Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4981/21.2T8FNC.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE LAMEIRAS
Descritores: ACÇÃO DE REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESIDÊNCIA HABITUAL DA CRIANÇA
FRAUDE À LEI
RETENÇÃO ILÍCITA DE CRIANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Em matéria de competência, para a acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais, estando em confronto alguma ordem jurídica não coberta por instrumento internacional, é o lugar da residência habitual da criança no espaço nacional que habilita os tribunais portugueses a aceitarem a respectiva análise e decisão (artigos 9º, nº 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, e 62º, alínea a), do Código de Processo Civil).

II – Por « residência habitual », ou quotidiana, da criança deve entender-se aquele lugar onde ela encontra organizada e tem assente a sua vida, com consolidação e estabilidade; o espaço onde desenvolve habitualmente o seu dia-a-dia, e onde está radicada.

III – A ilicitude da deslocação de um país para outro, de uma criança, e da sua retenção no país de destino, supõe, por via da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, que foi violado o « direito de custódia », fixado pela lei do país de origem e que neste se mostrava em efectiva execução (artigos 3º e 5º, alínea a)).

IV – A fraude à lei, no plano das regras da competência internacional, supõe uma manipulação fictícia dos elementos de conexão (caso da residência) de que dependa a fixação dessa competência; operando, como sanção, a irrelevância, para o efeito, da manipulação que haja ocorrido.

V – Na hipótese de o processo sinalizar que a criança viajou da Venezuela para Portugal com o consenso do pai, residente naquele país, a fim de poder estar com a mãe, aqui habitualmente residente, e que acabou por não regressar à Venezuela, como se previra, ficando a viver com ela, mas sem oposição alguma do pai que, sabedor da situação de facto e ao longo do curso do tempo, vem trocando mensagens com o filho e contacta telefonicamente com ele, uma vez por semana, não se mostra verificada deslocação ou retenção ilícita, no quadro da referida Convenção, nem opera a manipulação fictícia da residência da criança, para efeitos de fraude à lei da competência.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. O Ministério Público suscitou, no tribunal da comarca da Madeira, a regulação do exercício das responsabilidades parentais, referente à criança A---, nascido no dia 2---, e residente com a mãe em S---, na ilha da Madeira, filho de K--- e de J---, este residente na República da Venezuela (3.11.2021).

A instância seguiu; com ausência do pai em parte incerta.

Em conferência (29.3.2022), foi apresentada pela mãe cópia decisão judicial do tribunal da Venezuela, de 27.5.2021, onde, sob impulso do pai, a criança foi autorizada a viajar para a ilha da Madeira, em companhia de uma prima, entre os dias 15 de Junho e 22 de Julho de 2021, a fim de se reencontrar com a mãe e onde « disfrutará de umas férias de turismo, e onde partilhará com o seu pai » (sic).

Obteve-se um relatório acerca das « condições de vida da mãe e da criança ».
Consta deste que, segundo relato da mãe, esta « veio para a Madeira, em Abril de 2019, deixando o filho aos cuidados da avó materna, por falta de autorização judicial para se fazer acompanhar do mesmo ».

E adiante:
« De acordo com a mãe, em Junho de 2021, a criança veio para a Madeira, mediante autorização escrita do pai, efectuando a viagem na companhia de pessoa de confiança da própria.
A criança tinha data de regresso à Venezuela marcada para o mês seguinte, o qual não se verificou devido a posterior decisão, em concordância, de ambos os pais. »

Acrescentando além do mais, a mãe, que « estabelece uma comunicação pontual [com o pai] »; e que « [o pai mantém] com o filho contactos telefónicos regulares ».

(22.9.2022).

A requerida mãe juntou cópia de decisão judicial do tribunal da Venezuela, de 5.5.2022, onde, sob « pedido apresentado » pelo pai « para lhe ser retirado durante a sua ausência o exercício do poder paternal e o mesmo seja exercido apenas pela mãe do adolescente » – residente em S---, na Madeira –, se suspende « durante o período de seis (6) meses [o] poder paternal do menino em relação ao seu pai » e se estabelece « que o exercício do poder paternal do menino […] recai exclusivamente sobre a mãe […], quem deverá assumir e continuar a exercer de forma unilateral o exercício do poder paternal do seu filho » (12.4.2023).

Fixou-se um regime provisório de regulação (23.6.2023).

Empreendeu-se a citação do requerido pai, por editais (20.1.2025).

Foi-lhe nomeado defensor oficioso (5.3.2025).

2. (1.º) O defensor suscitou (além do mais) a excepção da incompetência; e que a competência para a regulação « pertence aos tribunais da Venezuela » (6.3.2025).
Em síntese; aludiu à circunstância de a viagem, de Junho de 2021, não poder representar a residência da criança na Madeira; cujo centro efectivo de vida, até então e durante (os seus primeiros) nove anos, foi na Venezuela. Levando a crer que foi a mãe a decidir não a deixar retornar a este país; afastando-a do seu núcleo familiar. Sendo aquela, o critério de atribuição de competência, opera a absolvição da instância.

O Ministério Público pronunciou-se (12.3.2025).
Em síntese; referiu a concordância do pai, de que nada se permite suspeitar; e a figura de referência, que é a mãe; acrescentando a inserção da criança no meio, sem qualquer oposição daquele. Por conseguinte, com competência do tribunal português.

(2.º) O tribunal a quo julgou, por despacho, o assunto (20.3.2025).
Disse assim:
« […] na data da instauração da acção, em 3 de Novembro de 2021, o menor residia nesta região há cerca de 5 meses, […].
Mais se refira que, até à data, ou seja, decorridos três anos e quatro meses, não foi apresentado qualquer pedido de regresso formulado pelo pai através das autoridades venezuelanas, com fundamento na retenção ilícita do menor. »

Nestes termos, opera a « competência internacional deste tribunal ».

(3.º) Houve conferência; com ausência do requerido pai (20.3.2025).

O tribunal a quo decidiu a regulação (24.3.2025).
Na sentença reiterou ser « o tribunal [.] competente em razão da nacionalidade ».

Como factos provados discriminou assim, além do mais:

« […]
2- Em 22 de Junho de 2021, a mãe veio da Venezuela para esta região com o menor.
3- Desde aquela data, o menor reside nesta região com a mãe, em casa arrendada, (…).
[…]
6- O menor frequenta o 6.º ano de escolaridade, na Escola de S---, (…).
7- Ocupa os seus tempos livres jogando futebol e playstation.
8- O menor esteve presencialmente com o pai pela última vez no ano de 2021, na Venezuela.
9- O menor troca mensagens com o pai por WhatsApp e faz chamadas telefónicas com este uma vez por semana.
10- O pai não contacta a progenitora para se inteirar do desenvolvimento do menor nem contribui para este. »

3. (1.º) O defensor do requerido interpôs recurso (28.3.2025).
Esquematizou assim as conclusões da alegação:

i. O presente recurso incide sobre o (…) despacho proferido a 20/03/2025 (…) e da decisão que fixou o regime das responsabilidades parentais (…) a 24/03/2025.

ii. O Ministério Púbico instaurou contra o aqui recorrente e contra progenitora K---, uma acção de regulação das responsabilidades parentais, cuja decisão é aqui objecto de impugnação.
iii. Porquanto, os requeridos têm um filho menor, A---, nascido em 2---, e que conta actualmente com 13 (treze) anos de idade.

iv. Por requerimento datado de 06/03/2025, o recorrente invocou a excepção dilatória de incompetência do tribunal ad quo e ainda por se se verificar uma inutilidade superveniente da lide, o que acarretaria a absolvição da instância.
v. No entanto, o tribunal a quo entendeu ser competente para dirimir o litígio.

vi. Porém, resulta dos autos, que o menor é nacional da Venezuela, tendo permanecido aí durante 9 (nove) anos, junto da sua avó materna, com o recorrente e com a sua família paterna.
vii. A progenitora por sua iniciativa decidiu vir viver para outro país.
viii. Tendo entrado em território português em Maio de 2019 e deixado o menor aos cuidados da sua família na Venezuela.
ix. A 10 de Maio de 2021 o recorrente peticionou nos Tribunais Judiciais da Venezuela uma autorização judicial para permitir que o menor pudesse viajar com a sua prima para a Região Autónoma da Madeira, entre os dias 15 e 22 de Junho de 2021, de forma que o menor pudesse passar férias com a progenitora.
x. Nessa senda, o menor ingressou em território português no decurso do mês de Junho de 2021.
xi. Entre a data da entrada em território português do menor, em Junho de 2021, e a instauração da presente acção, a 3 de Novembro de 2021, verifica-se um mero intervalo temporal de aproximadamente de 5 (cinco) meses.
xii. Uma mera autorização judicial autorizando um menor a viajar para outro território para umas férias com a sua mãe não pressupõe que o mesmo tenha aqui a sua residência.
xiii. O que resulta dos autos, é que a progenitora pretendeu fixar a residência do menor em território português para, posteriormente, obter nacionalidade portuguesa.
xiv. Resultando, salvo melhor opinião, numa autêntica fraude à lei no Direito da competência internacional.
xv. Não se compreende o facto de a progenitora fornecer o número de telemóvel, o e-mail, o menor trocar mensagens com o progenitor por WhatsApp e fazer chamadas telefónicas com este uma vez por semana, ou ainda, o facto da progenitora ter pleno conhecimento sobre os processos judiciais relativos ao menor, em curso na Venezuela.
xvi. Conforme flui dos documentos juntos pela requerida, por decisão datada de 5 de Maio de 2022, o Tribunal da Venezuela, enquanto se regulava em território português a mesma questão, aquele tribunal também se considerou competente (mesmo estando o menor a residir em Portugal).
xvii. Não se olvida que o Regime Geral do Processo Tutelar, fixa uma norma especial sobre a competência dos Tribunais.
xviii. I.e., deverá ser competente o tribunal do local onde o menor tem a sua vida organizada, em termos de maior estabilidade e permanência e onde desenvolve habitualmente a sua vida, não podendo ser confundido com o domicílio legal ou com o domicílio do progenitor a quem se encontra confiado.
xix. Ora, conjugando as supra-referidas normas e a factualidade dada como provada na decisão proferida, forçoso é, desde logo, afastar qualquer factor de conexão para efeitos de atribuição de competência aos tribunais portugueses, pois que, quando foi proposta a presente acção, o menor não tinha a sua residência em território nacional.
xx. É que a pessoa tem domicílio no lugar da sua residência habitual, sendo que nos termos da lei, o menor tem domicílio no lugar da residência da família.
xxi. Importa não olvidar que é a lei do processo que fixa os factores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais, sendo que a competência se fixa no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram.
xxii. Atribuindo-se efeitos juridicamente relevantes ao facto imposto e consumado praticado, e enquanto desencadeador da competência internacional da jurisdição portuguesa, tal equivaleria a contemporizar com uma actuação que não está longe de representar uma fraude à lei no Direito da competência internacional.
xxiii. Estamos perante uma fabricação do domicílio / residência do menor que inequivocamente nunca teve, visando eximir-se da jurisdição dos Tribunais Venezuelanos, o que, de per si, ofende a ordem pública internacional e o próprio direito português.
xxiv. Com efeito, criou-se uma situação de facto com o intuito fraudulento de obter a competência internacional de um tribunal que, se não fosse tal manobra, não teria.
xxv. Assim, deverá ser considerado irrelevante o domicílio / residência do menor à data da instauração da acção para efeitos de determinação da competência do tribunal, o que sempre fora a sua residência habitual: a Venezuela.

xxvi. Em suma, entendemos que os Tribunais Portugueses carecem de competência para a presente acção de regulação das responsabilidades parentais, competência essa que pertence aos tribunais da Venezuela, os quais, aliás, já proferiram uma decisão de mérito sobre o mesmo objecto.

xxvii. Aliás, abundando na questão da persistência da competência dos Tribunais portugueses, não deixamos de observar neste caso, por via da situação intencionalmente criada ao deslocar a residência do menor para território português, em aberta violação da autorização judicial emanada pelos Tribunais Venezuelanos para o menor vir passar umas férias consigo, não deixamos de observar aqui, dizíamos, um muito mal disfarçado propósito de fraude à lei no Direito da competência internacional.

xxviii. Imperativamente impunha-se uma decisão diversa, pelo que deve ser concedido provimento ao recurso e ordenar-se a substituição por outra decisão que reconheça a incompetência do tribunal português para dirimir o litígio.

Em suma; « deve (…) ser declarada a incompetência internacional dos tribunais portugueses para regular as responsabilidades parentais ».

(2.º) O Ministério Público respondeu (19.5.2025).
Organizou assim as conclusões da contra-alegação:

i. Nos termos do art. 37.º, n.º 2, da Lei da Organização do Sistema Judiciário - Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - “A lei do processo fixa os factores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais”.
ii. Segundo o art. 38.º, n.º 1, da mesma lei, “A competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente”, razão pela qual a competência do tribunal não pode deixar de aferir-se pelos termos em que a acção é proposta.
iii. O art. 62.º do Código de Processo Civil fixa os factores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses, reportando-se o art. 63.º do Código de Processo Civil à competência exclusiva dos tribunais portugueses.
iv. Nos termos do art. 62.º, alínea a), do Código de Processo Civil os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras da competência territorial estabelecidas na lei portuguesa. Esta norma estabelece o princípio da coincidência entre a competência internacional e a competência territorial interna.
v. Regra que, no presente caso, se encontra prevista no art. 9.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, o qual determina que, para decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado.

vi. À data da instauração da acção de regulação das responsabilidades parentais o menor estava a residir na Madeira há cerca de cinco meses, a decisão judicial proferida na Venezuela já não seria válida sequer neste país, pelo que inexistia sentença de regulação das responsabilidades parentais e impunha-se no interesse do menor definir a sua residência, contactos com o progenitor e pensão de alimentos.
vii. Ainda que, por mera hipótese de raciocínio, a sentença de regulação fosse válida, não foi revista e confirmada em Tribunal, pelo que não podia produzir os seus efeitos em Portugal. Logo, no interesse superior do menor impunha-se a regulação das responsabilidades parentais desde logo com regime provisório.
viii. Neste momento, o menor está a residir na Madeira desde Junho de 2021, isto é, há quase quatro ano e está plenamente inserido neste meio social, sem qualquer oposição do pai, que não pediu o seu regresso através das respectivas autoridades centrais.

ix. Por tudo, o recurso interposto pela Recorrente deve ser julgado improcedente, confirmando-se na íntegra a decisão impugnada.

4. Delimitação do objecto do recurso.

4.1. Por princípio, e na falta de outra especificação, o recurso abrange tudo (as questões; os assuntos) o que, condicionante da parte dispositiva da decisão, possa ser desfavorável para a óptica do recorrente (artigo 635º, nº 3, do código de processo).
É, contudo, possível, no universo desse espectro, que as conclusões da alegação sinalizem aqueles dos segmentos, mais concretos e particulares, que se visam colocar à apreciação do tribunal superior (artigo 635º, nº 4, do mesmo código); passando então a serem apenas esses os integrantes do objecto circunscrito do recurso.

4.2. A hipótese trata de um caso com conexão transnacional.
Nela, concorrem duas decisões, uma de concreta apreciação (20.3.2025) e outra meramente tabelar (24.3.2025), mas ambas confluentes na afirmação da competência internacional dos tribunais portugueses; segmento que é o impugnado na apelação.
Instrumentalmente; sobressai a procura de substrato ao conceito de « residência da criança », que a lei nacional contém como critério para distribuir a competência dos tribunais no espaço, em matéria de regulação das responsabilidades parentais.

II – Fundamentos

1. As condições relevantes.

A realidade envolvente da hipótese é a que já consta no precedente relatório.
Muito em particular; e no que é perfeitamente consensual:

i. A criança nasceu no dia 2--- de 2012; e vivia na República da Venezuela, país de residência do requerido pai.
ii. A requerida mãe tem a sua residência fixada em S---, na ilha da Madeira.
iii. Em Junho de 2021, a criança viajou para a ilha da Madeira, a coberto de uma autorização judicial de tribunal Venezuelano, que o pai solicitara, para passar cerca de um mês e meio junto da mãe, em « férias de turismo ».
iv. A criança não regressou à Venezuela, e ficou a viver com a mãe.
v. A acção de regulação foi interposta no dia 3 de Novembro de 2021.

2. O enquadramento jurídico.

2.1. A competência internacional visa designar a fracção de poder jurisdicional que se atribui aos tribunais portugueses no seu conjunto, no confronto com os tribunais estrangeiros. Não é excludente da competência destes; salvo hipóteses de competência exclusiva (p. ex.; do artigo 63º do Código de Processo Civil). Apenas significa que os tribunais portugueses no seu conjunto aceitam julgar certas acções que tenham algum elemento de conexão com alguma ordem jurídica de outro país.

A fonte normativa desta atribuição, na falta de habilitação de algum instrumento de direito internacional, há-de encontrar-se no direito interno, do Código de Processo Civil (artigo 59º); e, por princípio, como todo o pressuposto processual, apurado em função da configuração inicial dada à acção (Acórdão da Relação de Lisboa de 19 de Dezembro de 2024, proc.º nº 1597/23.2T8BRR-A.L1-8).

As condições, de verificação alternativa, que capacitam os tribunais nacionais ao julgamento de certa causa, conexa com o estrangeiro, constam além do mais do artigo 62º do código; onde, na alínea a), se estabelece o critério fundado na circunstância de a acção poder ser proposta em Portugal segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa – o designado princípio da coincidência; « ou seja, da coincidência entre a competência interna (em razão do território) e a competência internacional » (Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, “Manual de processo civil”, 2.ª edição, página 200).

2.2. A hipótese do caso é a de uma regulação do exercício das responsabilidades parentais, acção a que se aplica o Regime Geral do Processo Tutelar Cível, contido na Lei nº 141/2015, de 8 de Setembro; e em cujo artigo 9º, nº 1, se determina além do mais que para decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado, intuindo-se que a residência relevante, para o efeito, há-de ser a habitual (Luís de Lima Pinheiro, “Direito internacional privado”, volume III, tomo 1 [competência internacional], 2019, página 343).

O momento para fixação da competência vai ao encontro da regra geral, do dia em que a acção é proposta; estendendo-se-lhe ainda a disposição que irreleva qualquer modificação de facto que possa posteriormente ocorrer (artigo 38º, nº 1, da Lei da organização do sistema judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto).

Já o critério escolhido, o da residência (proximidade), é comummente explicado por razões de eficiência, e em função do interesse (superior) da criança.
O tribunal da área onde a criança se encontra, com maior frequência e estabilidade, há-de ser aquele que dispõe das melhores condições para conhecer da realidade familiar e social em que a mesma se mostra inserida, e o mais habilitado para tomar as providências mais adequadas (Acórdão da Relação de Guimarães de 11 de Maio de 2023, proc.º nº 3008/21.9T8BRG.G1).

Explicação reforçada nas hipóteses da competência internacional.
Sobre este assunto, numa análise incidente em Estados estrangeiros à margem dos acordos internacionais, chamando a atenção (1.º) para o critério da proximidade geográfica expresso na residência habitual da criança e, de todo o modo, (2.º) para a necessidade de um factor de conexão suficientemente forte entre o caso e o território nacional, o único capaz de habilitar a competência internacional dos tribunais portugueses, António José Fialho, “A competência internacional dos tribunais portugueses em matéria de responsabilidade parental”, Julgar nº 37 [Janeiro – Abril 2019], páginas 33 a 35.

As autoridades do Estado da residência habitual hão-de também ser as mais bem colocadas para conseguirem conhecer, e com maior esclarecimento, o meio social em que a criança está inserida, para poderem avaliar as suas necessidades mais prementes e próximas, bem como as pessoas susceptíveis de a tomarem a seu cargo; e bem assim para decretarem as medidas mais apropriadas à situação e para velar eficazmente pela sua boa, sucessiva e equilibrada execução.
Acrescendo ainda que, sendo no espaço da residência habitual que há-de operar a comum efectivação das medidas, em hipótese de conexão transnacional, se consegue arredar toda a problemática associada ao valor das decisões estrangeiras, ou ao seu reconhecimento, no lugar dessa efectivação.

2.3. Igualmente, a espessura do conceito de « residência da criança », com o sentido da sua « residência habitual », para o efeito aqui em causa, não tem merecido particulares dificuldades, ou alguma especial dissonância.
A interpretação corrente diz que essa residência, para lá da presença física, mais ou menos prolongada, há-de, sobretudo, ser um local, um espaço, que revela, a partir de certos sintomas, uma determinada (acentuada e sólida) integração (sustentada) da criança num concreto ambiente social e familiar. O lugar onde se encontra organizada e assente a sua vida, em termos mais estabilizados, e de maior permanência, onde desenvolve habitualmente a sua vida (o seu quotidiano), onde está radicada.
Para a determinação desse lugar, deve ser tido em nota o agregado dos indícios ou das circunstâncias de facto, relevantes em cada (e particular) caso concreto.

Numa óptica transnacional, a combinação de sintomas como, entre outros, o da duração, regularidade e condições, das razões de permanência no território de um certo país ou as justificativas da mudança do centro básico da vida para esse país, o lugar e o contexto da escolaridade, os conhecimentos linguísticos, bem como os laços familiares e sociais que a criança tenha nesse território, são tudo factores susceptíveis de, por princípio, fazer suspeitar de uma assimilação (ou integração) da criança; e com uma virtualidade suficiente para lhe fazer reconhecer a « residência estável ».
Exemplificativamente; se uma criança está matriculada e frequenta a “sua escolinha” no território de um país, e aqui habita com a sua mãe, só algum factor imponderado ou extraordinário permitirá dizer que não é esse país o espaço (o lugar) da sua « residência » (Acórdão da Relação do Porto de 11 de Fevereiro de 2021, proc.º nº 15/18.2T8BAO-C.P1).

2.4. O caso concreto da hipótese.
2.4.1. No dia 3 de Novembro de 2021, dia da propositura da acção, a criança vivia com a mãe, em Santa Cruz, na ilha da Madeira.
A sentença de regulação refere que a mãe viera da Venezuela para esta região em 22 de Junho de 2021, com a criança (facto provado 2-). Não terá sido exactamente assim; como se intui de passos vários do processo – (1.º) o relatório social refere que a mãe veio para a Madeira em Abril de 2019, deixando a criança aos cuidados da avó materna; (2.º) aparenta-se uma decisão judicial, proferida na Venezuela, de 27 de Maio de 2021, a autorizar a criança a viajar desse país para a ilha da Madeira –; mas o detalhe não é particularmente significativo para a questão aqui decidenda.
Verdadeiramente relevante é, isto sim, que a criança ingressou na ilha da Madeira em meados de Junho de 2021 – disso não há dúvida –; e que veio com o fito de estar neste espaço na companhia da mãe, ainda que temporariamente; situação que pese embora a seguir persistiu, e se manteve.
Note-se que todos os sintomas confluem no indício de que a viagem mereceu o consenso do requerido pai – (1.º) o próprio procedimento no tribunal da Venezuela, que gerou a autorização judicial, terá sido impulsionado pelo pai; (2.º) a mãe relatou no relatório social essa anuência –.
Mas, porventura mais importante, convergem também similares sinais acerca da persistência, a seguir, da criança na ilha da Madeira; e junto da sua mãe.
A criança não regressou à Venezuela, e ficou a viver com a mãe (sentença de regulação; facto provado 3-); frequenta a escola de S---, 6.º ano de escolaridade, e aqui ocupa os seus tempos de lazer, como qualquer jovem da sua idade (sentença de regulação; factos provados 6- e 7-).
Ao que se intui, o (próprio) pai desencadeou, quase um ano depois da viagem para a Madeira, e quando já pendia esta acção de regulação, um procedimento judicial nos tribunais da Venezuela, para lhe ser temporariamente retirado o exercício do poder paternal e atribuído unilateralmente à mãe, aí expressivamente indicada a residir na ilha da Madeira, em S---; situação acolhida no tribunal daquele país, em 5 de Maio de 2022.
A mãe verbalizou no relatório social, igualmente, a concordância de ambos os pais acerca da permanência da criança na Madeira.
A sentença de regulação escreve que, não obstante a criança ter estado, pela última vez, presencialmente, com o pai, em 2021 (facto provado 8-), e este não contactar a mãe para se inteirar acerca do seu desenvolvimento, nem dar qualquer contributo (facto provado 10-), mesmo assim, mantém contactos com o filho, com quem troca mensagens por WhatsApp, e faz chamadas telefónicas com este com frequência semanal (« uma vez por semana ») (facto provado 9-).
Tudo sintomas seguros da consciência da situação efectiva da criança.
E que, transportados para a data da interposição da acção, fazem suspeitar com suficiente segurança de um consenso, de um estado de coisas, tudo menos do que envolto em qualquer controvérsia ou litígio. Ao invés, antes de uma situação de acordo e aprovação, harmoniosa, e com carácter consolidado; em que comunga o pai (!).
Numa outra óptica, o ónus da demonstração de algum tipo de perturbação patológica (desvirtude; de algum desassossego), em quadro de residência fixa, estável e harmoniosa, da criança, no espaço nacional, não opera, nem se indicia minimamente dos dados disponíveis neste caso.
2.4.2. No limite, essa invocação permite transportar-nos para as regras contidas na Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia, no dia 25 de Outubro de 1980, e que vincula os Estados português e venezuelano; onde, no seu artigo 3º, se delimita o conceito da ilicitude na « deslocação ou [.] retenção de uma criança », contemplando-se nele a efectivação da deslocação ou retenção em violação de um « direito de custódia » – o « direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa e, em particular, o direito de decidir sobre o lugar da sua residência » (artigo 5º, alínea a)) –, atribuído pela lei do Estado da residência habitual (alínea a)), e em exercício efectivo « no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido » (alínea b)) (Acórdão da Relação de Lisboa de 16 de Agosto de 2024, proc.º nº 11/24.0T8SCF.L1-8).
A espessura desta perturbação não tem merecido controvérsia na jurisprudência.
O desassossego não opera se, ora a deslocação, ora a permanência da criança, por princípio, se possam sustentar em consentimento, expresso ou tácito, dos seus dois progenitores (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Fevereiro de 2023, proc.º nº 17505/20.0T8LSB-A.L1.S1).
Numa hipótese onde a deslocação (a permanência) seja « efectuada por acordo entre o progenitor guardião e o progenitor não guardião, dando lugar a uma alteração de facto da guarda do menor, que passa a residir noutro país e com o progenitor que anteriormente não detinha a sua guarda […], então há que afirmar que se está perante uma situação em que o local da vida quotidiana do menor é o novo local convencionado entre os progenitores » (Acórdão da Relação de Lisboa de 12 de Janeiro de 2023, proc.º nº 550/13.9TMPDL-A.L1-2).
Operando o sobressalto (a ilicitude) apenas quando a iniciativa unilateral de um progenitor seja a determinante na deslocação e fixação da residência habitual da criança, ao perfeito arrepio, e contra a nítida vontade, do outro (Acórdãos das Relações de Coimbra de 2 de Dezembro de 2014, proc.º nº 1045/12.3TBCLD-A.C1, e de Lisboa de 19 de Dezembro de 2019, proc.º nº 2577/19.8T8CSC-A.L1-6, ou de 9 de Janeiro de 2020, proc.º nº 3654/18.8T8CSC.L1-6).
2.4.3. Contemplam as alegações (e as conclusões) do recurso (ainda) a referência à manipulação do domicílio da criança, por modo de defraudar a conexão e a fabricar uma competência internacional dos tribunais portugueses.
Uma fraude à lei no plano das regras de competência internacional – escreve Luís de Lima Pinheiro – consistirá, p. ex., « numa manipulação de elementos de facto ou de direito de que dependa o estabelecimento da competência internacional »; caso, numa relação transnacional, da deslocação da residência para um Estado « com o único fito » de atribuir a competência aos tribunais desse Estado (“Direito internacional Privado”, citado, página 50).
« A sanção da fraude à lei em direito da competência internacional decorre da irrelevância da manipulação [fictícia] do elemento de conexão […]. A competência internacional dos tribunais portugueses será estabelecida com base nos elementos de conexão que existiriam se a manipulação […] fictícia não se tivesse[.] verificado » (Luís de Lima Pinheiro, obra citada, página 51).
2.4.4. Como se referiu, de nada disto (dissenso; fraude) o caso permite suspeitar.
A criança chegou e ficou, nesta óptica, licitamente, no espaço português.
No dia da interposição da acção, a residência quotidiana da criança era com a mãe, em S---, na ilha da Madeira.
E sem algum extraordinário, ou perturbador, facto (sobressalto) associado.
Essa conexão habilita, pois, os tribunais portugueses à regulação parental.
O recurso de apelação não merece provimento.

III – Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar:
1.º; internacionalmente competentes os tribunais portugueses para estabelecer a regulação do exercício das responsabilidades parentais, referente à criança A---, nascido no dia 2--- de 2012; e
2.º; nessa conformidade, improcedente a apelação interposta.
As custas não são devidas, por existir isenção legal (artigo 4º, nº 1, alínea l), do Regulamento das Custas Processuais).

Lisboa, 9 de Setembro de 2025
Luís Filipe Brites Lameiras
Ana Mónica Mendonça Pavão
Rute Alexandra da Silva Sabino Lopes