Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
22492/21.4T8LSB-A.L1-6
Relator: CLÁUDIA BARATA
Descritores: DOCUMENTOS
JUNÇÃO
OCORRÊNCIA POSTERIOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – O artigo 423º do Código de Processo Civil contempla três momentos em que é admissível a junção de documentos aos autos. Num primeiro momento, os documentos devem ser juntos com os respectivos articulados, sem cominação de qualquer sanção. Num segundo momento a junção de documentos é possível até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, com cominação de multa, excepto se a parte alegar e provar que os não pode oferecer antes. Por último, é ainda admissível a junção de documentos até ao encerramento da discussão em 1.ª instância, mas apenas para aqueles documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento ou se tornem necessários por virtude de ocorrência posterior.
II - Incumbe à parte que pretende a junção do/s documento/s, até ao encerramento da discussão em 1.ª instância, alegar e demonstrar que a sua apresentação não foi possível até aquele momento, ou que a sua apresentação só se tornou possível em virtude de ocorrência posterior.
III - A “ocorrência posterior” a que alude o nº 3 do artigo 423º do Código de Processo Civil não abarca o depoimento da testemunha que tenha sido arrolada.
IV - O depoimento de uma testemunha apenas integra o conceito de “ocorrência posterior” com vista à junção de documentos quando se reportar a factos novos, não alegados nos autos e instrumentais.
V - O conceito de “ocorrência posterior” não pode referir-se a factos essenciais, isto é a factos que, nos termos do artigo 5º do Código de Processo Civil, constituam fundamento da acção ou da defesa.
VI – Assim, a “ocorrência posterior” só pode dizer respeito a factos instrumentais ou relativos a pressupostos processuais.
VII – O poder/dever que é conferido ao Juiz pelo artigo 411º do Código de Processo Civil é limitado quando se trata de prova, uma vez que o ónus de prova cabe às partes e não ao Tribunal por respeito, também, aos princípios da igualdade, da preclusão e da auto-responsabilidade das partes.
VIII - Assim, o princípio do inquisitório plasmado no artigo 411º do Código de Processo Civil deverá ser limitado a situações em que o Juiz entenda que determinado documento é essencial para a descoberta da verdade.
IX – Quando a parte só em audiência de julgamento é que tem conhecimento da existência de documentos que se encontram na posse da testemunha em arquivo pessoal e requer a sua junção, é de admitir a junção ao abrigo do disposto no artigo 423º, nº 3, 1ª parte do Código de Processo Civil, por configurar uma situação de superveniência subjectiva.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
Intranstec – Intermediação e Transferência de Tecnologia, Unipessoal, Lda, propôs acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra Lusomedicamenta – Sociedade Técnica Farmacêutica, S.A., peticionando a condenação da Ré a informar a Autora das datas do início da comercialização dos medicamentos de associação fixa provenientes da ADMED, nomeadamente o Asutan® (rosuvastatina + amlodipina), o Colroset® (ezetimiba + rosuvastatina), o Mepranil® (ramipril com amlopidina) e o Paniltri® (ramipril, amlodipina) hidroclorotiazida), o Altensil® (candesartan com amlodipina) e o Estasp® (rosuvastatina com acido acetil salicílico); a informar a Autora do montante das vendas líquidas de cada um desses medicamentos desde a data de início de comercialização de cada deles. Caso não o faça, ser condenada a pagar a título de sanção pecuniária compulsória a quantia de montante não inferior a €500,00 por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações referidas, nos termos do artigo 829º-A do Código Civil. A pagar à Autora as comissões de 1,5% sobre essas vendas liquidas, vencidas desde a data do início da comercialização dos medicamentos em causa até à presente data, a liquidar a final, a pagar à Autora as comissões de 1,5% sobre essas vendas liquidas, vincendas desde a presente data até à decorrência de um período de cinco anos sobre o início da comercialização dos medicamentos em causa, a liquidar a final, e a pagar à Autora a quantia de juros vencidos sobre os montantes devidos, calculados desde as datas em que deveriam ter sido pagos, a liquidar a final.
Foi apresentada contestação e exercido o contraditório quanto à matéria de excepção.
Foi dispensada a realização de audiência prévia, foi fixado o objecto do litígio e fixados os temas de prova, não tendo sido apresentadas reclamações.
*
Procedeu-se à realização de audiência de julgamento.
*
Em sede de audiência de julgamento, realizada no dia 20 de Março de 2025, o Ilustre Mandatário da Ré, aqui Recorrente, requereu o seguinte:
“REQUERIMENTO
A Ré tendo em conta o depoimento da testemunha Dr. AA, onde o mesmo referiu a existência de comunicações concretas com BB, de 17 de novembro de 2014, de 20 de janeiro de 2015, bem como de 1 de outrubro de 2015, envolvendo comunicações feitas diretamente com o Dr. AA e que estava no seu arquivo pessoal, dada a pertinência dos mesmo para a prova dos contactos anteriores a fevereiro de 2016 com a Adamed , vem requerer a junção destas comunicações aos autos, nos termos do artigo 423.º n.º 3 do Código de Processo Civil, tendo em conta que, a apresentação tardia se deve ao facto destas comunicações estarem no arquivo desta testemunha em particular, sendo certo que a outra pessoa da Lusomedicamenta envolvida nestas comunicações, a Dr.ª CC, conforme ficou afirmado pela mesma no seu depoimento, já não trabalha à vários anos na Lusomedicamenta, não tendo a Lusomedicamenta, aqui Ré, forma de ter apresentado anteriormente estes documentos, mas dada a pertinência supra referida, entende-se que devem ser aceites pelo tribunal, o que se requer.
Mais se requer que, atendendo a que as comunicações estão redigidas em inglês, seja concedido um prazo de 5 dias para apresentar as respetivas traduções em português."
*
A Autora, Recorrida, nada teve a opor.
*
E, ainda nesse dia, em audiência de julgamento, foi proferido o seguinte despacho:
“Uma vez que os documentos cuja junção é requerida se encontravam disponíveis para a parte em momento anterior à propositura da presente ação e mais considerando que a sua pertinência não resultou de qualquer ocorrência posterior, ao abrigo do disposto do artigo 423º do Código Processo Civil indefere-se a requerida junção dos documentos.”
*
Inconformada, veio a Ré interpor recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
“(A) Em 20.03.2025 a Recorrente apresentou o Requerimento com a Referência ..., no qual peticionou o seguinte:
“A Ré, tendo em conta o depoimento da testemunha Dr. AA, onde o mesmo referiu a existência de comunicações concretas com BB, de 17 de novembro de 2014, de 20 de janeiro de 2015, bem como de 1 de outubro de 2015, envolvendo comunicações feitas diretamente com o Dr. AA e que estava no seu arquivo pessoal, dada a pertinência dos mesmo para a prova dos contactos anteriores a fevereiro de 2016 com a Adamed , vem requerer a junção destas comunicações aos autos, nos termos do artigo 423.º n.º 3 do Código de Processo Civil, tendo em conta que, a apresentação tardia se deve ao facto destas comunicações estarem no arquivo desta testemunha em particular, sendo certo que a outra pessoa da Lusomedicamenta envolvida nestas comunicações, a Dr.ª CC, conforme ficou afirmado pela mesma no seu depoimento, já não trabalha há vários anos na Lusomedicamenta, não tendo a Lusomedicamenta, aqui Ré, forma de ter apresentado anteriormente estes documentos, mas dada a pertinência supra referida, entende-se que devem ser aceites pelo tribunal, o que se requer.
Mais se requer que, atendendo a que as comunicações estão redigidas em inglês, seja concedido um prazo de 5 dias para apresentar as respectivas traduções em português.”
(B) A Autora não se opôs à junção, o que indicia também a legalidade e pertinência do requerido;
(C) Sucede que o Tribunal a quo proferiu o Despacho objeto do presente recurso, no qual indeferiu a junção aos autos dos referidos documentos, uma vez que “os documentos cuja junção é requerida se encontravam disponíveis para a parte em momento anterior à propositura da presente ação e mais considerando que a sua pertinência não resultou de qualquer ocorrência posterior”.
(D) Sem prescindir, tais comunicações escritas são factos novos e instrumentais, pois a Ré tinha apenas a convicção, dado o tempo já decorrido, que apenas haveria comunicações telefónicas, para o período em causa, tal como alegado no artigo 51 da contestação;
(E) Assim, não obstante a referida testemunha AA ter detalhado o teor dessas comunicações escritas, e sem prejuízo da necessária valoração que o Tribunal fará desse depoimento, entendeu a Ré que a junção dessas comunicações por e-mail eram de manifesta pertinência para os presentes autos, pois comprovam a existência de comunicações diretas e indiretas com a Adamed, por parte da Ré, antes da data em que a Adamed alega ter feito o primeiro contacto com a Adamed (vide pontos 3, 8 e 9 dos Temas da Prova).
(F) Na verdade, conforme explicado pela testemunha no seu depoimento, a mesma trocou e-mails com BB (intermediária com Adamed), em 17 de novembro de 2014 e 20 de janeiro de 2015, precisamente sobre os dossiers de associação fixa da Adamed (em causa nos autos).
(G) E essa mesma testemunha dirigiu diretamente um e-mail à Adamed em 1 de Outubro de 2015, solicitando uma reunião com representantes da mesma por parte de CC, à data chefe de departamento da Ré, na feira da CPIH de Madrid, a ter lugar no dia 15 de Outubro de 2015, confirmando depois que essa reunião teve efetivamente lugar.
(H) O Despacho recorrido, ao rejeitar o meio de prova requerido pela Recorrente – i.e. os documentos – incorre, salvo o devido respeito, para fundamentar tal rejeição, numa errada interpretação e aplicação do Direito, mais concretamente do artigo 423.º n.º3 do CPC.
(I) O requerimento da Ré tinha como fundamento, quanto à junção apenas naquele momento, o facto de, apenas com o depoimento do Dr. AA – na audiência de discussão e julgamento do dia 20.03.2025 – se ter tornado possível à Ré/Recorrente tomar conhecimento da existência dessas comunicações que, como a própria testemunha afirmou, se encontravam no arquivo pessoal da mesma, o que, aliado ao facto de que a outra pessoa nelas envolvida – Dra. CC, também testemunha indicada pela Ré/Recorrente – já não trabalhar na Recorrente há vários anos, impossibilitou o conhecimento e apresentação prévia dos documentos.
(J) Assim, não poderia a Ré/Recorrente ter juntado os documentos em momento anterior, consubstanciando, portanto, uma situação de superveniência subjectiva do documento.
(K) A este propósito, esclarecem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, que, ultrapassando o limite temporal do n.º2 do artigo 423.º do CPC, “apenas são admitidos documentos cuja junção não tenha sido possível, atenta a verificação de um impedimento que não pôde ser ultrapassado em devido tempo, ou quando se trate de documentos objetiva ou subjectivamente supervenientes, isto é, que apenas foram produzidos ou vieram ao conhecimento da parte depois daquele momento”. [realces nossos]
(L) Pelo que, tal como é exigido pela jurisprudência, o documento “só foi conhecido pela parte – ou esta só teve acesso a ele – em momento posterior”, diga-se, na data de audiência e discussão de julgamento.
(M) Mais, é perfeitamente razoável e atendível que, estando as comunicações na posse da testemunha, designadamente, no seu arquivo pessoal, e tendo sido proferidas há quase dez anos, não era exigível à Ré/Recorrente ter real e efectivo conhecimento prévio das mesmas, nem poderá a tal facto ser imputada falta de diligência da Ré/Recorrente.
(N) É que, salvo o devido respeito, contrariamente ao que o douto Despacho recorrido menciona, os documentos cuja junção é requerida não se encontravam disponíveis para a parte em momento anterior à propositura da presente ação, não sendo legitima uma presunção de que documentos na posse de um trabalhador de uma parte são do imediato e automático conhecimento dessa parte.
(O) Qualquer outra solução seria incompreensível, considerando que a Recorrente sempre teria interesse em apresentar os documentos mencionados, uma vez que estes corroboram e validam os factos por ela apresentados.
(P) E se dúvidas houvesse sobre essa impossibilidade de apresentação prévia, bastaria ao Tribunal, ao abrigo do princípio da colaboração, inquirir directamente a testemunha que acabava de se referir aos documentos no seu depoimento e os havia disponibilizado no termo do depoimento, pois trazia-os consigo.
(Q) Ainda que de outro modo se entenda, sempre se terá de atender ao princípio do inquisitório, vertido no artigo 411.º do CP e do qual resulta que “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
(R) Prendendo-se o conteúdo os documentos que se protesta juntar com prova dos contactos estabelecidos pela Ré com a Adamed anteriores a 2016 e 2014 – tema de prova fixado pelo despacho saneador – a junção destes demonstra-se de extrema pertinência para o apuramento da matéria controvertida.
(S) Neste seguimento, conforme resulta do Acórdão já mencionado, “Daqui se extrai que o poder inquisitório do juiz na instrução da causa pode resultar de iniciativa oficiosa, ordenando a realização de diligência probatória que se lhe afigure útil à descoberta da verdade material. Porém, tal poder inquisitório também se manifesta relativamente aos meios de prova propostos pelas partes, na medida em que se revelem necessários ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio”.
(T) Verifica-se assim que, ao decidir pelo indeferimento do meio de prova requerido pela Recorrente, o Tribunal a quo não interpretou corretamente o alcance da norma prevista no n.º 3 do artigo 423.º do CPC e, mesmo caso se entenda o contrário e salvo o devido respeito, não atuou de com o poder-dever que lhe é adstrito ao abrigo do artigo 411.º do CPC.
(U) Pelo que, foram violados os artigos 423.º n.º 3 e 411.º, ambos do CPC, devendo agora, em sede de recurso, ser revogado o Despacho e proferido outro, em sua substituição que se pronuncie pela admissibilidade do meio de prova requerido pela Recorrente.
Deverá assim o presente Recurso ser julgado procedente e revogado o Despacho recorrido, substituindo-o por outro que defira a junção dos meios de prova requeridos pela Recorrente.
Farão V.Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, o que é de inteira JUSTIÇA”
*
A Recorrida, Autora, veio contra alegar tendo apresentado nas suas contra alegações as seguintes conclusões:
“A) A não oposição da Autora à junção dos documentos tardiamente apresentados não indicia a legalidade e pertinência da junção dos mesmos.
B) A Ré/Recorrente não apresentou factos novos que legitimem a apresentação dos documentos em causa em momento posterior aos dos articulados.
C) Não existindo alguma superveniência subjectiva ou objectiva que amparem o desiderato da Ré/Recorrente.
D) Não estão verificados os pressupostos constantes do Artigo 423º nº 3 do CPC.
E) O princípio do inquisitório não deve ser entendido em termos absolutos, mas interligado e aplicado em articulação com os princípios do dispositivo, da preclusão e da auto-responsabilidade das partes.
F) Não foi violado o disposto no Artigo 411º do CPC.
Termos nos quais deve o presente recurso ser julgado improcedente e, consequentemente, mantido o despacho recorrido.
Farão V.Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, o que é de inteira JUSTIÇA”
*
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, em separado e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. O objecto e a delimitação do recurso
O objecto do recurso é definido pelas conclusões da recorrente nos termos dos artigos 5º, 635º, nº3 e 639º nºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil.
A delimitação objectiva do recurso tem sempre que se balizar pelo teor das conclusões da recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso, porquanto os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova.
No recurso, enquanto meio impugnatório de decisões judiciais, só tem de se suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal de 1ª instância.
Acresce ainda que o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio, mas sim uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Partindo desta premissa, o recorrente tem o ónus de alegar e de indicar, de acordo com o seu entendimento, as razões porque a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Por último, o Tribunal de recurso não está vinculado à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Efectuada esta breve exposição e ponderadas as conclusões apresentadas, as questões a dirimir são:
- apurar se os documentos deverão ser admitidos conforme pretende a apelante ao abrigo do disposto no artigo 423º, nº 3 do Código de Processo Civil ou ao abrigo do princípio do inquisitório nos termos do artigo 411º do Código de Processo Civil.
*
IV. O Direito
Com o presente recurso visa a recorrente que seja revogado o despacho proferido pelo Tribunal de 1ª Instância substituindo-o por outro que defira a junção dos meios de prova requeridos pela Recorrente.
Invoca a Recorrente que a Autora, aqui Recorrida, nada teve a opor à junção dos documentos e consequente tradução.
Conforme resulta da acta de audiência de julgamento a Autora não se opôs à requerida junção. O Tribunal não está vinculado à posição da Recorrida, ou seja, não é porque a Autora nada teve a opor que o Tribunal tem necessariamente de admitir a junção nos termos requeridos.
Perante o requerimento apresentado pela Recorrente em audiência de julgamento, independentemente da posição da Autora/Recorrida, cabe ao Tribunal aferir da tempestividade, legalidade e admissibilidade da junção de documentos.
Nestes termos, não colhe, nesta parte, o argumento esgrimido pela Recorrente.
O Tribunal de 1ª Instância não admitiu a junção aos autos dos documentos por entender que os documentos se encontravam disponíveis para a parte em momento anterior à propositura da presente acção e que a sua pertinência não resultou de qualquer ocorrência posterior.
Insurge-se a Recorrente invocando que as comunicações escritas são factos novos e instrumentais, sendo que tinha a convicção, dado o tempo já decorrido, que apenas haveria comunicações telefónicas, para o período em causa. A junção dessas comunicações por e-mail eram de manifesta pertinência para os autos, uma vez que comprovam a existência de comunicações directas e indirectas com a Adamed, por parte da Ré, antes da data em que a Adamed alega ter feito o primeiro contacto. Apenas com o depoimento do Dr. AA – na audiência de discussão e julgamento do dia 20.03.2025 – é que se tornou possível à Ré/Recorrente tomar conhecimento da existência dessas comunicações que, como a própria testemunha afirmou, se encontravam no arquivo pessoal da mesma, o que, aliado ao facto de que a outra pessoa nelas envolvida – Dra. CC, também testemunha indicada pela Ré/Recorrente – já não trabalhar na Recorrente há vários anos, impossibilitou o conhecimento e apresentação prévia dos documentos. Não poderia a Ré/Recorrente ter juntado os documentos em momento anterior, consubstanciando, portanto, uma situação de superveniência subjectiva do documento. O documento “só foi conhecido pela parte – ou esta só teve acesso a ele – em momento posterior”, diga-se, na data de audiência e discussão de julgamento.
Dispõe o artigo 423º do Código de Processo Civil que:
“1. Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2. Se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pode oferecer com o articulado.
3. Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.”
Este normativo contempla três momentos em que é admissível a junção de documentos aos autos.
Num primeiro momento, os documentos devem ser juntos com os respectivos articulados, sem cominação de qualquer sanção.
Num segundo momento a junção de documentos é possível até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, com cominação de multa, excepto se a parte alegar e provar que os não pode oferecer antes.
Por último, é ainda admissível a junção de documentos até ao encerramento da discussão em 1.ª instância, mas apenas para aqueles documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento ou se tornem necessários por virtude de ocorrência posterior.
José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, pág. 239 e 240, em anotação ao citado normativo, defendem que “Após os referidos 20 dias (anteriores à audiência final), a parte pode ainda apresentar o documento na 1ª instância, mas só em caso de superveniência (objectiva ou subjectiva) do documento (que foi impossível apresentar antes) ou em caso de ocorrência posterior que tenha tornado necessária a apresentação do documento (nº 2 do preceito citado). E só pode fazê-lo, em 1ª instância, até ao momento do encerramento da discussão, isto é, até ao momento em que terminam as alegações orais que têm lugar na audiência final (art. 604º-3-e)”.
Incumbe à parte que pretende a junção do/s documento/s, até ao encerramento da discussão em 1.ª instância, alegar e demonstrar que a sua apresentação não foi possível até aquele momento, ou que a sua apresentação só se tornou possível em virtude de ocorrência posterior.
A “ocorrência posterior” a que alude o nº 3 do artigo 423º do Código de Processo Civil não abarca o depoimento da testemunha que tenha sido arrolada (neste sentido vide anotação ao artigo 423º do Código de Processo Civil, António Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código do Processo Civil Anotado, vol. I, 2.ª ed., pág. 521).
O conceito de “ocorrência posterior” não pode referir-se a factos essenciais, isto é a factos que, nos termos do artigo 5º do Código de Processo Civil, constituam fundamento da acção ou da defesa, ou seja, a “ocorrência posterior” só pode dizer respeito a factos instrumentais ou relativos a pressupostos processuais (neste sentido vide José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, pág. 241).
António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, pág. 499 a 500, defendem que “O conceito de ocorrência posterior que legitima a entrada de documentos no processo não respeitará, por certo, a factos que constituam fundamento da acção ou da defesa (factos essenciais, na letra do art.º 5º), pois tais factos já hão de ter sido alegados nos articulados oportunamente apresentados ou, pelo menos, por ocasião da dedução de articulado de aperfeiçoamento (art.º 590º, n.º 4). Tão pouco respeita a factos supervenientes, pois a alegação deve ser acompanhada dos respectivos documentos, sendo esse o meio da sua entrada nos autos (art.º 588º, n.º 5). Portanto, no plano dos factos, a ocorrência posterior dirá somente respeito a factos instrumentais ou a facto relativo a pressupostos processuais”.
Para o Prof. Miguel Teixeira de Sousa “(…) os factos essenciais são aqueles que integram a causa de pedir ou o fundamento da excepção e cuja falta determina a inviabilidade da acção ou da excepção; - os factos instrumentais, probatórios ou acessórios são aqueles que indiciam os factos essenciais e que podem ser utilizados para a prova indiciária destes últimos; - finalmente, os factos complementares ou concretizadores são aqueles cuja falta não constitui motivo de inviabilidade da acção ou da excepção, mas que participam de uma causa de pedir ou de uma excepção complexa e que, por isso, são indispensáveis à procedência dessa acção ou excepção.
A cada um destes factos corresponde uma função distinta:- os factos essenciais realizam uma função constitutiva do direito invocado pelo autor ou da excepção deduzida pelo réu: sem eles não se encontra individualizado esse direito ou excepção (…); - os factos complementares possibilitam, em conjugação com os factos essenciais de que são complemento, a procedência da acção ou da excepção: sem eles a acção ou a excepção não pode ser julgada procedente; - por fim, os factos instrumentais destinam-se a ser utilizados numa função probatória dos factos essenciais ou complementares.
(…) os factos essenciais são aqueles que permitem individualizar a situação jurídica alegada na acção ou na excepção; - os factos complementares são aqueles que são indispensáveis à procedência dessa acção ou excepção, mas não integram o núcleo essencial da situação jurídica alegada pela parte.” (in Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 70 e 71).
No caso em apreço, em primeiro lugar, ao invés do alegado pela Recorrente/Ré, não se trata de documentos para prova de factos instrumentais, mas sim para factos essenciais à defesa, motivo pelo qual não colhe este argumento.
Tal como defendem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro a respeito da junção documental que se “tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior”, esta junção destina-se nomeadamente à prova ou contraprova de factos ocorridos após o termo do prazo previsto no número anterior, a “apresentação não se torna necessária em virtude de ocorrência posterior quando uma testemunha alude a um facto, ainda que em sentido contrário ao pretendido pelo apresentante, se se tratar de um facto essencial já alegado – ou de um facto puramente probatório” (in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014, 2.ª edição, Almedina, pág. 370.)
Neste sentido veja-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Maio de 2025 (www.dsgi.pt) onde se lê que “(…) Os factos instrumentais, indiciários ou probatórios, serão assim o campo natural de aplicação da norma da IIª parte do artigo 423.º, n.º 3, do CPC.
Factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito, por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes; não pertencem à norma fundamentadora do direito e são-lhe, em si, indiferentes, servindo apenas para, da sua existência, se concluir pela existência dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção.
Conclui-se assim que o depoimento de uma testemunha pode constituir ocorrência posterior que torna necessária a apresentação de um documento fora dos momentos previstos no artigo 423.º, n.º 1 e 2, do CPCivil, desde que no seu depoimento invoque factos que sejam novos no processo e não possam ser qualificados como factos essenciais.
(…)
Aceitar que se verificaria tal pressuposto da junção de documento quando uma testemunha menciona um facto, ainda que em sentido contrário ao pretendido pelo apresentante dos documentos, seja ele essencial ou instrumental, mas anteriormente alegado nos autos, seria permitir que perante o depoimento de cada testemunha sobre factos essenciais alegados nos articulados, as partes estivessem autorizadas a apresentar mais documentos sobre esses factos no decurso da audiência, fora dos momentos temporais consignados no art.º 423º do CPC, retirando-lhe qualquer utilidade.”
Recentemente também o Tribunal da Relação do Porto em Acórdão datado de 11 de Fevereiro de 2025 defendeu que “(…) Pela nossa parte pensamos que é de seguir esta segunda orientação, no essencial pelos fundamentos enunciados no Acórdão desta Relação de 04.05.2022, acabado de citar, a saber:
“Para além do ónus de alegação dos factos essenciais, o tribunal pode atender aos factos instrumentais e complementares ou concretizadores que resultem da discussão a causa (art.º 5º, nº 2), sendo perante a revelação destes factos (e não daqueloutros), na produção de prova em audiência que poderá surgir a necessidade de confirmação ou contradição dos mesmos mediante prova documental. E (…) a essa situação de necessidade/utilidade na apreciação do documento se reportará, na generalidade dos casos, o conceito de ocorrência posterior.
(…) a ocorrência posterior a que se refere o nº 3 não é um facto principal ou essencial - estes entram na causa através da alegação nos articulados normais, em articulado superveniente ou ainda em articulado de um incidente (…); situações abrangidas pela norma do nº 1 do art.º 423º - mas factos instrumentais e complementares ou concretizadores relevantes para a demonstração dos factos essenciais ou nucleares ou de facto que interesse à verificação dos pressupostos processuais. (…) estes factos nem sequer têm que ser alegados, bastando que resultem da instrução a causa (art.º 5º, nº 2, al.s a) e b), do Código de Processo Civil).
(…) o depoimento de uma testemunha pode constituir ocorrência posterior que torna necessária, pela sua utilidade, a apresentação de um documento fora dos momentos previstos no art.º 423º, n.º 1 e 2, desde que no seu depoimento invoque factos que sejam novos no processo e não possam ser qualificados como factos essenciais ou principais e exista um elemento de novidade, mormente por se prefigurar, em resultado da instrução, nova factualidade instrumental idónea a suportar presunções judiciais, complementar ou concretizadora de factos essenciais (…).
(…) resulta do preâmbulo da Lei n.º 41/2013, que aprovou o atual Código de Processo Civil, que uma das principais finalidades do legislador foi evitar que formalismos processuais impeçam a descoberta da verdade material e, por isso, as normas que fixam preclusões processuais têm de ser interpretadas em consonância com o princípio da prevalência do mérito, evitando que formalismos processuais obstem à descoberta da verdade.”.
Temos então que o depoimento de uma testemunha só pode constituir ocorrência posterior para efeitos de admissão de prova documental nos termos da parte final do nº 3 daquele art. 423º, se se reportar a factos novos [não alegados no processo] e que sejam meramente instrumentais, complementares ou concretizadores de factos essenciais já constantes do processo [alegados nos pertinentes articulados], na medida em que estes podem resultar da instrução da causa, sem necessidade de serem alegados nos articulados, como decorre do disposto nas als. a) e b) do nº 2 do art. 5º do CPC, ao contrário dos factos essenciais que têm obrigatoriamente de ser alegados pelas partes, de acordo com o prescrito no nº 1 do mesmo art. 5º [segundo o ensinamento de Lopes do Rego, in Comentário ao CPC, pg. 201, a distinção entre factos essenciais e factos instrumentais é a seguinte: os “factos instrumentais definem-se, por contraposição aos factos essenciais, como sendo aqueles que nada têm a ver com substanciação da ação e da defesa e, por isso mesmo, não carecem de ser incluídos na base instrutória, podendo ser livremente investigados pelo juiz no âmbito dos seus poderes inquisitórios de descoberta da verdade material”, ao passo que “factos essenciais, por sua vez, são aqueles de que depende a procedência da pretensão formulada pelo autor e da exceção ou da reconvenção deduzidas pelo réu”].
Por isso, se o depoimento da testemunha tiver versado sobre factos essenciais alegados nos articulados, já não estaremos perante ocorrência posterior e, por isso, não será admissível a junção de prova documental ao abrigo da parte final do nº 3 do referido art. 423º, para infirmar o depoimento daquela.(…)”.
Visa ainda a Recorrente que, caso não colha a sua pretensão de admissão dos documentos nos termos do nº 3 do artigo 423º do Código de Processo Civil, haverá que se atender ao princípio do inquisitório (artigo 411º do Código de Processo Civil) e, como tal, deverão os documentos ser admitidos.
Dispõe o artigo 411º do Código de Processo Civil que:
“Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”
Da leitura deste normativo impõe-se desde logo uma primeira conclusão. O argumento da relevância do documento para a descoberta da verdade material não permite que a parte, após o prazo referido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 423º do Código de Processo Civil, e das circunstâncias constantes do nº 3 do mesmo artigo, invoque e requeira que o Tribunal, sob a égide do princípio do inquisitório, ordene oficiosamente a junção do documento.
O direito processual civil assenta em dois princípios estruturantes, o princípio do dispositivo, que respeita essencialmente a factos essenciais que integram a causa de pedir, pedido/s e defesa, e o princípio do inquisitório, cujo âmbito de actuação se circunscreve, via de regra, a factos instrumentais, complementares ou concretizadores ou ao suprimento de falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação e questões de conhecimento oficioso.
O poder/dever que é conferido ao Juiz pelo artigo 411º do Código de Processo Civil é limitado quando se trata de prova, uma vez que o ónus de prova cabe às partes e não ao Tribunal por respeito, também, aos princípios da igualdade, da preclusão e da auto-responsabilidade das partes.
Assim, o princípio do inquisitório plasmado no artigo 411º do Código de Processo Civil deverá ser limitado apenas a situações em que o Juiz entenda que determinado documento é essencial para a descoberta da verdade.
Revertendo ao presente caso, a testemunha Dr. AA está ao serviço da Recorrente (conforme facilmente se depreende da acta), os documentos estavam na sua posse, em arquivo pessoal, desconhecendo a Recorrente da sua existência.
Trata-se de uma situação de superveniência subjectiva enquadrável no artigo 423º, nº 3, 1ª parte, do Código de Processo Civil, ou seja, a junção dos documentos não foi possível porque a Recorrente desconhecia que a testemunha os tinha em arquivo pessoal.
Tudo visto, procede o recurso.
*
V. Decisão
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em julgar procedente a apelação e consequentemente revoga-se o despacho recorrido, admitindo-se a junção dos documentos nos termos requeridos pela Recorrente.
Custas pela apelada.

Lisboa, 11 de Setembro de 2025
Cláudia Barata
Jorge Almeida Esteves
Vera Antunes