Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17561/21.3T8LSB.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
RESPONSABILIDADE LIMITADA
CONTROLO PLURISSOCIETÁRIO ILÍCITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário:
I - Para que se possa obrigar umas sociedades a responder por obrigações contraídas por outras é necessário, pelo menos, a violação de deveres decorrentes da utilização do mecanismo societário que pudesse ser imputada àquelas sociedades (designadamente pela mão da praticamente sua única sócia), a provocação de um prejuízo aos credores autores causado por essa violação (a impossibilidade de pagamento da dívida) e que não haja outra solução legal mais adequada.
II - Não se provando, sequer, o prejuízo – ou seja, a impossibilidade de pagamento da divida por parte dos devedores originários, de que nem sequer há um começo de prova quanto a um deles – a pretensão de os autores fazerem responder pela dívida sociedades que nada tiveram a ver com ela deve ser julgada improcedente, como o foi no caso.
III – De outro modo: celebrado um contrato de mútuo com garantia de um penhor, do património do mutuário e de dois avales em livranças por terceiros, os credores bancários não podem obter, a posteriori, fianças de facto decretadas por via judicial, de outras sociedades (com potencial prejuízo para os eventuais credores destas), sem sequer haver prova da impossibilidade de obter o pagamento do mutuário e dos avalistas.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

A 16/07/2021, Novo Banco, SA, a Caixa Geral de Depósitos, SA, e o Banco Comercial Português, SA, intentaram uma acção comum contra (1) AA, (2) Kento Holding Limited e (3) Unitel Internacional Holdings, BV, pedindo que, em consequência da desconsideração da personalidade jurídica da 2.ª e 3.ª rés, as três sejam solidariamente condenadas no pagamento de 26.269.078,61€ [25.000.000€ de capital], acrescidos de juros de mora vencidos no valor de 713.943,18€ e juros vincendos desde a data da petição inicial até integral pagamento.
Alegaram para tanto, em síntese, que se dedicam à actividade bancária, no âmbito da qual financiaram a aquisição, pela ré AA, de uma participação social na Efacec, tendo emprestado 40.000.000€ (46,80% o NB; 37,90% a CGD; e 15,30% o BCP – doc.19) a duas sociedades pela mesma constituídas (que não são as outras rés), ficando a ré AA avalista do mútuo; as sociedades mutuárias não pagaram a totalidade dos valores devidos, pelo que os autores preencheram as livranças [uma subscrita a favor do NB no valor de 12.293.928,78€, outra a favor da CGD no valor de 9.955.980,79, e uma terceira a favor do BCP no valor de 4.019.169,04€] e interpelaram a avalista (ré AA) para pagamento; até à presente data não foi efectuado qualquer pagamento, tendo-se frustrado as penhoras sobre bens das sociedades mutuárias e da ré AA; esta última é titular de facto e beneficiária efectiva de participações sociais, que não detém em nome pessoal, utilizando sociedades comerciais com a única finalidade de serem “cabides” desses activos, como é o caso da ré Kento e da ré Unitel; por isso, para garantia do pagamento da dívida devem ser desconsideradas as personalidades jurídicas da ré Kento e da ré Unitel, por forma a que os respectivos patrimónios respondam, em solidariedade com a ré AA, por esse pagamento.
Mais tarde a CGD veio informar ter cedido o crédito - 9.955.980,79€ e juros de mora correspondentes - e dizer que a lide se tinha tornado inútil quanto a ela. Por despacho judicial julgou-se extinta a instância, “por inutilidade superveniente da lide relativamente à 2.ª autora, com custas por esta (a inutilidade não é imputável às rés”).
A citação das rés esteve à espera da realização do arresto determinado no apenso A.
A 27/01/2021, os autores vieram requerer a citação da ré AA, para “assegurar uma maior celeridade e economia processual”, através de carta enviada para a morada indicada no contrato referido - a que na PI chamam ‘domicílio convencionado’ -, por ser a morada registada na segurança social portuguesa, apesar de os autores terem dito que a ré “residi[a] parte do ano num edifício de luxo, em D, localizado em X; a secção de processos remeteu então carta registada com a/r para a morada em questão; a 10/02/2022 o a/r retornou com assinatura de terceiro com data de 04/02/2022; a ré não constituiu advogado nem contestou.
Quanto à ré Unitel foi enviada carta registada com a/r a 03/02/2022, que veio devolvida; foi enviada nova carta registada para nova morada (que não é a da sede, mas uma morada postal) indicada pelos autores a 02/05/2022, tendo o a/r da mesma retornado aos autos a 23/06/2022, com assinatura não identificada datada de 25/05/2022. A ré não constitui advogado nem contestou.
Quanto à ré Kento foi citada editalmente, com anúncios de 13/11/2023. Citado o Ministério Público em representação da ausente, não foi oferecida contestação.
(no apenso A, de arresto, a requerida AA foi notificada na morada do contrato referido abaixo, tendo o a/r retornado a 25/05/2022 com assinatura de terceiro, mas a carta veio devolvida a 30/05/2022 com a menção de que se tinha mudado; quanto à Unitel a 18/05/2022 foram enviadas duas cartas registadas com a/r para notificação, a/rs que nunca retornaram com a assinatura; depois, sem notificação edital, a Unitel foi notificada na pessoa do MP a 23/05/2024; a Kento foi notificada editalmente com anúncios publicados a 13/10/2023 e depois na pessoa do MP a 23/02/2024; a 17/06/2024, sem mais, foi proferido o seguinte despacho: “Não tendo sido deduzida oposição por qualquer das requeridas nada a determinar. Aguarde-se o trânsito da decisão a proferir nos autos principais.”)
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença julgando o pedido procedente contra a ré AA que foi condenada a pagar ao NB 12.293.928,78€, acrescidos de 2.095.020,19€ de juros vencidos, e a pagar ao BCP 4.019.169,03€ de capital, acrescido de 684.910,45€ de juros vencidos, em ambos os casos acrescidos ainda de juros de mora vincendos, à taxa legal, até integral pagamento; e as rés Kento e Unitel foram absolvidas dos pedidos. As custas da acção ficaram a cargo dos autores (pois que já tinham título executivo contra a ré AA).
Os autores recorreram contra a sentença – para que seja revogada na parte que absolveu as rés sociedades e substituída por outra que as condene no pedido solidariamente com a ré AA – impugnando parte da decisão da matéria de facto e a não condenação das rés sociedades.
Apenas a ré Kento contra-alegou, pela mão do MP, defendendo a improcedência do recurso, com adesão à sentença.
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Questões que importa decidir: se a decisão de facto deve ser alterada e se as rés sociedades devem ser condenadas solidariamente com a ré AA.
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Factos provados (a parte sublinhada do facto 36, a parte rasurada dos factos 37 e 51 e as partes entre parenteses rectos dos factos 24, 33, 46 e 47 resultam da decisão da impugnação da matéria de facto e da alteração oficiosa ao abrigo dos artigos 662/1, 607/4 e 663/2 do CPC):
1\ Os autores são sociedades comerciais que se dedicam à actividade bancária.
2\ A ré AA é filha de JS, antigo presidente de Y, sendo uma mulher de negócios que desenvolve a sua actividade em vários sectores, nomeadamente, no sector das telecomunicações, da energia e da Banca.
3\ No início de 2015, Portugal, após executar um programa de assistência financeira internacional, estava a mostrar os primeiros sinais de recuperação da crise financeira internacional que se iniciou em 2007 e que abalou o sistema financeiro e comercial do país, em especial a partir do primeiro trimestre de 2008, encontrando-se à venda uma parte do capital social da Efacec Power Solutions, SGPS, SA.
4\ Nessa altura a ré AA era considerada uma empresária credível, idónea e com sucesso.
5\ No início de 2015, a ré AA decidiu, em parceria com a Empresa Nacional de Distribuição de Electricidade – ENDE, EP (empresa pública constituída de acordo com a lei angolana), adquirir uma participação social na Efacec.
6\ Para realizar essa aquisição, no primeiro trimestre de 2015, a ré AA e a ENDE promoveram a constituição das sociedades Winterfell Industries Limited e Winterfell 2 Limited, ambas com sede em Malta, sendo a primeira dessas sociedades, titular da totalidade do capital social da segunda.
7\ O Estado de Malta oferece vantagens fiscais na tributação de empresas, nomeadamente na tributação de dividendos de sociedades “holding” que possuam mais de 10% do capital social de uma sociedade no estrangeiro, aplicando uma taxa de retenção na fonte, sobre esses dividendos, relativamente a sociedades registadas num país com o qual Malta tenha um tratado de dupla tributação, de 5%.
8\ Em 23/10/2015, com vista ao pagamento de parte do preço da aquisição na Efacec, a Winterfell (designando-se como Mutuária), celebrou com os autores (intitulando-se Bancos) e o Haitong Bank (intitulando-se Agente), o acordo escrito junto sob a forma de cópia como documento 11 da petição inicial, que aqui se dá como reproduzido, a que foi dado o título de contrato de financiamento, do qual ficou a constar, nomeadamente, o seguinte:
Considerando que:
A\ A Winterfell 2 celebrou, enquanto compradora, com a Efacec Capital um contrato de compra e venda e subscrição de 65,4% do capital e direitos de voto da Efacec Power Solutions, S.A (…) (EPS).
B\ Tendo em conta as contas da EPS preparadas pela Efacec Capital por referência a 31/08/2015, a Winterfell 2 irá ficar, na data de assinatura, com uma participação representativa de 72,63% do capital social e direitos de voto da EPS (…);
C\ A mutuária detém acções representativas de 100% do capital social e direitos de voto da Winterfell2, tendo acordado financiar parte do pagamento do preço devido pela Winterfell 2 ao abrigo do contrato de compra e venda através da realização dos fundos próprios;
D\ Os avalistas são conjuntamente titulares, directos e indirectos, de acções representativas da totalidade do capital social da mutuária, detendo acções representativas de, respectivamente, 60% (…), no caso da accionista, e de 40% (…), no caso da ENDE, desse capital social.
[…]
1\ Interpretação
1\1 Definições
No contrato de financiamento, incluindo respectivos considerandos e anexos (…), os termos e expressões nele usados, iniciados por letra maiúscula, têm o significado seguinte:
1\ Accionista: A Senhora Engª AA (…)
(…)
4\ Avalistas: A accionista e a ENDE, em conjunto.
(…)
13\ Contrato de financiamento Winterfell 2 – Contrato de financiamento entre os Bancos, o Agente, a Mutuária e a Winterfell 2, pelo qual os Bancos concederam à Winterfell2 um financiamento no montante de 20.000.000€, para financiamento de parte do preço de compra das acções representativas do capital da EPS.
(…)
3\1 Empréstimo
Os Bancos (de acordo com a distribuição constante do Anexo III (Participações)) concederam à Mutuária, que aceitou, um empréstimo de médio prazo, na modalidade de mútuo, no montante de 40.000.000€.
(…)
4\ Utilização
Na data da Compra e Venda, a totalidade do Empréstimo foi desembolsada pelos Bancos para a Conta Bancária, sendo tais fundos utilizados para a realização dos Fundos Próprios, tendo o Agente sido devidamente instruído para, na mesma data:
(i) Proceder à imediata transferência bancária da totalidade dos fundos mutuados 40.000.000€ por débito da Conta Bancária e contrapartida a crédito na conta bancária com o número de identificação bancária (…) da titularidade da Winterfell 2 (…)
(ii) Proceder à imediata transferência bancária da totalidade dos fundos desse modo creditados na Conta Winterfell 2, por débito desta conta e contrapartida a crédito da conta bancária com o número de identificação bancária (…) da titularidade da Efacec Capital.
(…)
8\ Reembolso
Sem prejuízo da possibilidade de Reembolsos Antecipados Voluntários, o Empréstimo deverá ser reembolsado em 16 prestações de capital, nos termos previstos e melhor identificados no Anexo V (Plano de Reembolso), devendo estar integralmente reembolsado até ao dia 31/12/2024.
(…)
16\ Mora
16\1 Juros Moratórios
No caso de mora de quaisquer pagamentos devidos pela Mutuária aos Bancos, ao abrigo e nos termos dos Documentos Financeiros e durante o período de tempo em que a mesma se verificar, serão aplicados juros de mora calculados com base na taxa de juro aplicável ao Empréstimo agravada com a sobretaxa legal máxima a cada momento permitida e que, à Data de Assinatura, é de 3% ao ano.
(…)
17\2 Incumprimento definitivo/Vencimento antecipado
Para efeitos da cláusula 17\1 (Situações de Vencimento) anterior, considera-se que há incumprimento definitivo e que consequentemente os Bancos poderão emitir uma Notificação de Vencimento Antecipado a declarar o vencimento de todas as obrigações decorrentes do Contrato de Financiamento e a exigir o cumprimento imediato das correspondentes obrigações (incluindo os juros vencidos e vincendos até à data do efectivo reembolso integral do Empréstimo) e proceder ao preenchimento das Livranças, após o seguinte procedimento:
(a) Prazo de Sanação: Quando a Situação de Vencimento resultar do não cumprimento de uma obrigação cuja correspondente prestação seja ainda passível de realização (nomeadamente o cumprimento de obrigações pecuniárias):
i\ Os Bancos deverão notificar a Mutuária (através de uma Notificação de Situação de Vencimento) da ocorrência de Uma Situação de Vencimento;
ii\ Após ter recebido a Notificação de Situação de Vencimento, o incumprimento da obrigação deverá ser sanado no prazo de:
1\ 7 dias Úteis em caso de obrigações pecuniárias, ou
2\ 20 dias úteis em caso de obrigações não pecuniárias;
iii\ Após ter decorrido o prazo aplicável previsto na alínea anterior sem que a Situação de Vencimento seja definitivamente sanada, os Bancos poderão notificar a Mutuária (através de uma Notificação de Vencimento Antecipado) da declaração de Vencimento antecipado.
(…)
18\1 Livranças
Na Data da Assinatura, a Mutuária entrega a cada Banco uma livrança em branco por si subscrita e avalizada por cada um dos Avalistas, com os números melhor identificados no Pacto de Preenchimento (“Livrança”), para titular e garantir o integral e pontual cumprimento das Obrigações Garantidas.
(…)
30\1 Confissão de Dívida
A Mutuária confessa-se, desde já, devedora das quantias mutuadas no âmbito do Empréstimo, dos respectivos juros, comissões, despesas e demais encargos previstos.
(…)
31\ Comunicações
31\1 Forma
Excepto se de outro modo previsto no presente Contrato de Financiamento, quaisquer comunicações a realizar no âmbito da sua execução serão efectuadas por carta registada com aviso de recepção ou por telecópia, e ter-se-ão por realizadas:
(a) Carta Registada. No caso de carta registada, na data da sua recepção ou, no caso da recusa de recepção ou do não levantamento da carta no prazo previsto no regulamento dos serviços postais, no terceiro Dia Útil posterior à data do registo; e
(b) (…).
9\ Na mesma data de 23/10/2015, a ré AA (intitulando--se accionista e, quando em conjunto com a ENDE, avalistas) assinou, por si e no lugar reservado à Winterfell o documento escrito intitulado “pacto de preenchimento de livrança em branco relativo ao contrato de financiamento no valor de 40.000.000€”, junto sob o nº 12 à PI, que aqui se dá por reproduzido.
10\ Da cláusula 5\1 desse escrito ficou a constar: “Quaisquer comunicações entre as Partes a realizar no âmbito da sua execução serão efectuadas por carta registada com aviso de recepção ou por telecópia, e ter-se-ão por realizadas:
(a) Carta Registada. No caso de carta registada, na data da sus recepção ou, no caso da recusa de ressecção ou do não levantamento da carta no prazo previsto no regulamento dos serviços postais, no terceiro Dia Útil posterior à data do registo; e
(…).
11\ Da cláusula 5\3 do mesmo escrito ficou a constar: Para efeitos das comunicações a realizar nos termos dos números anteriores, os endereços e os números de telecópia das Partes são os seguintes (ou outros que, para este efeito, venham a ser indicados, nos termos aqui referidos, a todas as demais Partes);
Accionista
Engª AA
Av. […]
[…]
(…)”.
12\ Além da quantia objecto do escrito referido sob 8, os autores entregaram às Winterfell e Winterfell2 mais 30.000.000€ para financiamento da aquisição de participações sociais na Efacec.
13\ Em Julho de 2019 a Winterfell deixou de pagar aos autores as quantias acordadas nos termos do escrito referido sob 8 e aqueles deixaram de ter contacto com o respectivo interlocutor na mencionada sociedade.
14\ O Haitong intitulando-se “Agente” endereçou às sociedades Winterfell e ENDE, bem como à ré AA, uma carta datada de 24/07/2020, na qual, declarou, além do mais, que “a Mutuária encontra-se em incumprimento da obrigação do reembolso da prestação de capital no montante de 2.500.000€ (…) e de pagamento de juros no montante de 505.555,56€ (…) o que (…) constitui uma Situação de Vencimento, e aos quais acrescem (….) juros moratórios, e respectivos encargos, contados desde o início dos referidos incumprimentos até ao seu integral cumprimento, juros moratórios esses que, contabilizados desde a data do referido incumprimento até à data de 27/07/2020 (…), ascendem ao montante de 15.779,17€ (…).
15\ Na mesma carta fez constar ainda “(…) pela presente se declara igualmente o Vencimento Antecipado de todas as obrigações decorrentes do Contrato de Financiamento (…), a saber, aquelas correspondentes ao reembolso do capital em dívida no montante de 22.500.000€ (…) e ao pagamento de juros remuneratórios corridos desde o primeiro dia do Período de Contagem de Juros em curso até à data referida no parágrafo seguinte, no montante de 67.500€ (…).. Neste contexto, vimos pela presente interpelar V. Exas para efectuar o pagamento dos montantes até 27/07/2020. (…)”
16\ Essa carta foi recebida pela Winterfell.
17\ O Haitong enviou à ré AA e à ENDE uma carta datada de 26/10/2020, dando-lhe conhecimento “na qualidade de avalistas do financiamento celebrado na data de 23/10/2015” da carta referida sob 14.
18\ Essa carta foi enviada para a morada referida em 11.
19\ O NB preencheu a livrança associada ao acordo referido sob 8, nos termos da cópia junta como documento 16 anexo à contestação, que aqui se dá por reproduzida, inscrevendo na mesma o montante de 12.293.928,78€ e a data de vencimento de 09/11/2020.
20\ O BCP preencheu a livrança associada ao acordo referido sob 8, nos termos da cópia junta como documento 18 anexo à PI, que aqui se dá por reproduzida, inscrevendo na mesma o montante de 4.019.169,03€ e a data de vencimento de 09/11/2020.
21\ Do verso de ambas as livranças, consta a assinatura da ré AA após a expressão “Bom para aval”.
22\ O NB e o BCP endereçaram à ré AA uma carta datada de 09/11/2020, na qual declararam, além do mais, “notificar V. Exa. para efectuar o pagamento do montante total devido ao abrigo do aval aposto nas Livranças – acrescido de juros de mora contabilizados, nos termos do Pacto de Preenchimento – no prazo de 8 dias a contar da data de recepção desta carta”.
23\ Essa carta foi enviada para a morada referida em 11 e veio devolvida.
24\ Com base nas livranças referidas sob 19 e 20, os autores intentaram [a 13/11/2020 - TRL] uma acção executiva contra a ré AA e contra a Winterfell, que assumiu o n.º 27878/20, dos Juízos de Execução de Lisboa.
25\ Nessa execução os autores nomearam à penhora o seguinte:
a\ 7.920.200 acções tituladas pela Winterfell no capital da Winterfell 2, depositadas junto do NB;
b\ 31.680.800 acções tituladas pela Winterfell no capital da Winterfell2.
c\ 16.500.417 acções tituladas pela Winterfell no capital da Winterfell2;
d\ 14.974.458 acções tituladas pela Winterfell no capital da Winterfell2;
e\ 875.000 acções detidas pela ré AA no capital da Santoro Financial Holdings, SGPS, S.A, sociedade de direito português, com sede na Av. Da Liberdade, n.º 190, 1-B, Lisboa.
26\ Nessa execução foram penhoradas as acções atrás referidas nas alíneas a\ e c\ e 8.126.125 acções detidas pela Winterfell no capital da Winterfell2 depositadas junto do Haitong.
27\ Na mesma execução, em 02/05/2021, ainda não tinha sido recuperado qualquer montante.
28\ Os únicos activos da Winterfell2 eram as participações sociais na Efacec.
29\. Por despacho de 24/03/2021, o Secretário de Estado do Tesouro determinou o seguinte: “atendendo a que o valor da participação social da Winterfell2 avaliada nos termos acima referidos, é negativo, a indemnização a atribuir aos anteriores titulares daquela participação social na Efacec, objecto de nacionalização, bem como aos titulares de ónus ou encargos constituídos sobre a mesma, é nula”.
30\ O único património da ré AA que os autores conseguiram localizar é constituído pelas acções pela mesma detidas na sociedade Santoro.
31\ Apesar das diligências efectuadas pelo solicitador de execução essas acções não foram localizadas.
32\ A ENDE é uma empresa pública angolana sem património conhecido em Portugal.
33\ Os autores intentaram [em 18/03/2021 – TLR – doc. 33] contra a mesma, junto do Tribunal da Comarca de L, uma acção executiva para pagamento de quantia certa, na qual pedem, com base nas livranças atrás referidas, o pagamento dos montantes inscritos nesses títulos, acrescidos de juros de mora.
34\ Até ao presente não foi recebido qualquer valor no âmbito das execuções referidas sob 24 e 33.
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35\ A Kento foi constituída em Malta, a 27/11/2009, com o capital social dividido em 1200 acções, das quais 1188 tituladas pela ré AA e 12 tituladas por SD, marido da ré, entretanto falecido.
36\ A Unitel foi constituída em 04/05/2012, em Amesterdão, Países Baixos e a única accionista é a ré AA.
37\ A constituição dessa sociedade foi promovida pela ré AA, desconhecendo-se a identidade de outros eventuais detentores do capital da mesma, além daquela.
38\ Em Dezembro de 2012 a Sonaecom SGPS, SA, e as três rés promoveram uma operação de fusão, por incorporação da Optimus SGPS, SA, na ZON, tendo declarado, em comunicado conjunto que “(…) como condição para a mencionada actuação, a Sonaecom e a Kento/Jadeium acordaram na constituição de um veículo detido em partes iguais que, /…) passará a deter uma posição de controlo (…) o que se reputa necessário à estabilidade da empresa, à melhor eficiência da sua gestão e à maximização das vantagens que esta operação poderá propiciar à empresa e todos os seus shareholders”.
39\ Essa fusão foi registada em 2013 tendo a ZON passado a designar-se por ZON OPTIMUS, SGPS, SA.
40\ Essa sociedade tem actualmente a designação de NOS, SGPS, SA, e como objecto a gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indirecta de exercício de actividades económicas.
41\ A ZOPT, SGPS, SA, foi constituída em 26/12/2012, tem por objecto a gestão de participações sociais, como forma indirecta de exercício de actividades económicas, tendo o capital de 716.050.000€, dividido em 716.050.000 de 1€ cada.
42\ A Kento é titular de 124.234.675 acções da ZOPT enquanto a Unitel é titular de 233.790.323 acções da mesma sociedade.
43\ A Kento e a Unitel detêm, respectivamente, 17,35% e 32,65% do capital da ZOPT, sendo os restantes 50% desse capital detidos pela Sonaecom, SGPS, S.A.
44\ A Kento é detentora de participações sociais nas Upstar Comunicações, SA, e Mstar, SA, com actividade em Portugal e Moçambique, respectivamente.
45\ Os lucros da mesma sociedade foram, no ano de 2018, maioritariamente provenientes dos dividendos da ZOPT.
46\ Do relatório e contas de 2018 da Kento consta que “os valores devidos ao accionista por suprimentos foram incluídos no passivo corrente (…), o [a] qual se comprometeu a apoiar financeiramente o Grupo e a Sociedade no cumprimento das suas obrigações presentes e futuras à medida em que e quando se vençam, no cumprimento de quaisquer obrigações bancárias resultantes do contrato de empréstimo bancário, e a não exigir o reembolso destes montantes, salvo se existirem fundos disponíveis para tal. […]” [o que está escrito, na parte sublinhada, é mais precisamente: Incluído no passivo corrente está o montante de 120.324.554€ devido ao accionista (Nota 15) (2017: € 120.324.554), que se comprometeu […]; na nota 23 entre o mais escreve-se: “Related party transactions / The ultimate controlling party of the Group is AA.” E mais à frente: “Loans from related parties (note 15): - ultimate controlling party 120.324.554” – parenteses deste TRL]
47\ Das mesmas contas resulta que os accionistas [ou melhor, a ré AA] concederam [concedeu] à sociedade empréstimos no valor de 120.324.554€ [= a 2017], sem garantia, sem juros e sem data de reembolso definida.
48\ Ainda das mesmas contas resulta que o Grupo da Kento (constituído por esta e suas subsidiárias) apresentava em 31/12/2018 uma situação patrimonial líquida de 35.048.613€ e que o seu passivo corrente excedeu o activo corrente em 104.190.347€.
49\ A ré Unitel tinha anteriormente a designação “Jadeium BV” e apesar da sua denominação, não tem qualquer relação com a operadora angolana de telecomunicações Unitel, SA.
50\ A ZOPT é titular de uma participação social equivalente a 52,15% da NOS e a Sonae, SGPS, SA, de uma participação de 7,38% da NOS.
51\ A Kento e a Unitel fizeram-se representar nas assembleias gerais da ZOPT até à realizada em 28/03/2019, inclusive, tendo votado nas mesmas, designadamente, no sentido da distribuição dos dividendos dos exercícios de 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018.
52\ MS foi administrador da Kento, era conhecido como “o braço direito” da ré AA e é administrador da Winterfell 2.
53\ A ré AA está declarada, no Registo Central do Beneficiário Efectivo, como a beneficiária efectiva da ZOPT por via indirecta, através das Kento e da Unitel.
54\ A ré AA é administradora da ZOPT.
55\ No relatório e contas da NOS, relativo ao ano de 2018, a Kento e a Unitel são descritas como “sociedades directa e indirectamente controladas pela Senhora Engª AA”.
56\ O aparecimento do denominado “Luanda Leaks”, do qual a ré AA é a figura central, colocou em causa a credibilidade desta e teve repercussões no comportamento da Sonaecom, SGPS.
57\ Em comunicado de 19/08/2020 a Sonaecom anunciou a dissolução da ZOPT com repartição dos respectivos activos, incluindo participação na NOS, pelos accionistas, tendo apelidado a ré AA de “accionista de controlo da Unitel e da Kento”.
58\ A pedido das autoridades judiciárias de Angola e no âmbito de um processo criminal, foi ordenado, em Portugal, o arresto de bens da ré AA, localizados neste país.
59\ A Unitel (sob a denominação Jadeium BV) assinou em conjunto com a Unitel, SA (sociedade constituída ao abrigo da lei angolana, com sede no mesmo país) um acordo escrito, datado 08/05/2012, a que foi dado o título de “contrato de financiamento a prazo com garantia”, no qual a segunda declarou colocar à disposição da primeira um financiamento de 39.500.000€ para aquisição de 15.515.427 acções na ZON Multimédia – Serviços de telecomunicações e Multimédia SGPS, SA.
60\ A Kento, em 18/02/2021, ainda não tinha apresentado as contas do exercício de 2019.
61\ Em 15/04/2021 as últimas contas apresentadas pela Unitel eram as relativas ao ano de 2017.
62\ As acções detidas pela Kento no capital social da ZOPT encontram-se depositadas junto da CGD e estão arrestadas no âmbito do procedimento cautelar apenso a esta acção.
63\ Os autores não conseguiram localizar onde se encontram depositadas as participações sociais da ré AA na Kento e na Unitel.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
O tribunal recorrido deu como não provada – por falta de prova – “a data da aquisição das participações da Kento e da Unitel na ZOPT.” É a 8.ª alegação de facto dada como não provada (alínea h).
Os autores alegavam no art. 99 da PI que a Kento e a Unitel foram constituídas com o propósito de deter a participação social da ZOPT, tanto mais que as respectivas datas de constituição são coincidentes com a aquisição do capital social da NOS (cf. docs. 2 e 38).
Os autores pretendem que o que alegaram em tal artigo está provado e que a alínea (h) dos factos não provados deve ser eliminada.
Para demonstrar o que antecede, dizem o seguinte, em síntese:
A Kento foi constituída no dia 27/11/2009 e a Unitel foi constituída no dia 04/05/2012 (cf. factos 35 e 37 e docs. 2 e 38).
Conforme resulta da notícia junta como doc. 37, a Kento adquiriu a referida participação a 20/12/2009 e a Unitel em Maio de 2012.
Ora, se é certo que nem sempre uma notícia pode servir de prova directa para determinado facto, a verdade é que também as notícias permitem, muitas vezes, com suporte em factos indiciários, inferir outros factos.
E é tanto mais assim num contexto, como o dos presentes autos, em que muitos dos factos relevantes para a desconsideração da personalidade jurídica não podem ser do conhecimento directo dos autores.
Com efeito, os autores não têm forma de conhecer directamente a vida interna das sociedades cuja personalidade jurídica pretendem que seja desconsiderada, conhecimento esse que permitiria a prova directa da instrumentalização da Unitel e da Kento pela ré AA.
Aliás, foi esta a razão que levou os autores a requerer, logo na PI, a notificação das rés para virem juntar estes documentos referentes à sua vida interna – notificação essa que, como já exposto, as rés conseguiram frustrar, ao colocarem-se na situação de revelia absoluta.
Desta forma, notícias como a que foi junta, são susceptíveis de, à luz das regras da experiência e em conjunto com factos indiciários, permitir ao tribunal inferir outros factos.
De resto, tendo as rés a possibilidade de fazer contraprova deste facto, optaram por não oferecer qualquer prova.
Apreciação:
O doc. 37 é uma impressão em formato PDF, aparentemente feita a 04/12/2021, de uma notícia que será de 20/01/2020, com o subtítulo: A empresária AA, a principal visada nos esquemas financeiros revelados no “Luanda Leaks”, tem investimentos em Portugal, sobretudo concentrados na banca, energia e telecomunicações. […] Ou seja, trata-se de um documento que não dá garantias de não poder ser alterado, relativo a uma notícia relativa a factos passados há mais de 11 e 8 anos. Notícia que, acrescente-se não remete para documentos que possam ser consultados, nem referencia em concreto a fonte dos factos que está a relatar e que os autores querem aproveitar. Ou seja, não é sequer uma notícia dada logo a seguir ao acontecimento. É uma notícia com base em documentos consultados por outrem, que não se diz terem sido consultados também pela autora da notícia, autora que não está pessoalmente identificada.
Não há, por isso, qualquer razão para acreditar no que consta de tal documento que, aliás, só se refere à suposta data de aquisição das participações da Kento e da Unitel na ZOPT e não a um dos factos que os autores pretendem provar aqui, ou seja, que a Kento e a Unitel tenham sido constituídas com o propósito de deter aquelas participações.
Ou seja, o art. 99 da PI tinha dois factos: um relativo à data da aquisição das participações, que os autores tentavam provar com base no doc. 37, e outro relativo ao propósito com que a Kento e a Unitel foram constituídas, que os autores tentam provar através de presunções, baseadas principalmente na coincidência de datas. Ora, o documento não prova o 1.º facto que é a base da presunção de que os autores se servem para o 2.º, pelo que este também não se pode dar como provado.
Quanto ao argumento da contraprova, os autores esquecem-se que a Kento foi citada editalmente e por isso não se pode dizer que ela teve a oportunidade de fazer a contraprova que os autores invocam e que tenha optado por não o fazer, o que só por si é suficiente para afastar o argumento. Acresce que a forma como foram citadas as rés AA e Unitel, mesmo que se considerem formalmente correctas, não garante o conhecimento material da acção por essas rés, pelo que, em termos de convicção, não permite a conclusão pretendida pelos autores (escolha de situação de revelia absoluta) e presunções judiciais decorrentes de tal.
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O tribunal dá como não provada a alegação feita pelos autores no art. 78 da PI:
d\ Que a ré AA tivesse constituído a Kento e a Unitel com o propósito de através delas adquirir as acções da operadora de comunicações NOS.
A fundamentação desta decisão consta do seguinte:
Não é possível, mesmo com o uso de presunções judiciais, estabelecer, com a segurança que se impõe, esse facto. Segundo o disposto no art. 349 do CC, as presunções judiciais são ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. A presunção exige assim, em primeiro lugar, a segurança do facto base, e depois, uma intensidade (no limiar da inverosimilhança do facto inverso) para o juízo inferencial. A Kento foi constituída em data próxima daquela que é a data que os autores estimam ser a da decisão de investimento, mas não só esta não se provou (falta o facto base), como, a provar-se, a mera coincidência temporal afigura-se insuficiente, nomeadamente se se considerar que essa sociedade detém participações noutras sociedades, conforme resulta do facto 44 (juízo inferencial fraco). Relativamente à Unitel, ela foi constituída em 2012, logo fora do lapso temporal do investimento que os autores localizam em 2009, pelo que falta, de novo, o facto base da presunção.”
Os autores consideram que a alegação devia ter sido dada como provada com base na seguinte fundamentação, em síntese:
O facto deve ser dado como provado, tanto mediante prova directa como através do recurso às referidas presunções judiciais.
Por um lado, como se provou acima, há uma coincidência temporal entre as datas de constituição das 2.ª e 3.ª rés e as datas do investimento na NOS (anterior ZON).
Por outro, a testemunha TR, funcionária da NB que desde 2016 desempenhava as funções de responsável pela área de grandes empresas do norte do país, prestou o seguinte depoimento que se transcreve:
Mandatário dos autores [20:45] Na prática, quem é que controla as participações sociais que a Kento e a Unitel têm na ZOPT?
Test. [20:57] Quem controla será a accionista, será quem controla as sociedades.
MA [21:03] Estas sociedades podem-se considerar sociedades veículo?
Test. [21:08] Sim, sim. São sociedades veículo para os investimentos que foram feitos.
MA [25:05] Considera que há uma relação semelhante entre Kento, Unitel e a engenheira AA, semelhante àquela que existia entre a Winterfell 2, Winterfell Industries e a engenheira AA, que constatou no exercício da sua profissão?
Test. [25:25] Sim, é essa a percepção, que era o mesmo tipo de veículo de investimento. Mas para uma área diferente, não para a área da EFACEC mas para a área das telecomunicações.
Juiz [25:52] Portanto é habitual estes investimentos serem feitos com estas sociedades veículo, como lhes chamam, não é? Normalmente não são os próprios beneficiários que fazem… que contratam, não é?
Test. [26:05] É relativamente comum, é relativamente comum. Neste caso são sociedades com uma fiscalidade mais benéfica, estão sediadas em locais com uma fiscalidade mais benéfica.
Não se nega que a Kento detenha participações noutras sociedades (cf. art. 101 da PI). No entanto, como também se referiu na PI e o tribunal deu como provado, a verdade é que os respectivos lucros decorrem essencialmente dos dividendos da ZOPT (cf. artigo 102 PI e facto 45).
De resto, tendo as rés a possibilidade de fazer contraprova deste facto, optaram por não oferecer qualquer prova.
Apreciação:
Está de novo em causa o propósito da constituição das sociedades rés, já discutido a propósito da alínea (h) das alegações de facto não provadas.
Os autores repetem a argumentação da coincidência de datas, já afastada (ou seja, afastado um facto base que serve de base à presunção que os autores invocam), e aditam agora o depoimento de uma testemunha, empregada do NB, que, por um lado, se refere a outro facto que não tem a ver com o propósito da constituição das sociedades rés e, por outro, se limita a fazer a afirmação, sem invocar nenhuma razão de ciência para a poder fazer. Ainda quanto à presunção, os autores invocam o facto 45 para afastar a argumentação do tribunal, mas fazem-no alterando o que lá está – nele diz-se maioritariamente e os autores dizem essencialmente – e omitindo parte do que lá está, ou seja, que se refere ao ano de 2018. Ou seja, quer a testemunha quer o facto 45 estão-se a referir a momentos posteriores à constituição. A testemunha está a referir-se ao momento actual, muitos anos depois da constituição. E o facto 45 refere-se a um 2018, muito depois de 2009 e 2014. E mesmo que se vá buscar o facto 51, também quanto a dividendos, ele refere-se à distribuição de dividendos de 2015 a 2019, anos depois da constituição das sociedades.
Quanto ao argumento da contraprova, ele já foi afastado.
Ou seja, nada do que antecede afasta a fundamentação da decisão recorrida, não havendo prova de quais foram os propósitos da constituição das sociedades rés.
Aliás, os autores esquecem que a Unitel vem, segundo eles próprios alegaram, da Jadeium, ou seja, materialmente ela já existia antes de ser formalmente a Unitel (factos 38, 49 e 59) e os autores não alegavam nada quanto à Jadeium, e isto são mais factos que afastam a possibilidade de presunções a partir da data da criação formal da Unitel.
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O tribunal recorrido deu como não provado que:
f\ Que a ré AA seja a única accionista da Kento e da Unitel.
O tribunal fundamentou assim a sua decisão:
Está demonstrado que a ré AA não era a única accionista da Kento, sendo que após a morte do seu marido, será legítimo admitir que essa participação seja dos respectivos herdeiros, que são desconhecidos na acção. Quanto à Unitel crê-se que não há prova na acção de quem são os seus accionistas.
Os autores entendem que aquela alegação devia ter sido dada como provada, dizendo para o efeito, em síntese:
O tribunal a quo deu como provado que a Kento foi constituída em Malta, a 27/11/2009, com o capital social dividido em 1.200 acções, das quais 1.188 tituladas pela ré AA (i.e., 99%) e 12 (i.e., 1%), tituladas pelo marido da ré, entretanto falecido (facto 35), e que a constituição da Unitel foi promovida pela ré AA, desconhecendo-se a identidade de outros eventuais detentores do capital da mesma, além daquela (facto 37).
Ora, desde logo, a já referida testemunha TR pronunciou-se peremptoriamente acerca do referido facto constante da alínea (f), nos termos do depoimento que se transcreve:
Mandatário dos autores [16:40] Estas Kento e Unitel eram detidas por quem?
Test. [16:49] É atribuída a participação à Eng.º AA. Aliás, é ela que é apontada como a entidade beneficiária última.
Acresce que do próprio comunicado da ZON (à data designada por “ZON Multimédia – Serviços de Telecomunicações e Multimédia, SGPS, S.A.” e, após fusão por incorporação, “ZON OPTIMUS, SGPS, S.A.”, actualmente denominada por “NOS, SGPS, S.A.”, sociedade holding da NOS), junto como doc. 35 da PI, em que aquela informa que foi notificada de comunicado da Sonaecom SGPS, S.A., Kento e Jadeium BV, consta o seguinte: “a Kento e a Jadeium BV (actualmente em fase de alteração da denominação para Unitel), (…) sendo estas duas últimas sociedades, detidas pela Eng. AA (…).”
Além do mais, as próprias contas de 2018 da Kento (juntas como doc. 43 com a PI) evidenciam o facto de a accionista única ser a ré AA. uma vez que referem “the shareholder” e “its shareholder”, no singular (em português, “o/a accionista” e “o seu/a sua accionista” – cf. páginas 17 e 53 das mencionadas contas, cujas traduções foram juntas como doc. 43-B e 43-C com a petição inicial), como consta do facto 46.
Por outro lado, também nas Contas da NOS de 2018 (cf. doc. 45 junto com a petição inicial) a Kento e a Unitel são descritas como sociedades directa e indirectamente controladas pela ré AA – como consta do facto 55.
E, especificamente em relação à Unitel, embora o tribunal a quo tenha dito que “não há prova na acção de quem são os seus accionistas”, a verdade é que foi junta, como doc. 39 com a PI, uma notícia que refere precisamente o facto de a Unitel ser “uma sociedade holandesa detida exclusivamente por AA” (cf. página 2 do referido documento).
Esta notícia refere, também, uma dívida que a Unitel tem perante a Unitel, SA, (sociedade de direito angolano que não tem relação societária com a Unitel, como o tribunal a quo estabeleceu no facto 49), referente a empréstimos concedidos nos anos de 2012 e 2013 – o que coincide, precisamente, com os financiamentos que os autores referiram nos artigos 122 e 123 da PI, celebrados na altura em que a ré AA era administradora da Unitel, SA, dos quais é exemplo o que foi junto como doc. 51 da PI, e que vai assinado pela ré AA em representação de ambas as partes, mutuária e mutuante (!) (cf. página 29 do original em inglês que integra o referido doc.51).
Importa ainda esclarecer que a ré AA está declarada, no Registo Central do Beneficiário Efectivo, como a beneficiária efectiva da ZOPT, SGPS, SA, por via indirecta, através da Kento e Unitel, como o próprio tribunal a quo deu como provado no facto 53, à luz do documento junto como doc. 42 com a PI.
Ainda que tudo o exposto não bastasse: do referido documento 42, que é o Registo Central do Beneficiário Efectivo da ZOPT, consta que a ré AA detém a propriedade da referida ZOPT, com uma percentagem no capital social de 50%, estando ainda referido o seguinte – “Estrutura da detenção: Indirecta – detém 49,83% da sociedade via Kento e via Unitel.”
Ora, esta indicação é cristalinamente reveladora de que a ré AA é accionista única da Unitel. Na verdade, do facto 35 resulta que a ré AA era titular, antes do falecimento do marido, de 99% do capital social da Kento. E, no facto 43, o tribunal a quo deu como provado que a Kento detém 17,35% do capital social da ZOPT.
99% (capital da Kento detido pela ré AA) de 17,35% (capital da ZOPT detido pela Kento) são 17,1765% – ou seja, a ré AA detém indirectamente, por via da Kento, 17,1765% da ZOPT.
No facto 43, o tribunal a quo deu também como provado que a Unitel detém 32,65% do capital social da ZOPT. Ora, se ré AA detiver 100% do capital social da Unitel, deterá indirectamente, por via da Unitel, 32,65% da ZOPT.
Sucede que a soma daqueles 17,1765% com estes 32,65% corresponde a 49,8265%; ou, de forma arredondada, a 49,83%: precisamente a participação que o referido RCBE da ZOPT, junto como doc. 42, imputa à ré AA, indirectamente, por via da Kento e da Unitel.
Ou seja: decorre logicamente de tudo o que antecede que a ré AA tem, necessariamente, de ser titular de 100% do capital social da Unitel – AA é accionista única da Unitel.
Quanto à motivação do tribunal, sempre se dirá, em todo o caso, que mesmo não conhecendo os herdeiros do marido da ré AA, será também legítimo admitir que a ré AA o é; assim como, de qualquer modo, e mesmo não o sendo, sempre permanecerá provado que a ré AA é detentora, no mínimo, de 99% – o que, não sendo suficiente para que se dê como provado que é a accionista única, acaba por ter um efeito em tudo semelhante.
Ainda que não fosse possível concluir directamente neste sentido, a alínea (f) deve ser dada como provada, tendo por base presunções judiciais, especialmente em face dos factos 35 e 37.
Apreciação:
É claramente forçada a argumentação dos autores na parte em que pretendem que a ré AA era a única accionista da Kento. Pois que está expressamente provado (facto 35) que o marido da ré tinha 12 acções na Kento.
O artifício da construção dos autores nota-se também na pretensão de ler o relatório de contas de 31/12/2018 da Kento como confirmando que a ré AA era a única accionista, pois que, ao contrário do que eles dizem, o relatório se refere aos accionistas da Kento, no plural, como aliás consta do facto 47 (embora o facto 47 esteja errado pois que no relatório não se diz que os accionistas concederam empréstimos à sociedade no valor de 120.324.554€; o que refere é: “Loans from related parties (note 15): - ultimate controlling party: 120,324,554”. Sendo que “The ultimate controlling party of the Group is AA” como consta da nota 23 de tal relatório de contas. Como a ré AA é um dos 2 shareholders, na nota 15 do mesmo relatório pode escrever-se: “Loans from shareholders 120.324.554” mas isto não quer dizer que ambos os accionistas sejam os mutuantes – constatação que, ao abrigo dos artigos 607/4, 663/2 e 662/1 do CPC, leva a que a redacção do facto 47 seja alterada para o pôr de acordo com a realidade).
Aliás, logo a seguir vê-se que os autores utilizaram o facto certo de a ré AA só ter 99% da Kento para concluir que tem 100% da Unitel, pelo que os autores não podem dizer, aqui para outro efeito, que ela tem 100% da Kento.
Mais, é o facto de a ré AA só ter 99% da Kento, que explica que a Kento e a Unitel tenham [a propriedade legal de] 50% das participações sociais da ZPOT, e a ré AA só tenha 49,83% da propriedade económica ou indirecta da ZOPT, que é isso que quer dizer a certidão do RCBE a que os autores se referem a seguir.
Não há depoimento de testemunha ou presunção judicial que valha em sentido contrário.
Quanto à Unitel, os autores têm razão. Tendo em conta os factos 35, 43 e 53 e o RCBE junto como doc.42, que precisa em concreto em que é que se concretiza o facto de a ré AA ser a beneficiária efectiva da ZPOT (o simples facto de ser beneficiária efectiva não é suficiente para o efeito, visto que essa qualidade pode derivar de vários factores, como resulta entre o mais do art. 30/1 da Lei 83/2017 de 18/08 e do art. 1 do RJRCBE da Lei 89/2017 de 21/08, ambas na versão consolidada do Diário da República - tem-se em atenção o artigo de Alexandre Soveral Martins, A propósito do combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo. O beneficiário efectivo (de uma sociedade comercial), publicado na ROA 2019, III-IV, páginas 495 a 515), a ré AA tem claramente 100% das acções da Unitel, como os autores demonstram com as contas feitas acima que este TRL acompanha.
Assim, há que acrescentar aos factos provados mais um, qual seja: a ré AA é a única accionista da Unitel (será inserida na parte final do facto 36), com a consequente eliminação da 2ª parte do facto 37 (apesar de não ter sido impugnada pelos autores, está em contradição com o agora dado como provado, pelo que deve ser eliminado ao abrigo dos arts. 607/4, 663/2 e 662/1 do CPC).
Repare-se, entretanto, que isto não quer dizer que a ré AA tenha sido sempre a única accionista da Unitel, designadamente que assim já fosse à data da constituição da Unitel.
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O tribunal recorrido deu como não provado que:
g\ A ré AA seja a pessoa que exerce de forma exclusiva os direitos relativos a essas sociedades, votando sozinha nas respectivas assembleias sociais e recebendo, também a título exclusivo, os respectivos dividendos.
A fundamentação desta decisão foi a seguinte:
Não foi produzida prova que permitisse alcançar esses factos, desconhecendo-se quem vota nas assembleias gerais da ZOPT em representação da Kento e da Unitel e se existem outros, além destas (que são as accionistas), a beneficiar dos dividendos daquela sociedade.
Os autores entendem que aquela alegação de facto deve ser dada como provado, dizendo que:
Com a transição da alínea (f) para o elenco dos factos provados, também a alínea (g) deve transitar para esse elenco.
Quanto à motivação do tribunal, resulta dela que o tribunal a quo confundiu o teor do facto que deu como não provado.
Com efeito, a alegação contida nesta alínea foi apresentada pelos autores no artigo 94 da PI, onde expuseram que “é a ré AA quem, na qualidade de accionista única da 2.ª e da 3.ª rés, exerce de forma exclusiva os direitos sociais, designadamente votando nas assembleias gerais dessas sociedades e recebendo os respectivos dividendos, sendo que, para prova deste facto, as autoras irão requerer a notificação da 2.ª e 3.ª rés para junção aos presentes autos das actas das respectivas assembleias gerais anuais referentes aos autos de 2013 a 2020, documentos que estão em seu poder.”
Ou seja, a menção (i) ao exercício de direitos sociais, (ii) ao voto em assembleias gerais e (iii) ao recebimento dos respectivos dividendos reportava-se, respectivamente, (a) ao exercício dos direitos sociais da ré AA enquanto accionista das 2.ª e 3.ª rés, (b) ao voto nas assembleias gerais da 2.ª e 3.ª rés e (c) ao recebimento dos dividendos da 2.ª e 3.ª rés.
Não se reportava (i) ao exercício dos direitos sociais da 2.ª e 3.ª rés enquanto accionistas da ZOPT, (ii) nem ao voto nas assembleias gerais da ZOPT, (iii) nem ao recebimento dos dividendos da ZOPT, como se percebe que o tribunal a quo erradamente entendeu através da motivação transcrita.
Para prova deste facto os autores requereram na PI, como consta do referido artigo 94, a notificação da 2.ª e 3.ª rés para juntarem aos autos as actas das respectivas assembleias gerais anuais referentes aos anos de 2013 a 2020, documentos que estão em seu poder.
Ora, esta notificação requerida pelos autores foi impossibilitada pelas próprias rés com a sua colocação em situação de revelia absoluta, nos termos do artigo 249/3 do CPC, pelo que não foi possível fazer a prova dos referidos factos com base nestas actas.
No entanto, através do recurso às presunções judiciais e atendendo à ausência de prova que foi auto provocada pelas rés, é possível inferir, com base no facto de a ré AA ser, na prática, a accionista única da Kento e da Unitel, “que a ré AA seja a pessoa que exerce de forma exclusiva os direitos relativos a essas sociedades, votando sozinha nas respectivas assembleias sociais e recebendo, também a título exclusivo, os respectivos dividendos”.
Apreciação:
Como não há qualquer prova de como é que os direitos são, se o forem, exercidos, nem se há ou não assembleias gerais e se os dividendos são ou não distribuídos, é pura especulação aquilo que os autores pretendem dar como provado.
Note-se aliás que foram dadas como não provadas as alegações de facto feitas em (j\ - A ré AA vote nas assembleias gerais das co-rés a atribuição de dividendos destas a si própria. k\ - A essas deliberações se siga a transferência para a ré AA do valor desses dividendos) e os autores não impugnam tais decisões certamente porque não conseguiriam indicar a prova dessas alegações.
Mais, em relação à Kento, no relatório de contas de 2018 – documento 43 com 62 páginas de que os autores resolveram só traduzir duas para os autos – não consta qualquer distribuição de dividendos e consta mesmo a seguinte menção, no fim da página 2, uma das 60 não traduzidas pelos autores: […] The directors do not recommend the payment of dividend during the year […] [=> Os administradores não recomendam o pagamento de dividendos durante o ano].
Quanto ao argumento da ausência de prova auto provocada pelas rés, já se disse que não se pode aceitar que isso seja verdade pelo menos em relação à ré Kento, citada editalmente.
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Os autores entendem que ficou provado parte daquilo que alegavam no art. 118 da PI, isto é:
A ré retira para si os dividendos anualmente gerados pela ZOPT, determinando o voto favorável à sua distribuição, designadamente às 2.ª e 3.ª rés, nas assembleias gerais da ZOPT”
Para fundamentar esta pretensão dizem:
O tribunal a quo não incluiu tal facto no elenco dos factos, provados ou não provados, pelo que não o considerou relevante.
Sucede que esta determinação do voto favorável à distribuição dos dividendos da ZOPT que a ré AA retira para si afigura-se como relevante para a acção, na medida em que consubstancia uma instrumentalização que é um dos fundamentos que justifica a necessidade de recorrer à desconsideração da personalidade jurídica da 2.ª e 3.ª rés.
Tal factualidade deveria ter sido dada como provada a partir de outros factos que o tribunal deu como provados e que permitem, por presunção judicial, inferir a mesma.
Concretamente ficou provado que: a) a Kento e a Unitel fizeram-se representar nas assembleias gerais da ZOPT até à realizada em 28/03/2019, inclusive, tendo votado nas mesmas, designadamente, no sentido da distribuição dos dividendos dos exercícios de 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018 (facto 51); b) A ré AA está declarada, no RCBE, como a beneficiária efectiva da ZOPT por via indirecta, através da Kento e Unitel (facto 53); c) A ré AA é administradora da ZOPT (cf. facto 54).
Além do mais, o tribunal a quo deu como provado que a ré AA é titular de uma percentagem equivalente a 99% do capital social da 2.ª Kento (facto 35) – e, como exposto, deve ser dado como provado que a ré AA é, na prática, a accionista única das 2.ª e 3.ª rés.
Assim se compreende que a ré AA determinava o voto favorável à distribuição dos dividendos que consta das actas da ZOPT.
Com efeito, como o próprio tribunal a quo expôs na motivação do facto 51, “A cópia das actas requisitadas à ZOPT juntas em 17/10/2024, documentam a participação das accionistas Kento e Unitel nessas assembleias, bem como as distribuições de dividendos dadas como provadas, não identificando, contudo, os intervenientes em representação dos accionistas”.
Nas referidas actas é possível verificar que as propostas de os resultados líquidos serem afectos, em grande medida, à distribuição de dividendos, são apresentadas pelo Conselho de Administração no qual a ré AA se inclui, como o tribunal deu como provado (facto 54)
Ora, embora as actas não identifiquem os intervenientes em representação dos accionistas, revelam que as referidas propostas foram aprovadas por unanimidade, ou seja, com os votos favoráveis da Kento e Unitel (como o tribunal também deu como provado, no facto 51).
Assim, tendo em conta que a ré AA é accionista única da Kento e Unitel deve-se inferir, mediante as presunções judiciais que a ré AA determinava o voto favorável à sua distribuição dos dividendos da ZOPT às 2.ª e 3.ª rés nas assembleias gerais da ZOPT.
Além do exposto, e também demonstrativo da instrumentalização e confusão entre as esferas patrimoniais da ré AA e da Kento, o tribunal a quo deu como provado que:
a) Do relatório e Contas de 2018 da Kento consta que “os valores devidos ao accionista por suprimentos foram incluídos no passivo corrente (…), o qual se comprometeu a apoiar financeiramente O Grupo e a Sociedade no cumprimento das suas obrigações presentes e futuras à medida em que e quando se vençam, no cumprimento de quaisquer obrigações bancárias resultantes do contrato de empréstimo bancário, e a não exigir o reembolso destes montantes, salvo se existirem fundos disponíveis para tal”. (facto 46).
b) Os empréstimos da ré AA à Kento no valor de cerca de 120 milhões de euros não foram objecto de quaisquer garantias, juros e não contemplavam qualquer data de reembolso (cf. facto 47).
Além do mais, como resulta da própria estrutura accionista e do relatório e contas de 2018 da NOS, juntos como doc. 40 e doc. 45 da PI, mas também disponíveis à data de hoje no site www.nos.pt com a mesma informação, e o próprio tribunal a quo deu como provado sob facto 55, “é imputável uma participação qualificada de 52,15% do capital social e direitos de voto da sociedade à Sr.ª Eng.ª AA, sendo a Kento e a Unitel, sociedades direita e indirectamente controladas pela Sr.ª Eng.ª AA”, o que evidencia a confusão de personalidades da ré AA e das 2.ª e 3.ª rés.
Como o próprio tribunal a quo deu também como provado, a Sonaecom, em comunicado de 19/08/2020 na sequência do escândalo denominado “Luanda Leaks”, referiu-se à sua parceira na ZOPT, aqui ré AA, como “accionista de controlo da Unitel e da Kento” (facto 57).
Importa deixar claro que não se pretende, aqui, dar como provado que a ré AA controlava directamente a própria ZOPT (ou a própria NOS), mas tão somente que a ré AA controlava a participação social que a 2.ª e a 3.ª rés detinham na ZOPT, numa percentagem total de 50% do capital social da referida ZOPT, tendo sido esta a factualidade alegada na PI. E essa factualidade resulta, sem margem para dúvida, dos factos e documentos acima referidos.
Apreciação:
Aquilo que é certo é que a ré AA é praticamente (99% da 1.ª e 100% da segunda) a única accionista da Kento e da Unitel que são accionistas da ZOPT e que esta distribui dividendos àquelas sociedades, com o voto favorável da Kento e da Unitel (facto 51), que estavam representadas nas assembleias gerais respectivas, sendo a ré AA administradora da ZOPT (facto 54) e esteve presente nas AG pelo menos nas de 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019, as únicas em que houve distribuição de rendimentos (da ZOPT…).
Não há prova de que a ré AA tenha determinado o voto à distribuição, mas simplesmente que as sociedades votaram favoravelmente essa distribuição - note-se que os autores não impugnam a decisão de dar como não provado a alegação i\, qual seja: “a Kento e a Unitel tenham sido representadas nas assembleias da ZOPT pela ré AA”.
É certo que estando as Kento e Unitel representadas, sendo elas em 99% e 100% da ré AA e estando presente a ré AA nas AG, é muito provável que elas tenham sido representadas pela ré AA, mas como os autores não impugnaram a alegação de facto i\ não se vai mexer na questão. Mas sendo isto muito provável, é também muito provável que tenha sido a ré a votar favoravelmente a distribuição de dividendos (da ZOPT…). Ora, votar uma decisão é mais do que determinar o voto favorável.
Mas tudo isto já consta dos factos provados (para além dos já referidos (51 e 54), ainda os factos 35, 36 - já com o aditamento resultante deste acórdão - 41, 42, 43 e 53) e por isso não há nada a acrescentar (excepto a necessária alteração do ponto 51, já que no ano de 2014 não houve distribuição de dividendos – de novo ao abrigo dos artigos 607/4, 663/2 e 662/1 do CPC).
Já é especulação saber o que é que a Kento e a Unitel fazem dos dividendos que lhes são distribuídos, porque nada se sabe quanto ao destino dos dividendos distribuídos à Kento e Unitel, designadamente se, por sua vez, a Kento e Unitel distribuem dividendos – e se eles existem - pelos seus accionistas (ou seja a ré AA e, no caso da Kento, ainda o marido falecido) ou se empregam os dividendos no exercício da sua actividade (actividade que tudo aponta que existe: como resulta, por exemplo, dos factos 44 e 45). Veja-se, aliás, como se viu acima, que em 2018 os administradores da Kento, entre eles a ré AA, não recomendaram o pagamento de dividendos durante o ano.
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Do recurso sobre matéria de direito
A sentença tem a seguinte fundamentação de direito, com algumas simplificações e apenas na parte relativa à absolvição das rés sociedades, já que a condenação da ré AA não levantava nenhuma dúvida (pois que contra ela já havia título executivo – a livrança já em execução – e daí a condenação dos autores em custas apesar de, nessa parte, terem ganho a acção) [as identificações mais precisas entre parenteses rectos e os links foram colocados por este TRL]:
O desiderato que move [os autores] nesta acção é alcançar o património de duas terceiras ao financiamento e às livranças, que são as rés Kento e Unitel.
Para fundamentarem essa pretensão, os autores alegam, em síntese, que essas rés são uma interposição fictícia da ré AA, que a referida ré é a titular e beneficiária de facto das participações sociais que aquelas detêm na ZOPT (titular, por sua vez, de uma parte do capital da NOS), que essas rés se confundem com aquela outra, que só existem para deter aquelas participações e que é a ré AA que controla os direitos inerentes às participações atrás referidas. Por isso, entendem que se deve desconsiderar as personalidades jurídicas (autónomas) das duas sociedades e responsabilizá-las, em regime de solidariedade, pela dívida da ré AA.
A desconsideração da personalidade colectiva é uma doutrina cujo fundamento último se filia no abuso de direito previsto no art. 334 do Código Civil e que é assumida como de natureza residual ou subsidiária face a outros institutos, nomeadamente, aos que permitem a responsabilização dos sujeitos singulares pelo passivo dos entes colectivos, como é o caso de, entre outros, os regimes previstos nos artigos 84, 58/1b e 58/3 do Código das Sociedades Comerciais.
O instituto foi densificado, pela doutrina e pela jurisprudência, como forma de reprimir violações graves e ostensivas da autonomia dos entes colectivos, praticadas pelas pessoas singulares que dão forma à vontade daquelas outras.
Ensina o Professor Menezes Cordeiro que «o levantamento da personalidade colectiva não deriva de quaisquer lucubrações teóricas. Trata-se de um instituto surgido a posteriori para sistematizar e explicar diversas soluções concretas, estabelecidas para resolver problemas reais postos pela personalidade colectiva» (O Levantamento da Personalidade Colectiva, Almedina, pág. 115).
Como refere Catarina Serra “o princípio fundamental do Direito das Sociedades Comerciais é o de que a sociedade comercial representa um ente distinto e autónomo dos sócios” (em Desdramatizando o afastamento da personalidade jurídica (e da autonomia patrimonial)) Julgar, nº 9, 2009).
É que o resulta do art. 5.º do CSC ao estatuir que “as sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por fusão, cisão ou transformação de outras”.
Também como se refere nesse estudo, a autonomia patrimonial das sociedades comerciais é um princípio de duas vias: apenas a sociedade é responsável pelas suas dívidas (e não os sócios) e a sociedade só é responsável pelas suas dívidas, o que significa que a mesma não responde pelas dívidas (pessoais) dos sócios (ob. cit. pág. 112).
Habitualmente as situações de desconsideração que suscitam a atenção dos tribunais referem-se à possibilidade de afastamento da primeira dessas premissas, discutindo-se em que medida e com que fundamentos pode o sujeito singular (o sócio, a pessoa que controla ou domina a vontade societária) ser responsabilizado com o seu património pessoal pelas obrigações da sociedade.
É a propósito dessas situações mais comuns que Menezes Cordeiro ensina que a doutrina da desconsideração da personalidade colectiva deu origem a “constelações” de casos concretos que podem ser agrupados nas seguintes três espécies: (i) a confusão de esferas jurídicas; (ii) a subcapitalização e (iii) o atentado a terceiros e o abuso de personalidade. São típicas da primeira espécie as situações em que “o sócio ou os sócios tratam e dispõem da sociedade e do património social como se fosse “coisa própria” (e vice-versa): pagam dívidas da sociedade com valores depositados em contas bancárias pessoais; recorrem à tesouraria da sociedade para liquidar dívidas pessoais; realizam, em nome da sociedade, negócios jurídicos para proveito próprio ou de terceiros; em suma, que o sócio ou os sócios convertem a sociedade no seu alter ego ou num corporate dummy, a despeito do princípio da separação.” (Catarina Serra, no artigo acima citado).
A situação de facto e o enquadramento jurídico fornecidos nesta acção não fazem parte desse tipo de casos, já que não está em causa atingir o património pessoal do sócio, por cima ou a despeito, da personalidade colectiva.
A situação é a inversa: pretende-se atingir a sociedade (neste caso, as sociedades rés), considerando o seu património como parte do património da pessoa singular.
Fala-se a este propósito de “desconsideração inversa da personalidade jurídica” (cf. a este propósito o artigo A desconsideração inversa da personalidade jurídica: o arresto de bens de uma sociedade para garantia de uma dívida de uma pessoa singular”, Luís Bértolo Rosa e Mafalda Fuzeta da Ponte, Actualid Jurídica Uria Menéndez, 63, diciembre 2023, pp. 191-201).
No acórdão de 12/06/1997 o Supremo Tribunal de Justiça considerou obrigada a não concorrência a pessoa colectiva que foi constituída pelos obrigados a esse dever (processo 97B268 [só sumário]).
Mais recentemente, no ac. de 12/09/2019 [a sentença está a referir-se ao ac. proferido no proc. 8049/15.2TPRT.P1.S3.S1], o STJ foi chamado a decidir um caso com as seguintes características: o devedor constituiu uma sociedade anónima, subscrevendo em espécie mais de 96% do seu capital social, subscrevendo a sua esposa pouco mais de 2,5% do mesmo capital, cabendo aos restantes sócios uma fracção residual do mesmo capital social. A subscrição do capital por parte do devedor foi feita em espécie, entrando ele com todos os bens imóveis que o agente de execução havia localizado em sede de pesquisa de bens realizada no âmbito da acção executiva instaurada anteriormente à constituição da sociedade.
A situação foi enquadrada no âmbito da fraude à lei, mas das considerações tecidas na fundamentação extrai-se o seguinte trecho, relevante para o caso concreto: “a terminar, e estritamente em obiter dictum, observa-se que, visto o caso dos autos do instituto na sua globalidade, poderia equacionar-se a aplicabilidade do instituto conhecido como ‘desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais’. São, de facto, vários os sinais que apontam para a hipótese de se tratar de uma situação exemplar de instrumentalização fraudulenta do veículo societário, uma daquelas em que tipicamente se aplica aquela solução”.
Nesse caso, havia uma hipótese de desconsideração inversa, já que a personalidade colectiva havia sido criada intencionalmente para subtrair os bens do devedor à respectiva garantia patrimonial.
Uma outra situação pertencente ao mesmo universo problemático, foi decidida no ac. do STJ de 10/01/2012. Nesse caso a sociedade foi utilizada para impedir que os imóveis adquiridos integrassem o património do sócio, fazendo com que os mesmos escapassem à execução específica do contrato-promessa que aquele havia antes celebrado (antes da constituição da sociedade) (proc. 434/1999.L1.S1).
Também no acórdão de 21/04/2020, o TRL confirmou uma situação de desconsideração inversa, num caso em que os bens arrestados pertenciam formalmente a uma sociedade que não tinha actividade, que o requerido controlava e que era a proprietária da casa onde ele habitava (proc. 11557/19.2T8LSB.L1-7).
A fluidez e a pouca densificação do instituto que é a desconsideração, sobretudo nestas situações em que se pretende alcançar o património de uma sociedade a pretexto de que o mesmo só por razões formais e com prejuízo de terceiros, pertence à pessoa colectiva, impõe, segundo se crê, algumas cautelas.
Elas resultam da importância económica da autonomia patrimonial das sociedades enquanto factor de promoção do investimento. A aplicação da desconsideração da personalidade colectiva, com a consequente responsabilização das sociedades pelas dívidas dos sócios dominantes, pode, com alguma probabilidade, ser um factor de incerteza e insegurança jurídicas, com precipitações económicas indesejáveis.
Importa, neste passo, relembrar o papel económico da responsabilidade limitada que domina as sociedades de capitais.
“(…) a responsabilidade limitada permite superar a aversão ao risco de que os indivíduos demonstram, facilitando a captação dos respectivos capitais, através da garantia de que apenas tais capitais investidos poderão estar expostos aos riscos inerentes ao respectivo investimento, preservando-se o demais património do investidor”. [pág. 1401]
“A responsabilidade limitada não elimina os riscos, redistribui-os entre os envolvidos. Daí que, em termos económicos, se possa afirmar que a responsabilidade limitada permite externalizar negativamente. Resumidamente, uma sociedade cujo estatuto lhe permita actuar sob responsabilidade limitada, partilha com terceiros os danos que eventualmente venha a provocar com a sua actividade, os quais apenas terá de cobrir na medida em que o respectivo património o permita”. [pág. 1402]
Do mesmo modo e em conclusão, “o ordenamento reconhece às sociedades de responsabilidade limitada a possibilidade de externalizarem negativamente, fazendo recair sobre terceiros potenciais custos da sua actividade. Esta externalização é socialmente consentida, pois é percepcionada pelos agentes como a contrapartida necessária ao desenvolvimento de actividades socialmente úteis que não poderiam ser prosseguidas sem recurso à responsabilidade limitada” ([1403] - André Marçalo, Notas sobre a desconsideração da personalidade jurídica de sociedades de responsabilidade limitada: contributos da análise económica do direito”, RIDB, Ano 2 (2013), n.º 2).
Tendo presentes esses dados e a já apontada falta de densificação do instituto (também conhecido pelo seu “casuísmo”) algumas abordagens doutrinais preocupam-se com fronteiras mais claras, desmontando alguns falsos fundamentos a favor da desconsideração, como o é, o controlo da sociedade por um único sócio.
Escreve a Professora Maria de Fátima Ribeiro “o controlo da sociedade por um sócio não pode (ou já não pode), como facilmente se percebe, constituir só por si fundamento para a responsabilização ilimitada desse sócio pelas dívidas da sociedade – não é o facto de um sócio controlar a sociedade que ameaça a tutela dos seus credores e que, portanto, reclama uma reacção jurídica, mas antes (e apenas) o facto de um sócio, por controlar a sociedade, adoptar comportamentos que possam pôr em causa a satisfação dos credores sociais; então, essa reacção deve dirigir-se aos comportamentos do sócio pelos quais este causa o referido dano e não à situação de facto que lhes subjaz” (Desconsideração da personalidade jurídica e tutela de credores, pág. 21).
Um outro ponto de apoio, também falso, é a circunstância de estar em causa uma sociedade offshore ou sociedade sediada num território com um regime fiscal mais favorável.
“Para combater a recente proliferação de offshores (que visa, precisamente e na generalidade dos casos, disseminar ou disfarçar a ligação entre actividade e garantia ou entre poder e capital) pode surgir o desejo natural de forçar a reacção do ordenamento jurídico. Ora, nem sempre tal resposta se justificará. O mero facto de existirem offshores não justifica por si só a desconsideração da personalidade colectiva. A chamada à responsabilidade do agente singular que actua por trás (homem oculto), ignorando a interposição de terceiras pessoas, só pode ocorrer quando o levantamento também se justificasse sem a existência da offshore (Armando Manuel Triunfante e Luís de Lemos Triunfante, Desconsideração da Personalidade Jurídica – sinopse doutrinária e jurisprudencial, Julgar nº 9, 2009, pág. 143).
Regressando ao que acima se referiu sobre a inserção da situação de facto desta acção no modelo da desconsideração inversa da personalidade jurídica, nesta, tal como a desconsideração “normal” ou paradigma, também foram identificadas constelações típicas de casos. São elas a mistura ou confusão de patrimónios e a blindagem patrimonial (cf. o artigo de Luís Bértolo Rosa e Mafalda Fuzeta da Ponte, atrás identificado).
Na primeira, há uma circulação de bens e dinheiro entre a sociedade e o sócio que a controla, de modo que a pessoa colectiva é tratada pelo sócio como uma extensão de si próprio, servindo o activo da sociedade para satisfazer o sócio, mas mantendo-se formalmente a segregação patrimonial quando os credores deste se aproximam e procuram a garantia do seu crédito.
“Nos casos de mistura de patrimónios, circulam bens da sociedade para o património dos sócios (por exemplo, as contas bancárias da sociedade são usadas para pagar as despesas privadas de sócio(s), os bens da sociedade são usados para satisfazer necessidades dos sócios ou de quem lhe é próximo), tornando impossível distinguir com rigor o património da sociedade e o património dos sócios” (Elisabete Ramos, Direito das Sociedades, Almedina, pág. 160).
Nessas situações, o sócio, de forma intencional e violando os princípios da separação patrimonial, tem “o melhor de dois mundos”: dispõe da sociedade como se o que ela tem fosse seu, mas mantém-na a recato, com o respectivo património, fora do alcance dos seus credores pessoais.
Voltando aos factos desta acção, sabe-se, no essencial, o seguinte:
a\ A ré Kento foi constituída antes do mútuo que subjaz ao crédito dos autores (aquela é de 2009, este de 2015), com uma posição largamente maioritária de capital detido pela ré AA (99%);
b\ A mesma sociedade detém, além de 17,35% da ZOPT, participações sociais em duas sociedades com actividade em Portugal e Moçambique;
c\ Os seus lucros provêm maioritariamente da posição accionista na ZOPT.
d\ A sociedade interveio nas assembleias desta sociedade votando a distribuição de dividendos;
e\ A ré Unitel foi constituída também antes do financiamento em causa nesta acção (foi constituída em 2012), tendo a sua constituição sido promovida pela ré AA, sem que se saiba se além desta existem outros eventuais accionistas da mesma.
f\ Essa sociedade detém 32,65% do capital da ZOPT e tal como a co-ré intervém nas assembleias gerais desta sociedade.
g\ A ré AA consta como beneficiária efectiva da ZOPT, por via indirecta, através da Kento e da Unitel.
Sendo esses os factos relevantes que se provaram quanto à relação entre as sociedades e a pessoa singular, crê-se que dos mesmos não resulta minimamente demonstrada a confusão de patrimónios que constitui a primeira constelação de hipóteses de desconsideração inversa atrás referida.
A situação de facto da acção aproximar-se-á mais do segundo tipo de casos, o da blindagem patrimonial ou blindagem de activos.
Nessa “constelação” são agregadas as situações em que a sociedade é constituída, de modo preordenado, como via para evitar que os patrimónios pessoais do sócio ou da pessoa que, através de interposto, domina a sociedade, sejam atingidos pela cobrança dos respectivos créditos.
No mesmo grupo de hipóteses, tal como ocorre em todos os tipos de casos de desconsideração, é de exigir, segundo se crê, um abuso, uma utilização altamente reprovável ou inaceitável da personalidade colectiva. É de exigir ainda um juízo de censurabilidade da pessoa que beneficia da segregação patrimonial.
“O juízo de censurabilidade é fundamental, pois permite impedir o alargamento excessivo de hipóteses onde existe a tentação de aplicar a figura da desconsideração” (Armando Manuel Triunfante e Luís Lemos Triunfante, ob. cit, pág. 143).
No mesmo sentido, do ac. do TRP de 24/01/2005 [0411080] retém-se: «Não deve levantar-se ou desconsiderar-se a personalidade jurídica da empresa contratante, a não ser quando o interessado prove manifestações de conduta societária reprovável (como, por exemplo a confusão ou promiscuidade entre as esferas da sociedade e dos sócios, a subcapitalização da sociedade para concretizar o objecto social ou as relações de domínio grupal) e uma actuação de fraude à lei, evidenciada aquando da existência de efeitos prejudiciais a terceiros».
Escreveu-se também no ac. do TRL de 29/04/2008 [10802/07] “(…) para não abalar a segurança jurídica decorrente do reconhecimento legal do ente colectivo nem tão pouco quebrar a confiança depositada nesse instituto jurídico pelos sujeitos de direito, tal relativização tem de obedecer a pressupostos estritos que definam situações excepcionais relevantes e que não encontram solução satisfatória no quadro de outros institutos gerais ou específicos”.
Na situação de facto dos autos, temos duas sociedades anteriores à constituição do crédito dos autores, não podendo estabelecer-se uma relação de causa e efeito entre a criação das pessoas colectivas e uma eventual fuga à garantia patrimonial do crédito aqui em causa. Essa ligação não existe, uma vez que quando o crédito se gerou, as sociedades já existiam e detinham as participações que os autores agora querem alcançar.
Foram essas sociedades constituídas exclusivamente para evitar que a ré AA tivesse património em nome próprio ou foram constituídas para segregar, do património pessoal daquela, o risco inerente à actividade que desenvolvem? Ignora-se.
Pode afirmar-se que as mesmas foram constituídas e subsistem com o propósito de defraudar terceiros? Crê-se também que não.
Constitui fraude ou violação grave das normas e princípios gerais a detenção de participações sociais noutras sociedades, não em nome próprio, mas através de sociedades? Também se julga que não.
Finalmente, haverá que ter em conta que sendo os autores instituições de crédito, submetidas a elevados padrões de profissionalismo e rigor na sua actividade (com expressão particular na capacidade de avaliação do risco das suas decisões, cf. art. 14/1-f-g-h do Regime jurídico das instituições de crédito e sociedades financeiras), fazem parte daqueles credores “fortes” (expressão imputada ao Professor Coutinho de Abreu como usada em “Subcapitalização de sociedade e desconsideração da personalidade jurídica”, citada por Maria de Fátima Ribeiro no artigo supra referido) perante os quais, a desconsideração da personalidade jurídica deve ser particularmente exigente, sobretudo quando, como é o caso, os mesmos sabiam que as participações na ZOPT (que, por sua vez, detém parte da NOS) não estavam na titularidade da avalista das livranças mas de sociedades terceiras.
Assim e pelas razões expostas, crê-se que não estão reunidos nesta acção os pressupostos necessários à utilização do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, pelo que o pedido formulado contra a Kento e a Unitel será julgado improcedente.
Contra isto, os autores dizem o seguinte [transcreve-se do corpo das alegações, com simplificações]:
À luz da factualidade provada, demonstrou-se que os autores são credoras da 1.ª ré por um valor que, só em capital, ultrapassa os 16 milhões de euros, na sequência do incumprimento de financiamentos que concederam para aquisição de uma participação de relevo na Efacec, que viria a ser nacionalizada após o escândalo conhecido como “Luanda Leaks” (cf. factos provados 1 a 23 e, a final, a condenação da 1.ª ré).
Demonstrou-se também que a 1.ª ré e sociedades veículo da mesma (Winterfell 2 e Winterfell) se furtaram sucessivamente ao contacto com os autores (cf., principalmente, factos 13 e 23, mas também 14 a 18 e 22), não reembolsando os empréstimos mesmo após sucessivas tentativas de contacto e cartas de interpelação, tendo assim forçado os autores a interpor diversas acções judiciais contra a 1.ª ré, nas quais os autores não lograram penhorar qualquer bem com valor, permanecendo a totalidade da referida dívida por reembolsar (cf. factos 24 a 34).
Demonstrou-se também que a 1.ª ré é, na prática, a accionista única das 2.ª e 3ª rés.
O tribunal a quo deu como provado que a 2.ª e a 3.ª rés detinham, em conjunto, 50% do capital social da ZOPT (cf. factos 41 e 42).
Ora, como preliminar da presente acção e correspondendo ao seu apenso A, os autores requereram e viram ser decretado, com a desconsideração da personalidade jurídica, um arresto sobre as acções representativas do capital social da ZOPT que eram formalmente detidas pela 2.ª e 3.ª rés, para garantia do pagamento da referida dívida da 1.ª ré (cf. sentença proferida no apenso A).
De resto, conforme resulta do referido apenso A, após ter sido decretado, este arresto não teve qualquer oposição da parte das rés.
Em processo semelhante ao presente, cuja sentença foi junta como doc. 1, foi decidido, incluindo a respeito do prejuízo decorrente para o credor da actuação da 1.ª ré, que:
“Tal resulta atentatório do princípio da boa-fé, acarretando como consequência directa danos sofridos pelo autor, que não consegue ver satisfeito o seu crédito porquanto, sendo facto público e notório que a 1ª ré é uma das pessoas mais ricas do mundo, não é possível localizar bens em seu nome pessoal, já que a mesma tudo detém de forma indirecta escudando-se na personalidade jurídica de sociedades que cria com o único fito de esconder o seu património pessoal.
Importa, pois, concluir que a 1ª ré, servindo-se de forma fraudulenta do referido princípio da separação patrimonial para manter o seu nível de vida, prejudicando os seus credores, entre os quais o autor, que têm visto frustradas todas as tentativas de satisfação do seu crédito, sendo que a 1ª ré tem revelado, com a sua conduta evasiva, que não tem qualquer intenção de cumprir as obrigações por si assumidas, furtando-se mesmo ao contacto com as requerentes.
Acresce ainda que, não obstante o carácter subsidiário deste instituto da desconsideração da personalidade colectiva, o certo é que não há, in casu, outro instituto que possibilite ao autor que o património da 2ª ré responda pelas dívidas da ré ao autor.”
A factualidade exposta permite concluir que existe uma confusão entre as esferas jurídicas da 1.ª ré e as das 2.ª e 3.ª rés, e que a personalidade jurídica das sociedades que a 1.ª ré directamente detém – i.e., a 2.ª e 3.ª rés – está a ser usada em moldes contrários ao princípio da boa fé, constituindo um verdadeiro abuso de direito, nos termos do disposto no artigo 334 do CC.
Ora, apesar de, por princípio, os sócios e as sociedades por si detidas serem entidades autónomas – aspecto ainda mais evidente em sociedades de responsabilidade limitada –, tal não constitui um princípio absoluto.
Uma das excepções tipicamente apontadas pela doutrina e jurisprudência nacional são os casos de abuso de direito de personalidade jurídica colectiva, nos quais se permite o levantamento da personalidade colectiva.
De facto, de acordo com Coutinho de Abreu,
“As sociedades-pessoas jurídicas são, dissemo-lo já, autónomos sujeitos de direito; estão “separadas” dos seus membros (sócios) – outros autónomos sujeitos de direito. Todavia, a sociedade não vive por si e para si, antes existe por e [principalmente] para o(s) sócio(s); destes é ela instrumento (há pois estreita ligação entre uma e outros). Por outro lado, o património da sociedade não está ao serviço de interesses da pessoa jurídica “em si”, mas sim do(s) sócio(s). Ora, é esta substancialista consideração da personalidade colectiva que abre vias para a “desconsideração” da mesma num ou noutro caso; é o tomar em conta do substrato pessoal e/ou patrimonial da sociedade que induz, por vezes, a “levantar o véu” da personalidade, a derrogar o chamado princípio da separação.” (Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. I, anotação ao artigo 5.º do CSC, 2.ª ed., Almedina, 2017, p. 108 [= Curso de Direito Comercial, Das sociedades, vol. II, 8.ª edição, Almedina, 2025, pág. 182, excepto com o acrescento da palavra entre parenteses rectos - TRL]).
Neste sentido, existem três grupos típicos em que o levantamento da personalidade jurídica de uma sociedade é possível:
(i) a confusão de esferas jurídicas;
(ii) a subcapitalização; e
(iii) o atentado a terceiros e o abuso de personalidade
(cf., nomeadamente, António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I – Parte Geral, 1.ª reimp. da 3.ª ed., Almedina, 2016, p. 429).
Nas palavras de António Menezes Cordeiro,
“a confusão de esferas jurídicas verifica-se quando, por inobservância de certas regras societárias ou, mesmo, por decorrências puramente objectivas, não fique clara, na prática, a separação entre o património da sociedade e a do sócio ou sócios” (cf., O Levantamento, citado, p. 116).
Assim, haverá confusão de esferas jurídicas quando os sócios, em especial nos casos em que se está na presença de um sócio único, têm poder de controlar a gestão da sociedade e, no âmbito de tal gestão, se verifica uma promiscuidade entre a esfera jurídica, patrimonial e/ou pessoal entre tal sociedade e os sócios (cf., ac. do STJ de 07/11/2017, proc. 919/15.4T8PNF.P1.S1).
Nas palavras do mesmo autor:
“O atentado a terceiros verifica-se sempre que a personalidade colectiva seja usada, de modo ilícito ou abusivo, para os prejudicar. Como resulta da própria fórmula encontrada, não basta uma ocorrência de prejuízo, causada a terceiros através da pessoa colectiva: para haver levantamento será antes necessário que se assista a uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios.” (cf. Direito das Sociedades, citado, p. 434).
Nestes termos, o atentado a terceiros pode configurar, portanto, uma situação em que o accionista devedor utiliza a personalidade colectiva de sociedades por si detidas, de modo abusivo e ilícito, para se eximir do cumprimento de obrigações perante os seus credores.
Deste modo, por força da boa fé e do artigo 334 do CC, a personalidade jurídica de uma sociedade pode ser levantada se for utilizada abusivamente, de forma a prejudicar os credores de um certo accionista devedor.
Veja-se também, a este propósito, o ac. do STJ de 05/09/2019, proc. 1669/14.4TBSTS.P1.S2:
“VIII - A desconsideração da personalidade jurídica, também designada por levantamento da personalidade colectiva das sociedades comerciais, tem, na sua base, o abuso do direito da personalidade colectiva, ou seja, o instituto deve ser usado, se e quando, a coberto do manto da personalidade colectiva, a sociedade ou sócios, dolosamente, utilizarem a autonomia societária para exercerem direitos de forma que violam os fins para que a personalidade colectiva foi atribuída em conformidade com o princípio da especialidade, assim almejando um resultado contrário a uma recta actuação.
IX - Deve entender-se por desconsideração o desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros ou, dito de outro modo, desconsiderar significa derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam. Existe, na desconsideração, um atingimento de pessoa jurídica diferente da visada.
X - Dentre os casos enquadrados pela doutrina na figura da desconsideração da personalidade jurídica conta-se o controlo da sociedade por um sócio, mas esse mero controlo não desencadeia, só por si, qualquer tipo de reacção jurídica. É necessário que o sócio use o controlo societário para a satisfação dos seus interesses pessoais, de carácter extra-social, que não tenham em vista o lucro para o património social, antes redundem em prejuízo do ente societário e dos credores sociais.
XI - O recurso ao instituto do levantamento da personalidade colectiva tem em vista corrigir comportamentos ilícitos de sócios que abusaram da personalidade colectiva da sociedade, actuando em abuso do direito, em fraude à lei ou com violação das regras de boa fé e em prejuízo de terceiros e, apesar disso, quando essa conduta envolva um juízo de reprovação ou censura e não exista outro fundamento legal que a invalide.”
Portanto, segundo o STJ, um sócio incorre numa conduta abusiva se utilizar dolosamente a sociedade que detém para fins inteiramente extra-societários, como o aproveitamento da autonomia patrimonial dos sócios, previsto no artigo 271 do CSC, para se eximir do cumprimento das suas obrigações.
Por último, veja-se ainda a este propósito o ac. do TRL de 03/03/2005, 1119/2005-6 que decidiu pela desconsideração da personalidade jurídica:
“Torna-se assim claro que para que se verifique o abuso da limitação da responsabilidade, deverá haver alguém em condições de controlar ou dominar de forma duradoura a sociedade, a quem a doutrina vem designando por “HOMEM OCULTO”, figura que no direito alemão corresponde à designação de “HINTERMANN”, no sentido de que actuando a coberto da capa de pessoa colectiva, utiliza esta como instrumento da sua vontade no seu interesse pessoal. (…) O “homem oculto” é assim a pessoa singular ou colectiva que podem formar, por si a vontade social, desfuncionalizando a sociedade, cuja imagem se obtém da análise de cada caso concreto. Entre ele e a sociedade, há uma relação de domínio de natureza jurídica e que pode ser apenas de forma indirecta.”
Nos presentes autos está em causa não a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade para responsabilizar directamente a sócia única, mas sim a desconsideração da personalidade jurídica das sociedades para que estas sejam responsabilizadas directamente por dívidas da sócia única, aqui 1.ª ré – a desconsideração inversa da personalidade jurídica, como o tribunal a quo refere.
A factualidade demonstrada na presente acção corresponde a dois dos tipos de caso enumerados: o abuso da personalidade colectiva e a confusão de esferas jurídicas.
As razões que sustentam a desconsideração da personalidade jurídica inversa são as mesmas da desconsideração da personalidade jurídica tradicional.
À luz da jurisprudência e doutrina referida pelo tribunal a quo deveria ter-se desconsiderado a personalidade jurídica das 2.ª e 3.ª rés, condenando-as no pedido.
Com efeito, a 1.ª ré usou abusivamente a personalidade colectiva de duas sociedades fictícias, instrumentalizando-as para que não pudesse ser responsabilizada pelas suas dívidas, prejudicando os seus credores.
E não se diga, como diz a sentença recorrida, que só porque a constituição das rés foi anterior ao financiamento de que resulta o crédito peticionado, não se pode estabelecer uma relação de causa e efeito entre a existência daquelas sociedades e uma dissipação da garantia patrimonial do crédito aqui em causa.
Com efeito, a inversão desta cronologia não é exigível para a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica – o facto de a constituição das 2.ª e 3.ª rés ser anterior ao crédito não contende com o facto relevante de que a 1.ª ré, posteriormente, as instrumentalizou em violação do princípio da boa-fé.
Tanto mais assim é que se verifica que, através dessa e de outras instrumentalizações de sociedades pela 1.ª ré, não se consegue encontrar património desta que seja susceptível de responder pelas suas dívidas, como o próprio tribunal a quo deu como provado na sentença recorrida, resultando claro, assim, que os autores não terão outra forma de recuperar as quantias que legitimamente peticionam que não através da desconsideração da personalidade jurídica.
De resto, na sentença proferida em processo semelhante junta como doc. 1, o tribunal concluiu que:
“Trata-se de uma sociedade veículo sem qualquer objecto social que não seja deter as participações sociais e os interesses da 1ª ré. É efectivamente a 1ª ré a efectiva titular dos bens da 2ª ré, sociedade por si controlada em absoluto. É evidente que a 2ª ré é uma sociedade utilizada pela 1ª ré como extensão do seu património pessoal e com evidente desrespeito dos limites da personalidade colectiva e flagrante violação das normas que disciplinam a actuação destas e das pessoas físicas que as representam, já que é a 1ª ré que a domina e que recebe os respectivos dividendos, pelo que esta só formalmente reveste a natureza de sociedade.
Com tal actuação a 1ª ré subtrai da sua esfera jurídica bens que seriam susceptíveis de responder pelas suas dívidas, com o único intuito de prejudicar terceiros credores.
Trata-se do uso da personalidade colectiva de modo ilícito e abusivo com o intuito de ocultar património e prejudicar os seus credores.
De todo o exposto resulta manifesto que a ré AA é a verdadeira proprietária das acções do Eurobic, sendo a 2.ª ré mera interposição fictícia entre a 1ª ré e o Eurobic, com o único objectivo de ocultar o seu património pessoal, em prejuízo dos credores.”
Ora, por tudo o exposto nestas alegações, é precisamente esta a situação que se verifica na presente acção, pelo que também nesta devem as personalidades jurídicas das sociedades veículo detidas pela 1.ª ré – as 2.ª e 3.ª rés – ser desconsideradas, sendo estas solidariamente condenadas, com a 1.ª ré, no pagamento das quantias peticionadas.
Apreciação:
Compreende-se a improcedência da acção:
Os autores/Bancos emprestaram em Out2015, 40.000.000€ à Winterfell, para que esta financiasse uma outra sociedade, Winterfell2, de que era a única accionista, na compra de uma participação na Efacec, sem outra garantia para além de um penhor das acções que a compradora ia adquirir com o financiamento (isto segundo o alegado na PI, que só implicitamente se encontra provado, com as referências implícitas que são feitas ao penhor nos factos 28 e 29, e a que o contrato de empréstimo só faz referência ao remeter para um anexo de garantias que não foi junto aos autos) e com o aval das accionistas da Winterfell: a ré AA e ENDE, EP.
Os autores, apesar do inerente poder negocial, não se preocuparam com garantir o reembolso do empréstimo com qualquer outra garantia, ao contrário do que se costuma ver acontecer relativamente a qualquer outro contrato de empréstimo: aval, fiança, hipoteca e seguro. Isto apesar de, também, saberem que uma das avalistas reside fora de Portugal e de, como decorre do que se segue, não lhe conhecerem bens (alegação da PI e facto 30) e a outra avalista ser uma empresa estrangeira com sede num outro país e também sem bens conhecidos em Portugal (facto 32). E de também não conhecerem bens à mutuária, sociedade das duas avalistas (decorre dos factos 24 a 27), nem à compradora financiada, sociedade da sociedade avalizada (para além das acções empenhadas – facto 28 – sem valor – facto 29).
E agora os autores querem obter, de facto, por decreto judicial, mais uma garantia pessoal: o património de sociedades terceiras. Isto com potencial prejuízo para os eventuais credores dessas sociedades “tornadas devedoras a posteriori”, que nada têm a ver com a dívida. Credores que podem ver desaparecer o património dessas sociedades que era suposto garantir os respectivos créditos (art. 601 do CC - a expressão entre aspas é de Filipe Cassiano dos Santos, numa anotação crítica ao acórdão do TRP de 09/03/2020 (Desconsideração da personalidade jurídica, responsabilidade limitada e controlo plurissocietário ilícito – o abuso da desconsideração e os perigos de (tentar) escrever direito por linhas tortas) publicada na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 151.º, n.º 4035, pág. 381, que dá desenvolvimento a esta consequência da desconsideração, por exemplo, nas págs. 383-384 e 387, precisamente num caso em que se obteve a condenação de sociedades que não tinham contraído a obrigação).
Ora, nas palavras de Jorge Manuel Coutinho de Abreu (que a sentença também refere embora não nesta passagem):
“[…] não devem beneficiar da referida responsabilidade os credores voluntários (ou contratuais) "fortes" (designadamente, grandes fornecedores ou financiadores) que conheciam a situação de subcapitalização e/ou assumiram, com escopo especulativo, os riscos (quando podiam não contratar, ou exigir garantias de um ou mais sócios).”
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Apesar disso, o recurso deve proceder? Ou seja, as sociedades Kento e Unitel, que nada têm a ver com a dívida e foram constituídas, não se sabe porquê, vários anos antes do empréstimo, devem responder por ela?
A resposta positiva pressuporia, para o caso dos autos, a violação de deveres decorrentes da utilização do mecanismo societário que pudesse ser imputada àquelas sociedades pela mão da sua praticamente única sócia, ré AA - ou seja, esta ré teria de ter criado, ou passado a ter usado, fraudulentamente, a Kento e a Unitel apenas para lá meter bens (entre eles, dinheiro), não tendo estas sociedades quaisquer actividades (e por isso não seriam verdadeiras sociedades por não terem actividade económica, um dos requisitos do art. 980 do CC) (ilicitude e culpa); seria assim (nexo de causalidade) que a ré AA fugia do pagamento das suas dívidas (prejuízo); tudo isto não podia ser conhecido pelos autores que, por isso, confiariam naturalmente na inexistência de tal fraude (este último pressuposto do desconhecimento, negativo, teria de ser alegado pelas rés como facto impeditivo); por fim, se a pretensão dos autores tivesse (ou só não o tivesse por não o terem exercido de forma adequada) um fundamento alternativo para além do enriquecimento sem causa, era ele que devia ter sido exercido e não este, mas isso, para alguns, apenas se ele não se revelar mais oneroso para os autores (subsidiariedade).
(tem-se em vista, com adaptação livre ao pedido e à causa de pedir desta acção, a posição de Filipe Cassiano dos Santos [anotação citada, especialmente páginas 380, 383, 348, 389-391, 392 e 396 a 409] a partir do ac. do TRP de 04/05/2022, proc. 605/17.0T8AVR.P1: VIII – Se o respectivo gerente ficcionou a constituição da sociedade autora com vista a colocar o seu património imobiliário nessa sociedade (que não tem actividade, que não tem receitas, que não tem clientes, que não tem conta bancária) e, nessa qualidade, munido de uma deliberação social, no âmbito de um contrato de mútuo constitui hipoteca sobre um prédio integrado nesse património, para, mais tarde, após não ter conseguido cumprir com o que fora estipulado, vir a sociedade autora invocar regras societárias para invalidar tal garantia respeitante a esse prédio impõe-se o recurso ao instituto da desconsideração da personalidade colectiva)”; o pressuposto da subsidiariedade está entendido nos termos referidos por Júlio Gomes para o enriquecimento sem causa, Comentário ao CC, Direito das Obrigações, Das obrigações em geral, UCP/FD/UCE, 2018, págs. 256-258, e n’O conceito do enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa, Porto, UCP, 1998, páginas 415 a 467); a posição de Jorge Manuel Coutinho de Abreu, obra citada, pág. 188, na descrição de um caso de responsabilidade, também refere: o ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade; Filipe Cassiano dos Santos refere, no mesmo sentido dos pressupostos acima exigidos, o ac. do STJ de 19/06/2018 proc. 446/11.9TYLSB.L1.S1 [na síntese do autor: necessidade da prova de uma conduta em violação dos fins da sociedade, nexo de causalidade, prejuízo que se analisa na impossibilidade de pagar e, acrescenta-se, subsidiariedade] e o ac. do STJ de 09/05/2019, proc. 1669/14.4TBSTS.P1.S2, o mesmo invocado pelos autores, mas sem referirem que, também neste caso, o pedido de desconsideração foi julgada improcedente, tal como já tinha decidido o ac. do TRP de 23/10/2018, proc. 1669/14.4TBSTS.P1, e a 1.ª instância [estava em causa, precisamente, o fundamento do controlo de sociedades por um sócio e a pretensão de imputar a dívida a outras sociedades do mesmo grupo]; de 29/03/2022, proc. 1953/18.8T8CTB.C1.S1: a desconsideração tem de envolver sempre um juízo de reprovação sobre a conduta do agente, ou seja, envolve sempre a formulação de um juízo de censura à conduta do sócio, que deve revelar-se ilícita, impondo verificar se ocorre uma postura de fraude à lei ou de abuso do direito, que se reconduza a um uso ilícito ou abusivo da personalidade colectiva para prejudicar terceiros, numa utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios]; e de 16/01/2025, proc. 1355/1S.8T8AVR.P1.S1: [não existe uma situação factual que se reconduza a um uso ilícito ou abusivo da personalidade colectiva para prejudicar terceiros, numa utilização contrária a normas ou princípios gerais]; um caso de desconsideração inversa com sucesso pode ver-se no ac. do TRG de 11/05/2023, proc. 7292/22.2T8BRG.G2, com uma anotação de José Maria Cortes, publicada na Revista de Direito Civil 2025/1, páginas 201-211, que pode servir de ponto de comparação, exemplificando uma situação de blindagem patrimonial que não deixa dúvidas).
Quanto ao pressuposto do prejuízo, relativamente ao qual também os acórdãos invocados pelos autores o exigem, tal como o exigem os acórdãos referidos na sentença recorrida, diz Filipe Cassiano dos Santos:
“A exigência da existência de um dano ou prejuízo que não se reduza ao risco geral do mecanismo societário tem um fundamento adicional […]. A desconsideração não é um instrumento para subverter ou anular o risco empresarial implicado no exercício societário com limitação da responsabilidade e não é, em especial, o recurso (fácil) dos credores que não asseguraram devidamente os seus créditos, usando os meios de que o ordenamento dispõe, ou que foram mesmo temerários na concessão de crédito - nesses casos, não haverá dano específico, imputável à actuação do sócio enquanto tal, que seja tutelável: não há, nessas hipóteses, dano relevante, porque não estão em causa ‘bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica’” (anotação citada, aqui na pág. 403 e já antes no fim da pág. 381 e início da pág. 382 e na parte final pág. 380, 401, parte final da pág. 411 e parte inicial de 412 (“impossibilidade de o credor obter pagamento pela sociedade devedora”).
O prejuízo terá de ser, já se viu, não o simples não pagamento, mas a impossibilidade do reembolso do empréstimo que os autores fizeram (causada pelas circunstâncias criadas pela ré AA).
Esse reembolso deixou de ser feito voluntariamente pela mutuária Winterfell a partir da 9.ª prestação (esta inclusive) das 16 previstas. Ou seja, 22.500.000€ (e não 25.000.000€ - vejam-se os factos 14 e 15, com data de 24/07/2020; na execução angolana, doc. 33, os autores dizem que a mutuária deixou de pagar a 6.ª prestação; na execução contra a Winterfell e contra a ré AA, doc.27 dizem que deixou de pagar a 7.ª prestação…; agora falam de 25.000.000€ o que pressupõe que afinal se tratou da 8.ª prestação (inclusive); os autores não podem ir invocando os factos como querem).
E quanto ao reembolso coercivo?
Os autores sugerem que não o conseguem obter.
O que se prova quanto a isto é apenas o seguinte:
Quanto à compradora financiada (Winterfell2): os únicos activos da mesma era a participação na Efacec [objecto de penhor como garantia…] e essa participação foi nacionalizada e a indemnização é nula (factos 28 e 29) (note-se que os autores alegavam ainda que indicaram à penhora [na execução que moveram contra a Winterfell2] também o crédito ao reembolso de prestações acessórias de capital e um crédito ao pagamento de reservas distribuíveis pela Efacec (cf. docs. 20 e 22). Contudo, a Efacec notificada da penhora, respondeu informando que a Winterfell2 não é titular de qualquer crédito (cf. docs. 25 e 26). E que não foram identificados outros bens da Winterfell2; o que apontava para o desconhecimento de bens, não para a inexistência deles…).
Quanto à mutuária (Winterfell) que foi financiada pelos autores: sabe-se apenas que foram penhoradas as acções dela na Winterfell2 numa execução (factos 25 e 26) e que nessa execução, em 02/05/2021 (5,5 meses depois) ainda não tinha sido recuperado qualquer montante (factos 27 e 34). Daqui não resulta que a Winterfell não tenha mais bens. O facto de os autores não identificarem mais bens, por não os conhecerem, não é sinónimo de eles não existirem.
Note-se o que foi alegado a este propósito na PI: “No que respeita à Winterfell, o único activo que as autoras lograram penhorar corresponde à participação que aquela detém na Winterfell2 (cf. doc. 29 que se junta). Porém, considerando que a Winterfell2 apenas tinha como objecto social a gestão das participações sociais na Efacec que correspondiam também aos seus únicos activos, que tais participações foram nacionalizadas e que as prestações acessórias de capital e o crédito ao pagamento de reservas distribuíveis não são reconhecidos pela própria devedora (a Efacec), constata-se que as acções da Winterfell2 também não têm qualquer valor e, portanto, não servirão para satisfação do crédito dos autores. Não tendo sido identificados quaisquer outros bens, a Winterfell não dispõe de património, pelo menos que seja conhecido, necessário para fazer face ao crédito dos autores.”
Quanto à avalista ré AA: foram penhoradas acções delas na Santoro (facto 25e), mas não foram localizadas pelo AE (facto 31). Na referida execução em 02/05/2021 ainda não tinha sido recuperado qualquer montante. Os autores não conseguiram localizar qualquer outro bem à ré AA (factos 25e\, 27, 30 e 34). O facto de os autores apenas terem conseguido identificar aquelas acções, não é sinónimo de a ré AA não ter outros bens.
Quanto à avalista ENDE: não tem património conhecido em Portugal (facto 32). Na execução requerida em Angola ainda não foi recebido qualquer valor (facto 33 e 34). Quanto a esta sociedade pura e simplesmente não se pode dizer que não existam bens, sendo muito provável o contrário por ser uma entidade pública (factos 5 e 32). Note-se de resto que os autores intentaram esta acção menos de 4 meses depois de terem requerido a execução em Angola e não havia na PI qualquer alegação da inexistência de bens da ENDE.
Ou seja, dos factos provados apenas decorre, no máximo, que a Winterfell2 não tem bens. Quanto às outras 3 responsáveis (a mutuária Winterfell e as avalistas ré AA e ENDE) não está provado que não tenham bens, nem que nas execuções seja provável que os autores não venham a obter o pagamento coercivo, isto principalmente por uma das obrigadas, a ENDE, empresa pública que nada indicia sequer não ter bens (nem os autores o alegavam).
Constatada a falta de prova de um dos pressupostos da pretensão dos autores, esta tinha de improceder, justificando-se, assim, a sentença recorrida, sendo desnecessário proceder à análise da verificação dos outros pressupostos.
De qualquer modo, não deixe de se dizer que grande parte das afirmações dos autores, na parte de direito do recurso, não têm qualquer suporte factual:
Não se provou que a 1.ª ré e as sociedades mutuária e a financiada por esta se furtaram sucessivamente ao contacto com os autores; não se pode razoavelmente dizer, menos de 1 mês (ou mesmo de 4 meses) depois de ter sido requerida a execução em Angola que tal execução ainda não deu resultados (para mais nada se sabendo do que é que se passou em tal execução e por causa de quem ou do quê); também não se pode dizer que existe uma confusão entre as esferas jurídicas da 1.ª ré e as das 2.ª e 3.ª rés – o facto de haver beneficiários efectivos de sociedades não equivale, só por si, a confusão de esferas jurídicas; os autores também não podem invocar, através de um caso semelhante que teve por objecto a 1.ª ré e outra sociedade, o que se diz nesse caso, por falta dos factos respectivos ao menos no caso dos autos: que os autores não conseguem ver satisfeito o seu crédito, que a ré tudo detém de forma indirecta, que a ré se escuda na personalidade jurídica de sociedades que cria com o único fito de esconder o seu património pessoal e que a 1.ª se sirva de forma fraudulenta do princípio da separação patrimonial para manter o seu nível de vida, prejudicando os seus credores, ou que a Kento e a Unitel sejam sociedades sem qualquer objecto social que não seja deter as participações sociais e que é a 1ª ré que recebe os dividendos da Kento e da Unitel (que nem sequer se sabe se existem).
Ou seja, perante a improcedência, no essencial, da impugnação da matéria de facto, não se mostram refutadas as conclusões da sentença recorrida, ou seja, de que não há prova de que aquelas sociedades tenham sido constituídas exclusivamente para evitar que a ré AA tivesse património em nome próprio ou para segregar, do património pessoal daquela, o risco inerente à actividade que desenvolvem; ou de que tenham sido constituídas e subsistam com o propósito de defraudar terceiros; e de que não constitui fraude ou violação grave das normas e princípios gerais a detenção de participações sociais noutras sociedades através de outras sociedades.
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O recurso diz respeito ao capital de 16.313.097,82€ e juros de mora correspondentes.
Os juros de mora vencidos no valor de 713.943,18€ respeitavam a 26.269.078,61€. Pelo que os correspondentes a 16.313.097,82€ são de 443.358,72€. Com o total: 16.756.456,54 (= 16.313.097,82€ + 443.358,72€).
A taxa de justiça remanescente, a pagar apenas pelos autores, pelo recurso, é de: 16.756.456,54€ - 275.000€ = 16.481.456,54€ : 25.000€ = 660 x 1,5 UC = 990 UC x 102€ a UC = 100.980€.
O valor da taxa de justiça remanescente, para o recurso, apesar de o trabalho implicado ter sido superior ao que ocorre em relação a processos normais), é, ainda assim, manifestamente excessivo.
Assim, sem esquecer que, de qualquer modo, (i) se tem de respeitar a proporcionalidade pressuposta pelo sistema legal das taxas de justiça e (ii) o facto de que as partes em acções com o valor de 275.000€, por maior que tenha sido a simplicidade do processo e por maior que possa ser, proporcionalmente em comparação com o caso dos autos, o sacrifício que lhes é imposto, não têm a possibilidade de qualquer dispensa), dispensa-se essa taxa em apenas 50% (art. 6/7 do RCP).
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas do recurso, na vertente de custas de parte, pelos autores.
Dispensam-se os autores de metade da taxa de justiça remanescente por eles devidas pelo recurso, sendo que o valor do recurso é de 16.756.456,54€.

Lisboa, 11/09/2025
Pedro Martins
Ana Cristina Clemente
Laurinda Gemas