Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
915/14.9TVLSB-B.L1-7
Relator: ANA RODRIGUES DA SILVA
Descritores: FACTOS SUPERVENIENTES
ARTICULADO SUPERVENIENTE
PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE
AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: QPELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- Factos supervenientes serão aqueles factos que, observando os limites temporais previstos nos nºs 1 e 2 do art.º 588º do CPC, sejam constitutivos, modificativos ou extintivos do direito alegado pela parte e tenham pertinência para a decisão da causa;
II- A superveniência pode ser objectiva (quando os factos acontecem depois de esgotados os prazos legais de apresentação pela parte dos articulados) ou subjectiva (quando os factos ocorreram em momento anterior ao da apresentação pela parte do seu articulado, mas esta apenas teve conhecimento deles depois de esgotados aqueles prazos;
III- Um determinado facto pode ser objectiva ou subjectivamente superveniente, mas apenas poderá ter relevância em termos de articulado superveniente, quando seja essencial para o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa, e segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito;
IV- Embora seja possível a dedução da ampliação do pedido em sede de articulado superveniente, nos termos do art.º 588º do CPC, estas duas realidades não se confundem, podendo ocorrer uma sem a outra.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. A [ …. Investimentos Turísticos, S.A ] . intentou a presente acção declarativa de condenação contra B [ ………Imobiliária, S.A. ] pedindo que se condene a R.:
a) a remover os recalces invasivos solidários com a estrutura do edifício Semapa, implantados no subsolo do prédio da A., levando aquela a cabo, para o efeito, as acções e procedimentos necessários;
b) a pagar à A. danos emergentes no montante global de €14.760,00 (catorze mil, setecentos e sessenta euros), acrescidos do montante a apurar em execução de sentença e de juros de mora à taxa legal;
c) a pagar à Autora lucros cessantes no montante de €7.371.610,00 (sete milhões, trezentos e setenta e um mil e seiscentos e dez euros), sem prejuízo da quantia que vier a apurar-se em execução de sentença, após a efectiva remoção dos recalces invasivos;
d) a pagar uma sanção pecuniária compulsória (artigo 829.º-A, do Código Civil), no valor diário de €6.455,00 (seis mil, quatrocentos e cinquenta e cinco euros).
Para tanto, alega ser a proprietária e entidade exploradora do Hotel Sana Lisboa, situado na Avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa, tendo adquirido, em 12 de Março de 2009, para a ampliação das instalações do referido Hotel, o terreno contíguo, com uma área de 813,74 m2, que confina com o edifício comummente designado por edifício Semapa, propriedade da R., no qual constatou, no âmbito dos trabalhos em curso, vestígios de betão pertencentes à estrutura do edifício Semapa, que pertenceriam a uma estrutura com função de fundação, recalce e contenção de terras do projecto do edifício Semapa, no qual se previam recalces invasivos solidários com a estrutura da propriedade da A.; que solicitou à R. a remoção desses recalces, não tendo esta procedido à sua remoção.
Mais alega que a recusa da R, desde 21 de Abril de 2011, em remover os recalces invasivos solidários com a estrutura do edifício Semapa lhe gera avultados prejuízos pecuniários, pois que deixou de obter o resultado líquido com a exploração dos quartos e demais infra-estruturas previstas na ampliação do Hotel Sana Lisboa.
2. A R. contestou, defendendo-se por impugnação e por excepção, requerendo a sua absolvição do pedido.
Mais deduziu reconvenção pedindo a condenação da autora a reconhecer o direito de propriedade da ré sobre a área de terreno correspondente à floreira e a abster-se de violar o referido direito, bem como a reformular o projecto de ampliação do Hotel Sana Lisboa de modo a compatibilizá-lo com esse direito da ré, devendo aquela ser ainda condenada como litigante de má-fé e consequentemente ser condenada no pagamento da competente multa e indemnização.
3. Na réplica apresentada, a A. defendeu a improcedência das excepções deduzidas e do pedido reconvencional.
4. Face a elementos trazidos aos autos, foi proferida decisão decretando a suspensão da instância até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no processo n.º 2330/11.7BELSB a correr termos no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.
5. Finda a suspensão, foi designada data para a realização de audiência prévia, no decurso da qual se apreciou requerimento apresentado pela A., considerando-o como um articulado superveniente, na parte em que alega novos factos, e, nessa medida, admitido.
Mais se declarou a extinção, por inutilidade superveniente da lide, do pedido formulado em a) do petitório, ou seja, “a) Ordenar a Ré a remover os recalces invasivos solidários com a estrutura do edifício Semapa, implantados no subsolo do prédio da Autora, levando aquela a cabo, para o efeito, as ações e procedimentos necessários;”; bem como do pedido de fixação de sanção pecuniária compulsória por cada dia em que a R não proceda a tal retirada e ainda do pedido reconvencional formulado.
Admitiu-se ainda a ampliação da factualidade a apreciar e a ampliação do pedido suportada em tais factos, nos termos previstos no nº 2 do art.º 265º do CPC, bem como articulado superveniente apresentado pela R..
Mais se procedeu à fixação do objecto do litígio e dos temas de prova.
6. Designada data para a realização da audiência de discussão e julgamento, apresentou a A. articulado superveniente, alegando factos e requerendo a ampliação do pedido, o que foi indeferido.
7. Inconformada, a A. recorre desta decisão, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“A. O presente recurso tem por objeto o Despacho deste Tribunal, de 29.09.2022, com a referência n.º 419135927 (na íntegra, em particular no que respeita às decisões de não admissão do articulado superveniente, de indeferimento da alteração do pedido e em matéria de prova pericial), bem como o Despacho de 11.10.2022, proferido em sede de audiência final (na parte em que rejeita a admissão dos documentos n.ºs 1 a 10).
B. A questão essencial em causa nesta apelação é muito simples: faz sentido julgar uma acção em que se pede indemnização por atraso na construção e exploração de um hotel (na parte ampliada) sem querer saber sequer se a construção já foi efetivamente concluída e a exploração iniciada; ignorando e recusando a prova de factos inegavelmente supervenientes que foram trazidos ao conhecimento do Tribunal antes do prazo legal e recusando uma alteração do pedido mais conforme com essa realidade atualizada (mediante substituição do atraso provocado na obra repercutido no atraso na exploração hoteleira, pelo atraso efetivo desta considerando as datas previstas para a conclusão da obra, a inicial e a final)?
C. Fará sentido impedir que se proceda à atualização processual dos factos, quando é certo (e legalmente reconhecido) ser fundamental, para boa administração da justiça, que a rapidez da vida não suplante a velocidade do processo, tornando-o obsoleto? Não é justamente para evitar esse desfasamento que o legislador determina que a sentença “corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão” (art.º 611., n. 1 do CPC)?
D. E não é, igualmente, para assegurar sincronia entre o tempo da vida e o tempo do processo, bem como – no que em particular toca às acções indemnizatórias – para garantir efetiva indemnização (isto é, real colocação do lesado na situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido o facto lesivo, assim o tornando indemne) que o legislador impõe, no n. º 2 do art.º 566. º do CC, que, em sede de decisão judicial, “… a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”?
E. Para devido enquadramento: encontrando-se a obra parada, por motivos imputáveis à Ré, a Recorrente intentou contra esta (em 2014) a presente acção, em que requereu uma indemnização, nomeadamente por lucros cessantes da exploração do hotel (na parte correspondente à ampliação).
Tendo, entretanto, a obra sido retomada em 2018, os factos processuais foram actualizados mediante articulado superveniente, apresentado pela Recorrente, que foi aceite pelo Tribunal. Entre 2018 e 2021 a obra prosseguiu, vindo a ser concluída e iniciada a exploração do hotel (na parte ampliada).
F. O Tribunal a quo, porém, surpreendentemente, rejeitou o articulado superveniente em que se procedia a essa actualização dos factos e se requeria a alteração do pedido, bem como a produção de prova pericial e documental, indeferindo os pedidos neles formulados (o que fez, quanto à admissibilidade do articulado superveniente, alteração do pedido e prova pericial, através do Despacho de 29.09.2022 e quanto à prova documental, através do Despacho proferido na sessão da audiência final de 11.10.2022).
G. O primeiro despacho padece de nulidade por omissão de pronúncia e por falta de fundamentação, procede a incorreta interpretação de declarações da Recorrente contém diversos erros de direito e incorre em várias ofensas das normas jurídicas aplicáveis. O segundo despacho, contém decisão que, além de errónea, respeita, em parte, a documentos que se destinam a provar factos supervenientes alegados pela Recorrente quanto aos quais o Tribunal a quo, indevidamente, omite pronúncia, incorrendo, igualmente, em ofensa de várias normas legais e constitucionais. Ambos devem, portanto (o primeiro Despacho integralmente e o segundo Despacho na parte impugnada), ser revogados e substituídos por decisão de sentido oposto.
H. Apesar de, por regra, os factos deverem ser invocados nos articulados iniciais, a importância de a factualidade constante dos autos se manter actualizada (sob pena de o Tribunal decidir sobre uma ficção do real) determina a previsão legal da possibilidade de apresentação de articulados supervenientes. A Recorrente fez uso de tal direito, curando, contudo, de o exercer (por respeito para com a agenda do Tribunal e organização do trabalho do decisor - já por si naturalmente sobrecarregados) mais de 15 dias antes do prazo de que legalmente dispunha para o fazer.
I. No articulado superveniente apresentado em 13.09.2022, a Recorrente invocou 18 factos supervenientes (entre os pontos 12 e 29 desse articulado), mas o Tribunal a quo só se pronunciou quanto a 12 (que enunciou entre as alíneas a) e l) do despacho proferido em 29.09.2022 e correspondentes aos factos alegados nos pontos 23 a 28 do mesmo articulado superveniente).
Omitiu, assim, pronúncia quanto a seis factos (os alegados nos pontos 23, 24, 25, 26, 27 e 28 do referido articulado superveniente, o que representa omissão quanto a 1/3 dos factos alegados), o que o torna nulo por omissão de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, por remissão do art.º 613.º, n.º 3 do mesmo diploma).
J. O Tribunal Recorrido rejeitou o articulado superveniente, negando o caráter superveniente aos factos que identificou sob as alíneas a), g), h) e i), bem como a pertinência dos factos invocados, rejeitando também a ampliação do pedido e o pedido de produção de prova pericial e documental.
K. A decisão de rejeição da superveniência dos factos subsumidos nas a), g), h) e i) do despacho de 29.09.2022 padece de vários vícios.
L. Em primeiro lugar, falece razão ao Tribunal a quo quando assim decide alegando que a Recorrente já teria conhecimento dos contratos em causa antes da audiência prévia (data de referência para efeitos de superveniência). É manifesto que tal argumentação carece de fundamento, representando uma errada aplicação da primeira parte do art.º 588., n. 2 do CPC ao caso, quer porque o contrato de empreitada de acabamentos é de celebração e execução posteriores, quer porque os factos supervenientes relativos à empreitada de demolição, bem como à empreitada de escavação e estrutura, não respeitam ao momento da celebração desses contratos, mas ao momento da sua execução ou realização, sendo que os momentos de execução ou realização a que a Recorrente se reporta são inequivocamente posteriores à audiência prévia (e, por isso, supervenientes).
M. Por outro lado, o Tribunal pronuncia-se, a este respeito, em termos dubitativos, vagos e hipotéticos (“dificilmente se pode concluir que se trate de factos supervenientes, dado que o projeto de ampliação e remodelação decerto já estaria elaborado), o que representa uma forma de pronúncia incapaz de corresponder à qualidade mínima de uma decisão judicial, por natureza assertiva (ou se rejeita, afirmando categoricamente que não estão em causa factos supervenientes, ou se aceita, afirmando de modo determinativo que estão em causa factos supervenientes). Não pode subsistir na ordem jurídica uma decisão com esta natureza (assente em meras hipóteses ou conjeturas), devendo ser revogada.
N. Este modo de decidir determina também que a fundamentação invocada, pelo Tribunal, a este respeito, seja de tal modo insuficiente, que se reconduz a mera aparência de justificação, e, por isso, a falta de fundamentação (nos termos doutrinal e jurisprudencialmente respaldados no corpo das alegações), pelo que o despacho padece de nulidade, em conformidade com o estabelecido nos art.ºs 613.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, b) do CPC, por falta de fundamentação.
O. Ainda que se entendesse não haver falta de fundamentação, a fundamentação em causa é manifesta e clamorosamente insuficiente, atenta a índole conjetural e hipotética que assume, violando o disposto no art.º 154.º do CPC, sendo também inconciliável com as garantias constitucionais constantes do n.º 1 do art.º 205.º, do art.º 20.º e do art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa. Vício que deverá ser eliminado, procedendo-se a fundamentação devida e reformulando-se a decisão.
P. Porque assim, a interpretação da norma constante do artigo 154.º do CPC no sentido de que o Tribunal pode proferir tal decisão sem devida observância do devido dever de fundamentação, pronunciando-se em termos dubitativos, abstratos e hipotéticos, se revela contrária às garantias constitucionais de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, bem como de direito a um processo equitativo e a devida fundamentação, previstas, respetivamente, nos artigos 20.º, 32.º e 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa. Inconstitucionalidade que ora expressamente se alega.
Q. O Tribunal a quo decidiu também que os factos constantes das alíneas a) a l) do despacho em causa careciam de relevância para a decisão da causa.
Tal fundamentação, porém, não colhe.
R. Em primeiro lugar, porque os factos em apreço são relevantes para a compatibilização do processo com a realidade (assim se dando cumprimento ao disposto no art.º 611.º do CPC - norma que visa assegurar que a informação constante dos autos se mantenha atual, de modo a que esta acompanhe pari passu a evolução que se vai verificando na realidade, ou seja, de forma a que seja igual o passo da instância e o passo do real, sob pena de diferentes ritmos criarem um descompasso entre a decisão e a realidade sobre que se decide, desvirtuando o sentido e a função da Justiça e dos Tribunais). Atualização que se torna especialmente importante neste caso atendendo à longa duração do presente processo, cuja versão dos factos constantes dos autos está substancialmente desfasada face à atual realidade.
Esta circunstância seria, por si só, suficiente para se concluir não se estar perante factos manifestamente irrelevantes (sendo certo que somente a manifesta irrelevância poderá conduzir à rejeição do articulado, nos termos do art.º 588.º, n.º 4, do CPC, pelo que a decisão em apreço incorre em violação também desta norma).
S. Em segundo lugar, porque os factos em causa são também relevantes para efeito de atualização do critério de determinação do montante devido a título de lucros cessantes.
T. Quando, em virtude do atraso na execução da obra gerado pela conduta da Ré, a acção foi proposta, a Autora não dispunha (porque não existia) da data em que a obra viria efetivamente a ser concluída, pelo que indicou como período a considerar na futura perda de lucros cessantes o período de atraso no início de execução da obra (entre a recusa em retirar os recalces e a efetiva remoção destes).
U. Quando, depois, por aprovação camarária de alteração do projeto, a remoção dos recalces deixou de ser necessária para início de execução da obra, veio aos autos (não dispondo, nos mesmos termos, da data final de conclusão da obra), através de articulado superveniente de 01.02.2018, atualizar o critério de determinação dos lucros cessantes, indicando como previsível período de tempo a considerar na futura perda de lucros cessantes o período de atraso no início de execução da obra (a considerar entre a recusa em retirar os recalces e a aprovação do projeto que permite prescindir dessa remoção total para início da obra). Articulado que foi admitido, sendo tais factos atualizadores integrados nos autos e admitidos os correspondentes meios de prova.
V. Uma vez celebrado o contrato de empreitada de acabamentos em 09.11.2018 (assim, em momento posterior à audiência prévia), ficou definida a data de conclusão das obras (30.01.2020), pelo que passou a ser possível conhecer não só o número de dias de lucro cessante, como os próprios dias em que essa perda se verifica. Assim deixando de ser necessário o cálculo indireto da duração do período de lucro cessante (mediante projeção para futuro – para o momento de conclusão da execução da obra – do número de dias de atraso no início de execução da obra), para diretamente se conhecerem os concretos e precisos dias em que se verifica a perda de lucro e, consequentemente, a duração exata do período de lucro cessante ocorrido entre a data em que a obra teria sido concluída se não tivesse havido recusa da Ré em remover os recalces (09.12.2012) e a data (30.01.2020) em que a obra teria sido concluída de acordo com o contrato de empreitada de acabamentos (este celebrado em 09.11.2018, na sequência da alteração da licença provocada pela recusa da Ré em remover os recalces).
W. Contrariamente ao afirmado pelo Tribunal a quo, no âmbito do primeiro articulado superveniente a Recorrente não veio identificar quais os dias em que a privação de exploração do hotel aconteceu (o mesmo é dizer, quais os dias em que a verificação do lucro cessante ocorreu). Não é, assim, verdade o que o Tribunal afirma quando escreve que a Autora formulou o seu pedido “pretendendo ser indemnizada pelos lucros não percebidos no período deste atraso, o qual balizou entre 21.04.2011 e 14.11.2016”, daí retirando que, “os factos ocorridos após tal data não têm qualquer relevância para a decisão do mérito da causa…”.
X. Diferentemente, ante a impossibilidade de dizer quais os dias em que ocorreu lucro cessante, alegou o tempo de atraso na execução das obras, pedindo que esse quantitativo fosse imputado no cálculo de número de dias em que se verificaria lucro cessante. Ou seja, veio usar o tempo de atraso no início da execução das obras como instrumento para quantificar o futuro tempo de lucro cessante.
Y. Que assim é, resulta do modo literal como a Recorrente se exprimiu no seu primeiro articulado superveniente, dizendo que (“(…) tendo sido aprovada a alteração à Licença, é agora também possível concretizar o pedido efetuado, quanto a lucros cessantes – o qual deve reportar-se ao n.º de dias contados entre 21 de Abril de 2021 e aquela alteração [ou seja, 2035 dias (dois mil e trinta e cinco dias), contabilizando um total de €13.135.925,00 (treze milhões, cento e trinta e cinco mil, novecentos e vinte e cinco euros)]…”), aí explicitando que os lucros cessantes se devem reportar ao n.º de dias de atraso na execução da obra (assim projetando, reportando, o atraso na obra, no atraso na exploração). O que é muito diferente de afirmar (como o Tribunal a quo indevidamente faz) que os lucros cessantes se verificaram nesses dias de atraso na execução da obra, pelo que esta interpretação não pode subsistir nos autos.
Z. Que se trata de uma ampliação do pedido, através do qual se atualiza o processo (compaginando-o com a evolução do real, com os factos entretanto verificados e conhecidos), resulta também de assim ter decidido o mesmo Tribunal a quo, neste mesmo processo, por decisão transitada em julgado, quando pedido de natureza idêntica foi formulado pela Recorrente no primeiro articulado superveniente por esta apresentado (onde também se solicitou alteração do pedido com base em alteração do critério de determinação do período de lucros cessantes).
AA. Ampliação do pedido que representa um desenvolvimento do pedido anterior, vindo dar conhecimento ao Tribunal de dados anteriormente não conhecidos (os exatos dias em que ocorreu perda de lucro e, assim, os precisos dias em que houve perda de lucro cessante). Tudo em sintonia com a exigência legal de que o processo seja síncrono com a realidade (não um processo desfasado, desatualizado, desconhecedor da evolução verificada na sua pendência e, assim, desgarrado da própria realidade sobre que se decide).
BB. Se, como explicita a doutrina e a jurisprudência (mencionadas no corpo das alegações), a Recorrente poderia ter, na petição inicial, pedido apenas a remoção dos recalces, vindo depois (em ampliação do pedido representativa de consequência do pedido anterior), requerer a indemnização por lucros cessantes, por maioria de razão poderá, tendo desde logo pedido a indemnização por lucros cessantes, vir depois (em requerimento de ampliação do pedido por desenvolvimento do pedido anterior, nos termos do art.º 265.º, n.º 2 do CPC) atualizar o modo de cálculo dos lucros cessantes.
A maiori, ad minus (quem pode o mais, pode o menos). A decisão recorrida consubstancia, pois, quanto a este aspeto, uma errada aplicação do art.º 265.º, n.º 2 do CPC ao caso.
CC. Quando procede a ampliação do pedido nestes termos (em desenvolvimento ou consequência de pedido anterior), o Autor tem o dever (como explicitado em jurisprudência citada no corpo das alegações) de invocar os factos que lhe servem de fundamento (no caso, factos relativos ao momento inicialmente previsto para conclusão da obra/início de exploração e factos relativos ao momento previsto, no novo projeto de execução de obras – posterior à alteração da licença, provocada pela recusa da Ré em remover os recalces – para conclusão da obra/início de exploração), pelo que esta invocação (e, consequentemente, a sua aceitação) é decorrência necessária de tal ampliação (no caso, atualizadora dos dados processuais).
DD. Acresce que a alteração do pedido não se encontra limitada pelas fronteiras temporais legalmente associadas aos articulados supervenientes, pelo que se pode alterar o pedido (ampliando-o por consequência ou desenvolvimento do pedido primitivo) – e, consequentemente, se deve aceitar essa alteração – mesmo que a razão que determina essa ampliação não seja superveniente, pelo que carece de qualquer fundamento e incorre em erro de direito (por indevida aplicação dos art.ºs 588.º e 589.º do CPC, na sua relação com o art.º 265.º, n.º 2 do CPC) a decisão recorrida quando nela se rejeita a alteração do pedido com base na alegação (inverídica, aliás) de que os factos não são supervenientes. Razão adicional para a revogação da decisão em apreço e sua substituição por decisão de sentido oposto.
EE. Por assim ser, o requerimento de alteração do pedido com base no n.º 2 do art.º 265.º do CPC, quando feito fora dos articulados, deve, por norma (como explicitam a doutrina e a jurisprudência citadas no corpo das alegações), ser formulado em requerimento autónomo, que não em articulado superveniente. No presente caso, a Recorrente fez uso de articulado superveniente por se dar a coincidência de os factos fundamentadores da ampliação do pedido (por desenvolvimento de pedido anterior) serem também factos supervenientes.
FF. Tanto não legitima, porém, o Tribunal a quo a decidir o requerimento de ampliação do pedido com base na indevida convocação do regime relativo à invocação superveniente de factos, tanto mais quanto o Tribunal tem o dever de oficiosa e corretamente qualificar os factos (independemente da qualificação feita pelas partes) e determinar o direito aplicável (art.º 5. º, n. º 3 do CPC, sendo certo que, nos termos do n. º 2 do art.º 566. º do CC, em sede de ações indemnizatórias – e nessa categoria se enquadra a presente ação – “… a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”). Porque assim, caso entendesse que, apesar de serem supervenientes os factos que fundamentam a alteração do pedido, esta deveria ser requerida em peça diversa, incumbir-lhe-ia (como a jurisprudência igualmente assevera) considerar que “o procedimento do A. apenas foi indevido na terminologia adoptada para nomear o articulado” e deveria tê-lo renomeado com designação correspondente “às finalidades que, [o A.] legitimamente, deu ao mesmo”.
GG. Quando, indevidamente, o Tribunal subordinou o deferimento da alteração do pedido à verificação dos requisitos próprios do regime (aqui inaplicável) dos articulados supervenientes, incorreu em erro de direito por errada aplicação do regime constante do art.º 265.º, n.º 2 do CPC.
HH. Também por esta razão deve, assim, a decisão recorrida ser substituída por outra que admita a ampliação do pedido, o que implica a associada admissão dos factos que lhe servem de base e, consequentemente, a admissão de junção dos documentos 1 a 10, destinados à prova desses mesmos factos (sob pena, quanto a este último aspeto, de violação do direito à prova enquanto dimensão essencial dos direitos constitucionais a efectivo acesso à justiça e tutela jurisdicional efetiva, bem como a processo equitativo, previstas nos art.ºs 20. º e 32. º da Constituição da República Portuguesa, bem como de ofensa do previsto no art.º 341. º do CC, articulado com os art.ºs 362.º e ss. do mesmo diploma e dos art.ºs 423. º e ss. do CPC).
II. Acresce que essa errada aplicação do art.º 265.º, n.º 2 do CPC limita infundadamente as pretensões que a Recorrente pode formular em juízo, pelo que a interpretação da norma constante do n.º 2 do art.º 265.º do CPC no sentido de que a ampliação do pedido aí prevista só é possível com base na invocação de factos supervenientes se revela contrária às garantias constitucionais de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, bem como de direito a um processo equitativo, previstas, respetivamente, nos artigos 20.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa. Inconstitucionalidade que ora expressamente se alega.
JJ. Ainda que, porém, se entendesse estar em causa (e não está, antes ocorrendo alteração do pedido, conforme acima exposto) alteração da causa de pedir (como o Tribunal a quo indevidamente considera), com base na verificação de um facto superveniente, sempre a alteração da causa de pedir seria de admitir sem se tomarem em consideração os limites previstos no art.º 265.º, n.º 1 do CPC, como expressamente esclarece a jurisprudência (designadamente o Supremo Tribunal de Justiça, em recente acórdão citado no corpo das alegações).
KK. Nestes termos, o Tribunal a quo incorreu em erro de direito quando interpretou (e assim indevidamente aplicou ao caso) a norma constante do n.º 2 do art.º 265.º do CPC no sentido de que os limites nele estabelecidos se aplicam mesmo quando a alteração da causa de pedir se alicerça em factos supervenientes.
LL. Acresce que essa errada aplicação do art.º 265.º, n.º 2 do CPC limita infundadamente as pretensões que a Recorrente pode formular em juízo, pelo que a interpretação da norma constante do n.º 2 do art.º 265.º do CPC no sentido de que as limitações aí previstas à alteração da causa de pedir se aplicam mesmo quando esta assenta em factos supervenientes se revela contrária às garantias constitucionais de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, bem como de direito a um processo equitativo, previstas, respetivamente, nos artigos 20.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa. Inconstitucionalidade que ora expressamente se alega.
MM. Em qualquer uma das circunstâncias, os factos invocados pela Recorrente no seu articulado de 13.09.2022 assumem relevância para a boa decisão da causa, para fundamentação factual da atualização do pedido, mediante ampliação, em desenvolvimento, do mesmo. Devem, assim, ser revogadas as decisões proferidas (ora recorridas), admitindo-se o articulado superveniente e deferindo-se o requerimento de alteração do pedido, bem como de junção dos documentos 1 a 10 (para prova dos factos supervenientes), pelas razões e com as consequências acima expostas.
NN. O relevo dos factos supervenientes em apreço manter-se-ia, contudo, ainda que não houvesse sido requerida a ampliação do pedido, pois, sendo um dos pedidos formulados pela Recorrente o de condenação da Recorrida no pagamento do valor correspondente aos lucros cessantes, de nenhum modo se pode dizer ser manifestamente irrelevante para a causa objeto de decisão, a invocação, pela mesma Recorrente, do facto, objectivamente superveniente, correspondente à data da conclusão das obras (20.08.2021) e o facto de este ter iniciado a sua atividade, em modo pleno, em 21.09.2021.
OO. Com efeito, a circunstância de o hotel se encontrar, desde então, em funcionamento e o facto de a Recorrente obter receita por via dessa atividade, consolida a demonstração da aptidão lucrativa da Recorrente, isto é, atesta não só a sua capacidade de obtenção de ganho com a exploração do hotel, como a efetiva realidade da obtenção desse lucro. Evidencia, em síntese, que o hotel é uma estrutura que, comprovadamente, é fonte de lucro e, assim, que a sua não exploração durante um determinado período implica cessação de obtenção de ganho, que deve ser ressarcida. Como é inequívoco, tanto não é (contrariamente ao que o Tribunal a quo afirma) indiferente – muito menos manifestamente irrelevante – para a decisão da causa, numa acção, como a presente, em que, justamente, se requer indemnização por lucro cessante. Razão suplementar, pois, para revogação do despacho em apreço (por errada aplicação, que assim tal decisão consubstancia, do n. º 4 do art.º 588. º do CPC ao caso) e sua substituição por outra decisão de sentido oposto.
PP. Também não é irrelevante o facto de se invocar, como facto superveniente, que a data prevista para conclusão das obras (em consequência da conduta da Ré) era 30.01.2020 e não a data em que elas efetivamente foram concluídas (20.08.2021), pois tanto permite delimitar, com rigor, o atraso imputável à Ré (apenas o que se verificou até à data prevista no contrato de empreitada de acabamentos) e não também o que se verificou em momento posterior (até efetiva conclusão das obras), pois que este último se deveu a atraso na execução em sede de empreitada (que não a conduta da Ré).
QQ. Assim se assegura que não se imputem à Ré consequências que não são devidas à sua conduta, pelo que também este facto de nenhum modo se pode enquadrar no âmbito dos que sejam manifestamente irrelevantes para decisão da causa, pelo que carece de fundamento e representa errada aplicação do n. º 4 do art.º 588. º do CPC ao caso, a decisão do Tribunal a quo que rejeita a admissão do articulado superveniente com base nesse argumento, bem como a decisão que (em violação do direito à prova enquanto dimensão essencial dos direitos constitucionais a efetivo acesso à justiça e tutela jurisdicional efetiva, bem como a processo equitativo, previstas nos art.ºs 20. º e 32. º da Constituição da República Portuguesa, bem como de ofensa do previsto no art.º 341. º do CC, articulado com os art.ºs 362. º e ss. do mesmo diploma e dos art.ºs 423. º e ss. do CPC) não admite a junção dos correspondentes documentos, devendo ser revogadas e substituídas por outra de sentido oposto.
RR. Acresce que, sendo, assim, as datas correspondentes ao momento previsível de conclusão das obras antes do atraso imposto pela conduta da Ré (09.12.2012 - data já do conhecimento do Tribunal porque constante dos autos desde o início da instância, tendo para aí sido carreada pela Autora, na petição inicial, em 06.06.2014, como decorre da leitura conjugada dos artigos 10. º, 8. º e 9. º desse articulado) e ao momento previsto para conclusão das obras de acordo com o projeto de 2018 (30.01.2020, data correspondente a facto ocorrido em momento posterior à audiência prévia e, por isso, invocado nos autos, pela Autora, através do articulado superveniente apresentado em 13.09.2022), gerindo a instância e proferindo sentença em conformidade.
SS. Em suma, incumbe ao Tribunal, oficiosamente e sem vinculação ao que tenha sido pelas partes, definir qual o período temporal a tomar em consideração para condenação da Recorrida no pagamento do valor indemnizatório devido a título de lucros cessantes, devendo determinar, por sua iniciativa, como critério de decisão, que o período a adotar como critério deve ser o que medeia entre o momento inicialmente previsto para conclusão da obra e o momento depois previsto (após a conduta da Ré) para a mesma conclusão.
TT. Com efeito, o legislador determina, no n.º 2 do art.º 566.º do CC, que, em ações indemnizatórias, o juiz decida de acordo com o seguinte critério: “…a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”, sendo certo, por outro lado, que, nos termos do previsto no n. º 3 do art.º 5. º do CPC, o juiz tem o dever de decidir tomando oficiosamente (e, assim, independentemente de as partes nada terem alegado a esse propósito ou de terem alegado em sentido diverso) em consideração o estabelecido nos critérios legais, oficiosamente indagando, interpretando e aplicando o Direito.
UU. Ou seja, o Tribunal sempre deveria condenar em conformidade com o solicitado na alteração do pedido, no articulado superveniente que ora se aprecia, mesmo que essa alteração do pedido não fosse de admitir, o que ora se requer
VV. No que respeita, de modo particular, aos factos supervenientes invocados nos pontos 17, 18, 19, 20, 21, 26, 27, 28 e 29 do articulado superveniente apresentado em 13.09.2022, importa sublinhar a sua relevância processual adveio da circunstância de os Senhores Peritos terem sustentado, no seu relatório, que o cálculo do valor correspondente aos lucros cessantes implicaria a consideração desses elementos, pelo que, tornando-se esses dados disponíveis nos autos através dos referidos factos supervenientes, devem os Senhores Peritos completar o exercício da sua perícia.
WW. Não estão, assim, em causa, contrariamente ao que o Tribunal a quo invoca, factos irrelevantes (a relevância foi-lhes atribuída por sujeitos tecnicamente qualificados, cujo exercício de funções e capacidade técnica foram admitidos e reconhecidos pelo Tribunal a quo, no contexto diligência de instrução e que se viram impossibilitados de cabalmente exercer a sua função por falta dessa informação). Nem está em causa, ao contrário do que o Tribunal a quo igualmente e indevidamente aduz, a alegação de reclamação ou reação contra a atividade de perícia realizada.
XX. Não se verifica, portanto, o fundamento, invocado pelo Tribunal a quo para indeferimento do articulado superveniente quanto a estes factos, nem para indeferimento do pedido formulado no sentido de que a prova pericial seja concluída, devendo essa decisão ser revogada e substituída por outra de sentido oposto.
YY. Admitida a invocação desses factos supervenientes, deve também ser admitida a junção dos documentos (documentos nºs. 1 a 10) que os provam, assim devendo igualmente ser revogada a decisão que rejeita essa junção e substituída por outra de sentido oposto,
ZZ. por forma a ilidir a violação do direito à prova (e, assim a ofensa prevista das garantias previstas nos art.ºs 20. º e 32. º da Constituição da República Portuguesa, bem como a ofensa do previsto no art.º 341. º do CC, articulado, designadamente, com os art.ºs 362. º e ss., 388. º e 389. º do mesmo diploma e dos art.ºs 423. º e ss. do CPC) que as decisões ora recorridas assim consubstanciam.
AAA. Por tudo o exposto, e sem prejuízo da preservação da prova entretanto produzida, dever-se-ão retirar todas as consequências processuais advenientes da revogação dos despachos ora recorridos, em particular anulando os atos que sejam praticados até ao deferimento do presente recurso (designadamente, eventual sentença) e em cujo teor possam influir o articulado superveniente, a alteração do pedido, bem como as provas pericial e documental que foram rejeitadas.
BBB. Nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais e 530.º, n.º 7, do CPC, deverá a Recorrente ser dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
CCC. A condenação da Recorrente no pagamento do remanescente da taxa de justiça configuraria uma violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e do acesso ao direito, já que o pagamento de montante tão elevado como o que estaria em causa não encontra justificação nem na conduta processual da Recorrente, nem nos serviços efetivamente prestados pelo Tribunal, já que a apreciação do presente recurso não implica uma elevada especialização jurídica ou especificidade técnica, nem a produção ou análise de prova.”.
8. Em contra-alegações, a R. defendeu a improcedência do recurso.
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II. QUESTÕES A DECIDIR
Considerando o disposto nos art.ºs 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, impõe-se concluir que as questões submetidas a recurso são:
- da nulidade da decisão recorrida;
- da admissibilidade do articulado superveniente;
- da ampliação do pedido;
- da admissão da prova requerida;
- da dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos a atender são os que resultam do relatório supra.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Face às questões a decidir, passemos à sua apreciação, o que se fará de acordo com a ordem lógica das questões e não com a ordem suscitada em alegações.
1.Da nulidade da decisão:
1.1. Da nulidade por falta de fundamentação:
Alega a apelante que o despacho recorrido é nulo por falta de fundamentação no que se refere à decisão relativa aos factos supervenientes não tidos em consideração, uma vez que o tribunal recorrido utiliza expressões condicionais, conferindo um caracter vago à decisão.
Nos termos do art.º 615º, nº 1, al. b) do CPC, aplicável aos despachos, por remissão do art.º 613º, nº 3 do mesmo diploma, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Esta nulidade, por se traduzir na inobservância das regras de elaboração da sentença, é um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de actividade que afecta a validade da sentença.
Nas palavras de Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, V Volume, Coimbra, pág. 140, “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.
Ou, como refere Tomé Gomes, in Da Sentença Cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, ebook publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jan. 2014, p. 370, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf:
“Assim, a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adoptada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo.
A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão”.
Donde, só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade, ou erroneidade – integra a previsão da alínea b) do nº 1 do art.º 615º, mas já não a errada decisão no âmbito do erro de julgamento. Neste sentido, vide Acs. STJ, de 15-12-2011, relator Pereira Rodrigues e de 02-06-2016, relator Fernanda Isabel Pereira.
No caso vertente, constata-se que o tribunal recorrido procede a uma análise da questão trazida a juízo, decidindo-a de forma cabal e esclarecedora. Ou seja, facilmente se conclui não estarmos perante a alegada nulidade por falta de fundamentação, sendo que a eventual insuficiência de motivação ou a discordância da apelante não são fundamento de nulidade.
Mais alega a apelante que, mesmo que se entenda não haver falta de fundamentação, “a fundamentação em causa é manifesta e clamorosamente insuficiente, atenta a índole conjetural e hipotética que assume, violando o disposto no art.º 154.º do CPC, sendo também inconciliável com as garantias constitucionais constantes do n.º 1 do art.º 205.º, do art.º 20.º e do art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa”.
Não lhe assiste, todavia, razão.
Nos termos do art.º 154º, nº 1 do CPC, “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”, referindo-se no seu nº 2 que “A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
Como referem, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2018, pág. 188, em anotação ao citado art.º 154º, “O dever de fundamentação das decisões tem consagração constitucional (art.º 205º, nº 1 da CRP), apenas se dispensando no caso de decisões de mero expediente. Deste modo, ainda que o pedido não seja controvertido ou que a questão não suscite qualquer dúvida, a respectiva decisão deverá ser fundamentada nos termos que forem ajustados ao caso.”.
Donde, apenas se pode afastar o dever de fundamentação no caso de decisões de mero expediente, em que a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
Decorre do art.º 152º, nº 4 do CPC, que despacho de mero expediente é aquele que se destina “a prover ao andamento regular do processo sem interferir no conflito de interesses entre as partes”. Dito de outro modo, o despacho de mero expediente tem um duplo pressuposto: regular o processado e não interferir no conflito de interesses existente, ao mesmo tempo que tem como característica principal não decidir qualquer questão de forma ou de fundo.
No caso do despacho recorrido, e considerando tudo o que se vem de explanara, afigura-se-nos que não estamos perante um despacho de mero expediente.
Com efeito, o aludido despacho destina-se a decidir uma questão de fundo, a saber: decidir da admissibilidade do articulado superveniente apresentado.
Consequentemente, a decisão correspectiva assume-se como uma decisão sobre um interesse em litígio, que pressupõe uma análise detalhada dos seus fundamentos fáctico-jurídicos, por forma a que o destinatário da decisão perceba o seu conteúdo e alcance e, em caso de discordância, possa atacar os seus fundamentos por via de recurso.
Ora, é precisamente isso que se verifica no caso dos autos, na medida em que o despacho em apreço efectua essa análise, justifica a decisão que entende ser de tomar e termina com o indeferimento do requerido, o qual se assume como a consequência lógica do despacho recorrido.
Questão diversa e que não se confunde com a insuficiência da fundamentação é apurar se essa decisão se mostra ou não adequada aos fundamentos carreados para os autos.
Saliente-se que esta conclusão não sai beliscada pelo vocabulário utilizado ou pela forma como o despacho se mostra redigido, como parece entender a apelante.
Com efeito, lendo o despacho recorrido com atenção, constata-se que o mesmo é claro na decisão tomada e no raciocínio lógico-dedutivo que a precedeu, sendo que as expressões com as quais a apelante se insurge, tais como “dificilmente se pode concluir” ou “decerto já estaria”, mais não são do que formas estilizadas de referir a impossibilidade de atender aos argumentos invocados pela apelante.
Da utilização de tais expressões não se pode, por conseguinte, retirar qualquer ambiguidade ou ausência de fundamentação.
Sintomático dessa ausência é o modo como a apelante estrutura as presentes alegações, atacando de forma clara e circunstanciada o despacho recorrido, nas suas várias vertentes, demonstrando assim que o entendeu de forma plena.
Logo, não se pode concluir pela verificação do vício apontado, sendo também importante salientar que também não se pode acolher a alegada inconstitucionalidade da decisão recorrida.
Para tanto, recorde-se que o juízo de constitucionalidade apenas recai sobre normas e interpretações legais e não sobre decisões judiciais, pelo que não existe qualquer vício nesse sentido.
Consequentemente, tem de se concluir pela improcedência deste segmento da apelação.
1.2. Da nulidade por omissão de pronúncia:
Sustenta também a apelante que o despacho recorrido é nulo, porquanto não se pronuncia sobre todos os factos supervenientes por si alegados.
Quanto à nulidade por omissão de pronúncia, o art.º 615º, al. d) do CPC estatui que a sentença é nula quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Relaciona-se este preceito com o disposto no art.º 608º do CPC, segundo o qual a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais suscitadas pelas partes ou de conhecimento oficioso e que possam determinar a absolvição da instância, bem como resolver todas as questões de mérito que as partes tenham submetido à sua apreciação, não podendo ocupar-se de outras, salvo as que forem de conhecimento oficioso.
Assim sendo, na fundamentação da sentença deve o juiz pronunciar-se sobre cada uma das pretensões trazidas a juízo, bem como sobre cada um dos fundamentos que lhes são opostos em sede de contestação, seja a título de excepção dilatória e que não tenha sido antes apreciada, seja a título de excepção peremptória.
Por outro lado, “… não integra o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, traduzido portanto numa questão de mérito”, cfr. Tomé Gomes, in Da Sentença Cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, ebook publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jan. 2014, pág. 370, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf.
Quer isto dizer que não há qualquer omissão de pronúncia quando as questões estruturantes da posição das partes sejam implícitas ou tacitamente decididas, já que a análise da argumentação das partes não se confunde com a apreciação das questões que devem ser conhecidas, esta sim essencial.
Nas palavras de Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 143, “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.
No caso dos autos, entende a apelante que o tribunal recorrido não se pronunciou sobre todos os factos supervenientes por si invocados, alegando que os factos alegados nos pontos 23, 24, 25, 26, 27 e 28 do referido articulado superveniente não mereceram qualquer apreciação.
Da leitura do despacho recorrido ressalta que o tribunal a quo se pronunciou sobre todas as questões suscitadas pela apelante e também sobre todos os factos supervenientes alegados, seja referindo-os expressamente, seja fazendo menção aos mesmos, nomeadamente quando refere a sua irrelevância face à causa de pedir apresentada nos autos.
Por outro lado, a discordância da apelante quanto ao juízo formulado quanto à superveniência ou relevância dos aludidos factos não é enquadrável na omissão de pronúncia, mas sim uma questão de mérito.
Donde, também nesta parte é a apelação improcedente.
1. Da admissibilidade do articulado superveniente:
Insurge-se a apelante com a decisão de indeferimento do articulado superveniente por si apresentado, alegando quer a superveniência dos factos, quer a sua relevância para os autos.
Entendeu o tribunal recorrido que não estavam reunidos necessários para a admissão de tal articulado, porquanto os factos nele alegados não se assumem como essenciais, porquanto, atenta a causa de pedir e pedido formulados, não têm qualquer importância para a decisão final.
Vejamos.
Nos termos do art.º 588º do CPC, “1 - Os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão.
2 - Dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência.
3 - O novo articulado em que se aleguem factos supervenientes é oferecido:
a) Na audiência prévia, quando os factos hajam ocorrido ou sido conhecidos até ao respetivo encerramento;
b) Nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, quando não se tenha realizado a audiência prévia;
c) Na audiência final, se os factos ocorreram ou a parte deles teve conhecimento em data posterior às referidas nas alíneas anteriores.
4 - O juiz profere despacho liminar sobre a admissão do articulado superveniente, rejeitando-o quando, por culpa da parte, for apresentado fora de tempo, ou quando for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa; ou ordenando a notificação da parte contrária para responder em 10 dias, observando-se, quanto à resposta, o disposto no artigo anterior.
5 - As provas são oferecidas com o articulado e com a resposta.
6 - Os factos articulados que interessem à decisão da causa constituem tema da prova nos termos do disposto no artigo 596º”.
Por seu turno, nos termos do art.º 611º, nºs 1 e 2 do CPC, a sentença deve atender aos factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão, atendendo-se àqueles factos que tenham influência sobre a existência ou conteúdo da relação controvertida.
No caso dos autos, não se questiona a tempestividade do articulado apresentado, mas tão somente a superveniência dos factos alegados.
Factos supervenientes serão aqueles factos que, observando os limites temporais previstos nos nºs 1 e 2 do art.º 588º, sejam constitutivos, modificativos ou extintivos do direito alegado pela parte e tenham pertinência para a decisão da causa.
De referir que, e como se refere no Ac. TRP de 22-02-2018, proc. 1951/07.7TBTVD-A.L1-6, relator António Santos (citado por apelante e apelada), “a superveniência de que fala o dispositivo tanto pode ser a objectiva - quando os factos têm lugar já depois de esgotados os prazos legais de apresentação pela parte dos articulados - , como subjectiva, ou seja, quando os factos ainda que tenham tido lugar em momento anterior ao da apresentação pela parte do/s seu/s articulado/s, certo é que apenas chegaram ao seu conhecimento já depois de esgotados os prazos legais de apresentação dos aludido/s articulado/s.
Na situação referida por último, o da superveniência subjectiva, obrigada está, porém, a parte de, além de alegar a data ou o momento em que tomou conhecimento do facto, também de provar a não “censurabilidade” da respectiva superveniência”. Em igual sentido, também o Ac. TRG de 10-04-2014, proc. n.º 387/11.0TBPTL-B.G1, relator António Santos, citado pela apelante.
Particularmente relevante para se aferir da admissibilidade do articulado superveniente em causa nos autos é analisar os factos ora alegados em confronto com a causa de pedir inicialmente apresentada.
Na verdade, apenas será de admitir este articulado se os factos alegados forem factos essenciais, por enformarem a causa de pedir (ou, caso fosse o caso, as excepções deduzidas).
Na feliz expressão do aresto do TRL supra citado, “em sede de articulado superveniente, decisivo é que a parte pretenda carrear para os autos novos factos fundamentais/essenciais, maxime porque integradores da previsão ou “tatbestand” da norma aplicável à pretensão ou à excepção”.
Isto é, um determinado facto pode ser objectiva ou subjectivamente superveniente, mas apenas poderá ter relevância em termos de articulado superveniente, quando seja essencial para o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa, e segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
Assim, os factos meramente instrumentais ou que não assumam a natureza de constitutivos não se integram na previsão do citado art.º 588º, nº 1.
Por outro lado, “os factos constitutivos cuja alegação superveniente se prevê no artigo 588º tanto podem destinar-se a completar a causa de pedir inicial, como podem implicar uma efectiva alteração ou modificação da causa de pedir inicial (ampliação da causa de pedir), o que vem a significar que, demonstrada pela parte interessada a superveniência (objectiva ou subjectiva), a mesma é o bastante para afastar as restrições fixadas pelo artigo 265º, do CPC ao nível da alteração da causa de pedir.
Neste sentido, pode o autor, neste específico condicionalismo, através dos novos factos supervenientes completar ou alterar a causa de pedir inicial, nomeadamente, ampliando-a mediante a alegação de outra causa de pedir, sem carecer, para tal, do acordo do réu ou, ainda, independentemente de a mesma resultar de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor, nas condições do citado artigo 265º, n.º 1, do CPC”. (Ac. TRP de 22-11-2021, proc. 470/20.0T8SJM-A.P1, relator Jorge Seabra).
A este propósito, refira-se que, alguns autores, com fundamento na economia processual e no aproveitamento de actos processuais, (designadamente Lebre de Freitas in Introdução ao Processo Civil, pág. 170, ed. de 1996, Coimbra Editora e C.P.Civil Anotado, 2001, pág. 342 e Teixeira de Sousa, in As partes, o objecto e a prova na acção declarativa, págs. 189 e 190, 1990 e in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, págs. 299-300, e também em blogippc.blogspot.pt) têm vindo a entender que, através do articulado superveniente, pode ser invocada uma nova causa de pedir e, assim, a rejeição de tal articulado só deve ter lugar quando se verificar qualquer dos pressupostos de indeferimento a que alude o nº 4 do art.º 588º.
Tal entendimento tem também vindo a ser seguido na jurisprudência, nomeadamente no Ac. TRC de 11-09-2012, proc. 408-F/2001.C1, relator Sílvia Pires, Ac. TRG de 25-05-2016, proc. 1827/09.5TBBCL-A.G1, relator Maria Purificação Carvalho, Ac. TRC de 26-04-2016, proc. 933/12.2TBCLD.C1, relator Maria Domingas Simões, todos permitindo a alteração ou ampliação da causa de pedir através de articulado superveniente.
Em igual sentido, referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., págs. 670 e 671, em anotação ao citado art.º 588º, que “O art.º 611º, nº 1 prescreve que a sentença deve tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à instauração da acção, de modo a que a decisão final corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão (…).
Pode suceder que determinados factos constitutivos do direito ocorram (ou cheguem ao conhecimento do autor) depois de apresentada a petição inicial (…). Estes são os chamados factos (objetiva ou subjetivamente) supervenientes. Face ao prescrito no citado art.º 611º, nº 1, impõe-se carrear para o processo tais factos, sendo essa a função dos articulados supervenientes (…)
Relativamente ao Autor os factos constitutivos cuja alegação superveniente aqui se prevê tanto podem destinar-se a completar a causa de pedir como podem implicar uma efectiva alteração ou modificação da causa de pedir inicial, o que significa que a superveniência é critério bastante para afastar as restrições fixadas no art.º 265º”.
Como se pode ler no Ac. TRL de 07-02-2019, proc. 3235/16.0T8PDL-B.L1-6, relator Gabriela Marques, “… em sede de articulado superveniente, decisivo é que a parte pretenda carrear para os autos novos factos fundamentais, máxime porque integradores da previsão ou “tatbestand” da norma aplicável à pretensão ou à excepção. Inquestionável é, assim, que não é qualquer facto, ainda objectiva ou subjectivamente superveniente, idóneo e susceptível de ser carreado para os autos em sede de articulado superveniente”.
Parece-nos ser esta a solução mais de acordo com o espírito do sistema, não existindo qualquer obstáculo processual a que se admita a ampliação da causa de pedir inicial através da dedução de articulado superveniente, em que aleguem a ocorrência de novos factos com interesse para a decisão da causa, sendo certo que a admissibilidade ou não dessa ampliação depende da relevância dos factos relativamente ao pedido deduzido, devendo ser aferida casuisticamente. Neste sentido, vide Ac. TRE de 23-03-2017, proc. 108/16.0T8FAR-A.E1, relator Tomé de Carvalho, onde se pode ler “a admissibilidade dos articulados supervenientes depende, além do mais, da relevância ou irrelevância do facto respectivo quanto à pretensão deduzida. Isto significa que as partes podem, observadas certas condições, trazer ao processo factos relevantes que ocorreram até ao encerramento da discussão, que elas não puderam trazer por desconhecimento ou por terem ocorrido após o decurso do prazo para a apresentação dos articulados onde tais factos deveriam ser alegados”.
Com efeito, o juízo efectuado sobre a admissibilidade de um articulado superveniente não comporta qualquer juízo sobre o seu mérito, mas tão somente sobre a sua tempestividade, nos termos prescritos no art.º 588º, nº 3 do CPC, e sobre a sua relevância para os autos, independentemente da sua eventual procedência.
Esta conclusão ressalta da letra do nº 4 do art.º 588º do CPC, o qual refere que “O juiz profere despacho liminar sobre a admissão do articulado superveniente, rejeitando-o quando, por culpa da parte, for apresentado fora de tempo, ou quando for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa; ou ordenando a notificação da parte contrária para responder em 10 dias, observando-se, quanto à resposta, o disposto no artigo anterior”.
No caso vertente, pretende a apelante trazer aos autos factos relacionados com a concretização e conclusão da ampliação do hotel e reflexos dos atrasos e vicissitudes verificadas na sua actividade hoteleira.
Como já se referiu, o tribunal recorrido entendeu que estes factos não se assumem como essenciais face à causa de pedir e pedido formulados.
Por forma a melhor apreender a questão, importa, antes de mais, referir que os pedidos inicialmente formulados na petição inicial foram alterados, sendo que os pedidos deduzidos em a) e d) foram julgados extintos por inutilidade superveniente, cfr. se alcança da acta de audiência prévia realizada a 09/05/2018 e 06/06/2018.
No mais, foi possível proceder à liquidação do pedido formulado em c) do petitório quanto a lucros cessantes, pretendendo a A. que o mesmo se reporte ao n.º de dias contados entre 21 de Abril de 2011 e o pedido de alteração da Licença apresentado na Câmara Municipal de Lisboa em 14 de Junho de 2016 (ou seja, 2035 dias), contabilizando um total de € 13.135.925,00, sem necessidade de apuramento em sede de execução de sentença.
Mais procedeu a A. ainda à ampliação do pedido formulado em d) relativo a danos emergentes, sendo importante destacar que a A. havia alegado que esses danos emergentes consistiam nos custos suportados com elaboração de parecer técnico, parecer jurídico, e honorários por serviços de engenheiros, arquitectos e advogados, montantes estes a liquidar em execução de sentença (art.ºs 125º a 129º da petição).
Ora, no requerimento apresentado em 01/02/2018, a A. alegou que “a alteração que a A. se viu forçada a proceder – encontrando, portanto (ainda e sempre) a sua causa na recusa ilícita da R. em proceder à remoção dos RI –, face ao projecto inicial titulado pela Licença, implicou custos adicionais, designadamente com (i) estudos técnicos realizados, (ii) custos de construção com a remoção localizada dos RI, (iii) elaboração de projectos de alteração da arquitectura e da estrutura da obra e (iv) horas internas da A. e da organização em que a mesma se insere. Custos esses que, sendo apenas plenamente contabilizáveis e determináveis após a conclusão da obra, deverão ser indemnizados, a título de danos emergentes e enquanto ampliação do pedido inicial, em montante a determinar em execução de sentença”.
Importa ainda atender à circunstância de a pretendida ampliação/modificação do pedido e dos factos supervenientes que a sustentam ter sido admitida por despacho proferido em 06/06/2018.
Quer isto dizer que o articulado superveniente em apreciação terá de se relacionar com a causa de pedir e com o pedido decorrentes da referida alteração e não apenas com a forma como a apelante estruturou inicialmente a presente acção.
Ora, os factos apresentados pela apelante pretendem traduzir a realidade fáctica vivida desde Junho de 2018 até ao início da audiência de discussão e julgamento em Outubro de 2022.
Na verdade, vem a apelante alegar que factos ocorridos depois da audiência prévia realizada em Junho de 2018 e que se referem à concretização e conclusão da ampliação do hotel e que são relevantes para a apreciação geral da dinâmica dos factos trazidos a juízo.
Por outro lado, e como bem refere a apelante, os factos em causa assumem relevância para determinar o montante devido a título de lucros cessantes, nomeadamente face aos alegados atrasos na execução da obra, suas causas e consequências, bem como o período durante o qual a apelante se mostrou impossibilitada de proceder a essa execução e à abertura do hotel.
Quer isto dizer que, face à conclusão das obras de ampliação e consequente do hotel, os factos ora alegados, ocorridos depois de 2018, se assumem como factos supervenientes e essenciais com interesse para a decisão da causa, nos termos do art.º 611º do CPC, o que determina a possibilidade de apresentação do articulado em apreço.
2- Da ampliação do pedido:
Aqui chegados, impõe-se referir que a admissão deste articulado, com a consequente chamada aos autos dos factos nele alegados, determina, igualmente, a possibilidade de alteração do pedido nos termos formulados.
Com efeito, nos termos do art.º 264º do CPC, “Havendo acordo das partes, o pedido e a causa de pedir podem ser alterados ou ampliados em qualquer altura, em 1.ª ou 2.ª instância, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento do pleito”.
No entanto, inexistindo esse acordo, estipula o art.º 265º, nº 1 do CPC que “Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação”, mais referindo o nº 2 que “O autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo” e o nº 6 que “É permitida a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida”.
No caso dos autos, pretende a apelante que o pedido por si deduzido quanto a lucros cessantes, e que havia já sido modificado em 2018, e que entendia dever ser reportado aos dias entre 21/04/2011 e 14/06/2016 (2035 dias), seja agora alterado por forma a que o período em causa seja o que medeia a data em que de acordo com o programa de trabalhos, a A. estaria em condições de começar a explorar a ampliação do hotel (10.12.2012) e a data em que estava projectada a conclusão das obras de ampliação (30/01/2020), perfazendo 2607 dias, embora mantendo o mesmo valor indemnizatório.
Ora, esta alteração do pedido mais não é do que a concretização do pedido antes deduzido face à alegação de novos factos, o que determina a sua admissibilidade, por a mesma se traduzir numa forma actualizada do cômputo dos lucros cessantes.
Há ainda que dizer que, mesmo não admitindo o articulado superveniente, ainda assim, poderia ocorrer a alteração do pedido pretendida pela apelante, e tal como esta bem refere nas suas alegações.
Com efeito, e embora seja possível a dedução da ampliação do pedido em sede de articulado superveniente, nos termos do art.º 588º do CPC, estas duas realidades não se confundem, podendo ocorrer uma sem a outra.
Veja-se a este propósito o sumário do Ac. do STJ de 19-06-2019, proc. 22392/16.0T8PRT.P1.S1, relator Oliveira Abreu, citado no Ac. TRL, de 18.02.2020, proc. 37/19.6TNLSB-A.L1-7, relator Carlos Oliveira, e no qual a ora relatora teve intervenção como 2ª adjunta, e que é, nesta parte, “Decorre do direito adjetivo civil, que a ampliação do pedido não se confunde com um articulado superveniente, seja a título formal, seja a título substantivo, atenta a exigência decorrente da unidade do sistema jurídico e tendo em devida conta os preceitos legais atinentes”.
Por outro lado, alegando a A. os factos relativos a esta modificação do pedido, estamos ainda perante a mesma relação jurídica, não se descortinando qualquer razão que justifique a exigência de propositura de uma nova acção para que se aprecie este fundamento da responsabilidade da R. ou que a fixação do seu montante seja relegada para momento posterior.
Na verdade, a economia processual e o princípio do aproveitamento dos actos processuais ditam esta possibilidade, a qual não belisca os direitos das partes, já que é admissível a respectiva impugnação.
Deve assim ser admitida a alteração do pedido nos termos pretendidos, por estarem demonstrados os requisitos constantes do art.º 265º do CPC.
3- Da admissão da prova requerida:
Defende também a apelante que deve ser revogada a decisão recorrida quando esta indefere a admissão dos documentos 1 a 10 e a perícia requerida.
Esta perícia destinava-se a “comprovar os custos de investimento suportados pela A com as obras de ampliação (e equipamento) do hotel, os custos previstos de manutenção do investimento e os juros pagos pela A no âmbito do financiamento contraído para custear as obras de ampliação de hotel, de forma que possam – na solução alternativa ao calculo através do EBITDA, que se admite, sem conceder – quantificar o valor do lucro líquido que a A deixou de auferir em consequência do atraso nas obras de ampliação do hotel”.
No que se refere a esta questão, o tribunal recorrido decidiu do seguinte modo:
“Dada tal decisão de indeferimento, é também indeferida a requerida produção de prova pericial, visto que inexistem factos novos suscetíveis de virem a ser provados por tal meio.
Por mera cautela diga-se, ainda, que a autora foi devida e atempadamente notificada do relatório pericial, tendo há muito decorrido os prazos para reclamação.
Assim sendo, a discordância face aos métodos e cálculos realizados pelos Senhores Peritos não são suscetíveis de reavaliação em nova perícia”.
Ora, se relativamente aos documentos em causa se afigura de manifesta clareza decidir pela sua admissibilidade, já não se pode chegar a igual conclusão quanto à perícia requerida.
Com efeito, e como bem se diz no despacho recorrido, a apelante não reclamou os métodos e cálculos realizados no relatório pericial, pretendendo agora ver reavaliados esses critérios relativamente aos mesmos factos, os quais não são modificados pela mudança temporal da sua verificação.
Por outro lado, parte do objecto da perícia, nomeadamente quanto ao apuramento de custos, poderá ser provada através de documentos, não se afigurando necessária a realização de perícia para esse efeito, assim inexistindo qualquer violação dos direitos constiticuonais da apelante com tal indeferimento.
Consequentemente, e por assentar em pressupostos correctos, impõe-se a manutenção do despacho recorrido na parte em que indefere a perícia requerida.
Face a tudo o que se vem de expor, impõe-se a revogação do despacho recorrido na parte em que indefere a admissão do articulado superveniente e da ampliação do pedido, o qual deve ser substituído por outro que, admite o articulado superveniente apresentado e documentos com ele apresentados, bem como a modificação do pedido deduzida.
No mais, mantém-se o despacho recorrido.
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Nos termos do disposto no art.º 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito.”
No sentido amplo, as custas incluem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cfr. art.ºs 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP), enquanto que, em sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (art.ºs 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo, sendo devida em qualquer instância.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os art.ºs 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (art.ºs 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (art.ºs 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
No caso dos autos, considerando o decaimento da apelante na parte em que pugnou pela revogação do despacho que indeferiu a perícia requerida, e o decaimento da apelada nas demais questões, as quais assumiam maior preponderância na decisão, devem as custas devidas ser suportadas por ambas entendendo-se que apelada deve suportar a maior das mesmas.
Assim, as custas devidas pela presente apelação ficam a cargo de apelante e apelada, na proporção de 20% para a apelante e 80% para a apelada, cfr. art.º 527º do CPC.
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A finalizar as suas alegações, peticiona a apelante a dispensa do pagamento remanescente da taxa de justiça.
Nos termos do art.º 1º, nº 1 do RCP, Todos os processos estão sujeitos a custas, dispondo o nº 2 do mesmo preceito que se considera como processo autónomo cada acção, execução, incidente, procedimento cautelar ou recurso, corram ou não por apenso, desde que o mesmo possa dar origem a uma tributação própria.
Donde, e para efeitos de custas, no processo há autonomia entre a fase em que corre na 1ª Instância, a fase em que corre na Relação e a fase em que corre no Supremo Tribunal de Justiça, devendo o pedido de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça na sequência de interposição de recurso de apelação ser apreciado nesta sede.
Por outro lado, e como determinou o Acórdão Uniformizador 1/2022, Diário da República nº 1/2022, Série I de 2022-01-03, “A preclusão do direito de requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, a que se reporta o n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais, tem lugar com o trânsito em julgado da decisão final do processo”.
Assim, face ao estado dos autos, à tempestividade do pedido e à decisão quanto a custas passemos a apreciar o pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Nos termos do art.º 6º, nº 7 do RCP “Nas causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.
Considerando as questões trazidas a juízo e a complexidade das mesmas, bem como a conduta processual das partes, e pese embora o valor elevado atribuído à causa (13.150.685,00€) e a relativa extensão das alegações (255 artigos) e contra-alegações (200 artigos), afigura-se adequado e razoável dispensar as partes do pagamento da totalidade do remanescente da taxa de justiça.
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V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando o despacho recorrido na parte em que indefere a admissão do articulado superveniente e a ampliação do pedido, o qual deve ser substituído por outro que, admite o articulado superveniente apresentado e documentos com ele apresentados, bem como a modificação do pedido deduzida.
No mais, mantém-se o despacho recorrido.
As custas devidas pela presente apelação ficam a cargo de apelante e apelada, na proporção de 20% para a apelante e 80% para a apelada, cfr. art.º 527º do CPC, mais se dispensando as partes do pagamento da totalidade do remanescente da taxa de justiça.
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Lisboa, 28 de Março de 2023
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
Cristina Silva Maximiano