Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18892/20.5T8LSB-A.L1-2
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
DECISÃO PREMATURA
NULIDADE DA DECISÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A ação de autorização prevista no art.º 1014.º, do C. P. Civil é um processo especial, de jurisdição voluntária, sendo-lhe aplicáveis também as regras previstas no art.º 986.º, do C. P. Civil, ou seja, a tramitação dos incidentes da instância prevista nos art.ºs 292.º a 295.º, do C. P. Civil (n.º 1, do art.º 986.º), um inquisitório acrescido prevalecendo sobre o principio da disponibilidade das partes (n.º 2, do art.º 986.º) e a obrigatoriedade de intervenção de advogado apenas em sede de recurso (n.º 4, do art.º 986.º).
2. Em face dessa tramitação processual, antes de decidir sobre o mérito da causa, o tribunal de 1.ª instância deve (1) admitir as provas oferecidas, (2) ouvir o Conselho de Família, (3) conceder a palavra para alegações ao MP e (4) proferir sentença nos termos do art.º 607.º, do C. P. Civil.
(Pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO.
Por apenso à ação especial de acompanhamento de maior proposta pelo Ministério Púbico (MP) em favor de Maria …, o acompanhante nomeado, José …, requereu autorização para proceder à partilha de bens por óbito do cônjuge da acompanhada com fundamento, em síntese, em que a acompanhada tem despesas mensais com o pagamento do lar em que se encontra, no valor de € 1.730,00 e um rendimento anual de € 9.502,00, que é insuficiente para fazer face àquelas despesas.
Citado, o MP apresentou contestação, na qual conclui que a ação deve seguir os ulteriores termos e ser julgada em conformidade com a prova a produzir.
Citados, os vogais que constituem o Conselho de Família, também nomeado, apresentaram escrito declarando concordar “…com o peticionado por o considerar necessário e da maior urgência pelos motivos invocados”.
O requerente juntou documentos para prova do articulado no requerimento inicial e indicou os vogais do Conselho de Família como testemunhas.
O tribunal a quo julgou improcedente o requerimento do acompanhante, invocando para o efeito que (1) o requerente não justifica a necessidade de inventário, (2) este não se afigura a melhor solução para gerir o património da acompanhada, que pode ser arrendado ou servir-lhe de morada e que (3) as despesas invocadas também podem ser suportadas, nomeadamente, pelo Estado. 
Inconformado com essa decisão o MP dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo que seja revogada, por enfermar de nulidade, formulando para o efeito as seguintes conclusões:
1. Nestes autos de autorização judicial para a prática de actos, que correm por apenso aos autos de acompanhamento de maior, o requerente JOSÉ …, na qualidade de acompanhante de sua tia MARIA …, requereu AUTORIZAÇÃO JUDICIAL para intentar inventário
2. O requerente fundamenta o pedido de autorização no seguinte: a beneficiária dispõe de um rendimento anual de 9502€ (junta documento comprovativo), tem encargos anuais com o lar onde reside, vestuário, calçado e artigos de higiene pessoal de 20.000€, pelo que os seus rendimentos disponíveis são insuficientes para pagar os seus encargos, pelo que a partilha da herança aberta por óbito do cônjuge da beneficiária, acautela os seus interesses.
3. Os vogais do Conselho de Família juntaram as suas posições por escrito aos autos, relativamente à requerida autorização judicial para o acompanhante instaurar inventário, para partilha da herança aberta por óbito do cônjuge da beneficiária Maria … (ref. 31680358, 15/2 e 31680362, 15/2), tendo ambos manifestado a sua concordância à autorização requerida, por os rendimentos mensais disponíveis da beneficiária não serem suficientes para custear os seus encargos mensais.
4. O tribunal recorrido proferiu a sentença da qual se recorre, sem que ao Ministério Público tivesse sido aberta vista para manifestar a sua posição relativa à requerida autorização judicial para instaurar inventário para partilha de bens da herança aberta por óbito do cônjuge da beneficiária.
5. De acordo com o disposto pelos artigos 1014º, nº 2 do Código de Processo Civil, em conjugação com o disposto pelo artigo 1938º, nº 1, al. e) e nº 2, 1951º, ambos do Código Civil, estamos perante situação em que o tribunal tinha obrigatoriamente que ouvir o Conselho de Família previamente à prolação da sentença, por configurar uma situação de parecer obrigatório do Conselho de Família.
6. Tento sido omitido um acto cuja obrigatoriedade é imposta por lei, a sentença enferma de nulidade (art. 195º, nº 1 do Código de Processo Civil), devendo em consequência ser revogada, por forma a que seja determinada a abertura de vista ao Ministério Público, para que manifeste a sua posição relativa aos actos cuja autorização foi requerida e que apenas após isso seja proferida sentença.
7. Entende o Ministério Público que a sentença recorrida violou as seguintes normas jurídicas: 1938º, nº 1, al. e) e 2, 1951º, ambos do Código Civil e 1014º, nº 3 do Código de Processo Civil. 8. Em consequência da violação de tais normas, a sentença recorrida enferma de nulidade (art. 195º, nº 1 do Código de Processo Civil), em virtude de ter sido omitido um acto cuja obrigatoriedade resulta da lei (parecer do Conselho de Família obrigatório).
9. Face ao exposto, entende o Ministério Público que deverá ser concedido provimento ao recurso interposto e em consequência a sentença recorrida deverá ser revogada, por enfermar de nulidade. 10. E, deverá ser aberta vista ao Ministério Público para que manifeste a sua posição relativa à requerida autorização judicial para a instauração de inventário para a partilha da herança aberta por óbito do cônjuge da beneficiária.
11. E, apenas após constar dos autos o parecer obrigatório do Conselho de Família deverá ser proferida a sentença pelo tribunal recorrido. Nestes termos, e nos melhores de direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência ser revogada a sentença recorrida por enfermar de nulidade (em virtude da omissão de acto legalmente obrigatório) e ser aberta vista ao Ministério Público para que manifeste a sua posição relativa à requerida autorização judicial para a instauração de inventário para a partilha da herança aberta por óbito do cônjuge da beneficiária.
2. FUNDAMENTAÇÃO.
A) OS FACTOS.
A matéria de facto a considerar é a acima descrita, sendo certo que a questão submetida a decisão deste tribunal se configura, essencialmente, como uma questão de direito.
B) O DIREITO APLICÁVEL.
O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2 e 639.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões da apelação, acima descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pelo apelante consiste, tão só, em saber, se o tribunal a quo podia conhecer do mérito do requerido, como fez, ou se deveria ter aberto vista ao MP, em ordem a que este pudesse manifestar a sua posição relativa aos atos cuja autorização foi requerida e só depois proferir decisão, como pretende o apelante.
Vejamos.
A ação de Autorização judicial prevista e regulada no art.º 1014.º do C. P. Civil, configura-se como um processo de jurisdição voluntária, como resulta da sua inserção sistemática no TÍTULO XV
Dos processos de jurisdição voluntária
, sendo-lhe aplicáveis também as regras previstas no art.º 986.º, do C. P. Civil, a saber, a tramitação dos incidentes da instância prevista nos art.ºs 292.º a 295.º, do C. P. Civil (n.º 1, do art.º 986.º), um inquisitório acrescido prevalecendo sobre o principio da disponibilidade das partes (n.º 2, do art.º 986.º) e a obrigatoriedade de intervenção de advogado apenas em sede de recurso (n.º 4, do art.º 986.º).
Ante uma tal tramitação legal, o estado da ação impunha ao tribunal a quo que, aquando da decisão sob sindicância, admitisse a prova que foi oferecida pelo requerente, inquirisse, ou não, as testemunhas, que ouvisse o Conselho de Família, como lhe impõe o n.º 2, do art.º 1938.º, do C. Civil (n.º 3, do art.º 1014.º), que concedesse a palavra ao MP para alegações e que por fim proferisse sentença nos termos do art.º 607.º, do C. P. Civil (art.º 295.º).
Ora, não só não foi admitida e produzida a prova, como não foi ouvido o órgão colegial, Conselho de Família - e esse ato, precisamente porque se trata de um órgão colegial, não pode ser substituído pela pronúncia antecipada dos dois vogais e pelos termos da contestação do MP que, aliás, impugna os fatos constantes do requerimento por deles não ter conhecimento pessoal, requerendo que a ação seja julgada em conformidade com a prova - como não foi facultado ao MP o exercício do direito/dever de fazer alegações e por fim também não foi proferida decisão elaborada nos termos de sentença, nomeadamente, com fixação dos fatos provados e não provados e com fundamentação de facto e de direito, antes tendo sido proferida uma decisão que, em substância, se assemelha a um despacho de indeferimento liminar por manifesta improcedência.
A omissão da tramitação legal própria deste processo especial, com a natureza de jurisdição voluntária, prejudica o exame e a decisão da causa como, aliás também resulta de qualquer dos três fundamentos invocados pelo tribunal a quo para a improcedência/indeferimento, uma vez que qualquer deles demanda e exige a produção da prova oferecida e eventualmente o recurso por parte do tribunal de 1.ª instância ao uso do poder/dever que lhe é conferido pela 1.ª parte do n.º 2, do art.º 986.º, do C. P. Civil, determinando, nos termos do disposto no art.º 195.º, do C. P. Civil, a nulidade da decisão recorrida e a prática subsequente dos atos omitidos.
Procede, pois, a apelação, devendo revogar-se a decisão recorrida para que a mesma seja substituída por outra que imprima à ação a tramitação imposta pelos art.ºs 1014.º e 986.º, do C. P. Civil, acima descrita.
C) SUMÁRIO
1. A ação de autorização prevista no art.º 1014.º, do C. P. Civil é um processo especial, de jurisdição voluntária, sendo-lhe aplicáveis também as regras previstas no art.º 986.º, do C. P. Civil, ou seja, a tramitação dos incidentes da instância prevista nos art.ºs 292.º a 295.º, do C. P. Civil (n.º 1, do art.º 986.º), um inquisitório acrescido prevalecendo sobre o principio da disponibilidade das partes (n.º 2, do art.º 986.º) e a obrigatoriedade de intervenção de advogado apenas em sede de recurso (n.º 4, do art.º 986.º).
2. Em face dessa tramitação processual, antes de decidir sobre o mérito da causa, o tribunal de 1.ª instância deve (1) admitir as provas oferecidas, (2) ouvir o Conselho de Família, (3) conceder a palavra para alegações ao MP e (4) proferir sentença nos termos do art.º 607.º, do C. P. Civil.

3. DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida, a qual será substituída por outra que imprima à ação a tramitação processual omitida e acima identificada.
Sem custas atenta a ausência de decaimento ou proveito (n.º 1, do art.º 527.º, do C. P. Civil, a contrario).
 
Lisboa, 13-10-2022
Orlando Santos Nascimento
Maria José Mouro
José Maria Sousa Pinto