf. art.º 154.º do CC.
VI - Estando demonstrado que a deterioração cognitiva do beneficiário se iniciou 3 anos antes de março de 2020, constando no relatório da última perícia realizada que se pode “arbitrar com maior margem de segurança a data de Março de 2018 como a data a partir de quando o beneficiário deixou de cumprir por si, pessoal e livremente os seus deveres e exercer os seus direitos”, existindo ainda nos autos documentação clínica que aponta para que já em outubro de 2017 o beneficiário padecesse de síndrome demencial, é descabida a pretensão da Apelante no sentido da fixação da data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes coincidir com a da ida do mesmo ao Hospital por virtude de uma queda sofrida e apenas porque se fez constar na informação clínica que aquele de tal padecia.
VII - A interpretação do art.º 148.º do CC vem gerando alguma controvérsia, ante a sua formulação tão ampla e a existência de outras normas legais que aludem ao internamento, incluindo, além da referida Lei de Saúde Mental, o art.º 899.º, n.º 2, do CPC. A previsão do art.º 148.º do CC, no sentido da indispensabilidade de autorização judicial para uma medida de internamento, abarca todo e qualquer internamento, seja como medida provisória/cautelar (cf. artigos 139.º, n.º 2, do CC e 891.º, n.º 2, do CPC), seja como medida do acompanhamento determinado na decisão final [cf. art.º 145.º, n.º 2, al. e), do CC e 900.º, n.º 1, do CPC], e tanto em instituição de tipo residencial, como em instituição hospitalar ou clínica, tendo na sua ratio a proteção dos direitos de liberdade da pessoa beneficiária, em linha com o disposto no art.º 27.º da CRP e no art.º 14.º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
VIII - Logo, o internamento de maior acompanhado deve ser sempre autorizado pelo tribunal, quando seja justificado, tendo em vista o bem-estar e a recuperação do acompanhado (cf. art.º 145.º, n.º 1, do CC), em instituição idónea e adequada à situação de saúde daquele (que com frequência poderá ser de cariz residencial, incluindo a prestação de alguns cuidados de enfermagem e/ou fisioterapia), ante a inexistência de alternativa, mormente no seio familiar, que se mostre mais benéfica.
IX - Evidenciando os factos provados, conforme mais detalhadamente descrito no último relatório pericial, a incapacidade de o beneficiário providenciar a si mesmo todos os cuidados necessários ao nível das atividades básicas de vida diária, encontrando-se dependente de terceiro (no caso, a mulher, com quem reside), é de concluir que será inevitável a integração em unidade de cuidados continuados na área das demências ou, não sendo possível, estabelecimento residencial para idosos, na eventualidade de nenhum familiar (mulher ou filha) estar em condições de cuidar do beneficiário, o que poderá suceder (pois a mulher, que dele vem cuidando, já tem 70 anos de idade e vivenciou anterior episódio de exaustão), pelo que importa já acautelar essa situação, autorizando o internamento do beneficiário, o qual deverá ser precedido de reunião do Conselho de Família, em ordem a verificar dessa efetiva necessidade e até, a existirem diferentes instituições disponíveis para o acolher, para selecionar a mais adequada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

SF, intentou, em 03-08-2020, ação sob a forma de processo especial de acompanhamento de maior, a favor de MF, alegando, em síntese, que é filha deste último, o qual padece de doença (demência) que o impossibilita, de forma irreversível e permanente, de cuidar da sua pessoa e bens.
Em 04-08-2020, foi proferido despacho julgando procedente o incidente de suprimento de autorização para propor a ação, bem como determinada a publicidade dos autos e a citação pessoal do beneficiário.
Em 07-08-2020, foi tentada a citação deste na Casa de Repouso de Vale de Lobos, sita na Rua …, n.º … Vale de Lobos, Almargem do Bispo, onde o beneficiário então se encontrava internado, mas não foi possível efetuá-la, por ele não ter compreendido o ato.
Procedeu-se à citação do Ministério Público.
Foi proferido despacho a 15-09-2020 que, além do mais, determinou a realização de exame pericial ao Requerido pelo INML e admitiu a intervenção principal espontânea da mulher do beneficiário, LF, como associada da Requerente, na sequência do requerimento que aquela apresentou (em 25-08-2020) e do que foi requerido pelo Ministério Público (em 08-09-2020).
Aquela (Interveniente) requereu a realização de várias diligências probatórias e juntou diversos documentos, designadamente certidão do seu assento de casamento (ocorrido a 27-05-1992, quando o beneficiário tinha 43 anos de idade e a Interveniente 40 anos de idade) e documentação clínica do Hospital das Forças Armadas, incluindo relatório de “TC da coluna cervical”, datado de 11-03-2020, no qual consta, como informação clínica, que o beneficiário apresenta um quadro demencial avançado, tendo sofrido no dia anterior queda no domicílio, com traumatismo crânio-encefálico da coluna cervical.
No seguimento do despacho de 15-09-2020, foram juntos aos autos:
- (em 25-09-2020) pela Interveniente, documentação clínica do beneficiário, seu marido, incluindo o relatório de “RM crânio-encefálica e da órbitra” realizada no Hospital da Luz, Lisboa, em 18-01-2019;
- (em 02-10-2020) informação social elaborada em 25-09-2020 pela Unidade de Serviço Social do Hospital das Forças Armadas, em que se refere designadamente que “A 11de Março de 2020 a Unidade de Serviço Social é chamada às Urgências pela Dr.ª DP, para apoiar e encaminhar o utente e esposa, dado que a mesma, cuidadora, apresentava sinais de burnout. O utente que é deficiente das Forças Armadas deu entrada devido a queda que causou hematoma na cabeça. Ficou neste hospital HFAR, 24h para observação após realizados exames. O contacto que a signatária teve com esta situação, foi só durante esse período de tempo.
Utente tem síndrome demencial é acompanhado em Neurologia, teve diversos AVC e é parcialmente dependente nas actividades da vida diária.
(…) Situação familiar – Utente reside com a cônjuge que é a única cuidadora e está exausta. Utente tenta fugir de casa e por vezes é agressivo. Esposa tem uma procuração do idoso. O casal não tem filhos. A filha de anterior casamento do utente reside e trabalha em Lisboa, e têm uma relação próxima com o pai.
(…) O utente é proprietário da moradia em que residem.
(…) Face ao exposto está-se perante uma situação de Idoso parcialmente dependente de 3.ª pessoa e demente. Esposa exausta e emocionalmente dependente do utente. Agregado familiar com rendimento económico de 3.800€ por mês. Sem elevados encargos fixos mensais. Define-se como prioridade a institucionalização do idoso.
(…) 11-03-2020 Atendimento presencial/ Acompanhamento- com a esposa em que é prestado apoio psico-social. Devido ao seu estado de exaustão e dependência emocional do marido, é proposta a institucionalização temporário do idoso. A Srª LF refere que a Casa de Repouso Vale de Lobos é próxima da residência e pode ir a pé, dado que não conduz. Foi sugerido à esposa e filha irem visitar a Casa de Repouso. Gostaram e reservaram vaga.”;
- (em 06-10-2020) relatório social elaborado pela Casa de Repouso Vale de Repousos em 03-10-2020, no qual se refere designadamente que “O Sr. MF sofreu uma queda no domicílio, em Março de 2020, resultando em internamento no Hospital das Forças Armadas em Lisboa. Este episódio afetou, sobretudo, a área cognitiva, implicando num agravamento da sua dependência.
À data da admissão, o Sr. MF encontrava-se dependente para todas as AVD's, exepto na alimentação.
(…) Relativamente às atividades de vida diária, é dependente de terceiros, uma vez que tem um grande comprometimento visual e cognitivo.”;
- informação clínica do Hospital das Forças Armadas, na qual consta designadamente que o utente é acompanhado desde 25-01-2019 em neurologia com diagnóstico de síndrome demencial que se foi agravando paulatinamente ao longo de 3 anos e sobretudos nos meses que antecederam a primeira consulta, em que já apresentava, além do mais, desorientação temporo-espacial, perturbação mnésica, perturbação de linguagem.
Em 06-10-2020, a ACES Sintra informou que após consulta da base de dados do Registo Nacional de Utentes se constata que o beneficiário “não outorgou testamento vital e/ou procurador de cuidados de saúde”.
Mediante requerimento apresentado pela Interveniente a 21-10-2020, foi junta aos autos a procuração notarial outorgada pelo beneficiário em 23-09-2019 pela qual lhe conferiu poderes para vender diversos imóveis.
Em 14-01-2021, a Requerente veio informar que o beneficiário havia sido levado pela mulher da instituição onde se encontrava para um apartamento na Caparica.
Em 03-05-2021, foi junta aos autos documentação clínica do Hospital das Forças Armadas.
Em 04-05-2021, foi junta aos autos documentação clínica do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca EPE.
Em 05-05-2021, foi junta aos autos documentação clínica do Hospital Lusíadas, incluindo anotação no “Diário Médico” datada de 16-10-2017, na qual consta, além do mais, que “AV NP por síndrome demencial por alterações de memória; dificuldade de navegação no espaço e apraxia motora; Vem com a cônjuge à consulta com quem vive; há cerca de 2 anos AVC que se instalou com alterações da visão e depois episódios de desorientação espacial em locais conhecidos, lacunas mnésicas ao nível da memória episódica remota e autobiográfica com dificuldade em reconhecer amigos/colegas da Tropa; tem défice de atenção dividida com diminuição da flexibilidade mental e do discernimento e tendência a dispersar-se em tarefas multisequenciadas”.
Em 10-05-2021, foi junta aos autos documentação clínica do Hospital da Luz, Lisboa.
Mais foi junta aos autos documentação clínica pelo Hospital da Cruz Vermelha, incluindo informação datada de 09-07-2021 em que se refere o quadro de demência (do beneficiário) com início há 3 anos.
O beneficiário foi ouvido via Webex em 22-02-2021.
Realizou-se uma primeira perícia médico-legal, por perita médica do INML (Clínica forense - Psiquiatria), conforme relatório datado de 18-11-2020 (junto aos autos a 19-11-2020), no qual se menciona que o exame direto (observação psiquiátrica) do examinado teve lugar a 21-10-2020, por videochamada; refere-se ter sido realizada uma entrevista com a Assistente Social do Lar, a qual informou o seguinte «este senhor está aqui desde março, ligaram do Hospital das Forças Armadas e a integração foi feita por mim e ele já vinha muito desorientado porque veio na sequência de uma queda e a esposa não conseguia cuidar dele. Não tinha condições físicas para isso. A filha também veio para fazer a integração dele. ... terá tido a última consulta de Neurologia a 7/02/2020 por estado demencial avançado. Tem receitas desde 2019. Questionada sobre a autonomia do Examinando, “ele não faz nada sozinho, tem que ser estimulado para fazer tudo e a única coisa que ele faz sozinho é comer e como ele tem muitas dificuldades visuais ele não vê e temos que lhe dar o garfo para ele perceber que tem que comer e de resto ele não faz mais nada, não faz a higiene sozinho e fazemos estimulação cognitiva e tem uma família muito apoiante, a esposa em particular.” Nas conclusões menciona-se designadamente que “De acordo com a avaliação clínico-forense realizada e o exame indireto, somos da opinião que o Examinando apresenta um quadro compatível com o diagnóstico de Demência Sem Outra Especificação (SOE) (Classificação Internacional de Doenças, versão 10ª - F 03, Organização. Mundial de Saúde, 1992).
(…) Ainda que na ausência de exames complementares atuais, a documentação junta aos autos, bem como a descrição da entrevista e observação são suficientemente eloquentes permitindo afirmar que as consequências da patologia de que sofre são muito significativas e que, em termos pragmáticos, o funcionamento social e autonomia se encontram seriamente prejudicados. Nesse sentido, consideramos que ao Examinando não deverá ser mantido o exercício de direitos. De facto, as dificuldades que o mesmo apresenta, são de tal forma graves e permanentes que importarão mesmo a necessidade de ser nomeado um Acompanhante, nos termos da redação conferida pela lei 49/2018 de 14/08, tendo em conta os vários atos ou categorias de atos, previstos nos artigos 145º e 147º, ambos do Código Civil. Não manifestou capacidade de compreensão e entendimento do conceito e alcance da figura do “acompanhante”, de acordo com o Regime de Maior Acompanhado (RMA).
Relativamente aos meios de apoio e tratamento adequados ao défice do Examinando, consideramos que o mesmo deve manter seguimento médico regular e com os devidos cuidados médicos e de enfermagem. Deve manter-se com a adequada supervisão, sendo uma instituição o local mais adequado para estar, uma vez que aí ser-lhe-ão prestados todos os cuidados técnicos necessários, com a necessária celeridade. Do ponto de vista pericial, um internamento deverá ter sempre uma indicação médica, sob risco de agravamento do estado de saúde.
Face ao exposto somos do parecer que o Examinando beneficia da nomeação de um Acompanhante com poderes de representação geral e substituição da vontade, abrangendo todos os atos da vida em sociedade, que dele possa cuidar, com quem mantenha afetividade, e que possa garantir o exercício de direitos, cumprimento de deveres, assegurar o seu bem-estar.
O Examinando não reúne condições para ser ouvido em audição em Tribunal. O quadro clínico supra é irreversível e tende à estabilidade, pelo que do ponto de vista médico-legal não entendemos previsível a necessidade de revisão inferior a 5 anos.»
Em 19-11-2020, foi proferido despacho em que, além do mais, consta o seguinte: “Por último, considerando que o beneficiário tem o diagnóstico de demência, provavelmente síndrome de Alzheimer em estado avançado, face aos elementos clínicos carreados para os autos, considera-se que provisoriamente será de fixar o dia 12.03.2019 (um ano antes da entrada na casa de repouso) como a data que a medida de acompanhamento se tornou necessária para suprir a impossibilidade do beneficiário cumprir os seus deveres e exercer os seus direitos (ao dia 11.03.2020 data de internamento do beneficiário no Hospital foi registada a informação que a mulher do beneficiária estava exausta devida à prestação e cuidados ao beneficiário, pelo que ponderando essa exaustão e a circunstância da demência ser doença crónica e o beneficiário já se encontrar em estado avançado é seguro fazer juízo de prognose que o comprometimento cognitivo daquele ocorreu há mais de um ano a esta parte).
Assim sendo, estando os autos em fase de instrução, face aos elementos carreados para os autos, fixa-se provisoriamente aquela data.”
Nesse despacho decidiu-se “aplicar provisoriamente em benefício de MF:
a) A medida provisória de representação especial conferindo à acompanhante poderes para representar o beneficiário junto de Hospitais, Instituições de Saúde e Casas de Repouso (Lares), aceitando/recusado tratamentos médico-medicamentosos que forem propostos, proceder aos pagamentos necessários aos seus tratamentos, internamentos e residência em local apropriado (Casa de Repouso).
(…) d) Provisoriamente deverá a acompanhante abster-se de fazer uso da procuração outorgada pelo beneficiário a seu favor, porquanto indicia-se que o mesmo não estava nas suas plenas faculdades mentais aquando da outorga do referido documento.
e) Provisoriamente limita-se os direitos pessoais do beneficiário de comprar e vender, doar e de testar (artigo 147.º, n.º 2, do Código Civil).
f) Provisoriamente nomeia-se como acompanhante a mulher do beneficiário, LF.
g) No exercício da sua função, a acompanhante provisória privilegiará o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada. (cfr. artigo 146.º, n.º 1, do Código Civil).
h) A acompanhante provisória deverá manter um contacto permanente com o acompanhado, devendo visitá-lo, no mínimo, com uma periodicidade mensal excepto se em virtude da actual situação epidemiológica a Casa de Repouso em cumprimento das orientações da Direcção Geral de Saúde/Médico de Saúde Pública der outras instruções. (cfr. artigo 146.º, n.º 2, do Código Civil).
i) Provisoriamente fixa-se o dia 12.03.2019 como a data que as medidas de acompanhamento provisórias se tornaram convenientes.”
Foi realizado novo exame médico-legal, complementar do foro psicológico, por perita médica do INML (Clínica forense - Psiquiatria), conforme relatório datado de 14-06-2021 (junto aos autos a 16-06-2021), no qual se menciona que o exame teve lugar a 02-06-2021, concluindo-se designadamente que: “De acordo com a avaliação neuropsicológica realizada, o examinado apresenta uma inteligência na zona limite, quando comparado com os outros sujeitos da sua idade, demonstrando algum grau de comprometimento das suas funções cognitivas superiores. Apesar de não ter sido apurada uma significativa deterioração mental, foi possível apurar-se alguns indícios de deterioração mnésica.
(…) Estas afectações do funcionamento neurocognitivo apuradas remetem para uma disfunção executiva compatível com eventual quadro clínico orgânico congruente com aspectos de processo demencial.”
Foram prestados esclarecimentos pela Perita médica que realizou a primeira perícia, em audiência (a 13-04-2021), bem como mediante emails juntos aos autos a 20-12-2021 e 21-02-2022, esclarecendo designadamente que como não procedeu a uma reavaliação do examinando não pode indicar a “data do início da incapacidade efectiva para o beneficiário cumprir os seus direitos e deveres”.
Foram ouvidas a Requerente e a Interveniente principal (esta última em 13-04-2021), bem como as testemunhas arroladas, tendo a Interveniente declarado que tinha 70 anos de idade e que havia mudado a sua residência para um apartamento na Marissol, Caparica.
Realizou-se ainda um terceiro exame médico-legal, por um novo Perito do INML (Clínica forense - Psiquiatria), conforme relatório datado de 24-05-2022 (junto aos autos a 25-05-2022), no qual se menciona que o exame teve lugar a 18-05-2022, descrevendo-se os aspetos tidos por relevantes no exame indireto e no exame direito, bem como sido realizada entrevista à mulher do beneficiário, a qual referiu, além do mais que “Em 2020, refere que trouxe o marido para casa porque o mesmo estaria “muito debilitado.” No exame indireto, menciona-se, além do mais, a documentação do Hospital da Cruz Vermelha, com destaque para o Diário clínico – Dr. NG – Psiquiatria – 19-03-2018, em que consta designadamente o seguinte: “Referenciado Dr Alc por depressão +cluster cognitiva/pseudodemencial? Descreve diplopia;há 4 a, AVC vs etiologia viral, com dificuldades visuais e de equilíbrio provavelmente majoradas por depressão. Fez guerra colonial em Moçambique sem per stress pos traumático, apenas pesadelos que limparam com mirtazapina prescrita Dr Alc há 1 mês. (...) Depressão moderada a grave com labilidade, irritabilidade, apatia, lev difícil, anedonia (benfica, saídas com esposa), ideias de morte, teve alguns episódios com alguma est. (arma) mas com critica, displic cuidados pess, anorexia (limpou com Mirtaz), sem insónia atual; alt cognitivas da memória recente/semantica, discurso pobre e hesitante; MMSE N 27/30 (falou 1 item calculo, copia, memória recente mas acede com pistas, P relógio AN ((nas inferf. por alt visual); AVDs alteradas na gestão financeira (erros nos trocos e na percepçao valor do dinheiro).”
Conclui-se neste último relatório que:
“1. O examinando apresenta o diagnóstico de Síndrome Demencial, de características fronto-temporais a que corresponde o código F.03 (Demência sem outra especificação) da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10).
2. Tal afecção impede-o de reger a sua pessoa e os seus bens, ou seja, de cumprir os seus direitos e exercer os seus deveres.
3. É incapaz de realizar autonomamente toda e qualquer atividade básica ou instrumental da vida diária.
4. Apresenta incapacidade, por força da afeção de que padece, para reger a sua pessoa e os seus bens.
5. Relativamente a factos ocorridos no passado, na ausência de possibilidade de realizar exame directo nessa altura, terá, naturalmente, o perito de se socorrer da evidência documental disponível, pronunciando-se relativamente à verosimilhança clínica da mesma face ao observado em sede de exame pericial directo.
6. Toda a documentação clínica existente nos autos é congruente com o observado em sede de exame pericial directo. Por outras palavras, é clinicamente verosímil, e compatível com a evolução natural de um quadro demencial.
7. Compulsada a referida documentação verificamos deterioração progressiva da sua cognição pelo menos desde 2017, sendo que à data de Outubro de 2017 se encontram documentadas alterações da abstracção e discalculia, o que implica que fosse possível que o examinando deixasse de cumprir, na sua plenitude, por si, pessoal e livremente os seus deveres e exercer os seus direitos.
8. É de referir que já em 2017 era referida pela sua esposa “deterioração cognitiva de agravamento progressivo”, a fazer fé no diário clínico do Dr. GM.
9. Já em Março de 2018, é referido em diário clínico que o examinando apresentaria “AVDs alteradas na gestão financeira (erros nos trocos e na percepção valor do dinheiro)” o que aponta para que o examinando não teria capacidade de cumprir, por si, pessoal e livremente os seus deveres nem exercer os seus direitos.
10. O examinando tem indicação para manter seguimento em consulta de Neurologia ou Psiquiatria e cumprir o plano terapêutico definido pelo Exmº Colega Assistente.
11. Sugere-se, igualmente, a avaliação pela equipa de cuidados continuados da área de residência para eventual referenciação a unidade de cuidados continuados na área das demências.
12. Isto, sem prejuízo da eventual integração em estabelecimento residencial para idosos, caso a família não consiga providenciar os cuidados necessários do ponto de vista das Actividades Básicas de Vida Diária.
Assim:
13. O examinando apresenta os condicionalismos clínicos para que seja aplicado o estatuto de maior acompanhado, em regime de representação geral, com acometimento ao acompanhante da administração de bens e património, conforme doutamente peticionado.
14. Do ponto de vista clínico a reapreciação clínica do seu estado poderá ser realizada no prazo máximo previsto na Lei.
VI. Resposta aos quesitos
a. A afecção de que sofre o beneficiário;
O examinando apresenta o diagnóstico de Síndrome Demencial, de características fronto-temporais a que corresponde o código F.03 (Demência sem outra especificação) da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10).
b. As suas consequências;
Impede-o de cumprir por si, pessoal e livremente os seus deveres e exercer os seus direitos.
c. A data provável do seu início;
2017.
d. A data provável do início da incapacidade, a partir de quando o beneficiário deixou de cumprir por si, pessoal e livremente os seus deveres e exercer os seus direitos;
A informação constante dos processos clínicos é clinicamente verosímil.
A fazer fé nisto, apesar de admitirmos como possível a data de Outubro de 2017, podemos arbitrar com maior margem de segurança a data de Março de 2018 como a data a partir de quando o beneficiário deixou de cumprir por si, pessoal e livremente os seus deveres e exercer os seus direitos;
e.  Os meios de apoio e tratamento aconselháveis.
O examinando tem indicação para manter seguimento em consulta de Neurologia ou Psiquiatria e cumprir o plano terapêutico definido pelo Exmº Colega Assistente.
Sugere-se, igualmente, a avaliação pela equipa de cuidados continuados da área de residência para eventual referenciação a unidade de cuidados continuados na área das demências.
Isto, sem prejuízo da eventual integração em estabelecimento residencial para idosos, caso a família não consiga providenciar os cuidados necessários do ponto de vista das Actividades Básicas de Vida Diária.”
Em 28-08-2022, foi proferida a sentença (recorrida), na qual se começa com a seguinte consideração: “Atendendo à prova produzida nos autos, designadamente documental, pericial, testemunhal, por declarações de parte (da requerente e interveniente) e audição do beneficiário entende o Tribunal que tem elementos suficientes para decidir sobre as questões objecto da presente acção, isto é, se o beneficiário padece de afecção que o impossibilita de exercer os seus direitos e deveres, se se justifica a aplicação de medida de acompanhamento e desde quando a(s) medida(s) se tornaram convenientes, pelo que dispensa-se a realização de outras diligências”. O segmento decisório da sentença tem o seguinte teor:
“Nos termos e com os fundamentos expostos, julgo procedente por provada a presente acção e em consequência aplico em benefício de MF a medida de acompanhamento de representação geral, que seguirá o regime da tutela, com poderes de administração total de todos os bens do maior acompanhado, com constituição do conselho de família.
a. Nomeia-se como acompanhante LF, ficando a acompanhante obrigada, no interesse do maior acompanhado, seu marido, a velar pela sua segurança e saúde, prover ao seu sustento, representá-lo e administrar os seus bens, bem como a visitá-lo pelo menos duas vezes por mês na instituição (salvaguardando-se as regras de saúde pública) se entretanto passar a residir em lar ou equipamento semelhante.
b. Determino a limitação dos direitos de testar, de doar, de alienação de património, fixar domicílio e residência.
c. As medidas decretadas tornaram-se convenientes desde 01.03.2018 porquanto a data do início da incapacidade do beneficiário de por si cumprir os seus deveres e exercer os seus direitos remonta a essa data.
d. Como medidas de apoio e tratamento, deve o beneficiário manter seguimento médico regular em consultas de medicina e da especialidade de neurologia e/ou psiquiatria com apoio e estimulação socio-reabilitativa.
e. Como medidas de apoio e tratamento, deve o beneficiário integrar estabelecimento residencial para idosos de preferência com competência na área de demência.
f. Como medidas de apoio e tratamento deverá ser solicitado pela acompanhante a avaliação pela equipa de cuidados continuadas da área da residência para eventual referenciação a unidade de cuidados continuados na área das demências.
g. Testamento vital e/ou procurador de cuidados de saúde. Consigna-se que o beneficiário não outorgou testamento vital e/ou procurador de cuidados de saúde.
h. Para integrar o conselho de família, nomeio por não serem conhecidos factos que impeçam o exercício de tais cargos:
Para exercer o cargo de protutora, SF, filha do beneficiário.
Para exercer o cargo de vogal: será nomeado após audição da requerente e interveniente.
*
Revisão periódica
O tribunal revê as medidas de acompanhamento de cinco em cinco anos (artigo 155.º, do Código Civil) salvo se, entretanto, for requerida a revisão, para o efeito abra-se termo de conclusão no último semestre do quinquénio a contar do trânsito desta decisão.
*
Apresentação da relação de bens do beneficiário
Após trânsito notifique-se a acompanhante para, em vinte dias, rectificar a relação de bens do beneficiário tomando por referência a data de 01.03.2018.
Prestação de contas – Deverão a acompanhante tomar em atenção que ao abrigo do disposto no artigo 151.º, nº 2, do Código Civil o Tribunal pode exigir a prestação de contas a qualquer momento, mesmo durante o exercício da função de acompanhante, pelo que deverá guardar os comprovativos da gestão que fizer da pessoa e bens do maior acompanhado.
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O processo está isento de custas al. h), n.º 2, do artigo 4.º, do Regulamento das Custas Processuais.
Valor da acção: 30.000,01€.
Notifique, registe e publicite a procedência da acção pelos meios habituais.
Comunique-se à Conservatória do Registo Civil competente para averbamento ao assento de nascimento da beneficiária.
Comunique-se à Segurança Social nos termos do disposto no artigo 21.º da Lei n.º 49/2018, de 14.08.
Nomeação de vogal do Conselho de família:
Notifique-se a Requerente e a interveniente para, em dez dias, informarem pessoa, que conheça o beneficiário e se interesse pelo seu bem-estar que possa ser nomeada vogal do Conselho de Família, por exemplo, irmã do beneficiário.”
Inconformada com esta decisão, no tocante ao determinado nas alíneas c) e e), veio a Interveniente principal interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
a. Por sentença proferida em 28.08.2022, foi julgada procedente a ação especial de acompanhamento de maior em benefício de MF;
b. Em consequência, foi aplicada ao beneficiário a medida de acompanhamento de representação geral, sob o regime da tutela, com poderes de administração total de todos os bens do maior acompanhado, com constituição do conselho de família;
c. Foi nomeada como acompanhante LF, esposa do beneficiário;
d. Na letra c) da parte dispositiva, a sentença fixou o dia 01.03.2018 como a data do início da incapacidade do beneficiário de, por si, cumprir os seus deveres e exercer os seus direitos;
e. Sucede que a fixação dessa data não tem qualquer alicerce nos factos provados nem em qualquer outro facto, ou razão de direito, que se encontre descrito na sentença;
f. Contrariamente ao indicado na sentença, não existe nos autos qualquer elemento de prova que indique, de forma precisa e inequívoca, que o beneficiário, à data de 01-03-2018, não tinha a perceção cognitiva suficiente para, por si, praticar os atos da vida corrente;
g. Para além de não resultar dos factos provados, a fixação da data de início da incapacidade do beneficiário contraria a prova documental junta aos autos;
h. Com efeito, no Relatório da Perícia Médico-Legal efetuado em 21/10/2020 pela Delegação do Sul do INML, IP., é referido expressamente que o beneficiário iniciou a medicação em 2019, tendo como última consulta de Neurologia em 7/02/2020;
i. O mesmo relatório refere ainda, de forma assertiva, que “a instalação do declínio cognitivo, terá sido há um ano, altura em que foi residir para a instituição, onde ainda se mantém”.
j. Isto foi reafirmado na informação complementar prestada 04/08/2021 pela mesma entidade, que informou ao tribunal que, apesar de ser inquestionável que em 07/02/2020 o beneficiário já se encontrava a necessitar de medidas de acompanhamento, e não obstante os défices cognitivos tenham tido início em data anterior, não era possível estabelecer uma data com certeza.
k. Inconformado com essa resposta, o tribunal instou aquela entidade para informar “a razão pela qual a perita persiste na recusa em indicar a data do início da incapacidade efetiva para o beneficiário cumprir os seus direitos e deveres”.
l. Em resposta, a perita Dra. SA, respondeu no sentido de que não poderia acrescentar nada além do que já havia reportado no relatório anterior, e que a sua “recusa” se prendia com as boas práticas em sede médico-legal psiquiátrica;
m. Perante nova insistência do tribunal, em novo relatório datado de 24/05/2022, a Delegação do Sul do INML, I.P. informou que o beneficiário foi seguido em consulta de Neurologia “a partir de 2017, no Hospital dos Lusíadas, e que “da documentação disponível” é possível admitir a data de outubro de 2017 como data provável de início da incapacidade do examinando;
n. E rematou: “podemos arbitrar com maior margem de segurança a data de março de 2018 como a data a partir de quando o beneficiário deixou de cumprir por si, pessoal e livremente, os seus deveres e exercer os seus direitos”.
Mas deixou sublinhado que, segundo a esposa do beneficiário, somente a partir do 2º semestre de 2019 este deixou de conseguir assinar;
o. Esses relatórios e toda essa informação não foi tida em conta na sentença recorrida. A sentença refere um relatório do Hospital Lusíadas, no entanto, não faz qualquer análise crítica do restante da prova documental produzida, nomeadamente o confronto com os relatórios anteriores do INML, que foram reafirmados por prova testemunhal das médicas peritas;
p. Da prova testemunhal mais concretamente do Sr. JP, retira-se que o mesmo via com frequência o acompanhado tendo passado 2 dias com o mesmo aquando das suas bodas de ouro entre o dia 28 de Fevereiro e 1 de Março de 2020, encontrando-o bem animado tendo conversado e interagido com os restantes;
q. Estando perfeitamente consciente de onde estava e para o que é que tinha ido, não tendo visto dificuldades mesmo em comer ou se vestir sozinho;
r. Quanto à testemunha HM, refere que o ajudou na procuração em 2019, sendo que no dia antes e no dia das mesmas estava normal, tendo noção de onde estava;
s. A testemunha MIF, fazia massagens ao acompanhado e refere que deixou de ir às massagens na semana antes de ir para o lar, tendo ido o acompanhado às massagens entre 2018, até essa data, nunca se revelando uma pessoa dependente, sendo que nunca o viu escrever e quanto ao diálogo o mesmo era normal;
t. Refere que a única fragilidade do acompanhado era não ver bem, mas descreve-o como uma pessoa lúcida e brincalhona, refere ainda que não se apercebeu da falta de memória e que quando lá estava vestia-se e despia-se sozinho;
u. A testemunha JC, disse que tirando o tempo da pandemia almoçavam todos os dias, sendo que segundo o mesmo depois do AVC ele tinha dificuldades em nomear objetos e na localização dos mesmos, mas que em termos de diálogo nunca notou nada sendo que até 2019 ele tratava de diversos assuntos junto da câmara, reiterando que depois do AVC o diálogo com ele era normalíssimo;
v. Quando questionado sobre a procuração respondeu sobre o testamento realizado no verão de 2019, referindo que nessa altura ele estava bem conseguia fazer frases, identificar pessoas e conseguia andar sozinho;
w. Refere que a conversa do acompanhado era variada falando sobre vários temas, mas sem incidir no passado;
x. Quanto à queda esteve a almoçar com ele no dia da mesma e ele estava normal;
y. Referiu que o acompanhado desabafou com ele e que queria fazer uma procuração para que a mulher pudesse tratar de legalizar a casa;
z. Refere que num almoço com ele apenas encontrou problemas de visão, tanto mais que o acompanhado se prontificou para ajudar caso fosse necessário a senhora do restaurante, tendo dito qual tinha sido o seu trabalho;
aa. Refere que nas férias de 2019 passadas por ambos no Alentejo ele estava bem, com um discurso normal;
bb. Esteve com ele uma semana antes do 2º AVC e ele levantava-se e sentava-se sozinho;
cc. A testemunha JVe refere que em 2020 esteve com ele 2 ou 3 vezes, e que nos anos anteriores estava uma ou mais vezes por mês com ele, tendo estado com ele entre o dia 15 e 20 de fevereiro de 2020, referindo que ele tinha algumas lacunas de memória e em termos visuais não estava bem, contudo, tudo isso não impedia de ter uma conversa normal;
dd. Refere que nas duas vezes que esteve com ele em dezembro de 2019, as conversas eram normais;
ee. Refere que os lapsos de memória terão ocorrido nos últimos 3 meses de 2019;
ff. A testemunha refere ainda que o acompanhado dava conta dos lapsos de memória e que disse que já tinha ido ao médico;
gg. Quanto à inquirição da testemunha HA, notária, no dia da realização da procuração pelo acompanhado reporta que não deu conta de ter tido alguém com dificuldades de memória ou que não soubesse o que ia fazer e que costuma questionar quem vai assinar as procurações para ter certeza de que a pessoa está ciente do tempo, espaço e do que vai fazer, sendo que na altura/data da procuração não houve ninguém que oferecesse dúvidas desta natureza;
hh. Refere por fim que se soubesse que o acompanhado estava na situação que referiram que não teria realizado a procuração;
ii. Com exceção da última testemunha (notária) todos afirmam que até inícios de 2020 (sendo algumas mais especificas apontando o dia da queda) que o acompanhado podia ter lapsos de memória, dificuldade em articular o movimento da mão até aos objetos, contudo houve quem o visse a assinar um testamento, tendo sempre conversas coerentes, revelando-se intelectualmente não afetado pela demência, que não estaria ainda instalada;
jj. Tal só se deixou de verificar depois de ter caído e sido internado nos dois hospitais e posteriormente num lar;
kk. Desta forma não é de aceitar a data da incapacidade mencionada na sentença, devendo-se corrigir a mesma para 2020, altura em que tem um agravamento significativo;
ll. Corrobora o exposto o depoimento da notária que afirma não ter dado conta em 2019 de alguém com falta de capacidade para entender e decidir;
mm. É de mencionar ainda o depoimento do médico EV, que refere quando confrontado com o relatório da Dr.ª LL (médica) que refere que a doença teria evoluído muito até ficar completamente dependente, responde que não é assim porque não depende de ajuda de ninguém para comer;
nn. Quando inquirido se a demência teria começado 3 anos antes diz que não acredita porque se assim fosse teria de ter um agravamento fortemente marcado e não tinha;
oo. Quando confrontado com a pergunta se aquela ressonância magnética corresponde a uma síndrome demencial, responde que só por si não chega é preciso fazer um exame pessoal com o doente para ver como ele raciocina, como reage, pelo que tal exame sozinho é insuficiente;
pp. Pela testemunha SA, médica psiquiatra diz que fez a 1ª perícia médico legal;
qq. Refere que quando falou com o acompanhado em 21/10/2020, o quadro demencial já estava instalado, contudo acredita que talvez possa ter começado em 2016 e evoluído até 2019, para ela o limite dos sintomas terá sido fim de 2019;
rr. Contudo corrige a data de instalação para 2020;
ss. Questionada se uma emoção forte (como a que tinha tido quando foi homenageado num almoço da tropa) pode agravar substancialmente o estado do acompanhado, responde que sim porque já existe um quadro cognitivo em curso;
tt. Questionada para saber quando começou, refere que é difícil dizer por isso se reporta à instalação;
uu. Refere que mais não consegue dizer por não ter dados e que uma intercorrência pode acelerar o quadro;
vv. A testemunha LL, médica que acompanhou o acompanhado em duas consultas, quando confrontada com a ressonância magnética deste, diz que o exame só por si nada diz, porque falta a análise clínica;
ww. Refere ainda que na 1ª consulta em 2019 a demência ainda não era avançada ou grave, porque ainda tinha noção das suas incapacidades, já no ano seguinte 2020, já estaria dependente;
xx. Concretiza as incapacidades que o acompanhado tinha referindo-se à incapacidade cerebral de ver o que estava a ler e dificuldade no processamento cerebral do que estava a ver, refletindo-se tais debilidades na escrita, leitura na identificação de determinados objetos e executar determinadas tarefas como deitar água num copo;
yy. Confrontada com a informação clínica de 17/09/2019, diz que os primeiros sintomas terão ocorrido 3 anos antes, e esclarece que a demência tem uma evolução lenta, mas que existem fatores que a podem acelerar;
zz. Para a testemunha o problema do acompanhado era essencialmente de afetação visual, sendo que ele tinha noção de tal, o que não o impedia de compreender o que lhe era explicado e de se determinar, como neste caso fazer uma procuração;
aaa. Quando questionada sobre melhoras nas intercorrências e se tal pode fazer regredir a demência, concorda com tal;
bbb. Reitera que o principal domínio afetado é a capacidade de percebimento visual, identificar objetos ler e escrever;
ccc. Quanto às consultas o acompanhado mostrava-se muito ansioso;
ddd. Questionada se ele ainda percebia o que se estava a passar com ele, diz que sim, tendo ainda referido que falaram sobre tratar da vida dele: diz que o sentiu incentivado a fazer uma perspetiva futura;
eee. Na consulta de Setembro de 2019, falou sobre a necessidade de “arrumar a casa”, sendo que ele ainda tinha capacidade de responder de forma clara e que tinha capacidade de perceber o que não fazia corretamente;
fff. Questionada sobre a consulta de setembro se falaram na venda de imóveis e fazer uma procuração, responde que é hábito antecipar os agravamentos para que os cuidadores possam fazer uma gestão adequada. Quanto à venda de imoveis não se recorda;
ggg. Quando a Procuradora a confronta com a sua perplexidade de todas as testemunhas terem dito que estava basicamente tudo bem com o acompanhado, responde que na consulta conseguia ter um discurso normal e conseguiu descrever exatamente quando estava na guerra.
hhh. Questionada sobre o tema da procuração, respondeu que era hábito fazer-se aconselhamento na consulta;
iii. Pelo que da prova produzida pode extrair-se que até 2020, a capacidade de perceber raciocinar pensar e entender estavam intactas, sendo que a instalação da doença terá ocorrido nesse ano e os sintomas terão tido início 3 anos antes, não afetando a sua capacidade de se determinar, pensar decidir e compreender.
jjj. Não teve assim em conta a sentença a prova mencionada;
kkk. A sentença não teve em conta os relatórios apresentados pela Delegação do Sul do INML, I.P. Ficou-se por saber o motivo pelo qual a sentença considerou um relatório do Hospital Lusíadas em detrimento de todos os relatórios apresentados pelo INML, I.P;
lll. Ao determinar que as medidas restritivas de direitos remontam à data de 01/03/2018, a sentença pôs em causa a validade de todos os atos praticados pelo beneficiário a partir daquela data, o que consubstancia uma ilegal restrição de direitos pessoais fundamentais, sem qualquer alicerce em facto, ou razão de direito, que se encontre descrito na sentença;
mmm. A sentença padece assim do vício de falta de fundamentação de facto e de direito, por não ter procedido à análise crítica da prova produzida e não se ter pronunciado sobre os relatórios do INML e o testemunho das peritas, o que determina a sua nulidade, nos termos do artigo 615º, nº 1, d);
nnn. O ponto u) dos factos provados não autoriza, por si, a conclusão de que a incapacidade do beneficiário remonta à data de 01.03.2018. A singela formulação de que “O beneficiário começou a apresentar deterioração cognitiva desde 2017” não faz prova de que, àquela ocasião, o mesmo não estava apto para tomar decisões por si próprio;
ooo. Tendo em conta a prova produzida e não valorada quer seja testemunhal ou documental, deverá ser fixada a data de 11 de Março de 2022 (sic – será, contudo, lapso de escrita, pretendendo a Apelante referir 2020), por ser nessa data que se confirma clinicamente a instalação da doença;
ppp. Também a medida decretada ponto e) da parte dispositiva da sentença padece da mesma nulidade, ao determinar que o beneficiário deve integrar estabelecimento residencial para idosos de preferência com competência na área de demência, sem qualquer fundamentação de facto e de direito;
qqq. Não se alcança o sentido e o alcance da expressão “integrar estabelecimento residencial” utilizado na sentença, depreendendo-se que a mesma se reporta a internamento;
rrr. E perante os factos provados, nada justifica essa medida extrema, sendo a sentença omissa quanto aos seus fundamentos, que, a rigor, constitui uma limitação à liberdade do beneficiário e, por conseguinte, uma restrição a um direito fundamental sem qualquer suporte no quadro factual dado como assente;
sss. Nada indica, porque a sentença nada diz, sobre a necessidade de internamento, antes pelo contrário, tal medida contraria o primeiro relatório da Delegação do Sul do INML, que menciona que o declínio cognitivo do beneficiário se instaurou na altura em que o mesmo esteve a residir na instituição;
ttt. A sentença limita-se a fixar essa medida, sem sequer fazer referência aos artigos 12º e 13º da Lei nº 36/98, de 24 de julho (Lei da Saúde Mental);
uuu. Pelo que não se descortina qualquer sentido nessa medida, sendo a sentença omissa quanto ao quadro factual em que era suposto assentar;
vvv. Se nos detivermos novamente sobre a prova testemunhal produzida na audiência de julgamento e não objeto de uma apreciação critica, constatamos que de acordo com a testemunha EV, médico, refere que quando o viu no lar estava numa situação clínica que não acreditava que tivesse melhoras, contudo tendo voltado para casa melhorou significativamente;
www. Já a testemunha SA médica psiquiatra refere que se tirarmos uma pessoa como o aqui acompanhado do seu ambiente normal, das suas rotinas, que rapidamente passará a ter uma deterioração cognitiva muito rápida, o mesmo significa tirar agora de casa e colocá-lo numa residência para pessoas com a mesma doença dele;
xxx. Refere que a doença é de evolução lenta, explica ainda melhor que a retirada de uma pessoa com demência do seu meio deverá ser a última coisa a ser feita;
yyy. Sendo que no caso em concreto existem meios económicos para o tratar, existe cuidadora todos os dias, a esposa é o pilar do doente, (e não está numa situação de esgotamento físico ou de outra natureza com a doença do marido) não se encontram então preenchidas as condições para que se aplique tal medida, pelo que será de manter na mesma rotina;
zzz. Pode-se, pois, dizer que foi mal o Tribunal porque se guiou não pela instalação da doença ocorrida e comprovada em 11/03/2020, mas sim por uma data muito específica de sintomas, não tendo em conta que tais sintomas não afetavam a sua capacidade de se determinar entender raciocinar, ignorou, pois, a prova produzida em tribunal em detrimento de um relatório pericial no qual vinha tal data;
aaaa. Repete-se aqui o mesmo que se passou com a medida determinada pelo Tribunal, de ir para uma residência de doentes com o mesmo estado do aqui acompanhado, ignorou a prova produzida em audiência de julgamento que ia em sentido contrário do decidido, acabando por decidir em desfavor do acompanhado;
bbbb. Pelo que tal medida deverá ser retirada por prejudicial ao acompanhado, mantendo-se acompanhado na rotina diária que tem.
cccc. Em suma, a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação da matéria de facto e de direito, por ignorar e contrariar a prova produzida para fixação da data de início da incapacidade total do beneficiário, não tendo efetuado a análise crítica da prova e sendo omissa quanto aos fundamentos da aplicação de medida restritiva da liberdade do beneficiário, ao determinar a sua "integração" compulsiva em entidade de saúde.
Termina a Apelante pugnando pela revogação da sentença na parte objeto do recurso, sendo:
a) declarada a nulidade da sentença por falta de fundamentação, nos termos do disposto no art.º 615.º n.º 1, alíneas b) e d) do CPC, “determinando-se a sua substituição por outra que altere o ponto c) da parte dispositiva da sentença, fixando o dia 11/02/2020 como a data de início da instalação/ incapacidade absoluta do beneficiário”,
b) bem como a exclusão da medida determinada no ponto e) da decisão da sentença.
A Requerente apresentou alegação de resposta, em que defende que seja negado provimento ao recurso, concluindo nos seguintes termos:
a) – A decisão relativa ao facto dado como assente sob a alínea u) resultou da análise crítica conjugada de todos os meios de prova produzidos e, muito em especial, das informações clínicas e do relatório pericial de 24-5-2022;
b) – O relatório pericial de 24-5-2022 não mereceu qualquer reclamação da ora Rec.te;
c) – A fixação do dia 1 de Março de 2018 como data do início da incapacidade do beneficiário está em perfeita conformidade com a prova produzida, designadamente com as informações clínicas e com o relatório pericial de 24-5-2022 constantes dos autos;
d) – A determinação constante da alínea e) da parte dispositiva da douta sentença recorrida é aquela que se afigura mais conveniente para protecção do beneficiário, em conformidade com as circunstâncias do caso, v.g. os factos assentes sob as alíneas d) a t), os cuidados especializados que o beneficiário reclama em face desse quadro de facto e a circunstância da ora Rec.te não dispor de organização nem de competência para os prestar e de apresentar, já há muito, sinais de “burnout”;
e) – A douta sentença recorrida não enferma de nulidade alguma;
Também o Ministério Público apresentou alegação de resposta, em que termina pedindo que se mantenha a sentença recorrida e concluindo nos seguintes termos (transcreve-se a parte útil):
h) Determinou a sentença recorrida no ponto e) do dispositivo “como medidas de apoio e tratamento, deve o beneficiário integrar estabelecimento residencial para idosos de preferência com competência na área de demência”.
i) Nos termos do disposto no artigo 148º do Código Civil, “1 - O internamento do maior acompanhado depende de autorização expressa do tribunal”.
j) A recorrente alega que o Tribunal determinou o internamento, contudo, o que está aqui em causa não é o internamento compulsivo, nos termos da Lei de Saúde Mental, mas sim “a decisão de internamento enquanto decisão de determinação de residência do acompanhado e que inclui a colocação em lar ou outro estabelecimento”;
k) O internamento previsto no artigo 148º do CC não se confunde com o internamento compulsivo previsto na Lei de Saúde Mental, visando aquele acautelar a necessidade de colocação em Lar e para a prestação de cuidados de saúde.
l) Donde, não teria o Tribunal de analisar os pressupostos legais do internamento compulsivo, nos termos do artigo 12º da Lei de Saúde Mental, porquanto o que se visa é acautelar o bem-estar e a prestação de cuidados de saúde ao beneficiário.
m) Resulta da documentação clínica junta aos autos que a cuidadora do beneficiário, já em 2018 e novamente no ano de 2020, se encontrava em “burnout”, referindo-se, por exemplo, na informação clínica do Hospital das Forças Armadas, junta aos autos a 10/02/2020: “utente reside com a cônjuge que é a única cuidadora e está exausta”, concluindo essa avaliação que “define-se como prioridade a institucionalização do idoso”.
n) Idêntico entendimento tiveram os senhores peritos do INML que elaboraram os dois relatórios periciais, com parecer que “deve manter-se com a adequada supervisão, sendo uma instituição o local mais adequado para estar, uma vez que aí ser-lhe-ão prestados todos os cuidados técnicos necessários”.
o) Entendemos que não merece reparo a sentença proferida, na medida em que acautela a eventual necessidade de integração do beneficiário em estrutura residencial ou unidade de cuidados continuados adequada às especificas necessidades daquele.
p) No que concerne a determinação do início da incapacidade do beneficiário para se autodeterminar e exercer os seus direitos e cumprir dos seus deveres, entendemos, igualmente, que a sentença em crise não merece reparo.
q) Os factos dados assentes sustentaram-se na análise global de toda a prova produzida, com especial acuidade nos relatórios periciais, e na prova documental e testemunhal.
r) Com efeito, a data fixada em sentença de início da incapacidade do acompanhado foi determinada com base no parecer do Sr. Médico Perito que subscreveu o segundo relatório pericial, o qual, notificado às partes, não foram apresentadas reclamações nos termos do artigo 485º do CPC.
s) A determinação da data de início da incapacidade – facto de extrema relevância para, por exemplo, aferir da validade ou não de actos praticados pelo beneficiário como seja uma procuração ou um testamento – adveio da ponderação e conjugação da prova pericial e da prova documental, sendo que esta serviu de suporte àquela, conduzindo o Tribunal a fixar o dia 1 de Março de 1018, como a data a partir da qual o beneficiário não se achava na posse das suas capacidades para livre e pessoalmente decidir por si e exercer os seus direitos;
t) Dos depoimentos prestados e analisada a documentação clínica junta aos autos, e considerando ainda que algumas das testemunhas conviviam quase diariamente com MF ou, pelo menos, uma vez por mês, estranha-se o teor dos seus depoimentos, ou seja, como não detectaram a progressiva diminuição das capacidades cognitivas daquele, que, a nosso ver, não poderiam (face o teor das informações clínicas e das perícias) ser confundidas com “pequenos esquecimentos”;
u) O relatório pericial sustentado na análise de toda a documentação clínica junta aos autos é peremptório quanto à data de início da incapacidade, referindo o Sr. Perito “É de referir que já em 2017 era referida pela sua esposa “deterioração cognitiva de agravamento progressivo”, a fazer fé no diário clínico do Dr. GM”;
v) Concluindo o Sr. Perito “apesar de admitirmos como possível a data de Outubro de 2017, podemos arbitrar com maior margem de segurança a data de Março de 2018 como a data a partir de quando o beneficiário deixou de cumprir por si, pessoal e livremente os seus deveres e exercer os seus direitos”.
w) A presente sentença ora recorrida não merece reparo, porquanto fez ponderada análise de toda a prova produzida, mormente do confronto da prova testemunhal com os documentos que atestavam uma realidade totalmente distinta da descrita pelas testemunhas;
x) Na motivação, refere-se a título de exemplo, a situação de “burnout” do cuidador que, em 2018, a mulher do acompanhado apresentava, facto igualmente confirmado por médico em consulta em 2020, o que indicia que, já em 2018 o Sr. Fagundes carecia de supervisão e cuidados específicos ao seu estado de saúde e que tal levaram à exaustão do seu cuidador, a mulher.
y) O confronto da descrita exaustão da cuidadora mulher e as descrições por esta feitas aos médicos acerca do marido, designadamente que suspeitava que ele tivesse alucinações, os seus comportamentos violentos, tentativas de fuga de casa, e deterioração cognitiva, é incompatível com o relatado pela testemunhas, que descreveram o Sr. MF como encontrando-se bem ao nível cognitivo, no ano de 2020 e nos anos anteriores, e que apenas tinha problemas de visão e “lapsos de memória” (equiparando-os àqueles esquecimentos que qualquer pessoa pode ter num determinado momento).
z) A sentença recorrida não merece, pois, censura, devendo ser confirmada.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se a sentença recorrida é nula, na parte em que fixou o dia 01-03-2018 como a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes [al. c) do dispositivo], por falta de fundamentação da matéria de facto e de direito e por não ter efetuado a análise crítica da prova, pronunciando-se sobre os relatórios do INML e as declarações das peritas – cf. art.º 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), do CPC;
2.ª) Se, tendo em conta a prova produzida, deve ser modificada a decisão da matéria de facto e fixado como data de início da incapacidade o dia 11-03-2020;
3.ª) Se a sentença recorrida é nula, na parte em que determinou que o beneficiário deve integrar estabelecimento residencial para idosos de preferência com competência na área de demência (al. e) do dispositivo], sem qualquer fundamentação de facto e de direito;
4.ª) Se não se justifica a medida de “internamento” do beneficiário.

Factos provados
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
a) O beneficiário nasceu no dia 11-12-1948, na freguesia de Cabeço de Vide, concelho de Fronteira, é filho de JF e JR.
b) A Requerente nasceu a 15-03-1980 e é filha do beneficiário e de MIF.
c) O beneficiário casou com LF em 27-05-1992, sem convenção antenupcial.
d) O beneficiário padece de demência, de características fronto-temporais.
e) O beneficiário apresenta desorientação espacial, inclusive no próprio domicílio,
f) perda de memória,
g) incapacidade para escrever e assinar,
h) não consegue realizar as atividades básicas da vida diária, como cuidar da sua higiene, vestir-se e comer.
i) não se prevê qualquer melhoria ou regressão desse quadro.
j) O beneficiário não consegue dizer a sua idade e a sua data de nascimento.
k) Não consegue identificar a sua esposa.
l) Não consegue identificar o local onde se encontra.
m) Nem a data atual.
n) Não consegue nomear objetos.
o) Não consegue repetir frases simples.
p) Não consegue cumprir ordens simples (“levar a mão ao nariz”).
q) Não consegue reconhecer o valor facial do dinheiro.
r) Não consegue fazer trocos.
s) Não consegue efetuar qualquer tipo de cálculo.
t) Não consegue compreender um texto.
u) O beneficiário começou apresentar deterioração cognitiva desde 2017.
v) Em outubro de 2017 estão documentadas alterações de abstração e discalculia,
w) Em 10 de março de 2020 apresentava deterioração cognitiva com três anos de evolução provável doença de Alzheimer.
x) afasia progressiva, logpenica variante cortical posterior.
y) Em 10 de março de 2020 apresentava um estado avançado da doença com afeção dos multidomínios.
z) Em 10 de março de 2020 já desconhecia o local onde se encontrava.

Da nulidade da sentença
Defende a Apelante que a sentença recorrida é nula, na parte em que fixou o dia 01-03-2018 como a data do início da incapacidade do beneficiário [al. c) do dispositivo], por falta de fundamentação da matéria de facto e de direito e por não ter efetuado a análise crítica da prova, pronunciando-se sobre os relatórios do INML e as declarações das peritas – cf. art.º 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), do CPC.
Mais sustenta que a sentença recorrida é nula, na parte em que determinou que o beneficiário deve integrar estabelecimento residencial para idosos de preferência com competência na área de demência (al. e) do dispositivo], sem qualquer fundamentação de facto e de direito.
Por economia, estas duas questões serão apreciadas conjuntamente.
Nos termos das referidas alíneas b) e d) do art.º 615.º, n.º 1, do CPC, a sentença é nula quando:
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
De referir que o disposto na alínea b) mais não é do que uma decorrência e manifestação do dever de fundamentar a decisão consagrado na lei processual civil e na lei fundamental, designadamente no art.º 205.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, ambos do CPC, estatuindo este último que o juiz, na fundamentação da sentença, declara, além do mais, quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados. De salientar, contudo, que tem sido tradicionalmente defendido na jurisprudência que a nulidade da sentença apenas deve ser declarada quando se verifica uma absoluta falta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito que justificam a decisão, não bastando que a fundamentação ou motivação seja deficiente, insuficiente ou até errada (casos que, em regra, se resolvem nos recursos com a invocação de erro de julgamento). Assim, apenas uma fundamentação de facto ou de direito insuficiente ao ponto de não possibilitar às partes uma compreensão cabal e análise crítica das razões (de facto e de direito) da decisão judicial pode ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade dessa decisão. Neste sentido, veja-se o acórdão do STJ de 02-03-2011, proferido no processo n.º 161/05.2TBPRD.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança do ponto 1. do respetivo sumário: “À falta de fundamentação de facto e de direito deve ser equiparada a fundamentação que exponha as razões, de facto e de direito, para a decisão de modo incompleto, tornando deste modo a decisão incompreensível e não cumprindo o dever constitucional/legal de justificação”. E também o acórdão do STJ de 26-02-2019, proferido no processo n.º 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, disponível em www.dgsi.pt.
No que concerne à causa de nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º, lembramos o disposto no n.º 2 do art.º 608.º do CPC, nos termos do qual “(O) juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”. De referir ainda que as questões a decidir não se confundem com os factos dados como provados ou não provados na sentença, muito menos com os meios de prova que o Tribunal tenha considerado relevantes ou, ao invés, desatendido ao formar a sua convicção em sede de decisão da matéria de facto.
Começando por aferir da invocada nulidade da sentença na parte em que fixou o dia 01-03-2018 como a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes [al. c) do dispositivo], por omissão de pronúncia, importa ter presente que, conforme decorre expressamente do disposto no art.º 900.º do CPC, num processo de acompanhamento de maior como o dos autos, as questões a decidir dizem respeito à designação do acompanhante (e eventualmente de acompanhante substituto, de vários acompanhantes e, sendo o caso, do conselho de família) e à definição das medidas de acompanhamento, nos termos do artigo 145.º do CC e, quando possível, à fixação da data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes.
Ora, a sentença recorrida fixou - bem ou mal, aqui não importa - uma data “do início da incapacidade do beneficiário”, não tendo omitido pronúncia sobre nenhuma questão concreta que devesse ser apreciada, não podendo ser considerada nula por (supostamente) não se ter pronunciado quanto a relatórios do INML e ao “testemunho” das peritas, pois estes meios de prova não se confundem com nenhuma questão submetida à apreciação do Tribunal.
Quanto muito, a não estar devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa no que concerne ao decidido em c) do dispositivo, poderia justificar-se, neste Tribunal da Relação, equacionar da aplicação do disposto no art.º 662.º, n.º 2, al. d), do CPC, determinando que o Tribunal de 1.ª instância a fundamentasse, tendo designadamente em conta os depoimentos gravados ou registados. Mas uma tal apreciação apenas adiante poderá ter cabimento, ao sindicar-se do acerto da decisão recorrida quanto a tal questão.
Em ordem a determinar se a sentença deve ser considerada nula por não se mostrar fundamentada, atentámos na sua fundamentação, designadamente no elenco dos factos provados acima reproduzidos, bem como na motivação dessa decisão, que, para melhor compreensão, aqui transcrevemos (sublinhado nosso):
«O tribunal formou a sua convicção na audição do beneficiário que revelou as fragilidades próprias da sua doença, não conseguiu identificar-se de forma completa, designadamente nomear data e local de nascimento; reconhecer a esposa (embora esta se tenha posto à sua frente questionando o beneficiário se a reconhecia) embora tenha respondido perentoriamente que não pretende vender o seu património. Vide auto de audição de 22.02.2021, também registado em áudio.
Factos assentes em u) e v) resultaram provados da informação clínica do Hospital Lusíadas, a fls. 210 e seguintes, que dá conta que em 24.07.2017 o beneficiário apresentava, entre outras, síndrome demencial ligeiro (questionando-se na altura se doença de Alzheimer) e que dois meses antes daquela data a esposa, aqui interveniente, notou deterioração cognitiva, de agravamento progressivo, com início no mesmo período embora mantivesse a autonomia para as actividades da vida diária; apresentava défice cognitivo mnésico (memória episódica, não recupera com pistas; atenção) presença de alterações comportamentais. Dessa informação a fls. 212 (16.10.2017) já se diagnosticou a doença síndrome demencial, sendo que por referência àquela data, cerca de dois anos antes, já se verificavam episódios de desorientação espacial em locais conhecidos; lacunas mnésicas ao nível da memória episódica-remota e autobiográfica com dificuldade em reconhecer amigos/colegas da Tropa; tem défice de atenção-dividida com diminuição da flexibilidade mental e do discernimento e tendência a dispersar-se em tarefas sequenciadas tipo multitasking; mais apático. É questionado eventual stresse psicossocial em virtude de ter combatido na guerra. Em 16.10.2017 mantinha ainda alguma autonomia para as tarefas básicas do dia a dia. Em Outubro de 2017 apresentava discurso fluente embora com conteúdos um pouco vagos ou imprecisos; parecendo apresentar redução do léxico dos vocábulos e com voz mais arrastada e ligeira desorganização de conteúdos.
Igualmente da informação clínica do Hospital Lusíadas de fls. 212 e seguintes verifica-se a evolução da síndrome demencial.
Na informação clínica do hospital Fernando Da Fonseca datada de 10.03.2020 relativo a episódio de urgência que dá conta que o beneficiário apresenta deterioração cognitiva com três anos de evolução provável doença de Alzheimer (afasia progressiva, logpenica variante cortical posterior). Actualmente com estadio avançado da doença (vide fls. 196/197).
No relatório pericial junto aos autos em 311 a 318, de 24.05.2022 que tomou em consideração todos os elementos clínicos juntos aos autos (designadamente Hospital Lusíadas, das Forças Armadas, Cruz Vermelha, Fernando da Fonseca etc) e observou directamente o doente que dá conta que a doença terá iniciado em 2017 e que com segurança se pode fixar que desde Março de 2018 que o beneficiário deixou de cumprir por si, pessoal e livremente os seus deveres e exercer os seus direitos que o beneficiário apresenta um quadro compatível com o diagnóstico de Síndrome Demencial, de características fronto-temporais a que corresponde o código F.03 (Demência sem outra especificação) da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10). As suas consequências: Impede-o de cumprir por si, pessoal e livremente os seus deveres e exercer os seus Direitos.
A prova testemunhal produzida, designadamente o depoimento das testemunhas JP (que referiu que esteve com o beneficiário em 01.03.2020 num convívio de militares e que conversou com o beneficiário que estava bem, sabendo perfeitamente onde estava e porque razão ali estava e que o beneficiário partilhava e convivia como todos os outros presentes), HM (que testemunhou no sentido que foi o beneficiário que lhe telefonou a dizer que queria fazer uma procuração e que estava lúcido e que foi ele, beneficiário, quem tratou de tudo relacionado com a procuração e que a testemunha apenas o acompanhou ao notário por mera conveniência. Depoimento que não nos convenceu desde logo porque a procuração outorgada a favor da mulher do beneficiário é complexa, sendo necessária instrução de diversos documentos, cuja obtenção é pouco provável que tenha sido efectuada pelo beneficiário, desde logo porque o mesmo desde há mais de um ano que sofria de afasia e discalculia, pelo que não conseguia compreender a linguagem escrita ou falada nem os números; o que inviabiliza que conseguisse obter certidões prediais e outros elementos necessários à redacção da procuração; por outro lado, também não conseguiria compreender o conteúdo da procuração pelo que embora se admita eventualmente que no dia da realização da procuração o beneficiário se apresentasse minimamente lúcido, com conhecimento do seu nome temos muitas reservas que tenha sido ele a tratar dos elementos necessários à procuração. Aliás, na informação clínica de 11.03.2020 (fls. 17 verso) escreveu-se “Esposa fez procuração” indiciando-se que quem tratou de tudo para a feitura da procuração foi a mulher do beneficiário e não este; JC (que situa o agravamento de saúde do beneficiário depois de Março de 2020), FB (que nos pareceu que confunde a demência do beneficiário com “caracter reservado do beneficiário”); JV  (que referiu que em 2020 a conversa do beneficiário era normal mas que depois o estado de saúde do beneficiário se agravou devido a avc segundo lhe foi dito) não nos mereceram credibilidade dado que pretenderam transmitir que o beneficiário “estava e está bem” que mantinha autonomia e memória bem como capacidade de comunicação e de decisão intactas, apresentando somente dificuldades de locomoção por falta de visão e que por isso tinha que ser acompanhado, quando analisando a informação clínica junta se verifica que já em momento anterior a 2017 o beneficiário apresentou alterações cognitivas e mnésicas, sendo que o seu estado de saúde há muito não lhe permitia ter a referida autonomia e capacidade de decisão, sendo certo que já em 28.05.2018 (vide fls 269) informação de psiquiatria do Hospital da Cruz Vermelha a esposa do beneficiário apresentava sinais de “Burden de cuidador” - esgotamento de cuidador, isto é, apresentava sinais de exaustão de cuidador (de terceiro). Ora, se o beneficiário estivesse tão bem e autónomo para as actividades da vida diária como as testemunhas testemunharam, à esposa do beneficiário poderia ser diagnosticado esgotamento, mas pouco provável que fosse o de cuidador (do marido). Aliás, diagnóstico que se manteve em 2020 conforme informação social do Hospital das Forças Armadas que dá conta que a mulher, cuidadora, apresentava sinais de burnout (vide fls 98).
Ainda nas certidões de assento de nascimento do beneficiário, da requerente, filha, e do assento de casamento com a interveniente.»
Ademais, desenvolveram-se na sentença as seguintes considerações de direito:
Da medida de acompanhamento
De harmonia com a redacção do actual artigo 138.º, do Código Civil o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas no Código Civil.
O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as excepções legais ou determinadas por sentença. – artigo 140.º, do Código Civil.
As medidas de acompanhamento regem-se por uma ideia de subsidiariedade. Isto é, só têm lugar quando as finalidades que com ela se prosseguem não sejam garantidas através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam. – artigo 140.º, n.º 2, do Código Civil.
São dois os requisitos para que possa ser decretado o acompanhamento, um de ordem subjectiva e outro de ordem objectiva.
No que ao primeiro respeita, haveremos de considerar a impossibilidade de exercer plena, pessoal e conscientemente os direitos ou cumprir os deveres. Em causa está, portanto, a possibilidade de o sujeito formar a sua vontade de um modo natural e são. Por outro lado, há-de ter as capacidades intelectuais que lhe permitam compreender o alcance do acto que vai praticar quando exerce o seu direito ou cumpre o seu dever. Por outro lado, há-de ter o suficiente domínio da vontade que lhe garanta que determinará o seu comportamento de acordo com o pré-entendimento da situação concreta que tenha. Em suma, trata-se da possibilidade de o sujeito se autodeterminar, no que respeita ao exercício dos seus direitos e ao cumprimento dos seus deveres.
A formulação legal deve, porém, ser compreendida com cautelas. Em primeiro lugar, cremos não estar apenas em causa o exercício (em sentido estrito) de direitos, mas também a própria aquisição de direitos. Do mesmo modo, não deverá estar apenas em causa o cumprimento (em sentido estrito) de deveres, mas a própria assunção desses mesmos deveres.
Em segundo lugar, e de modo relevantíssimo, haveremos de considerar que, contra o que poderia ser sugerido pela explicitação do requisito, não se trata da impossibilidade de se autodeterminar em relação a um exercício concreto de um particular direito (ou ao correspondente cumprimento concreto de um particular dever). Dito de uma forma mais directa, a lei prescinde agora dos requisitos da habitualidade e da durabilidade e permite que o acompanhamento seja decretado em relação a um especial domínio da vida do beneficiário. Mas, ainda assim, não se trata de definir uma medida de protecção para a prática de um pontual acto, de forma a suprir uma incapacidade (ou, de acordo com a intencionalidade do regime actual, uma menor capacidade) acidental, especifica, também ela pontual. Significa isto que, embora desapareçam os referidos pressupostos (habitualidade e durabilidade), não se pode prescindir de uma certa ideia de constância, que, não obstante, com aquelas não se confunde.
Admite-se, por isso, que o acompanhamento possa ser decretado em relação a situações transitórias e temporárias. Pense-se, por exemplo, no internamento subsequente a um acidente, tratamento ou intervenção cirúrgica, que deixa a pessoal impossibilitada de exercer os seus direitos por um período de tempo relativamente curto.
Quanto ao requisito de índole objectiva, exige-se que a impossibilidade para exercer os direitos ou cumprir os deveres se funde em razões de saúde, numa deficiência ou no comportamento do beneficiário.
Novamente, a formulação afigura-se ampla, dando margem ao julgador para cumprir as finalidades normativas do regime em função das especificidades dos casos com que se depare - Mafalda Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados, Primeiras Notas depois da aprovação da lei n.º 49/2018, de 14.08, Págs., pág 54.
Nas razões de saúde integram-se quer as patologias de ordem física, quer as patologias de ordem psíquica e mental.
A deficiência, por seu turno, não tem de ser congénita, mas aponta, segundo a definição da OMS, para “qualquer perda ou anomalia da estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatómica, contemplando quer as alterações orgânicas, quer as funcionais, e integrando três dimensões, física (somática), mental (psíquica) e situacional (handicap).
Integram-se na previsão normativa os cegos e os surdos-mudos, a que já se referia o anterior regime das interdições e inabilitações, tal como se integram as deficiências mentais, aí também contempladas. Fundamental é que a deficiência limite o desempenho do sujeito em termos volitivos e/ou cognitivos. Serão, por isso, residuais as situações de cegueira ou surdez-mudez que possam fundar o regime do acompanhamento, na medida em que dificilmente determinarão a limitação da possibilidade de exercer direitos e cumprir deveres. Mas tal não significa que sejam inexistentes. Do mesmo modo, se em concreto uma qualquer deficiência redundar em tal handicap pode lançar-se mão da medida.
Por último, para além de uma ideia de subsidiariedade, o acompanhamento de maiores rege-se por um princípio de necessidade. «Nos termos do artigo 145.º/1, Código Civil, o acompanhamento limita-se ao necessário. Entre os diversos poderes que podem ser atribuídos ao acompanhante, contam-se: o exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir; a representação geral ou especial, com indicação expressa das categorias de actos para que seja necessária; administração total ou parcial dos bens; autorização prévia para a prática de determinados actos ou categorias de actos. O acompanhamento pode, assim, conduzir à representação legal, aplicando-se o regime da tutela, com uma diferença não despicienda relativamente à interdição: é que enquanto esta era decretada de forma generalizante, a representação subjacente ao regime do acompanhamento é determinada em função das necessidades concretamente constatadas do beneficiário, podendo ser geral ou especial.
De acordo com o artigo 147.º/1 Código Civil, o acompanhado não fica privado do exercício de direitos pessoais, nem impedido de celebrar negócios da sua vida corrente, com a ressalva de a decisão judicial dispor em sentido contrário ou de a própria lei o prever.
O princípio da necessidade justifica, ademais, que, à semelhança do que já acontecia com os regimes da interdição e da inabilitação, o acompanhamento cesse quando cessarem as causas que o justificaram. Pode ainda ser modificado, sempre que as causas que o fundam se modifiquem, o que só se explica pelo carácter particular que cada situação de acompanhamento conhece. Exige-se, igualmente, nos termos do artigo 155.º Código Civil, que haja revisão periódica da situação de acompanhamento». (vide para mais desenvolvimento MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Maiores Acompanhados, Primeiras Notas depois da aprovação da lei n.º 49/2018, de 14.08, Págs. 49-51).
Tomando-se em consideração o que antecede, designadamente que resultou provado que o beneficiário padece de demência, de características fronto-temporais; apresenta desorientação espacial, inclusive no próprio domicílio, perda de memória, incapacidade para escrever e assinar, não consegue realizar as actividades básicas da vida diária, como cuidar da sua higiene, vestir-se e comer. Não se prevê qualquer melhoria ou regressão desse quadro. Não consegue dizer a sua idade e a sua data de nascimento; não consegue identificar a sua esposa; Não consegue identificar o local onde se encontra. Nem a data actual; Não consegue nomear objectos; Não consegue repetir frases simples; Não consegue cumprir ordens simples (“levar a mão ao nariz”); Não consegue reconhecer o valor facial do dinheiro; Não consegue fazer trocos; Não consegue efectuar qualquer tipo de cálculo; Não consegue compreender um texto; começou apresentar deterioração cognitiva desde 2017; em Outubro de 2017 estão documentadas alterações de abstração e discalculia, em 10 de Março de 2020 apresentava deterioração cognitiva com três anos de evolução provável doença de Alzheimer, afasia progressiva, logpenica variante cortical posterior; em 10 de Março de 2020 apresentava um estado avançado da doença com afeção dos multidomínios; em 10 de Março de 2020 já desconhecia o local onde se encontrava; concluímos que o beneficiário não consegue exercer, plena, pessoal e conscientemente os seus direitos e de cumprir os seus deveres) necessitando de ajuda terceiro, sendo necessário, por isso, aplicar medida de acompanhamento (artigo 140.º,n.º2, do Código Civil).
No caso em apreço, a medida de acompanhamento que se justifica é a da representação geral com constituição do conselho de família (artigo 145.º, n.º 1, n.º 2, alínea b), do Código Civil).
Esta medida de acompanhamento é das mais limitativas, contudo, não podemos olvidar que casos há, e o do aqui beneficiário é um deles, que a anomalia psíquica afecta o maior de tal forma que o mero apoio e assistência não suprem as suas necessidades.
Neste caso, face à extensão da impossibilidade do beneficiário exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres, apenas a representação geral consegue suprir essa falta.
Com esta medida ficam o acompanhante obrigado, no interesse do maior acompanhado, a velar pela sua segurança e saúde, prover ao seu sustento, representá-lo e administrar os seus bens.
O poder de representação compreende o exercício de todos os direitos e cumprimento de todas as obrigações da maior acompanhado, exceptuados os actos puramente pessoais, aqueles que o maior acompanhado tem o direito de praticar pessoal e livremente e os actos respeitantes a bens cuja administração não pertença à acompanhante.
Quanto aos direitos pessoais limita-se o direito pessoal de casar, testar, escolher profissão, fixar domicílio e residência (artigo 147.º, n.º 2, do Código Civil) pois garantidamente o beneficiário não consegue devido a doença exercer plena, pessoal e conscientemente esses direitos.
Consigna-se que os actos de disposição de bens imóveis que sejam da propriedade do beneficiário carecem de autorização judicial prévia e específica (artigo 145.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), bem como para praticar os autos mencionados no artigo 1938.º, do Código Civil (aplicado ex vi artigo 145.º, n.º 4, do mesmo diploma).
Da nomeação da acompanhante
No exercício das suas funções, e de acordo com o artigo 146.º/1 Código Civil, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bonus pater familiae, tendo em conta as circunstâncias da situação concreta. O acompanhamento orienta-se, como não poderia deixar de ser, pelo supremo interesse do acompanhado. Por isso, em caso de conflitos de interesses, deve o acompanhante abster-se de agir ou, em caso de necessidade, solicitar ao Tribunal a autorização para a prática do acto. Caso não o faça, o negócio celebrado é considerado anulável nos termos do artigo 261.º, do Código Civil, por remissão do artigo 150.º, n.º 2, do Código Civil.
Nos termos do artigo 143.º, 2, do Código Civil nomeia-se como acompanhante do beneficiário, sua mulher, LF.
Da constituição do Conselho de Família:
A representação geral segue o regime da tutela com as adaptações necessárias (artigo 145.º, n.º 4, do Código Civil).
O Conselho de Família é constituído por dois vogais, escolhidos nos termos do artigo 1952.º, do Código Civil e pelo agente do Ministério Público, que preside.
Os vogais do conselho de família são escolhidos entre os parentes ou afins do maior acompanhado, tomando em conta, nomeadamente, a proximidade do grau, as relações de amizade, aptidões, a idade, o lugar da residência e o interesse manifestado pela pessoa do maior acompanhado. – artigo 1951.º, do Código Civil:
Pertence ao Conselho de família vigiar o modo por que são desempenhadas as funções do acompanhante e exercer as demais atribuições que a lei especialmente lhe confere. – artigo 1954.º, do Código Civil.
Ao protutor compete a fiscalização da acção do acompanhante – artigo 1955.º, do Código Civil, além de fiscalizar, compete ao protutor (artigo 1956.º, do Código Civil):
a) Cooperar com o acompanhante no exercício das funções de acompanhamento, podendo encarregar-se da administração de certos bens do acompanhado nas condições estabelecidas pelo conselho de família e com o acordo do acompanhante;
b) Substituir o acompanhante nas suas faltas e impedimentos, passando, nesse caso, a servir de protutor o outro vogal do Conselho de família;
c) Representar o maior acompanhado em juízo ou fora dele, quando os seus interesses estejam em oposição com os do acompanhante e o tribunal não haja nomeado curador especial.
Para compor o conselho de família, conforme indicado, face à ausência desfavoráveis, nomeia-se:
- SF, filha do beneficiário, como Protutora.
- Como vogal será nomeado pessoa depois de audição da requerente e interveniente.
Aqui chegados é já claro que da sentença constam especificados, em termos apreensíveis pelas partes, os fundamentos do decidido quanto à data da fixação do começo da incapacidade, pois da simples leitura da motivação da decisão de facto ressalta que o Tribunal recorrido teve em consideração os factos provados, com base na perícia realizada, bem como nos documentos juntos aos autos e nos depoimentos prestados pelas testemunhas. Na verdade, constata-se que, pese embora não tenha sido indicado no elenco dos factos provados, o Tribunal teve em consideração que, conforme mencionado no aludido relatório pericial, a doença (do beneficiário) terá iniciado em 2017” e que “desde Março de 2018 que o beneficiário deixou de cumprir por si, pessoal e livremente os seus deveres e exercer os seus direitos”.
Portanto, o que sucede é que, como melhor se verá adiante, a Apelante, sem verdadeiramente impugnar a decisão da matéria de facto provada constante da sentença (seja no sentido da sua alteração, seja no sentido da sua anulação), vem discordar do que foi decidido na sentença quanto a tal questão concreta, sustentando que se impunha ter sido decidida de modo diferente. Trata-se, pois, de erro de julgamento de direito, que em nada se confunde com uma causa de nulidade da sentença, a qual não se verifica, neste particular.
Já quanto à decisão de internamento do beneficiário constante da al. e) do dispositivo da sentença, parece-nos que a fundamentação, embora muito sucinta, existe e se mostra apreensível, assentando nos factos [dados como provados nas alíneas d), e), l) e w)] de o beneficiário padecer de demência, de características fronto-temporais, apresentar desorientação espacial, inclusive no próprio domicílio, não conseguir identificar o local onde se encontra e apresentar uma “deterioração cognitiva com três anos de evolução provável doença de Alzheimer”, conjugados com a circunstância de a sua mulher, cuidadora, ter apresentado sinais de burnout.
Este último facto, embora não conste, como talvez fosse mais apropriado, do elenco dos factos provados, não deixou de ser tido em consideração pelo Tribunal recorrido, configurando claramente uma razão para que se tenha entendido - bem ou mal, para já não importa – justificada a medida de integração em estabelecimento residencial nos moldes acima referidos. É certo que não foi feita expressa menção a uma norma jurídica porventura aplicável ao caso, mas não deixa de ser percetível, desde logo ante a referência feita ao regime jurídico do maior acompanhado, mormente dos seus princípios enformadores e diversos preceitos legais consagrados designadamente nos artigos 140.º, 145.º e 147.º do CC, que o Tribunal a quo teve em conta na sua decisão o bem-estar e a possível recuperação do beneficiário, tendo em vista o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, não descurando que o internamento sempre dependeria de autorização expressa do tribunal (cf. art.º 148.º do CC).
De modo algum se podendo entender, como afirma a Apelante, que o Tribunal recorrido, ao fixar uma tal medida, tivesse em mente, embora sem os indicar, os artigos 12.º e 13.º da Lei n.º 36/98, de 24 de julho (Lei da Saúde Mental). Na verdade, a crítica feita pela Apelante mais pode ser vista como a invocação de um erro de julgamento, pelo que adiante se irá sindicar do acerto dessa decisão, mas não nos parece que deva ser declarada a nulidade (parcial) da sentença.

Da data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes

Importa, antes de prosseguirmos na análise do caso concreto, fazer algumas considerações prévias a respeito do quadro normativo aplicável ao recurso quando versa sobre matéria de facto.
Conforme previsto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Dispõe o artigo 640.º do CPC, sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”
É conhecida a divergência jurisprudencial que existiu a respeito da aplicação deste normativo e da sua conjugação com o disposto no n.º 1 do art.º 639.º do CPC, atinente ao ónus de alegar e formular conclusões, vindo o STJ a firmar jurisprudência no sentido do “conteúdo minimalista” das conclusões da alegação, conforme espelhado no acórdão do STJ de 06-12-2016 - Revista n.º 2373/11.0TBFAR.E1.S1 - 1.ª Secção, sumário citado na compilação de acórdãos do STJ, “Ónus de Impugnação da Matéria de Facto, Jurisprudência do STJ”, disponível em www.stj.pt, bem como o acórdão do STJ de 01-10-2015, no processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
Nesta linha, conclui-se resultar da conjugação do disposto nos artigos 635.º, 639.º e 640.º do CPC que o ónus principal a cargo do recorrente exige que, pelo menos, sejam indicados nas conclusões da alegação do recurso, com precisão, os concretos pontos de facto da sentença que são objeto de impugnação, sem o que não é possível ao tribunal de recurso sindicar eventuais erros no julgamento da matéria de facto.
Já a alínea a) do n.º 2 do citado art.º 640.º do CPC consagra um ónus secundário, cujo cumprimento, quanto aos invocados erros de julgamento das concretas questões de facto, não tendo de estar refletido nas conclusões da alegação recursória, deverá igualmente ser observado, sob pena de rejeição do recurso, na parte respetiva. Assim, a título exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 16-12-2020, no processo n.º 8640/18.5YIPRT.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, citando-se, pelo seu interesse e clareza, as seguintes passagens do respetivo sumário:
“I - No âmbito do recurso de apelação visando a impugnação da decisão de facto podem distinguir-se dois ónus que incidem sobre o recorrente:
Um ónus principal, consistente na delimitação do objecto da impugnação (indicação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados) e na fundamentação desse erro (com indicação dos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação que impunham decisão diversa e o sentido dessa decisão) – Art.º 640º nº 1 do CPC;
E
Um ónus secundário, consistente na indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados – art.º 640º nº 2 al. a) do CPC.
II - Este ónus secundário não visa propriamente fundamentar e delimitar o recurso, mas sim facilitar o trabalho da Relação no acesso aos meios de prova achados relevantes.
III - O controlo do cumprimento deste ónus secundário deve ser feito pela Relação em termos funcionalmente adequados e em conformidade com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.”
Ora, face ao teor das conclusões da alegação de recurso (e até à pretensão formulada a final), é claro que a Apelante não especificou os concretos pontos de facto da sentença que considera incorretamente julgados.
Na verdade, nas conclusões da sua alegação recursória, o único ponto a que faz referência é a alínea u) do elenco dos factos provados (na qual consta que “O beneficiário começou apresentar deterioração cognitiva desde 2017”), mas, de modo algum para concluir que o facto aí vertido esteja incorretamente julgado, limitando-se a afirmar que:
“nnn. O ponto u) dos factos provados não autoriza, por si, a conclusão de que a incapacidade do beneficiário remonta à data de 01.03.2018. A singela formulação de que “O beneficiário começou a apresentar deterioração cognitiva desde 2017” não faz prova de que, àquela ocasião, o mesmo não estava apto para tomar decisões por si próprio;
ooo. Tendo em conta a prova produzida e não valorada quer seja testemunhal ou documental, deverá ser fixada a data de 11 de Março de 2022, por ser nessa data que se confirma clinicamente a instalação da doença”.
Lendo e relendo as ditas conclusões, verifica-se que a Apelante confunde questões de facto com questões de direito, sem respeitar o ónus principal consagrado no citado art.º 640.º do CPC, tudo para concluir que deve ser “declarada a nulidade da sentença por falta de fundamentação, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea b) e d) do Código de Processo Civil, determinando-se a sua substituição por outra que altere o ponto c) da parte dispositiva da sentença, fixando o dia 11/02/2020 como a data de início da instalação/ incapacidade absoluta do beneficiário”, bem como “a exclusão da medida determinada no ponto e) da decisão da sentença”.
Logo, não pode deixar de se rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto, o que se decide.

Sem embargo da improcedência das conclusões da alegação de recurso no tocante à arguição de nulidade da sentença, admitimos, com alguma benevolência, que a Apelante também se insurge quanto ao acerto da decisão recorrida, no tocante à fixação da data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes (desde 01-03-2018) e à medida de integração do beneficiário em estabelecimento residencial para idosos de preferência com competência na área de demência.
Quanto à primeira questão, desde já adiantamos que a Apelante está equivocada ao afirmar que a sentença “pôs em causa a validade de todos os atos praticados pelo beneficiário a partir daquela data, o que consubstancia uma ilegal restrição de direitos pessoais fundamentais, sem qualquer alicerce em facto, ou razão de direito, que se encontre descrito na sentença”. Na verdade, no tocante aos atos do acompanhado rege o disposto no art.º 154.º do CC, nos termos do qual:
“1 - Os atos praticados pelo maior acompanhado que não observem as medidas de acompanhamento decretadas ou a decretar são anuláveis:
a) Quando posteriores ao registo do acompanhamento;
b) Quando praticados depois de anunciado o início do processo, mas apenas após a decisão final e caso se mostrem prejudiciais ao acompanhado.
2 - O prazo dentro do qual a ação de anulação deve ser proposta só começa a contar-se a partir do registo da sentença.
3 - Aos atos anteriores ao anúncio do início do processo aplica-se o regime da incapacidade acidental.”
É óbvio que, na presente ação, nada foi decidido, nem cumpria fazê-lo, a respeito da validade de quaisquer atos do acompanhado, sendo certo que, quanto aos atos anteriores ao anúncio do início do processo se aplica o regime da incapacidade acidental previsto no art.º 257.º do CC. Veja-se a propósito o acórdão da Relação de Évora de 03-12-2020, proferido no proc. n.º 193/16.0T8STR.E1, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se explica que:
“1 – Em sede de incapacidade acidental, o que releva para efeitos anulatórios não é a data da condição de interdito ou inabilitado, pois esta só se constituiu com a sentença, mas antes de averiguar a data de começo da incapacidade natural ou de facto e, mais concretamente, se e quando é que o requerido no processo passou a estar afectado por anomalia psíquica que o tornou incapaz de reger a sua pessoa e bens.
2 – A incapacidade acidental exige, para a anulabilidade do acto, que, no momento da prática do acto, haja uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade e que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário.
3 – No negócio usurário, como requisito da anulabilidade ou modificação do negócio, tem de existir a consciência da situação de necessidade, inexperiência, dependência, ou deficiência psíquica de alguém, mas não basta a verificação dum daqueles estados, sendo necessário que haja a consciência de que se está a tirar proveito da inferioridade de outrem para alcançar um benefício manifestamente excessivo ou injustificado, em proveito próprio ou de terceiro.”
Tendo em atenção o elenco dos factos provados, em particular as alíneas u) e w), desde já adiantamos que não vemos motivo para alterar o decidido quanto à fixação da data a partir da qual são de considerar convenientes as medidas decretadas.
Na verdade, estando demonstrado que a deterioração cognitiva do beneficiário se iniciou 3 anos antes de março de 2020, constando no relatório da última perícia realizada (relatório que nem mereceu qualquer reclamação à ora Apelante) que se pode “arbitrar com maior margem de segurança a data de Março de 2018 como a data a partir de quando o beneficiário deixou de cumprir por si, pessoal e livremente os seus deveres e exercer os seus direitos”, existindo ainda nos autos documentação clínica do Hospital Lusíadas que aponta para que já em outubro de 2017 o beneficiário padecesse de síndrome demencial, parece-nos absolutamente descabida a pretensão da Apelante no sentido da fixação da data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes coincidir com a da ida do mesmo ao Hospital por virtude de uma queda sofrida e apenas porque se fez constar na informação clínica que aquele de tal padecia.
Assim, não se verifica aqui nenhum erro de julgamento na decisão recorrida, improcedendo as conclusões da alegação de recurso a este respeito.

Do internamento do beneficiário
A Apelante discorda igualmente do decidido quanto à integração do beneficiário, como medidas de apoio e tratamento, em estabelecimento residencial para idosos, de preferência com competência na área de demência – cf. al. e. do segmento decisório.
Já acima referimos que a fundamentação dessa decisão parece assentar na situação de dependência em que o beneficiário se encontra para a satisfação das suas necessidades básicas diárias e no estado de burnout da sua mulher (que, aliado à situação de maior fragilidade daquele subsequente à queda ocorrida em março de 2020, tudo indica motivou o internamento na instituição onde o beneficiário se encontrava à data da propositura da ação).
É evidente, repete-se, que esta integração nada tem a ver com um internamento compulsivo ao abrigo da Lei de Saúde Mental (Lei n.º 36/98, de 24 de julho), antes se poderá convocar aqui o disposto no art.º 148.º do CC, cujo teor, sob a epígrafe “Internamento”, é o seguinte:
“1 - O internamento do maior acompanhado depende de autorização expressa do tribunal.
2 - Em caso de urgência, o internamento pode ser imediatamente solicitado pelo acompanhante, sujeitando-se à ratificação do juiz.”
Embora possa ser pouco feliz a opção legislativa de usar em matéria de acompanhamento de maior a mesma expressão (“internamento”) que consta daquela lei, estamos a tratar de realidades diferentes, tendo aquela lei o seu campo próprio de aplicação.
A propósito do citado art.º 148.º, o Professor António Pinto Monteiro afirma no seu artigo “1. Das incapacidades ao maior acompanhado - Breve apresentação da Lei n.º 49/2018”, incluído no e-book “O NOVO REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO”, disponível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=_nsidISl_rE%3D&portalid=30, que: “Quanto ao internamento do maior acompanhado, prevê a lei que o mesmo depende de “autorização expressa do tribunal”, podendo embora, em caso de urgência, ser imediatamente solicitado pelo acompanhante, sujeitando-se, neste caso, à ratificação do juiz (art.º 148.º). Embora a letra da lei não o diga, parece-nos que deve entender-se que a norma abrange tanto o internamento por razões de saúde, num hospital ou clínica particular, como o internamento num lar.”
Por seu turno, no mesmo e-book, diz-nos o Professor Miguel Teixeira de Sousa, no seu artigo “O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS”, que na decisão final do processo o juiz deve, além do mais, “Autorizar, se for o caso, o internamento do maior (art.º 148.º, n.º 1, CC)”.
No entanto, e ainda no referido e-book, o Juiz Desembargador Nuno Luís Lopes Ribeiro, no estudo “O MAIOR ACOMPANHADO – LEI Nº 49/2018, DE 14 DE AGOSTO”, refere que:
“Quanto ao art.º 148.º, não se compreende a referência ao internamento, enquanto dependente de autorização expressa do tribunal, ou, em caso de urgência, de ratificação, quando existe já um conhecido regime de internamento compulsivo.
Repare-se que falamos apenas de internamento não aceite pelo maior acompanhado, pois, quando o seja, não se antevê qualquer necessidade de autorização judicial para tanto.
Por exemplo, uma intervenção cirúrgica necessária a debelar um problema de saúde do acompanhado, poderá ser decidida pelo próprio, no exercício dos seus direitos pessoais, não se mostrando restringida nos termos previstos no art.º 147.º.
Nos casos em que o exercício dos direitos pessoais esteja restringido, o internamento e eventual sujeição a tratamentos médicos contra a vontade do acompanhado, sempre poderá ser determinado pelo acompanhante, nos termos que, necessariamente, lhe foram permitidos pela decisão judicial anterior.
As situações que se enquadram no regime de internamento compulsivo, devem continuar a ser tratadas nesse âmbito, não se compreendendo a referência neste preceito.”
Por seu turno, a Procuradora da República Margarida Paz, escreve no artigo “O MINISTÉRIO PÚBLICO E O NOVO REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO”, publicado no mesmo e-book, que:
“Outra novidade, mais enigmática, é o internamento previsto no artigo 148.º do CC.
Assim, o internamento do maior acompanhado depende de autorização expressa do tribunal (n.º 1), sendo que, em caso de urgência, o internamento pode ser imediatamente solicitado pelo acompanhante, sujeitando-se à ratificação do juiz (n.º 2).
A cláusula demasiado aberta e indefinida deste preceito irá suscitar, com grande probabilidade, dúvidas quanto ao respetivo âmbito de aplicação.
De qualquer forma, numa primeira abordagem, muito sumária, impõe-se referir que este internamento não se confunde com o internamento compulsivo previsto na Lei de Saúde Mental. Por outro lado, parece estar talhado para a colocação em lar, embora seja igualmente admissível para a prestação de cuidados de saúde”.
Na jurisprudência, sobre esta problemática, destaca-se o acórdão da Relação de Lisboa de 30-06-2020, proferido no proc. n.º 2669/19.3T8PDL-A.L1-7, disponível em www.dgsi.pt, afirmando-se no respetivo sumário que:
“1. No âmbito do regime jurídico do acompanhamento de maiores, o tribunal pode aplicar, em qualquer altura do processo, a requerimento ou oficiosamente, e sempre que as circunstâncias o justifiquem, medidas de acompanhamento provisórias e urgentes (art.º 139º, nº 2 do CC) ou medidas cautelares (art.º 891º, nº 2 do CPC).
2. O internamento previsto no art.º 148º do CC deve ser sempre enquadrado com o disposto no art.º 891º, nº 2 do CPC e, por esse motivo, como uma medida cautelar e por forma a acautelar os interesses do beneficiário e na medida de protecção conferida pelo art.º 139º, nº 2 do CC.
3. O regime do maior acompanhado assenta na primazia da autonomia de cada um e na subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade.
4. Consequentemente, qualquer limitação nos direitos pessoais do beneficiário tem de ter um fundamento fáctico bastante que justifique a intervenção do tribunal, a qual deve sempre ser subsidiária e devidamente balizada no tempo.
5. Nessa valoração serão aplicáveis os princípios da subsidiariedade e do respeito pela autonomia da pessoa humana (art.ºs 141º, 143º e 147º do CC), da necessidade (art.ºs 149º e 155º do CC), do bem-estar e recuperação do sujeito (art.ºs 140º e 146º do CC), os quais funcionam como os princípios basilares de todo o regime e, por esse motivo, devem orientar a aplicação e revisão das medidas a aplicar em cada situação.
6. Assumindo-se como uma medida cautelar, não pode a medida cautelar de internamento em instituição ser aplicada por tempo indeterminado, porquanto a mesma pressupõe a adequação a uma necessidade especifica do beneficiário e com vista a suprir a situação de necessidade existente em determinado momento.”
Já no acórdão da Relação de Guimarães de 13-05-2021 proferido no proc. n.º 97/14.6T8BCL-B.G1, também disponível em www.dgsi.pt, se afirma que: “Por seu turno, o internamento do acompanhado previsto no art.º 148º do C.C. cabe na al. e) do n.º 2 do art.º 145º do mesmo código como medida de acompanhamento, mas apenas deve ser justificado pela necessidade de providenciar por cuidados básicos e/ou de saúde (e não apenas de saúde mental) que o beneficiário, por si, e em virtude de doença ou fragilidade, não pode assegurar (art.º 139º nº 2 do C.C.) sendo objecto de revisão nos mesmos termos das demais medidas de acompanhamento.”
Compreende-se que a interpretação do art.º 148.º do CC venha já gerando alguma controvérsia, ante a sua formulação tão ampla e a existência de outras normas legais que aludem ao internamento, incluindo, além da referida Lei de Saúde Mental, o art.º 899.º, n.º 2, do CPC, nos termos do qual quando, ante a elaboração do relatório pericial, permaneçam dúvidas, o juiz pode autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do diretor respetivo.
Em nosso entender, a previsão do art.º 148.º do CC, no sentido da indispensabilidade de autorização judicial para uma medida de internamento, abarca todo e qualquer internamento, seja como medida provisória/cautelar (cf. artigos 139.º, n.º 2, do CC e 891.º, n.º 2, do CPC), seja como medida do acompanhamento determinado na decisão final [cf. art.º 145.º, n.º 2, al. e), do CC e 900.º, n.º 1, do CPC], e tanto em instituição de tipo residencial, como em instituição hospitalar ou clínica, tendo na sua ratio a proteção dos direitos de liberdade da pessoa beneficiária, em linha com o disposto no art.º 27.º da CRP e no art.º 14.º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
Parece-nos, pois, que o internamento de maior acompanhado deve ser sempre autorizado pelo tribunal, quando seja justificado, tendo em vista o bem-estar e a recuperação do acompanhado (cf. art.º 145.º, n.º 1, do CC), em instituição idónea e adequada à situação de saúde daquele (que com frequência poderá ser de cariz residencial, incluindo a prestação de alguns cuidados de enfermagem e/ou fisioterapia), ante a inexistência de alternativa, mormente no seio familiar, que se mostre mais benéfica.
Ora, volvendo ao caso dos autos, não podemos acompanhar o juízo que parece ter sido feito pelo Tribunal recorrido quanto à necessidade da imediata integração do beneficiário em estabelecimento residencial, porquanto, conforme assinalado no último (logo, mais atual) relatório pericial, ao qual se deu na sentença - e muito bem - maior relevância, se considerou, além do mais, a conveniência da “avaliação pela equipa de cuidados continuados da área de residência para eventual referenciação a unidade de cuidados continuados na área das demências. (sugestão que foi acolhida pelo Tribunal a quo, conforme f. do segmento decisório) 12. Isto, sem prejuízo da eventual integração em estabelecimento residencial para idosos, caso a família não consiga providenciar os cuidados necessários do ponto de vista das Actividades Básicas de Vida Diária.”
Ou seja, parece-nos que a sugestão do Perito médico não é no sentido da imediata integração do beneficiário em unidade de cuidados continuados na área das demências ou estabelecimento residencial para idosos, antes apontando para a conveniência de uma avaliação por parte da equipa de cuidados continuados da área de residência do beneficiário no sentido da referenciação a uma unidade de cuidados continuados (medida que foi determinada na sentença em f.), o que se compreende, dado que só uma avaliação por parte de técnicos competentes, que se desloquem à residência do beneficiário e verifiquem as condições de que o mesmo aí dispõe e a forma como vem sendo tratado, permitirá determinar se é já oportuna e conveniente a sua integração em unidade de cuidados continuados ou se, ao invés, é preferível que se mantenha a residir na casa onde se encontra, ao cuidado da sua mulher, porventura com o apoio de Equipa de Cuidados Continuados Integrados – Domiciliários.
Não deixou, todavia, o Perito médico de dar uma indicação clara quanto à necessidade de integração em estabelecimento residencial para idosos (subentendendo-se que tal será uma alternativa se não estiver disponível uma unidade de cuidados especializados na área das demências) caso a família (em princípio, a mulher, cuidadora) deixar de conseguir providenciar ao beneficiário os cuidados básicos necessários, como a alimentação e a higiene.
Na verdade, os factos provados não deixam qualquer dúvida quanto à incapacidade de o beneficiário providenciar a si mesmo todos esses cuidados [cf. alíneas h) e i)], encontrando-se dependente de terceiro, pelo que a integração num estabelecimento residencial será, conforme referido naquele relatório pericial, uma solução inevitável no caso de nenhum familiar (mulher ou filha) estar em condições de cuidar do beneficiário, o que poderá suceder (pois quem dele vem cuidando é a mulher, já com 70 anos de idade, tendo vivenciado anterior episódio de exaustão). Trata-se de eventualidade que importa já acautelar, autorizando esse internamento do beneficiário, muito embora o mesmo deva ser precedido de reunião do Conselho de Família, em ordem a verificar dessa efetiva necessidade e até, a existirem diferentes instituições disponíveis para o acolher, para selecionar a mais adequada.
Assim, procedem em parte as conclusões da alegação de recurso.

Ante a isenção legal, não há lugar à condenação da Apelante no pagamento das custas do presente recurso - cf. art.º 4.º, n.º 2, al. h), do RCP.
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso:
a) revogando a sentença recorrida no tocante ao determinado na al. e. do segmento decisório, determinando-se que, em substituição, passe a ter o seguinte teor: “e. Como medidas de apoio e tratamento, autoriza-se que, quando a família do beneficiário deixar de conseguir providenciar ao mesmo, na sua residência, os cuidados necessários do ponto de vista das atividades básicas da vida diária, aquele integre unidade de cuidados continuados na área das demências ou, não sendo possível, estabelecimento residencial para idosos, ouvindo-se previamente o Conselho de Família”;
b) mantendo-se quanto ao mais a sentença recorrida.
Não são devidas custas pelo recurso, atenta a isenção legal.
D.N.

Lisboa, 12-01-2023
Laurinda Gemas
António Moreira
Carlos Castelo Branco