Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10110/2007-5
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: ESPECIAL COMPLEXIDADE DO PROCESSO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PRAZO JUDICIAL
PRAZO DE DEFESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/08/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. Nos termos do n.º 4, do artigo 215º, do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o arguido tem o direito de se pronunciar sobre a declaração de excepcional complexidade do processo.
2. Não dizendo o n.º 4 do artigo 215º, do Código de Processo Penal qual o prazo de que goza o arguido para exercer este direito, vale o prazo supletivo de 10 dias previsto pelo n.º 1 do artigo 105º, do Código de Processo Penal.
3. Concedendo a lei, ao arguido, um prazo de 10 dias para ele se pronunciar sobre a excepcional complexidade do processo, só o arguido - pessoa em benefício da qual o prazo foi estabelecido - podia renunciar ao decurso do prazo ou praticar o acto processual antes de o mesmo se esgotar.
4. Não se extrai do Código de Processo Penal qualquer norma ou princípio que atribuam ao juiz o poder de reduzir, unilateralmente e contra a vontade expressa do arguido, um prazo fixado na lei para ele exercer os seus direitos de defesa.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

R. , arguido no inquérito n.º 140/06.2JFLSB da 3ª secção do Departamento de Investigação e Acção Penal, interpôs recurso do despacho do Meritíssimo juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, que indeferiu a arguição de irregularidade suscitada pelo recorrente quanto ao prazo que lhe foi concedido para se pronunciar sobre a excepcional complexidade do processo e a declarou sem o ouvir, ampliando o prazo máximo para a duração do inquérito e da prisão preventiva para 1 ano, com a consequente elevação para 12 meses do prazo máximo de duração máxima da prisão preventiva, nos termos da alínea c), do n.º 2 do artigo 276º e do n.º 3 do artigo 215º, do Código de Processo Penal.
No final pediu a revogação do despacho com as legais consequências, incluindo a sua imediata libertação por extinção do prazo de prisão preventiva nos termos das disposições conjugadas dos artigos 215º, n.º 2, e 217º, ambos do CPP.
Em abono da sua pretensão invocou as seguintes razões:
1. Nos termos do disposto no artigo 215º, n.º 4, do CPP, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, a excepcional complexidade do processo tem de ser obrigatoriamente precedida de audição do arguido.
2. A alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, ao regime até então em vigor quanto à declaração de excepcional complexidade, visou conferir ao arguido o exercício do direito de defesa, designadamente no que respeita ao seu estatuto coactivo, tendo em consideração as consequências decorrentes daquela declaração quanto ao prazo máximo da prisão preventiva.
3. O direito concedido ao arguido de se pronunciar sobre uma eventual declaração de excepcional complexidade a atribuir aos autos, na medida em que influi sobre os prazos de duração máxima da prisão preventiva, é manifestamente um direito de defesa do arguido – tal como o de apresentar contestação ou de interpor recurso – cujo prazo a lei, por força do disposto nos artigos 215º, n.º 4, e 105º, n.º 1, ambos do CPP, estabelece seja exercido em 10 dias.
4. Não obstante, por despacho proferido em 17 de Setembro de 2007, entendeu o Meritíssimo juiz a quo conceder ao arguido um prazo de 24 horas para se pronunciar nos termos do disposto no artigo 215º, n.º 4, do mesmo diploma.
5. Notificado em 18 de Setembro de 2007, veio o arguido, em 19 de Setembro de 2007, arguir a irregularidade do despacho proferido na parte em que concedeu ao arguido o prazo de 24 horas para se pronunciar sobre uma eventual declaração de excepcional complexidade a atribuir aos autos e expressamente declarar que não renunciava ao prazo legal de 10 dias para se pronunciar.
6. Contudo, por despacho proferido em 20 de Setembro de 2007, o Meritíssimo juiz a quo considerou não se verificar qualquer irregularidade uma vez que, apesar de no artigo 105º, do CPP, se dispor que é de 10 dias a prática de qualquer acto processual, nada exige que o juiz não possa impor um prazo mais reduzido para a prática de acto de natureza urgente, como no caso em apreço, e, acto contínuo, ao abrigo do disposto no artigo 215º, n.º 3, do CPP, declarou a especial complexidade dos presentes autos.
7. Ainda que porventura se entendesse, no que não se concede, que o prazo de 10 dias estabelecido em beneficio do arguido, podia ser reduzido por expressa imposição do Meritíssimo juiz, a verdade é que, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 107º, do CPP, e no n.º 5 do artigo 145º do CPC, tal acto podia ainda, independentemente de justo impedimento, ser praticado nos termos e com as mesmas consequências em processo civil; isto é, dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao seu termo, pelo que o prazo limite para o arguido se pronunciar sempre terminaria em 24 de Setembro de 2007.
8. Ao proferir despacho sobre a especial complexidade dos autos em 20 de Setembro de 2007, ainda antes de decorrido o prazo para o arguido se pronunciar sobre a mesma – que, no limite, terminaria em 24 de Setembro de 2007 – violou o Meritíssimo juiz a quo o disposto no n.º 4 do artigo 215º, do CPP, que impõe que a declaração de excepcional complexidade apenas seja declarada ouvido o arguido ou decorrido o prazo concedido ao mesmo para se pronunciar.
9. Violação essa que configura, para além do mais, irregularidade, a qual foi, nos termos dos artigos 123º, 105º, n.º 1, 107º, nº 5, e 215º, n.º 4, todos do CPP, expressa e tempestivamente arguida.
10. A Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, não obstante ter entrado em vigor em 15 de Setembro de 2007, foi aprovada e publicada há tempo suficiente para que o Ministério Público, se assim o entendesse, pudesse promover, em tempo útil, a declaração de especial complexidade do processo de modo a não cercear o direito de defesa do arguido, já que a possibilidade de ser declarada a especial complexidade do processo com o consequente alargamento dos prazos máximos de prisão preventiva para 12 meses se encontrava consagrada no Código de Processo Penal, desde pelo menos 1987, mantendo-se o n.º 3 do referido artigo 215º do CPP imutável desde a sua versão originária.
11. Não tendo sido – podendo sê-lo – declarada a especial complexidade dos autos em data anterior a 15 de Setembro de 2007, nada justificava que o prazo legal concedido ao arguido para se pronunciar nos termos do disposto no artigo 215º, n.º 4, do CPP, na redacção introduzida pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto, se visse reduzido para 24 horas, a pretexto de, falsamente, se tratar de um acto urgente, apenas e só porque se impunha a qualquer custo manter o arguido em prisão preventiva para lá de 20 de Setembro.
12. Admitir que o prazo regra de 10 dias previsto no n.º 1 do artigo 105º, do CPP, para o arguido se pronunciar nos termos do artigo 215º, n.º 4, do CPP – o qual é manifestamente um prazo de defesa – pode ser encurtado por determinação do juiz, desde que os prazos imperativos que determinam o tempo máximo da prisão preventiva se encontram em risco de ser ultrapassados em determinada fase processual, levará a que se venha a admitir como possível que por mera determinação do juiz se encurte ao arguido um prazo de interposição de recurso de 20 dias para 10 dias, 5 dias ou até 24 horas, apenas e só porque o prazo máximo de prisão preventiva na respectiva fase processual se encontra em risco de ser ultrapassado.
13. A decisão recorrida, ao declarar a especial complexidade dos presentes autos, logo em 20 de Setembro de 2007, antes de decorrido o prazo para o arguido se pronunciar, admitindo como válida a imposição por parte do Meritíssimo juiz de um prazo mais reduzido de que o prazo regra – de 10 dias – sem que tal se encontre legalmente previsto e sem que o acto possa ser praticado validamente nos três dias úteis subsequentes ao termo do prazo imposto por decisão judicial, fez errada interpretação do disposto nos artigos 105º, n.º 1, 107º, n.º 1 e n.º 5, 123º e 215º, n.º 4, todos do CPP, os quais violou.
14. E é cerceadora de um exercício efectivo do direito de defesa, na medida que tal prazo é manifestamente incompatível com um exercício do direito de defesa que se pretende seja efectivo e não meramente formal, impondo a necessária reflexão sobre os argumentos expendidos na promoção que a requereu e uma pronúncia por parte do sujeito por ela atingido que seja de facto e de direito devidamente fundamentada.
15. Qualquer outro entendimento esvaziaria por completo a intenção que presidiu à alteração legislativa em causa, transformando aquela consagração do direito de audição do arguido num mero exercício formal e esvaziando de conteúdo o direito ali expressamente consagrado.
16. Devia ao invés o M.mo juiz a quo ter interpretado os referidos normativos no sentido de a declaração de excepcional complexidade, apenas poder ser declarada ouvido o arguido (ou decorrido o prazo concedido ao mesmo para se pronunciar), não sendo admissível a imposição ao arguido de um prazo de defesa mais reduzido do que o prazo regra – 10 dias – para a prática de qualquer acto e podendo em qualquer caso o acto ser praticado validamente nos três dias úteis subsequentes ao termo do prazo imposto, mesmo tratando-se de processo a que a lei atribui carácter de urgente, abstendo-se consequentemente de proferir decisão recorrida na data em que foi proferida.
17. Qualquer interpretação normativa conjugada do disposto nos artigos 105º, n.º 1, 107º, n.º 1 e n.º 5, e 215º, n.º 4, todos do CPP, designadamente a que decorre do despacho proferido, no sentido de ser admissível o encurtamento do prazo de defesa legalmente estabelecido a favor do arguido, por iniciativa do juiz, sem expressão legal nem suporte na renúncia do interessado a tal prazo, e sem que o arguido, independentemente de justo impedimento possa validamente praticar o acto nos três dias subsequentes ao prazo estabelecido para o efeito, contraria os direitos, liberdades e garantias estabelecidas a favor do arguido e é inconstitucional por violação das garantias de defesa do arguido previstas nos artigos 18º, 20º, n.º 4 e n.º 5, e 32º, n.ºs 1 e 5, todos da Constituição da República Portuguesa.
18. Qualquer interpretação normativa conjugada do disposto nos artigos 105º, n.º 1, 107º, n.º 1 e n.º 5, e 215º, n.º 4, e 123º todos do CPP, designadamente a efectuada no despacho proferida, no sentido de não constituir irregularidade o encurtamento do prazo de defesa legalmente estabelecido a favor do arguido, por iniciativa do Juiz, sem expressão legal nem suporte na renúncia do interessado a tal prazo, contraria o princípio da legalidade democrática e os direitos, liberdades e garantias estabelecidos a favor do arguido e é inconstitucional por violação dos artigos 3º, n.º 2 e n.º 3, 9º, alínea b), 18º, 20º, n.º 4 e n.º 5, 32º, n.ºs 1 e 5, todos da Constituição da República Portuguesa.
19. Qualquer interpretação normativa conjugada do disposto nos artigos 105º, n.º 1, 107º, n.º 1 e n.º 5, e 215º, n.º 3 e n.º 4, todos do CPP, designadamente a que decorre do despacho proferido no sentido de o prazo previsto no n.º 1 do artigo 105º do CPP poder ser encurtado no caso do artigo 215º, n.º 4, do CPP, por determinação do juiz, quando se encontre em risco de findar o prazo máximo da prisão preventiva definido para a respectiva fase processual contraria os direitos, liberdades e garantias estabelecidos a favor do arguido e é inconstitucional por violação das garantias de defesa do arguido previstas nos artigos 18º, 20º, n.º 4 e n.º 5, e 32º, n.ºs 1 e 5, todos da Constituição da República Portuguesa.
O Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência do recurso. Em abono da sua conclusão invocou as seguintes razões:
1. O prazo de 10 dias previsto no n.º 1 do artigo 105º do CPP é um prazo supletivo, aplicando-se salvo disposição legal em contrário. Em lugar algum da lei se indica qual é o prazo mínimo para a prática de um acto processual.
2. Da norma do artigo 215º, do CPP, considerada no seu todo, resulta que há prazos imperativos que determinam o tempo máximo de prisão preventiva em determinada fase processual e, portanto, os actos processuais que lhe dizem respeito têm de ser praticados em momento consentâneo. São os prazos máximos de prisão preventiva que nunca devem ser ultrapassados e não o prazo supletivo que tem de ser sempre observado.
3. Para além dos direitos de defesa existem princípios não menos importantes para o processo penal, como o da celeridade e o da prossecução do interesse público em investigar os crimes e punir os responsáveis.
4. Sendo que o que a Constituição da República Portuguesa não permite é que os direitos de defesa sejam comprimidos pelos outros interesses processuais relevantes, de tal modo que sejam inviabilizados ou se tornem de difícil execução.
5. O prazo supletivo previsto no n.º 1 do artigo 105º do Código de Processo Penal pode ceder no caso do artigo 215º, n.º 4, do mesmo diploma legal, por determinação do juiz, desde que estejam postos em causa os interesses relevantes da prossecução da acção penal e do dever funcional de não exceder a prisão preventiva e desde que seja evidente que o direito de defesa teve uma efectiva possibilidade de ser exercido eficazmente.
6. Sendo a prévia audição do arguido antes da declaração judicial de excepcional complexidade um acto processual, o prazo para a sua efectivação é um prazo processual, aplicando-se por isso o artigo 103º do Código de Processo Penal e, neste caso, a excepção previsto pelo seu n.º 2, pelo que estando em causa uma decisão susceptível de determinar um agravamento do prazo máximo de prisão preventiva, ou, ao invés, a cessação de tal medida, nada obstava a que o prazo fixado pelo juiz possa ser mais reduzido que o prazo supletivo de 10 dias.
7. O prazo de 24 horas concedido pelo Meritíssimo juiz para o arguido se pronunciar nos termos do artigo 215º, n.º 4, do CPP, era imperioso face à iminência de estar a findar o prazo máximo da prisão preventiva e de se inviabilizar a prossecução penal, em virtude da mudança da lei processual e o efémero período de vacatio legis que provocou a situação.
8. O arguido teve efectiva oportunidade se pronunciar uma vez que foi notificado num dia e logo no dia imediato veio a arguir a irregularidade do despacho em causa, podendo ter-se pronunciado, como se lhe pedia, sobre a complexidade dos autos.
9. O artigo 268º, do Código de Processo Penal, manda que o juiz de instrução decida no prazo máximo de 24 horas dos requerimentos apresentados pelo Ministério Público, o que foi o caso em apreço.
10. Ficou demonstrado que o direito de defesa foi efectivamente exercido, embora por opção da defesa com um expediente processual quando poderia igualmente ter invocado justo impedimento que obstasse à prática do acto.
11. Entendemos que não se verifica qualquer irregularidade processual por não ter sido concedido o prazo supletivo de 10 dias a que alude o artigo 105º, n.º 1, do CPP, para o arguido se pronunciar nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 215º do mesmo diploma legal, uma vez que o mesmo pôde exercer cabalmente o seu direito de defesa, in casu, de se pronunciar sobre a excepcional complexidade do processo requerida pelo Ministério Público.
12. Não vislumbramos a violação de normas processuais penais invocadas pelo arguido, pelo que não se nos afiguram violados os artigos 18º, 20º, n.º 4 e n.º 5, e 32º, n.ºs 1 e 5, todos da Constituição da República Portuguesa.
Nesta instância, o Ministério Público teve vista dos autos emitindo parecer no sentido da improcedência do recurso.
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São duas as questões fundamentais que se discutem no presente recurso:
a) A primeira consiste em saber qual o prazo que a lei estabelece para o arguido se pronunciar, nos termos do n.º 4, do artigo 215º, do Código de Processo Penal (CPP), na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, sobre a declaração de excepcional complexidade do processo;
b) A segunda consiste em saber se, sendo esse prazo o de 10 dias previsto no n.º 1 do artigo 105º, do CPP, o juiz tinha o poder de o encurtar para 24 horas.
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Comecemos por expor os antecedentes imediatos das questões que importa solucionar.
1. Em 15 de Setembro de 2007, o Ministério Público ordenou a apresentação dos autos de inquérito ao Meritíssimo juiz de Instrução e requereu se declarasse a excepcional complexidade do processo, com prévia audição dos arguidos, nos termos do n.º 4 do artigo 215º, do CPP, com a consequente prorrogação do prazo máximo para a conclusão do inquérito e elevação do prazo de prisão preventiva para um ano, nos termos da alínea c), do n.º 2, do artigo 276º, e do n.º 3, do artigo 215º, do CPP.
2. Em 17 de Setembro de 2007, o Meritíssimo juiz do Tribunal de Instrução Criminal proferiu o seguinte despacho quanto à questão da especial complexidade: “Notifique os arguidos, nos termos e para os efeitos do art.º 215º, n.º 4, do Código de Processo Penal, para se pronunciarem no prazo de 24 horas, sendo os arguidos que não tiverem defensor, pessoalmente através de OPC”.
3. Notificado deste despacho o arguido requereu, em 19 de Setembro de 2007, a declaração de invalidade do despacho na parte em que lhe concedeu um prazo de 24 horas para se pronunciar ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 215º do Código de Processo Penal e dos termos processuais subsequentes e a concessão de um prazo de 10 dias para se pronunciar nos termos e para os efeitos do referido artigo. Declarou ainda que não renunciava ao prazo de 10 dias legalmente estabelecido nos artigos 105º, n.º 1, e 215º, n.º 4, ambos do Código de Processo Penal, para se pronunciar sobre a excepcional complexidade do processo.
4. Em 20 de Setembro de 2007, o Meritíssimo juiz de Instrução indeferiu a arguição de irregularidade e declarou a excepcional complexidade do processo, ampliando o prazo máximo para a duração do inquérito e da prisão preventiva para um ano.
Desta breve exposição resulta que, na origem das questões que se discutem no presente recurso, está a declaração de excepcional complexidade do processo. É, no entanto, evidente que o que impulsionou a referida declaração foram as alterações ao CPP introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, designadamente na parte relativa aos prazos de duração máxima da prisão preventiva (artigo 215º).
Antes de mais importa dizer que a declaração de excepcional complexidade do processo devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime, já se encontrava prevista no n.º 3 do artigo 215º, do Código de Processo Penal, antes da revisão operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.
As novidades introduzidas por este último diploma quanto à questão da excepcional complexidade do processo são fundamentalmente duas e acham-se vertidas no novo n.º 4 do artigo 215º. Assim:
1. Em primeiro lugar, a excepcional complexidade apenas pode ser declarada durante a 1ª instância;
2. Em segundo lugar, reconhece-se ao arguido e ao assistente o direito de serem ouvidos antes da decisão sobre a excepcional complexidade.
Conforme se escreveu acima, o que se discute no presente recurso é o prazo para o exercício deste contraditório.
Não indicando o n.º 4 do artigo 215º, do CPP, o prazo para o arguido e o assistente se pronunciarem sobre a excepcional complexidade do processo, a conclusão que se impõe é a de que esse prazo é o de 10 dias previsto no n.º 1 do artigo 105º do CPP (cfr. neste sentido o acórdão do STJ de 14 de Novembro de 2007, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj).
Com efeito, nos termos desta disposição, salvo disposição legal em contrário, é de 10 dias o prazo a prática de qualquer acto processual.
Deste modo pode responder-se à primeira questão acima enunciada, afirmando-se que a lei estabelece o prazo de 10 dias para o arguido se pronunciar, nos termos do n.º 4, do artigo 215º, do CPP, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, sobre a excepcional complexidade do processo.
Embora o Meritíssimo juiz a quo e o Ministério Público concordem com o entendimento de que, salvo disposição legal em contrário, é de 10 dias o prazo para a prática de qualquer acto no processo penal, alinham, no entanto, várias razões a favor da legalidade da fixação ao arguido de um prazo peremptório de 24 horas para se pronunciar sobre a excepcional complexidade do processo.
Apreciemos, pois, de seguida, essas razões, começando pela que serviu de fundamento ao despacho recorrido.
O Meritíssimo juiz do tribunal de instrução criminal sustentou que “não obstante o artº 105º do Código de Processo Penal dispor que é de dez dias a prática de qualquer acto processual, nada exige que o juiz não possa impor um prazo mais reduzido para a prática de acto de natureza urgente como no caso em apreço”.
Se bem se interpreta a parte do despacho acabada de transcrever, o Meritíssimo juiz considerou que era urgente a pronúncia do arguido sobre a excepcional complexidade do processo e que esta urgência constituía fundamento bastante para lhe assinalar um prazo de 24 horas para tanto.
Salvo o devido respeito, este entendimento não tem cobertura legal.
Em primeiro lugar, concedendo a lei, ao arguido, um prazo de 10 dias para ele se pronunciar sobre a excepcional complexidade do processo, só o arguido – pessoa em benefício da qual o prazo foi estabelecido – podia renunciar ao decurso do prazo ou praticar o acto processual antes de o mesmo se esgotar. Esta é a solução que resulta do disposto no artigo 107º, n.º 1, do CPP.
Em segundo lugar, embora se colham nas disposições do Código de Processo Penal exemplos de atribuição de poderes ao juiz para fixar prazos para a prática de certos actos processuais (cfr. artigos 157º, n.º 3, e 165º, n.º 2), não se extrai do Código de Processo Penal qualquer norma ou princípio que atribuam ao juiz o poder de reduzir, unilateralmente e contra a vontade expressa do arguido, um prazo fixado na lei para ele exercer os seus direitos de defesa.
Em terceiro lugar, embora a lei preveja, em casos de urgência, modificações no tempo dos actos processuais e reduções dos prazos para cumprimento de termos e mandados (cfr. artigos 103º, n.º 2, alínea a), e 106º, n.º 2, ambos do CPP), é, no entanto, inequívoco que essas modificações e essas reduções de prazos são estabelecidas sempre a favor do arguido e do seu direito à liberdade e nunca contra ele ou a favor da privação da sua liberdade. Ora, no caso concreto, a urgência foi invocada pelo despacho recorrido em sentido contrário: para reduzir ao mínimo o prazo para o arguido exercer o contraditório e para elevar o prazo de duração máxima da sua prisão preventiva.
Apreciemos, de seguida, a argumentação desenvolvida pelo Ministério Público na resposta ao recurso a favor da legalidade do despacho recorrido. Para tanto irá seguir-se a ordem das conclusões. Importa dizer que esta argumentação reproduz, no essencial, a que foi utilizada no Acórdão do STJ de 11 de Outubro de 2007, processo n.º 07P3852, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
O primeiro argumento invocado é o de que da norma do artigo 215º, do CPP, considerada no seu todo, resulta que há prazos imperativos que determinam o tempo máximo de prisão preventiva em determinada fase processual e, portanto, os actos processuais que lhe dizem respeito têm de ser praticados em momento consentâneo. E são os prazos máximos de prisão preventiva que nunca devem ser ultrapassados e não é o prazo supletivo que tem de ser sempre observado.
É certo que o artigo 215º do CPP estabelece prazos de duração máxima da prisão preventiva, variáveis em função da fase do processo, e que os actos processuais, que dizem respeito a cada uma dessas fases, têm de ser praticados em momento consentâneo com esses prazos.
Porém, daqui não se retira qualquer argumento para a defesa da legalidade do despacho recorrido.
Em primeiro lugar, não tem fundamento legal a invocação de uma medida estabelecida a favor do arguido e do direito à liberdade, como sucede com a fixação de prazos de duração máxima da prisão preventiva, para limitar o exercício dos direitos de defesa do arguido.
Em segundo lugar, não se vê qualquer relação entre a concessão ao arguido do prazo legal para se pronunciar sobre a excepcional complexidade do processo e o desrespeito do prazo máximo de duração da prisão preventiva. Eram totalmente compatíveis entre si o respeito do prazo de duração máxima da prisão preventiva e o respeito do prazo legal para o arguido se pronunciar sobre a excepcional complexidade do processo. O prazo de 24 horas assinalado ao arguido não serviu para respeitar o prazo de duração máxima da prisão preventiva. O prazo de 24 horas assinalado ao arguido serviu para elevar o prazo máximo de duração da prisão preventiva.
Em terceiro e último lugar, se é certo que os actos processuais devem ser praticados durante o inquérito de forma a serem observados os prazos de prisão preventiva, também é certo que o destinatário deste dever é o Ministério Público, a quem compete dirigir o inquérito.
Lançando um olhar sobre os fundamentos que o Ministério Público invocou para obter a declaração da excepcional complexidade do processo, não pode deixar de concordar-se com o recorrente quando afirma que o Ministério Público podia ter obtido esta declaração com o consequente alargamento do prazo máximo de prisão preventiva para 12 meses, antes das alterações ao artigo 215º do CPP.
O segundo argumento invocado pelo Ministério Público em abono da legalidade do despacho recorrido é o de que o prazo supletivo previsto pelo n.º 1 do artigo 105º, do CPP, pode ceder no caso do artigo 215º, n.º 4, do mesmo diploma legal, por determinação do juiz, desde que estejam postos em causa os interesses relevantes da prossecução da acção penal e do dever funcional de não exceder a prisão preventiva e desde que seja evidente que o direito de defesa teve uma efectiva possibilidade de ser exercido eficazmente.
Salvo o devido respeito, este argumento também não colhe.
Em primeiro lugar e conforme já foi dito anteriormente, a concessão ao arguido do prazo legal para se pronunciar acerca da excepcional complexidade do processo não determinava o desrespeito do prazo máximo de duração da prisão preventiva.
Em segundo lugar, a concessão desse prazo também não contenderia com quaisquer interesses relevantes da prossecução da acção penal, designadamente a celeridade e a prossecução do interesse público na investigação dos crimes. Só assim seria se a concessão do prazo de 10 dias determinasse o encerramento do inquérito e impedisse a continuação da investigação. Ora, nada disto se passaria. Na verdade, mesmo a violação dos prazos de duração máxima do inquérito não determina a inviabilidade da prossecução penal. Esta violação, além de constituir o magistrado titular do inquérito na obrigação de a comunicar ao superior hierárquico (artigo 276º, n.º 4, do CPP, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), pode determinar apenas a aceleração processual (artigo 276º, n.º 6, do CPP, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto). Conforme refere Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Volume III, páginas 92, “os prazos máximos de duração do inquérito não são, pois, prazos peremptórios, o que bem se compreende, dado não ser possível demarcar o tempo de duração de uma investigação”.
O terceiro argumento invocado para sustentar a manutenção do despacho recorrido é o de que, sendo a audição do arguido, antes da declaração de excepcional complexidade, um acto processual, o prazo para a sua efectivação é um prazo processual, aplicando-se, por isso, o artigo 103º do CPP e, neste caso, a excepção prevista pelo seu n.º 2, pelo que, estando em causa uma decisão susceptível de determinar um agravamento do prazo máximo de prisão preventiva, ou, ao invés, a cessação de tal medida, nada obstava a que o prazo fixado pelo juiz pudesse ser mais reduzido que o prazo supletivo de 10 dias.
Salvo o devido respeito, este argumento também não colhe.
O artigo 103º do CPP diz respeito ao tempo da prática dos actos no processo penal, estabelecendo o n.º 1 que esses actos praticam-se nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais.
O n.º 2 estabelece várias excepções a esta regra, sendo que a única susceptível de ter alguma relação com o caso dos autos é a da alínea a). Nos termos desta alínea, os actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos ou indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas podem ser praticados fora dos dias úteis, fora das horas de expediente dos serviços de justiça e dentro do período de férias judiciais.
É, assim, claro que da norma da alínea a), do n.º 2 do artigo 103 do CPP, não decorre a atribuição ao juiz de qualquer poder para reduzir unilateralmente os prazos legais.
Porém, se algum contributo se pudesse extrair da norma em causa para a decisão do caso presente, esse contributo seria certamente o de que a prática de actos fora do tempo normalmente previsto para tanto tem por função garantir a liberdade e não a privação da liberdade. Assim sendo, não tem cabimento invocar a alínea a), do n.º 2 do artigo 103º, do CPP, para justificar uma solução cujo resultado é a manutenção da privação da liberdade do arguido.
O quarto argumento invocado pelo Ministério Público foi o de que o prazo de 24 horas concedido pelo Meritíssimo juiz para o arguido se pronunciar nos termos do artigo 215º, n.º 4, do CPP, era imperioso face à iminência de estar a findar o prazo máximo da prisão preventiva e de se inviabilizar a prossecução penal, em virtude da mudança da lei processual e o efémero período de vacatio legis que provocou a situação.
Este argumento já obteve, de alguma forma, resposta.
Em primeiro lugar, não há qualquer norma ou princípio que sustentem que, estando iminente o fim do prazo de duração máxima da prisão preventiva, sejam encurtados os prazos reconhecidos por lei ao arguido para exercer os seus direitos de defesa.
Em segundo lugar, pelo que se deixou escrito mais acima, não tem fundamento a afirmação de que a concessão do prazo de 24 horas ao arguido era imperioso para evitar a inviabilidade da prossecução penal. Só assim seria se houvesse norma ou princípio que estabelecessem que, no caso de a prisão preventiva se extinguir por ter decorrido o prazo da sua duração máxima, não era viável o prosseguimento do processo penal. Ora é manifesto que não há norma ou princípio com este alcance.
Um quinto argumento invocado na resposta ao recurso foi o de que o arguido teve efectiva oportunidade de se pronunciar uma vez que foi notificado num dia e logo no dia imediato veio arguir a irregularidade do despacho em causa, podendo ter-se pronunciado, como se lhe pedia, sobre a complexidade dos autos.
É manifesto que este argumento também não colhe.
Em primeiro lugar, o facto de o arguido invocar, no dia imediatamente a seguir à sua notificação, a ilegalidade do prazo que lhe foi concedido não significa que teve efectiva oportunidade de se pronunciar. Se a lei assinala um prazo de 10 dias para o exercício do contraditório relativamente a uma questão processual isso significa que aos olhos da lei – e salvo renúncia da pessoa em benefício do qual o prazo é estabelecido – só o referido prazo confere uma efectiva oportunidade para o exercício do contraditório. Não cabe ao juiz alterar este juízo do legislador nem interferir no exercício do contraditório por parte do interessado.
Ao arguir, no dia imediatamente a seguir à sua notificação, a ilegalidade do prazo de 24 horas, o arguido não exerceu o contraditório; o arguido agiu cautelarmente em defesa do contraditório.
A vingar o argumento ora em apreciação ficaria sem sentido o regime de arguição das irregularidades previsto no n.º 1, do artigo 123º, do CPP, como não se compreenderia que o legislador tenha previsto expressamente a hipótese de o interessado, a quem não foi efectuada uma notificação ou uma convocação para um acto processual, compareça apenas com a intenção de arguir a nulidade respeitante à falta ou a vício de notificação ou de convocação para acto processual (cfr. artigo 121º, n.º 2 e 3, do CPP).
Um sexto argumento é o de que o artigo 268º, n.º 4, do CPP manda que o juiz de instrução se pronuncie, no prazo máximo de 24 horas, sobre os requerimentos apresentados pelo Ministério Público.
Este argumento também não colhe pois o prazo de 24 horas previsto no n.º 4, do artigo 268º, do CPP, é aplicável exclusivamente às decisões do juiz de instrução sobre as matérias previstas nesse artigo.
Feito este percurso conclui-se que o despacho que concedeu 24 horas ao arguido para se pronunciar sobre a excepcional complexidade do processo é ilegal porque violou o disposto nos artigos 105º, n.º 1, e 215º, n.º 4, ambos do CPP.
Esse despacho constituiu um acto irregular, pois a lei não comina a nulidade para a inobservância do disposto nos artigos 105º, n.º 1, e 215º, n.º 4, ambos do CPP (artigo 118º, n.ºs 1 e 2, do CPP).
Considerando que a irregularidade do despacho foi arguida dentro do prazo legal (artigo 123º, n.º 2, do CPP), deveria o Meritíssimo juiz a quo tê-la declarada e retirado daí as consequências legais.
Ao indeferir a arguição da irregularidade, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 105º, n.º 1, 107º, n.º 1, e 215º, n.º 4, todos do CPP. Impõe-se, pois, a sua revogação.
Vejamos se, além da revogação do despacho recorrido, deverá o tribunal restituir de imediato o arguido à liberdade com fundamento na extinção da prisão preventiva nos termos das disposições conjugadas dos artigos 215º, n.º 2, e 217º, ambos do CPP.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 123º, do CPP, a irregularidade de um acto processual determina a invalidade desse acto e a dos termos subsequentes que possam ser afectados por ela.
No caso, o acto processual subsequente ao afectado pela irregularidade é o despacho que declarou a excepcional complexidade do processo. A validade formal deste despacho tinha como pressuposto a audição do arguido com observância dos prazos legais.
Considerando que esta premissa não foi cumprida, a invalidade do despacho que assinalou ao arguido 24 horas para se pronunciar sobre a excepcional complexidade do processo determina a invalidade do despacho que declarou esta complexidade (artigo 123º, n.º 1, do CPP).
Se a declaração da excepcional complexidade do processo elevava para 12 meses o prazo de duração máxima da prisão preventiva sem que fosse deduzida acusação (artigo 215º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do CPP, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), a invalidade dessa declaração faz com que seja de 6 meses o prazo de duração máxima da prisão preventiva do arguido até à dedução da acusação, atendendo ao facto de o processo respeitar a crimes abrangidos pelo n.º 2 do artigo 215º, do CPP.
Considerando que o arguido está preso preventivamente desde 21 de Março de 2007, conclui-se que a prisão preventiva se extinguiu em 21 de Setembro de 2007.
Assim, por força do disposto no artigo 217º, n.º 1, do CPP, o arguido terá de ser posto imediatamente em liberdade.
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Decisão:
Julga-se procedente o recurso e, em consequência:
1. Revoga-se a decisão recorrida e declara-se irregular a concessão ao arguido do prazo de 24 horas para se pronunciar sobre a excepcional complexidade do processo;
2. Invalida-se esse despacho e os termos subsequentes, designadamente o despacho que declarou a excepcional complexidade do processo;
3. Declara-se extinta a prisão preventiva do arguido.
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Passe, de imediato, mandados de libertação do arguido.
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Sem custas.
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Lisboa, 8 de Janeiro de 2008

Emídio Santos
Pulido Garcia
Gomes da Silva