Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19991/24.0T8LSB-H.L1-6
Relator: CLÁUDIA BARATA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR DE ENTREGA DE IMÓVEL
VENDA DE IMÓVEL
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A venda do imóvel durante a pendência de acção apenas suscita uma questão que se prende com o plano da estabilidade da instância.
II - Operada a venda, a substituição da Recorrida, por se tratar de uma sucessão inter-vivos, tem natureza facultativa, uma vez que o transmitente ou cedente continua a deter legitimidade para a causa até à habilitação do adquirente ou cessionário (artigo 263º, nº 1 do Código de Processo Civil).
III - Nos termos do artigo 277º, al. e) do Código de Processo Civil é causa de extinção da instância a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.
IV - A substituição operada por força da venda do imóvel (que se encontra decidida no apenso E de incidente de habilitação de adquirente) em nada belisca a entrega do imóvel decretada em sede cautelar, que o Recorrente não cumpriu e que tem vindo a todo o custo protelar e evitar.
V - O direito de obter a entrega do imóvel que foi concedido pela 1ª Instância e confirmado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, não se torna inútil por força da substituição operada pela venda e pela sentença proferida no incidente de habilitação de adquirente.
VI - Não se verifica qualquer situação que gere inutilidade da lide, a entrega foi ordenada e confirmada pelo Tribunal Superior e, nesta fase processual, apenas está em causa o cumprimento dessa decisão, o qual ainda não ocorreu.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
AA, Requerido nos autos principais, veio requerer nos autos principais que:
“(…)
A) a Requerente no seu requerimento vem solicitar a “a junção aos autos do Doc.º 1 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais, o qual corresponde a uma Certidão Judicial da Sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa, Juiz 9, no âmbito do processo n.º 4981/23.8T8LSB-B (incidente de prestação de caução), mediante a qual se julgou validamente prestada a caução oferecida pela aqui recorrida, para cumprimento da condição fixada no Acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a 4 de junho de 2024, referência n.º 21648489, neste mesmo processo, para a execução da providência cautelar decretada.
Mais, se informam V. Exas. que, até à presente data, o requerido, aqui recorrente, ainda não procedeu, voluntariamente, ao cumprimento da providência cautelar ordenada nos presentes autos, por via da Decisão Final proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa, Juiz 9.”;
B) Ora, importa referir que com o presente procedimento cautelar a Requerente pretende a entrega do imóvel designado Hotel das Flores;
C) Porém, e apesar de ter sido proferida decisão a ordenar a entrega do imóvel ao Requerente, a natureza provisória e instrumental da decisão proferida afasta a sua exequibilidade;
D) Na verdade, não poderá deixar de se entender, que a decisão proferida nestes autos encerra uma verdadeira decisão judicial, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 703º, alínea a) e 705º do C.P.C., com as características da coercibilidade e executoriedade;
E) Por conseguinte, enquanto providência cautelar decretada, a sua eficácia na salvaguarda do direito ameaçado, quer na ausência de cumprimento voluntário, quer quando a natureza da decisão o imponha, fica dependente dos mecanismos que permitam a sua execução;
F) Efetivamente, a medida adequada à execução coersiva do presente procedimento cautelar não ocorre no mesmo, pois este tem uma natureza provisória e não executiva;
G) Nessa medida, o meio processual necessário e adequado para a execução da decisão proferida neste procedimento cautelar, será a execução da decisão, num processo executivo;
H) Nesse sentido temos o AC. do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 24-09-2020, no proc. 624/17.7T8VNF.G1, disponível em www.dgsi.pt:
“2- Outras existem que face à natureza da decisão, os seus efeitos práticos estão dependentes da cooperação espontânea do requerido ou em que, face ao não acatamento da medida, se exige a intervenção do tribunal com vista ao seu cumprimento coercivo.
3 - Nestes casos, como em outros em que está em causa o pagamento de uma quantia certa, entrega de coisa certa, prestação de facto positivo ou negativo, o requerente tem o ónus de impulsionar a sua execução, sob pena de ineficácia do procedimento.
4 - Nessa medida, não poderá deixar de se entender, que a decisão proferida no procedimento cautelar encerra uma verdadeira decisão judicial, nos termos e para os efeitos do disposto pelos artigos 703º alínea a) e 705º do C.P.C., com as características da coercibilidade e executoriedade.”;
I) Deste modo, estamos perante um erro na forma de processo, cabendo à Requerente, caso assim o entenda, tomar a iniciativa de iniciar a ação executiva para entrega de coisa certa;
J) Assim, e face ao exposto, requer-se que seja ordenada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
(…).”
*
No dia 31 de Janeiro de 2025 foi proferido despacho nos seguintes termos:
“(…)
Requer o requerido a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, aduzindo, em resumo, que o requerente deveria promover uma acção executiva para obter o efectivo cumprimento do decidido em sede cautelar e que, em função do que fora requerido pelo requerente perante o C. Supremo Tribunal de Justiça, existiria um erro na forma do processo.
Em primeiro lugar, cabe notar que o requerimento que terá sido apresentado pela requerente (e no qual se filia a argumentação do requerido) não foi dirigido a este tribunal, pelo que sobre ele não cabe emitir qualquer pronúncia.
Em segundo lugar, depreende-se do transcrito teor daquele requerimento que, no que concerne à adopção de medidas coercivas, o requerente nele nada requereu, pelo que é manifestamente desajustada a concitação da figura do erro na forma do processo.
Em terceiro lugar, observa-se que a inutilidade superveniente da lide apenas ocorre quando a pretensão deduzida obtém acolhimento fora dos quadros do processo, o que, preclaramente, não é o caso.
Em quarto lugar, alerta-se o requerido que, sem prejuízo das medidas executivas requeridas para a sua efectivação, a falta de cumprimento da decisão cautelar é criminalmente punível (artigo 375.º do Código de Processo Civil).
Na confluência destas considerações, conclui-se pelo indeferimento do requerido.
Pelo exposto, indefiro o requerimento em apreço.
(…)”.
*
Inconformado, veio o Requerido Martim Afonso Carvalho de Melo interpor recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
“A. Nos termos do nº 1 do artigo 362º do CPC, sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer providência cautelar adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.
B. Ora, a ora Recorrida deduziu providência cautelar comum, nos termos do disposto nos artigos 362º e seguintes do CPC., e fundamentou o seu pedido alegando que a sua sobrevivência está dependente da urgente desocupação do seu imóvel pelo Recorrente, de forma a permitir a retoma das diligências para a promoção de venda do Palácio das Flores e, assim, por termo aos incumprimentos alegados pelo Fundo BlueCrow.
C. E que só dessa forma a Recorrida poderá impedir o vencimento antecipado da sua divida para com o Fundo BlueCrow e, em consequência, evitar novamente numa situação de insolvência.
D. No caso em apreço, foi proferida sentença em 12 de fevereiro de 2024, a qual julgou procedente a providência cautelar e, em consequência, foi ordenada a entrega do Palácio das Flores à Recorrida, livre e desocupado de pessoas e bens, bem como, todas as chaves de acesso ao mesmo.
33. O ora Recorrente, não se conformando com tal decisão, apresentou recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa e por Acórdão proferido em 04 de junho de 2024, manteve a decisão proferida em primeira instância.
34. Mais uma vez, inconformado com a referida decisão, em 27 de junho de 2024, o ora Recorrente, AA, veio interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo que, por acórdão proferido em 07 de Novembro de 2024, foi proferida decisão de não admissão do recurso de revista e julgada extinta a instância recursiva.
Acresce que,
E. Em 14 de agosto de 2024, a ora Recorrida, Hotel das Flores, S.A. representada pelos seus administradores, procedeu à venda do imóvel denominado “Palácio das Flores” à sociedade Afáveis & Ponderados, Lda., pelo montante de € 15.600.000,00 (quinze milhões e seiscentos mil euros).
F. O que demonstra que, não só, a ocupação do imóvel por parte do ora Recorrente, não consubstanciou qualquer impedimento à concretização da referida venda, como também, os credores da ora Recorrida, mais concretamente, o Fundo BlueCrow, já se encontram integralmente ressarcidos das quantias emprestadas.
Mais,
G. A ora Recorrida, Hotel das Flores, S.A. também já se encontra dotada dos meios financeiros necessários para assumir o cumprimento das suas obrigações e, por conseguinte, encontra-se afastada qualquer hipótese de ser declarada a insolvência da sociedade.
H. Nessa senda, atendendo a que, a pretensão que a Recorrida, Hotel das Flores, S.A. pretendia alcançar – entrega imediata e urgente do imóvel por parte do Recorrente com vista a proceder à sua alienação, a fim de evitar a sua declaração de insolvência – já foi concretizada, é por demais evidente que, não existe qualquer justificação para o prosseguimento dos autos de providência cautelar.
I. Pelo que, o ora Recorrente apresentou requerimento solicitando a extinção da instância, com fundamento em inutilidade superveniente da lide, nos termos e ao abrigo do disposto na alínea e) do art. 277º do Código Processo Civil.
Por outro lado,
J. A pretensão da Recorrida não pode igualmente manter-se, dado que, a sociedade, Hotel das Flores, S.A. já não é a dona e legitima proprietária do imóvel e, por conseguinte, não lhe assiste legitimidade para requerer a entrega do imóvel.
K. Nessa medida, atendendo a que, a Recorrida já não detém a qualidade de proprietária do imóvel, é por demais evidente que, não pode agir como tal, exigindo que, seja reconhecida nessa qualidade e, como decorrência dessa qualidade lhe seja conferida a entrega do imóvel.
L. Importa ainda referir que, a Recorrida, Hotel das Flores, requereu a presente providência cautelar não especificada tendo em vista evitar uma lesão grave e dificilmente reparável do direito, como a alegada possibilidade de declaração de insolvência.
M. No entanto, a lesão grave e dificilmente reparável do direito alegada pela Recorrida, deixou de existir, pois já ocorreu a venda do imóvel objeto da presente providência cautelar e, dessa forma, ficou com meios financeiros para pagar aos seus credores.
N. Ora, a inutilidade superveniente da lide ocorre quando, por factos ocorridos após ter sido proferida a decisão que decretou a providência cautelar, a pretensão da Recorrida não se pode manter, por virtude do desaparecimento de um requisito fundamental para providência cautelar, a lesão grave e dificilmente reparável.
O. A necessidade da tutela através da providência já não se justifica, não sendo também lícito realizar actos inúteis (art. 130º do CPC).
P. Nessa medida, o douto Tribunal a quo deveria ter declarado a inutilidade superveniente da lide, em resultado de um dos requisitos da providência cautelar- o periculum em mora-ter deixado de existir.
Q. Uma vez que, a providência cautelar pretende acautelar ou evitar um prejuízo, e se este já não existe, a mesma deixou de ter função útil.
R. Importa referir ainda que, o facto suscetível de determinar a extinção da instância por inutilidade da lide, além de dever ser superveniente, ou seja, de verificação ulterior, deve encerrar, em si, virtualidades que nos permitam concluir que o resultado ou efeito jurídico visado com a providência cautelar se mostra alcançado.
S. No caso em apreço, a necessidade de tutela através da providência já não se justifica, pois a finalidade que se preconizava salvaguardar ficou vazia de conteúdo.
T. Deste modo, ficou claramente demonstrado que o douto despacho recorrido fez uma errada aplicação do direito aos factos em causa,
U. Pelo que, deve o Tribunal ad quem extinguir a presente providência cautelar com fundamento em inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no artigo 277º, al. e) do CPC.
Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas. deve ser concedido provimento ao presente recurso de apelação e, consequentemente, deverá proceder-se à revogação do douto despacho recorrido, decidir-se em conformidade com as conclusões, assim se fazendo a costumada
JUSTIÇA!”
*
A Recorrida contra-alegou concluindo:
“a) Que, nos termos do disposto nos artigos 627.º, 641.º, n.ºs 1 e 5, 645.º, n.º 2, e 647.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, (i) seja o recurso interposto pelo requerido fixado como sendo ordinário, designadamente de apelação, (ii) seja determinado o efeito meramente devolutivo do referido recurso e (iii) seja ordenada a subida do mesmo em separado; e
b) Que, nos termos do disposto no n.º 5, do artigo 638.º do Código de Processo Civil, sejam admitidas as Contra-Alegações aqui apresentadas pela requerente, as quais deverão ser oportunamente remetidas para o Tribunal da Relação de Lisboa.”
*
Da consulta via electrónica dos autos de providência que constituem o apenso A resulta que:
- Hotel das Flores – Gestão e Exploração Hoteleira, S.A., aqui recorrida, veio intentar providência cautelar não especificada contra o aqui Recorrente, AA, peticionando que:
“Que seja julgado procedente, por provado, o presente procedimento cautelar comum não especificado e, em consequência, que seja ordenada a imediata desocupação do Palácio das Flores (correspondente ao prédio urbano em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, composto por edifício de rés-do-chão, sobreloja, 1.º e 2.º andares com terraço e jardim, e 3.º. andar com terraço e águas furtadas e ainda uma cave, sito na Rua 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º .../...93101 da freguesia de São Paulo, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ... da freguesia de Misericórdia, concelho e distrito de Lisboa) pelo Requerido, e a sua entrega à Requerente, livre e desocupado de pessoas e bens, bem como todas as chaves de acesso ao mesmo:
i. Por a Requerente ser a única e legítima proprietária do Palácio das Flores e, atendendo à lesão grave e de difícil reparação que a demora na entrega do Palácio das Flores à Requerente irá causar a esta, nos termos do disposto nos artigos 7.º, do Decreto-Lei n.º 224/84, de 6 de julho, 6.º, n.ºs 1 e 2, 64.º, n.º 1, alínea b), 397.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, 261.º, n.º 1, 280.º, n.º 2, 287.º, n.º 2, 294.º, 352.º, 358.º, n. 2, 376.º, n.º 2, 762.º, n.º 2, 1311.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, 362.º, n.º 1, 368.º, n.ºs 1.º e 2, e 581.º, n.º 4, do Código de Processo Civil; ou ii. Caso assim não se o entenda, o que apenas por mero dever de patrocínio se admite, por se encontrarem demonstrados todos os requisitos de que depende o decretamento da providência aqui requerida.
b) Que, em consequência, e na pendência da respetiva ação de reivindicação a propor nos termos do disposto no artigo 364.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, seja decretada a providência cautelar de entrega do Palácio das Flores à Requerente, ordenando-se, para este efeito, que o Requerido lhe entregue o referido imóvel, livre e desocupado de pessoas e bens, bem como todas as chaves de acesso ao mesmo.
c) Que, desde já, seja ordenado o ofício às autoridades competentes (i.e., à Polícia de Segurança Pública de Lisboa) com vista a acompanhar e assegurar o cumprimento da presente providência cautelar, i.e., a efetiva entrega do Palácio das Flores à Requerente, com recurso a arrombamento se necessário.
Mais se requer, muito respeitosamente, a V. Exa. que seja, ainda, dispensado o contraditório prévio do Requerido, por a simples demora no decretamento da providência aumentar o perigo de lesão grave e de difícil reparação que com a mesma se pretende acautelar, e ao abrigo do disposto no artigo 366.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.”
- por despacho datado de 15 de Março de 2023 foi indeferido o pedido de dispensa de audição prévia do requerido e consequentemente foi ordenada a sua citação.
- foi deduzida oposição.
- procedeu-se à realização de audiência final.
- por sentença datada de 12 de Fevereiro de 2024 foi julgada procedente a providência cautelar e, em consequência, foi determinada a entrega do Palácio das Flores, devidamente id. noa autos, à Requerente, ordenando-se, para este efeito, que o Requerido, aqui Recorrente, lhe entregue o referido imóvel, livre e desocupado de pessoas e bens, bem como todas as chaves de acesso ao mesmo.
Foi ainda determinado que, caso seja necessário e na medida do necessário, o recurso à força pública para assegurar o cumprimento do ora ordenado, com recurso a arrombamento se necessário.
- O Requerido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
- Por Acórdão datado de 04 de Junho de 2024 foi determinado manter a decisão de procedência do procedimento cautelar, sem prejuízo da execução da providência ficar condicionada à prévia prestação de caução pela requerente no valor de trezentos mil euros por depósito ou mediante garantia bancária, a qual só se extinguirá com o primeiro de dois eventos: o trânsito em julgado da acção principal a intentar com total procedência a favor da requerente ou três anos após o trânsito em julgado da decisão que decrete a caducidade da providência.
- O aqui Recorrente interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual não foi admitido por inexistirem os pressupostos da contradição previstos na al. d), do n.º 2, do art.º 629.º do Código de Processo Civil.
- Dos autos que constituem o apenso E - incidente de habilitação de adquirente – consta que o imóvel objecto da lide foi vendido a terceiro no dia 14 de Agosto de 2024, tendo no âmbito deste apenso E, sido proferida decisão em 16 de Maio de 2025 que julgou procedente o incidente e declarou “habilitada a Requerida “Afáveis & Ponderados, Lda.” para, em substituição da Requerida “Hotel das Flores - Gestão e Exploração Hoteleira, S.A.”, prosseguir na acção tramitada nos autos principais na qualidade de Autora.”
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. O objecto e a delimitação do recurso
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do Recorrente nos termos dos artigos 5º, 635º, nº3 e 639º nºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil.
A delimitação objectiva do recurso tem sempre que se balizar pelo teor das conclusões da recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso, porquanto os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova.
Efectuada esta breve exposição e ponderadas as conclusões apresentadas, as questões a dirimir são:
- apurar se deverá ou não ser declarada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
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III. Os factos
Os constantes do relatório que antecede.
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IV. O Direito
Com o presente recurso visa o Apelante que seja revogado o despacho proferido e que seja proferido despacho de extinção da providência cautelar com fundamento em inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no artigo 277º, al. e) do Código de Processo Civil.
Para sustentar a sua posição alega o Recorrente que a Recorrida deduziu providência cautelar comum invocando que a sua sobrevivência estava dependente da urgente desocupação do seu imóvel pelo Recorrente, de forma a permitir a retoma das diligências para a promoção de venda do Palácio das Flores e, assim, por termo aos incumprimentos alegados pelo Fundo BlueCrow, pois, só dessa forma poderia impedir o vencimento antecipado da sua divida para com o Fundo BlueCrow e, em consequência, evitar novamente numa situação de insolvência.
Foi proferida sentença em 12 de Fevereiro de 2024, a qual julgou procedente a providência cautelar e, em consequência, foi ordenada a entrega do Palácio das Flores à Recorrida, livre e desocupado de pessoas e bens, bem como, todas as chaves de acesso ao mesmo. Interposto recurso, a decisão foi mantida pelo Tribunal Superior.
No dia 14 de Agosto de 2024, a ora Recorrida, Hotel das Flores, S.A. representada pelos seus administradores, procedeu à venda do imóvel denominado “Palácio das Flores” à sociedade Afáveis & Ponderados, Lda., pelo montante de € 15.600.000,00, o que demonstra que, não só, a ocupação do imóvel por parte do ora Recorrente, não consubstanciou qualquer impedimento à concretização da referida venda, como também, os credores da ora Recorrida, mais concretamente, o Fundo BlueCrow, já se encontram integralmente ressarcidos das quantias emprestadas.
Encontra-se afastada a hipótese de ser declarada a insolvência da sociedade.
Não existe qualquer justificação para o prosseguimento dos autos de providência cautelar.
A tanto acresce que a pretensão da Recorrida não pode igualmente manter-se, dado que, a sociedade, Hotel das Flores, S.A. já não é a dona e legitima proprietária do imóvel e, por conseguinte, não lhe assiste legitimidade para requerer a entrega do imóvel.
A inutilidade superveniente da lide ocorre quando, por factos ocorridos após ter sido proferida a decisão que decretou a providência cautelar, a pretensão da Recorrida não se pode manter, por virtude do desaparecimento de um requisito fundamental para providência cautelar, a lesão grave e dificilmente reparável. Uma vez que, a providência cautelar pretende acautelar ou evitar um prejuízo, e se este já não existe, a mesma deixou de ter função útil.
Em primeiro lugar, atento o objecto do recurso, é de referir que apenas cumpre apreciar se se verificam ou não circunstâncias que conduzam, ou não, á extinção da instância por inutilidade superveniente da lide e adiantamos desde já que não acompanhamos a posição do Recorrente.
Como facilmente se constata dos autos que constituem o apenso E (incidente de habilitação de adquirente) o imóvel foi vendido na pendência dos autos principais de acção de processo comum, mais precisamente no dia 14 de Agosto de 2024 (os autos principais deram entrada em juízo no dia 13 de Agosto de 2024) e também na pendência dos autos apensos de providência cautelar (estes deram entrada em 22 de Fevereiro de 2023).
A venda do imóvel apenas suscita uma questão que se prende com o plano da estabilidade da instância.
Em conformidade com o disposto no artigo 260º do Código de Processo Civil, “citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”.
De acordo com o artigo 262º, al. a) do Código de Processo Civil “a instância pode modificar-se quanto às pessoas: em consequência da substituição de alguma das partes, quer por sucessão, quer por acto entre vivos, na relação substantiva em litígio”.
Preceitua ainda o artigo 263º, nº 1 e 2 do Código de Processo Civil, que:
1 – no caso de transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo.
2 – A substituição é admitida quando a parte contrária esteja de acordo e, na falta de acordo, só deve recusar-se a substituição quando se entenda que a transmissão foi efectuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária”.
Dispõe o artigo 356º do Código de Processo Civil que:
“1 - A habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, faz-se nos termos seguintes:
a) Lavrado no processo o termo da cessão ou junto ao requerimento de habilitação, que é autuado por apenso, o título da aquisição ou da cessão, é notificada a parte contrária para contestar; na contestação pode o notificado impugnar a validade do acto ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo;
b) Se houver contestação, o requerente pode responder-lhe e em seguida, produzidas as provas necessárias, é proferida decisão; na falta de contestação, verifica-se se o documento prova a aquisição ou a cessão e, no caso afirmativo, declara-se habilitado o adquirente ou cessionário.
2 - A habilitação pode ser promovida pelo transmitente ou cedente, pelo adquirente ou cessionário, ou pela parte contrária; neste caso, aplica-se o disposto no número anterior, com as adaptações necessárias”.
In casu, operada a venda, a substituição da Recorrida, por se tratar de uma sucessão inter-vivos, tem natureza facultativa, uma vez que o transmitente ou cedente continua a deter legitimidade para a causa até à habilitação do adquirente ou cessionário (artigo 263º, nº 1 do Código de Processo Civil).
Ora, no caso que aqui apreciamos o incidente de habilitação de adquirente deu entrada em Tribunal no dia 03 de Março de 2025 e no dia 16 de Maio de 2025 foi proferida decisão que declarou habilitada a Requerida “Afáveis & Ponderados, Lda.” para, em substituição da Requerida “Hotel das Flores - Gestão e Exploração Hoteleira, S.A.”, prosseguir na acção tramitada nos autos principais na qualidade de Autora.
Nos termos do artigo 277º, al. e) do Código de Processo Civil é causa de extinção da instância a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.
Conforme defende o Tribunal da Relação de Lisboa no Acórdão proferido em 06 de Junho de 2024, disponível in www.dgsi.pt, “A instância extingue-se sempre que se torne, supervenientemente, inútil, ou seja, sempre que por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão que o autor ou requerente actuava na acção se mostrar satisfeita.
José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª Edição, Almedina, Coimbra, página 561, defendem que “A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio.
Ao invés do defendido pelo Recorrente, a substituição operada por força da venda do imóvel (que se encontra decidida no apenso E de incidente de habilitação de adquirente) em nada belisca a entrega do imóvel decretada em sede cautelar, que o Recorrente não cumpriu e que tem vindo a todo o custo protelar e evitar. O direito de obter a entrega do imóvel que foi concedido pela 1ª Instância e confirmado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, não se torna inútil por força da substituição operada pela venda e pela sentença proferida no incidente de habilitação de adquirente.
Não é também sustentável a posição do Recorrente quando alega que com a venda do imóvel a providência cautelar deve ser extinta por inutilidade superveniente em virtude de não se manterem os pressupostos que justificaram a sua procedência, ou seja, que vendido o imóvel a questão da insolvência da Requerida (à data da sentença) já não se coloca, o que, no seu entender, conduz à inutilidade superveniente da lide.
Não se verifica qualquer situação que gere inutilidade da lide, a entrega foi ordenada e confirmada pelo Tribunal Superior e, nesta fase processual, apenas está em causa o cumprimento dessa decisão, o qual ainda não ocorreu.
Mais se refira que a entrega, por força do incidente de habilitação de adquirente, deve ser efectivada junto da nova proprietária que foi julgada habilitada.
Improcede, nesta medida e em toda a linha de argumentação, o recurso interposto pelo Recorrente.
*
V. Decisão
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em julgar improcedente a apelação e consequentemente:
a. Manter o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 11 de Setembro de 2025
Cláudia Barata
Maria Teresa F. Mascarenhas Garcia
Nuno Luís Lopes Ribeiro