Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa  | |||
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| Relator: | SOFIA RODRIGUES | ||
| Descritores: |  REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO QUALIFICAÇÃO JURÍDICA MEDIDA DE COAÇÃO AGRAVAÇÃO  | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/22/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
| Sumário: |  I. O requerimento de abertura da instrução não é legalmente admissível quando, vocacionado para a requalificação jurídica dos factos, seja essa a sua exclusiva finalidade ou um fim que se esgota em si mesmo. II. A instrução que tenha subjacente a pretensão de requalificação jurídica dos factos só será de admitir quando a modificação pretendida operar concite com circunstância dotada de eficácia impeditiva da submissão da causa a julgamento. III. Só nesses casos a instrução se mostra apta a originar a prolação de decisão equiparável a despacho de não pronúncia, fim último a que se destina, quando requerida pelo arguido, a fase processual em causa. IV. A avaliação dessa possibilidade e, por conseguinte, da admissibilidade do requerimento de abertura da instrução, carece de realizar-se casuisticamente, tendo por base os dados presentes, ou adquiridos, já no processo, em equação de que se encontram subtraídos juízos abstractos de possibilidades futuras consentidas pela requalificação tida em vista. V. Não pode ser modificado o estatuto coactivo do arguido, por simples emergência da circunstância de o Ministério Público, sem modificação de relevo do continente factual que foi tido por pressuposto no despacho de aplicação de medidas de coacção, ter deduzido acusação na qual optou por reconduzir as condutas aí descritas à previsão do artº 21º do Dec. L. nº 15/93, de 22.01, em detrimento da qualificação inicialmente efectuada, que as subsumiu à previsão do artº 25º desse diploma legal. VI. O agravamento do estatuto coactivo do arguido só poderá vir a ocorrer se verificado o condicionalismo previsto pelo artº 203º do Cód. de Proc. Penal, que se apresenta dependente de violação das obrigações impostas.  | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: |  Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: --- I. RELATÓRIO [1]. No âmbito do processo que, sob o nº 75/24.7PILRS, corre termos pelo Juízo de Instrução Criminal de Loures, J1, no qual ocupa a posição processual de arguido AA, com os demais sinais nos autos, foi, aos 30.05.2025, proferido despacho, que culminou com o dispositivo que, de seguida, se transcreve: --- “Nestes termos, sem necessidade de outras considerações, ao abrigo do disposto no art.º 287º, n.º 3 do C.P.P., decide-se rejeitar o requerimento de abertura da instrução, apresentado por inadmissibilidade legal”. --- ** Com essa decisão inconformado, apresentou-se aquele AA a dela interpor o presente RECURSO, para o que, de seguida à respectiva motivação, formulou, em síntese, as seguintes conclusões: --- “1. De acordo com a corrente jurisprudencial maioritária o arguido pode requerer a abertura de instrução apenas com vista à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação. 2. Até porque, em determinadas situações, como seja o caso de, com a alteração da qualificação jurídica, se pretender a imputação de crime menos grave, o que poderá ter reflexos na medida de coação aplicada, ou na natureza do crime, que poderá passar de público a semipúblico, admitindo, dessa forma, desistência de queixa e a consequente não submissão do arguido a julgamento. 3. Sem olvidar que o Mmo JIC não admitiu a instrução com base na sua inadmissibilidade legal violando os art.º 286º n.º 1 e art.º 287º n.º 2, ambos do Cód. Processo Penal, uma vez que não apenas a instrução como é suscitada não é inadmissível assim como não se demonstra um ato juridicamente inútil. 4. Ao que sabemos, pese embora exista jurisprudência em ambos os sentidos, parece-nos ser esta a tese dominante, até de forma a salvaguardar as garantias de defesa que o processo criminal assegura (ex. vi. N.º 1 do art.º 32º do CRP), sob pena de violação daquele preceito legal e da inconstitucionalidade do art.º 287º do CPP. 5. Com todo o respeito, e como bem é dito no Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 05/02/2013, no Proc. 129/11.0GBLGS-A.E1 “a sua opinião sobre tal matéria, emitida em momento anterior ao da decisão instrutória, não é apta a rejeitar a abertura dessa fase processual, por não ter sido essa a opção do legislador.” 6. Pelo que deve o douto despacho ora em crise ser revogado e em sua substituição proferido despacho que declare aberta a instrução. (…)”. --- ** Por despacho de 07.07.2025, foi admitido o recurso interposto, a que foi fixado efeito devolutivo, mais se tendo determinado a sua subida imediata e em separado. --- ** O Ministério Público junto da 1ª Instância apresentou-se a exercer a faculdade de resposta ao recurso interposto, contexto em que pugnou no sentido de lhe ser concedido provimento, em posição que fundamentou na circunstância de estar em causa alteração de qualificação jurídica requerida com a finalidade de afastamento da possibilidade de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva. --- [2]. Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, foi dado cumprimento ao disposto no artº 416º do Cód. de Proc. Penal, tendo a Exmª. Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitido parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso, destacando-se das razões que o fundamentam as passagens que, de seguida, se transcrevem: --- “(…) VIII. Nesta Instância, concordamos com o sentido do despacho judicial do tribunal a quo, sendo certo que a alteração à qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, nos termos propostos no requerimento de abertura de instrução, não se mostra suscetível de contribuir, ainda que indiretamente, para que o arguido não seja pronunciado ou não seja sujeito a julgamento, por esses mesmos factos, ou que haja alteração ou extinção da medida de coação de privação de liberdade a que se encontra sujeito atualmente - a de obrigação de permanência na habitação p. no art.º. 201 do Código de Processo Penal. IX. Com efeito, a rejeição da instrução por qualificação jurídica ocorre quando o pedido de abertura da instrução, embora válido, não tem a capacidade de cumprir a sua finalidade, tornando-se legalmente inadmissível e desnecessário. A instrução visa verificar a justeza da acusação ou arquivamento, e se a alteração jurídica pretendida já não puder ser realizada, a instrução não deve ser admitida, poupando tempo e recursos do tribunal. Um pedido de instrução pode ser rejeitado quando a sua finalidade se torna inútil, ou seja, quando a instrução não tem a capacidade de alcançar os seus objetivos legais. Por exemplo, se a alteração não levar à subsunção dos factos a um crime semipúblico, ou à desistência de queixa por parte do ofendido, caducidade do exercício de direito de queixa, prescrição, amnistia. (…) X. In casu, a alteração jurídica não tem em vista um objetivo que permita atingir a finalidade da instrução, qual seja, a de o arguido não ser submetido a julgamento e a consequente prolação de decisão de não pronúncia[v.g. subsunção dos factos a um crime semipúblico ou particular, possibilitando a desistência de queixa por parte do ofendido; subsunção num tipo criminal cujo prazo de prescrição já se haja completado ou que esteja abrangido por amnistia. E sempre se diga que no caso concreto a eventual alteração jurídica pretendida não tem como consequência a alteração/ extinção da medida de coação, uma vez que o arguido se encontra sujeito à medida de obrigação de permanência de habitação, nos termos do art. n.º. 201º do Código de Processo Penal que é aplicável se houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos. E no caso do tráfico de menor gravidade – art. 25º do Dec. Lei 15/93 de 22/1, a pena aplicável é de: a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI; b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV. XI. Como bem refere a Meritíssima Juíza a quo, o ora recorrente com o seu requerimento de abertura de instrução pretende exclusivamente contrariar a qualificação jurídica dos factos pelos quais se encontra acusado, cuja prática não contraria, assim como não contraria a suficiência dos meios probatórios que os sustentam, o que vale por dizer que não coloca em causa a existência de matéria penalmente relevante que justifique a sua submissão a julgamento. XII. Assim e nessa exata medida, não podemos deixar de concluir que, neste caso, a abertura de instrução não é legalmente admissível e bem andou a Meritíssima Juíza a quo ao rejeitar o requerimento de instrução e ao determinar que o processo prosseguisse para a fase de julgamento, onde o arguido pode exercer todos os seus direitos de defesa. (…)”. --- ** Facultado ao recorrente, nos termos previstos pelo nº 2 do artº 417º do Cód. de Proc. Penal, direito de resposta, não fez o mesmo dela uso. --- ** Continuados os autos com termo de conclusão para exame preliminar, foi, com enquadramento na previsão da al. a) do nº 7 do artº 417º do Cód. de Proc. Penal, proferido despacho que manteve o efeito atribuído ao recurso. --- ** Colhidos os vistos, realizou-se conferência. --- ** II. FUNDAMENTAÇÃO [1]. Do âmbito do recurso e das questões que integram o seu objecto É pelas conclusões da motivação do recurso, que hão-de conter resumo, sob forma articulada, das razões que fundamentam o pedido que encerra, que se delimita o respectivo objecto – cfr. artºs 402º, 403º e 412º, nº 1 do Cód. de Proc. Penal, e, entre muitos outros, acórdão do STJ de 15.04.2010 [Proc. nº 1423/08.2JDLSB.L1.S1], disponível in www.dgsi.pt. --- Estando, embora, os poderes de cognição do tribunal de recurso circunscritos pelo objecto que, nos anteditos termos, se lhe apresente definido, estão desse limite excluídas as questões de conhecimento oficioso, que obstem à apreciação do mérito, como é o caso, nos termos previstos pelo nº 3 do artº 410º do Cód. de Proc. Penal, das nulidades insanáveis que afectem a validade do acto e dos vícios que, de acordo com o estabelecido no nº 2 da mesma disposição legal, tenham verificação [Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/95, public. DR nº 298/1995, Série I-A de 28.12.1995]. --- ** Determinando-se o objecto do recurso pelas respectivas conclusões, verifica-se, no caso que nos toma, que a questão submetida à apreciação deste Tribunal da Relação se resume a saber se o despacho recorrido, que indeferiu o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal, deve ser mantido ou se, pelo contrário, se impõe seja substituído por outro que declare aberta a correspondente fase processual. --- [2]. Do iter procedimental que conduziu à decisão recorrida e do teor desta Definido, nos anteditos termos, o objecto do presente recurso, passaremos a enunciar aquilo que, com relevância, nos autos se processou. --- a). O ora recorrente foi detido e, nessa indicada condição, submetido, aos 02.11.2024, a primeiro interrogatório judicial, na sequência do que veio a ser proferido despacho, por via do qual foi determinado que ficaria a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito, para além das obrigações emergentes do TIR prestado, à medida de coacção de prisão preventiva. --- Para fundamentar a antedita decisão, e para além dos perigos que, na circunstância, foram tidos por verificados, ficou nela declarado encontrar-se indicada a prática por ele, em autoria material e em concurso efectivo, de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo artº 21º, nº 1 do Dec. L n.º 15/93, de 22.01, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 2º, nº 3, alínea p), 3º, nº 1, conjugado com o nº 4 alínea a), e 86º, nº 1, alínea d) da L. nº 5/2006, de 23.02, ilícitos esses ancorados na afirmação de forte indiciação dos factos que, de seguida, se transcrevem: --- “1. Desde data não concretamente apurada, mas certamente antes de ...-...-2024, o arguido AA (doravante AA) dedica-se ao armazenamento, à venda e cedência de produto estupefaciente, com o objetivo de obter proveitos económicos. 2. Na concretização do referido plano, no dia ...-...-2024, pelas 23h15, no ..., o arguido AA entregou ao arguido BB um saco de plástico de cor azul, o qual continha no seu interior a carteira do arguido BB, com a sua documentação e uma embalagem, contendo uma “placa/sabonete” de haxixe/liamba com peso bruto, total e aproximado de 97,42 gramas. 3. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, os arguidos entraram na viatura da marca ..., de cor preta e de matrícula ..-..-SR e iniciaram a marcha. 4. Após, os arguidos foram avistados por uma Patrulha da PSP de..., composta pelos Agentes CC e DD. 5. Por AA já se encontrar referenciado pelo crime de tráfico de estupefacientes, aquela Patrulha foi no encalço dos arguidos, com vista à sua interceção e fiscalização. 6. Porém, quando se aperceberam da presença da patrulha, o arguido BB imprimiu uma maior velocidade na viatura e encetou fuga, no sentido ..., virando à esquerda para a ..., virando à direita para a ... e seguindo para a .... 7. O arguido BB continuou a marcha apesar de todos os sinais luminosos, sonoros e manuais de paragem que lhe foram dirigidos pela Patrulha. 8. Durante a fuga, na ..., o arguido BB entrou em contramão e viu-se obrigado a abrandar e travar, de forma a evitar a colisão com o veículo automóvel que circulava na faixa. 9. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido AA, que seguia no lugar do pendura, abriu a janela da viatura e atirou, na direção do solo: a. Cinco (5) embalagens, contendo 1,33 gramas de cocaína com grau de pureza ainda não apurado à presente data e suscetíveis de permitir a preparação de número de doses ainda não apurado à presente data; e b) Duas (2) embalagens, contendo haxixe/liamba com peso bruto, total e aproximado de 9,49 gramas, com grau de pureza ainda não apurado à presente data e suscetíveis de permitir a preparação de número de doses ainda não apurado à presente data; 10. No referido dia, e nas referidas circunstâncias, o arguido AA tinha consigo ou em sua posse: - a) Na sua bolsa a tiracolo a quantia de €635,00 (seiscentos e trinta e cinco euros), em três notas de €5,00 (cinco euros), nove notas de €10,00 (dez euros) e catorze notas de €20,00 (vinte euros) e cinco notas de €50,00 (cinquenta euros); - b) No interior da sua residência, sita na ..., mais concretamente no seu quarto, junto à cama, e no interior de um saco de tecido, de cor preta: i. Duas (2) embalagens, contendo no seu interior 66,65 gramas de produto estupefaciente Ecstasy, com grau de pureza ainda não apurado à presente data e suscetíveis de permitir a preparação de número de doses ainda não apurado; ii. Um (1) frasco, com duas embalagens contendo 44,67 gramas de cocaína, com grau de pureza ainda não apurado à presente data e suscetíveis de permitir a preparação de número de doses ainda não apurado e duas embalagens com diversas pastilhas de ecstasy, com resultado indeterminado; iii. Uma (1) embalagem com três placas/sabonetes de haxixe, contendo 285,55 gramas de com grau de pureza ainda não apurado à presente data e suscetíveis de permitir a preparação de número de doses ainda não apurado à presente data; iv. Diversos pedaços, contendo 22,24 gramas de haxixe/canábis, com grau de pureza ainda não apurado à presente data e suscetíveis de permitir a preparação de número de doses ainda não apurado à presente data; v. Uma embalagem, contendo 1,40 gramas de haxixe/canábis, com grau de pureza ainda não apurado à presente data e suscetíveis de permitir a preparação de número de doses ainda não apurado à presente data; vi. Uma balança de precisão, da marca ... (funcional) e com medida entre 0,01 gramas e 200 gramas; vii. Uma faca “de corte”, com o cabo de cor azul e com vestígios de estupefaciente na lâmina; viii. Uma face “de corte”, com o cabo de madeira e com vestígios de estupefaciente na lâmina; ix. Cinquenta munições, da marca PPU, de calibre 6,35; x. €960,00 (novecentos e sessenta euros) em numerário, em quatro notas de €5,00 (cinco euros), sessenta e sete notas de €10,00 (dez euros), onze notas de €20,00 (vinte euros) e uma nota de €50,00 (cinquenta euros); - E numa estante, na mesma divisão, no interior de uma caneca: - Uma embalagem, contendo comprimidos ecstasy; - Uma embalagem, contendo haxixe/liamba. 11. Os arguidos BB e AA tinham como objetivo proceder à venda do produto estupefaciente acima identificado, mediante contrapartidas pecuniárias. 12. Os valores pecuniários encontrados na posse do arguido AA correspondem ao produto de venda de produto estupefaciente, não dispondo o arguido AA de qualquer fonte lícita de rendimentos. 13. Os arguidos BB e AA sabiam que não tinham autorização legal para comprar, vender, deter, ceder, transportar ou, por qualquer forma, manusear produtos estupefacientes, tendo, apesar disso, agido com o propósito concretizado de adquirir, manusear, ceder e vender qualquer dos produtos estupefacientes que foram encontrados na sua posse, ou de produtos à base dessas substâncias. 14. Ao atuar do modo descrito, os arguidos sabiam e quiseram, sem para tal estarem autorizados, deter, transportar e vender produtos estupefacientes, designadamente canábis, cocaína, ecstasy e liamba. 15. O arguido AA não é titular de licença de uso e porte de arma e de licença de detenção no domicílio. 16. O arguido AA era conhecedor do potencial das munições que tinha na sua posse, enquanto meio de agressão e das consequências que poderiam eventualmente advir para terceiros e património alheio do seu uso, sabia que não possuía qualquer autorização ou licença emanada pela autoridade competente para as ter, nem qualquer justificação plausível para as conservar e, ainda assim, não se coibiu de o fazer, querendo efetivamente ter consigo aquelas munições, o que se concretizou. 17. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, pese embora soubessem que os seus comportamentos são censurados por lei como crime.”. --- b). Inconformado com a decisão que, nos termos referidos na antecedente alínea, o visaram, AA apresentou-se a interpor dela recurso, por via do que colocou em crise a qualificação jurídica dos factos e, bem assim, a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida de coacção que lhe foi aplicada, pugnando fosse a mesma substituída por outra(s) menos gravosa(s). --- Por acórdão proferido, aos 06.03.2025, por este Tribunal da Relação de Lisboa, veio a ser concedido parcial provimento ao recurso e, nessa conformidade, decidido [transcrição]: --- “- Determinar que o recorrente AA, aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica desde que seja prestado o consentimento do mesmo, bem como das restantes pessoas que o devam prestar, e desde que se mostrem satisfeitas as condições materiais e técnicas necessárias à instalação dos meios de vigilância electrónica. - Determinar que, na falta de condições materiais e técnicas ou de algum dos consentimentos necessários e enquanto não for exequível a medida de obrigação e permanência na habitação mediante vigilância electrónica, o arguido aguarde os ulteriores termos sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação. - Tal medida de coacção cumula-se com a obrigação de não contactar, por qualquer meio com o co-arguido BB e consumidores de produtos estupefacientes, designadamente os que vierem a ser identificados nos presentes autos como possíveis testemunhas e, bem assim, com quaisquer pessoas ligadas à cedência/venda desses produtos, nos termos do disposto no artigo 200º, n.º 1, al. d) do CP Penal. - Determina-se a imediata devolução do arguido à liberdade e a sua condução à morada que indicou no requerimento de recurso - ...; no momento da libertação, o recorrente deve ser solenemente advertido que o incumprimento das medidas de coacção a que foi agora sujeito determinará a aplicação da prisão preventiva.”. --- No corpo do considerado aresto pode ler, para o que ao caso importa considerar, que [transcrição]: --- “(…) o arguido discorda da qualificação jurídica da antedita factualidade, considerando que aquela dada como indiciariamente demonstrada não é suficiente para que lhe possa ser imputada a prática do crime de tráfico previsto e punido no art. 21º do DL 15/93, integrando, ao invés, o crime previsto no art. 25º do citado diploma legal. (…) nada se sabe, designadamente no que tange aos lucros esperados ou já obtidos, a qualquer espécie de circuito de transacção, a qualquer habitualidade ou persistência de acção ou sofisticação dos meios empregues; ou seja, não é possível fixar com o rigor necessário a imagem global do facto. Não chegam para caracterizar essa imagem de censurabilidade as quantidades de produtos estupefacientes detidos, a inexistência de ocupação profissional do recorrente que justifique a quantia em notas de que era possuidor e o facto de já em momento anterior ter sido condenado por crime. Com efeito, tal acervo factual não permite, para já, corroborar a imputação efectuada na decisão recorrida. Sem prejuízo, naturalmente, de apurada toda a materialidade pertinente – nomeadamente aquela a que supra se referiu ignorada – a decisão a proferir adquirir um sentido diferente, por exemplo a condenação como crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º da DL 15/93. (…) no caso dos autos concluiu-se pela existência de fortes indícios da prática pelo recorrente do crime de tráfico de produtos estupefacientes de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25º do DL 15/93 e já não pelo crime de tráfico de estupefacientes do artigo 21º do mesmo diploma. (…) existem igualmente fortes indícios da prática pelo arguido de um crime de detenção de arma proibida – in casu, munições – p. p. pelo art. 86º, 1, al. d) da 5/2006 de 23 de Fevereiro. (…)”. --- c). Concluída a investigação posta a seu cargo, o Ministério Público deduziu, no culminar da fase de inquérito, acusação contra o arguido pelos factos enunciados na antecedente alínea a)., com a concretização de que: --- - O produto referido no ponto 2, revelou tratar-se, após exame pericial, de canabis (resina) com o peso líquido de 95,931 g, com o grau de pureza de 30.1 % do seu princípio activo (THC), correspondente a 577 doses diárias; --- - As substâncias referidas no ponto 9, revelaram tratar-se, também após exame pericial, de --- ✓ Cocaína (ester met), distribuída por três embalagens, com o peso líquido de 0,453 g, com o grau de pureza de 85.9%, correspondente a 12 (doze) doses; --- ✓ Cocaína (cloridrato), distribuída por duas embalagens, com o peso líquido de 0,717 g, com o grau de pureza de 91,5%, correspondente a 3 (três) doses; --- ✓ Canabis (resina), contida e um envelope, com o peso líquido de 9,347 g, com o grau de pureza de 28,6 % do seu princípio activo (THC), correspondente a 53 doses diárias; --- - As substâncias apreendidas no condicionalismo referido em 10, revelaram tratar-se, após o respectivo exame pericial, de --- ✓ MDMA, distribuído por duas embalagens, com o peso de 65,696, com um grau de pureza de 95,1%, correspondente a 624 doses; --- ✓ Em um frasco e distribuídas por duas embalagens, --- • Cocaína (ester met.), com o peso líquido de 0,977 g, com o grau de pureza de 944%, correspondente a 30 doses; --- • Cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 43,326 g, com o grau de pureza de 92,4%, correspondente a 200 doses; --- ✓ Em uma embalagem, --- • Cannabis (resina) com o peso líquido de 21,815 g, com o grau de pureza de 25,3 % do seu princípio activo (THC), correspondente a 110 doses diárias; --- • Cannabis (resina), distribuída por duas placas, com o peso líquido de 181,758 g, com o grau de pureza de 29,5 % do seu princípio activo (THC), correspondente a 1072 doses diárias; --- • Cannabis (resina), uma placa, com o peso líquido de 96,420 g, com o grau de pureza de 7,9 % do seu princípio activo (THC); --- • Cannabis (resina), em uma embalagem, com o peso líquido de 181,758g, com o grau de pureza de 29,5 % do seu princípio activo (THC), correspondente a 1072 doses diárias. --- ✓ Numa estante, --- • Resíduos de MDMA, em uma embalagem. com o peso de 0,688, com um grau de pureza de 93,31%, correspondente a 6 doses; --- • Haxixe/liamba, em uma embalagem. --- Ancorado na referida materialidade, o Ministério Público imputou ao arguido AA a prática, em autoria material e em concurso efectivo, de: --- -Um crime de tráfico de estupefacientes (Tráfico e outras atividades ilícitas), p. e p. pelo artº 21º, nº 1 do Dec. L nº15/93, de 22 de Janeiro e tabelas I-A, I-B e I-C anexas, com referência aos artigos 14.º, nº1 e art. 26, 1ª alternativa, do Cód. Penal; --- - Um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 2º, nº 3, alínea p), 3º, nº 1, conjugado com o nº 4 al. a), e 86º, nº 1, al. d) da L. n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro. --- d). Em reacção à acusação que o visou, o ora recorrente apresentou-se a requerer a abertura da instrução, com os fundamentos e finalidade que, de seguida, se transcrevem – depois de expurgadas as citações jurisprudenciais que nele se contêm: --- “1º De acordo com os elementos vertidos na acusação determinante do presente requerimento de abertura de instrução, ao ora requerente é imputada a prática de um crime consumado de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 21º, n.º 1 do DL 15/93, de 22/01, com referência à tabela I-B anexa a esse diploma, o que, em termos estritamente normativos, implica que sobre o mesmo penda uma acusação. 2º Perante a factualidade que foi apresentada pelo Mmo JIC em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido os fatos que lhe foram apresentados são ipsis verbis os fatos descritos na acusação. 3º Aquando do recurso do arguido sobre a medida de coação que lhe foi aplicada, veio o douto Venerando TRL dizer que com a factualidade com que o arguido foi presente a interrogatório era a mesma ainda enquadrável no art.º 25º do DL 15/93, de 22/01, sem prejuízo de que a investigação viesse trazer dados novos e nova factualidade que enquadrasse numa situação de mais fatos e assim enquadrável no art.º 21º do mesmo diploma legal. 4º Tal decisão de tribunal superior transitou em julgado. 5º A acusação delimita o objeto do processo, e neste momento o objeto do processo é precisamente aquele que o Venerando tribunal da Relação veio a considerar que era ainda enquadrável no art.º 25º daquele diploma legal. 6º Pelo que se impõe a despronuncia do arguido pelo crime do art.º 21º do DL 15/93 de 22/01 e a pronúncia do mesmo pelo art.º 25º do mesmo diploma legal. 7º Respeitando-se assim o já doutamente decidido pelo Venerado tribunal da Relação de Lisboa e transitado em julgado. 8º Sendo que a Instrução permite o desagravamento do crime porque vem o arguido acusado. (…) Termos em que deve o arguido ser despronunciado do crime de tráfico do art.º 21º do DL 15/93, de 22/01 e pronunciado pelo crime de tráfico p.p art.º 25º do DL 15/93, de 22/01;”. --- e). Sobre o requerimento aludido em d), incidiu o despacho recorrido que, culminado com o dispositivo transcrito no relatório do presente acórdão, ficou fundamentado nos seguintes termos: “O arguido AA veio requerer a abertura da instrução, pedindo que seja proferido despacho de “não pronúncia pelo crime previsto no art.º 21.º do DL 15/93 (tráfico de estupefacientes em forma consumada) e despacho de pronuncia pela prática do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo art.º 25.º do DL 15/93”, alegando que tal enquadramento jurídico foi atribuído aos factos por que vem acusado, que são idênticos àqueles que sustentaram a aplicação de medida de coacção, no contexto da apreciação do recurso do despacho que a aplicou. Vejamos. Tal como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30/6/2021, processo n.º 538/19.6JACBR.C1I, in www.dgsi.pt., «I - A instrução deve ser requerida, quer relativamente a factos quer a questões jurídicas, com a finalidade definida no artigo 286.º, n.º 1, do CPP, qual seja, a de obtenção de uma decisão de pronúncia ou de não pronúncia. II – Assim, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido não pode extravasar o pretendido escopo de não ser submetido a julgamento. III – O critério definidor da submissão (ou não) da causa a julgamento funda-se num juízo valorativo abrangente de todo o processo e não apenas incidente sobre fragmentos do mesmo. IV – Deste modo, a diferente qualificação jurídica dos factos como único fundamentação da instrução só a poderá legalmente sustentar se tiver como objectivo a não pronúncia do arguido quanto a todos os crimes que lhe são imputados na acusação. V – Dito de outro modo, se a diversa qualificação jurídica dos factos descritos na acusação não é passível de produzir aquele resultado (não pronúncia do arguido), mantendo-se a imputação de um ou mais crimes, sempre a causa terá necessariamente de ser submetida a julgamento, sendo, em consequência, a instrução legalmente inadmissível» No mesmo sentido, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8/5/2012, processo n.º 226/09.1PBEVR.E1I, in www.dgsi.pt. No seguimento da jurisprudência assinalada, entende-se que as finalidades legais da instrução, previstas no artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, consistindo na comprovação judicial da decisão de acusar, com vista à pronúncia ou não pronúncia do arguido. Em síntese, pretende-se apurar se a decisão de acusar resultou regularmente da actividade desenvolvida em sede de inquérito. Se se concluir que a acusação se mostra fundada, a causa será submetida a julgamento. Caso contrário, será proferido despacho de não pronuncia findando os autos. A instrução representa, pois, uma fase de controlo jurisdicional da decisão de acusar, a cargo de um juiz e dependente de iniciativa do arguido ou do assistente, mediante requerimento. Quando requerida pelo arguido, exige-se que o requerimento contenha razões suscetíveis, caso procedam, de obstar à realização do julgamento, ou seja, que justifiquem a não pronúncia. Com o seu requerimento de abertura de instrução o arguido pretende exclusivamente contrariar a qualificação jurídica dos factos pelos quais se encontra acusado, cuja prática não contraria, assim como não contraria a suficiência dos meios probatórios que os sustentam, o que vale por dizer que não coloca em causa a existência de matéria penalmente relevante que justifique a sua submissão a julgamento. Face ao exposto, é manifesta a inutilidade da instrução, dado que não pode alcançar a sua finalidade própria.”. --- [3]. Do mérito do recurso Delimitada que se encontra a matéria submetida à apreciação deste tribunal, importa deixar patente que é nos artºs 286º e ss. do Cód. de Proc. Penal que se encontra disciplinada a fase de instrução. --- Tratando-se, como se trata, de fase facultativa do processo, espoletada a requerimento do arguido e/ou do assistente, não deixou o legislador de definir as finalidades a que a mesma se destina, ao estabelecer no nº 1 do artº 286º do Cód. de Proc. Penal que, por via dela, se visa a comprovação judicial da decisão que, no culminar da fase de investigação posta a cargo do Ministério Público, haja sido por este proferida, de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento. --- Sendo esse o seu escopo, contém o artº 287º, também da lei geral de processo penal, as regras aplicáveis ao requerimento para abertura da instrução – doravante designado, abreviadamente, por RAI -, que, definindo o seu objecto, fornecem, de igual forma, subsídio relevante quanto à identificação da actividade que se pressupõe realizada em vista da comprovação da decisão de submeter, ou não, a causa a julgamento. --- Assim, dispõe-se no nº 1 da enunciada disposição normativa que, sendo a instrução requerida: --- i. Pelo arguido, ela incidirá sobre os factos pelos quais o Ministério Público, ou, em caso de procedimento dependente de acusação particular, o assistente, tenham deduzido acusação – cfr. al. a); --- ii. Pelo assistente1, terá a mesma por objecto os factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação – cfr. al. b). --- Não estando, embora, o requerimento destinado aos assinalados fins subordinado a formalidades especiais, deve o mesmo conter, nos termos do nº 2 ainda do artº 287º do Cód. de Proc. Penal, e para o que ao caso importa considerar, a enunciação, em súmula, das razões de facto e de direito que sustentam a discordância manifestada. --- Dentro do complexo normativo que se apresenta relevante para a apreciação da matéria que nos toma, prescreve-se, ainda, no artº 308º, nº 1 que, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. --- Isto posto, e tal como pode observar-se pelo teor das disposições normativas citadas, está nelas presente apelo recorrente ao facto, que há-de ser visado pela discordância manifestada no RAI e sobre que incidirá, também, a decisão a proferir no culminar da fase de instrução. E isso para não já referir que é ao facto que, de igual forma, respeitarão, sendo admitidas, as diligências de prova a realizar. --- Contudo o facto que, no âmbito jurídico-criminal, releva não se cinge à mera realidade ontológica em que se traduz certo evento histórico, sendo, outrossim, elemento de uma unidade de sentido que constitui a possibilidade de aplicação ao arguido de pena ou de medida de segurança. --- O valor que o facto reveste nessa unidade é conferido pela sua correspondência axiológica com o âmbito de previsão de norma incriminadora, ou seja, com disposição normativa que o preveja e à sua prática associe a aplicação de sanção penal. --- O legislador apela, portanto, ao facto, nas disposições normativas convocadas, como realidade omnicompreensiva, indissociável da sua tipificação como crime e consequente punibilidade, conferidas por norma incriminadora. --- Sendo as coisas dessa forma, como entendemos que são, não deixa de respeitar ao facto, preenchendo, nessa medida, os requisitos emergentes do artº 287º, nºs 1, al. a) e 2 do Cód. de Proc. Penal, o requerimento apresentado por arguido, que, não manifestando, embora, discordância quanto à suficiência de indícios relativos à materialidade que lhe é imputada, reclame seja, em fase de instrução, sindicada a sua tipificação como crime, por entender que esta está, quanto a todos ou, apenas, a parte dos delitos imputados, totalmente excluída. --- Coisa diferente é já a de saber - o que constitui, assinale-se, o objecto do presente recurso -, se é, ou não, admissível a instrução nos casos em que o arguido, não pondo em crise a suficiente indiciação dos factos imputados nem, tampouco, que os mesmos integram o âmbito de previsão de norma incriminadora, manifesta pretender seja a respectiva qualificação jurídica modificada. Tratando-se de matéria que, ao longo do tempo, tem motivado posições díspares, somos a acolher o entendimento de que a instrução, em vista do antedito fim, será admissível, apenas, quando, à luz do que consta do processo, e não de um qualquer exercício abstracto de possibilidades consentidas, a requalificação jurídica dos factos se apresenta, em concreto, passível de concitar com circunstância dotada de eficácia impeditiva da submissão da causa a julgamento, mostrando-se, nessa medida, apta a originar a prolação de decisão equiparável, sob o ponto de vista da sua finalidade, a despacho de não pronúncia. --- Exemplificando-se o que se pretende significar, veja-se o caso em que, tendo sido deduzida acusação pela prática de crime sob a forma qualificada, o arguido, sem colocar em crise os factos dados como indiciados no libelo acusatório, se apresente a sustentar que esse continente factual deve reconduzido ao delito na sua forma simples, com consequente alteração da respectiva natureza procedimental – que passaria de pública a semi-pública -, por forma a poder beneficiar da extinção do procedimento criminal, por falta de queixa do titular do interesse juridicamente protegido, ou da caducidade do correspondente direito, ou de desistência de queixa manifestada já no processo. --- Outrotanto se diga quando a requalificação jurídica dos factos apresente interferência, por encurtamento, com os prazos de prescrição do procedimento criminal, e contanto que, face ao enquadramento proposto e aos elementos constantes já do processo, seja passível de vir a concluir-se pela verificação dessa causa de extinção do procedimento. --- Outro exemplo que enquadra o leque das situações abrangidas é o de a requalificação dos factos, perante nova moldura de pena que se apresente e desde que reunidas as demais condições para o efeito, constituir a condição de possibilidade para que o arguido beneficie da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, uma das finalidades a que pode, igualmente, destinar-se a fase de instrução – cfr. artº 307º, nº 2 do Cód. de Proc. Penal. --- Sem o intuito de se esgotar enunciação que se pretende meramente exemplificativa, o traço em comum a todos os referidos cenários é o de a requalificação jurídica de factos [não contestados no RAI] se apresentar passível de originar a prolação de decisão que obsta à introdução da causa em julgamento e que, como tal, se apresenta, em eficácia, de natureza equiparável à do despacho de não pronúncia. --- É facto que nas hipóteses de suspensão provisória do processo, e a anteceder decisão que nesses termos venha a ser proferida, não pode deixar o tribunal de pronunciar o arguido. Contudo, vindo a determinar, por verificação dos respectivos pressupostos, a aplicação desse instituto, fica sobrestada provisoriamente a submissão da causa a julgamento, em solução que, uma vez cumpridas as condições previstas pelos nºs 3 e 4 do artº 282º do Cód. de Proc. Penal, se converterá em definitiva, com consequente arquivamento do processo. É, também, situação, portanto, em que se identifica como finalidade última da fase de instrução a não submissão de arguido a julgamento. --- A posição que sufragamos é, em síntese, a de que não é, por regra, admissível o desencadeamento da fase de instrução com o fim de obter a requalificação jurídica dos factos – a que, aliás, o tribunal de julgamento nunca ficaria vinculado -, a menos que a essa pretensão se associe – deixando, por conseguinte, a mesma de ser exclusiva, ou de constituir um fim em si mesmo - a possibilidade de desencadeamento de efeitos que, por obstarem à submissão do arguido a julgamento, constituem realidade a que deve conferir-se paralelismo com o despacho de não pronúncia. --- A avaliação dessa admissibilidade carece de realizar-se casuisticamente, caso a caso, portanto, e sempre tendo por base os dados presentes, ou adquiridos, já no processo, em equação de que se encontram subtraídos quaisquer juízos abstractos de possibilidade futuras consentidas pela requalificação em vista2. --- Firmadas as antecedentes premissa, e vertendo ao caso que nos ocupa, apresentou-se o recorrente, tal como emerge do que acima se deixou dito, a demandar deste Tribunal da Relação que sindique do acerto do despacho proferido pelo tribunal a quo, que indeferiu, por inadmissibilidade legal, o requerimento por ele introduzido para abertura da fase de instrução. Reconhecendo, como, aliás, é objectivamente verificável pelos termos do antedito requerimento, que não se serviu da faculdade posta ao seu dispor para pôr em crise os factos que, indiciariamente, lhe vêm imputados, sustentou que a instrução pretendida desencadear, vocacionada, embora, para o fim de ver requalificado o crime cuja prática lhe vem atribuída, é admissível. --- Sem razão, contudo, adiantamo-lo já. --- Com efeito, e em aplicação do que acima se deixou expresso, observa-se que não sustenta o recorrente, em ponto algum da motivação do recurso que interpôs e das conclusões que, em síntese, apresentou, que a pugnada alteração da qualificação jurídica dos factos da sua imputada autoria se apresente passível de gerar resultado que obste à sua submissão a julgamento. --- Na realidade, e tal como se extrai, em particular da motivação do recurso - como defluía já, também, do RAI -, aquilo em que, verdadeiramente, se traduz a pretensão do recorrente é a obtenção de alinhamento qualificativo com a decisão proferida por este Tribunal da Relação, em recurso interposto do despacho que definiu o seu estatuto coactivo, e que veio a permitir ficasse sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, em detrimento da prisão preventiva que, inicialmente, lhe fora aplicada no interrogatório judicial a que foi submetido. --- Contudo, o efeito que se apresentava passível de ficar associado ao enquadramento a que, então, se procedeu das suas condutas na previsão do artº 25º do Dec. L. nº 15/93, de 22.01, exauriu-se com a própria decisão que, nos anteditos termos, foi proferida por este Tribunal da Relação. --- A requalificação pretendida obter, por via da instrução que foi requerida, não respeita, portanto, a efeito a produzir, mas a resultado que se produziu já. --- E esse resultado – que se traduziu na definição a que este Tribunal da Relação deu corpo em matéria de estatuto coactivo do arguido – não pode ser modificado, por simples emergência da circunstância de o Ministério Público, na acusação que deduziu, ter optado por reconduzir as condutas aí descritas – aliás, sem modificação de relevo do continente factual que fora tido por pressuposto no recurso do despacho de aplicação de medidas de coacção – à previsão do artº 21º daquele Dec. L. nº 15/93, de 22.01. --- É certo que o estatuto coactivo do arguido poderá vir a ser agravado, mas, apenas, se verificado o condicionalismo previsto pelo artº 203º do Cód. de Proc. Penal – de violação das obrigações impostas, possibilidade para que, aliás, foi alertado na decisão do anterior recurso -, o que é coisa totalmente distinta da proscrição referida no antecedente parágrafo. --- Considerada, portanto, a finalidade última para que está vocacionada a fase de instrução – que é a de submeter ou não a causa a julgamento – nenhuma interferência com isso apresenta a circunstância de o recorrente ter sido visado por acusação na qual se reconduziram os comportamentos que lhe vêm imputados à prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 21º do Dec. L. nº , e não, como sustenta deveria ter sido o caso, à previsão do artº 25º do mesmo diploma legal3. --- E nem se objecte, como faz o recorrente, que o reconhecimento da inadmissibilidade da instrução que requereu seja limitador do direito que, enquanto arguido, lhe assiste a ampla defesa, constitucionalmente garantido pelo nº 1 do artº 32º da Lei Fundamental. --- É que a convocada disposição não confere ao arguido direito a defesa ilimitada, ou, dito de outro modo, pretendida exercer em termos de vontade que manifeste e que não apresentem correspondência com a disciplina emergente de lei processual. --- Registe-se, aliás, no que à instrução concerne, que esta constitui, como começou por assinalar-se, fase facultativa inserida no âmbito do procedimento de natureza criminal e que o requerimento destinado a espoleta-la pode ser rejeitado, nos termos do nº 3 do artº 287º do Cód. de Proc. Penal, por extemporaneidade, por incompetência do juiz e por inadmissibilidade legal da instrução. --- De salientar, também, que, não obstante o legislador não haja, ao menos expressamente, densificado as situações passíveis de integrar a inadmissibilidade legal da instrução, não pode deixar de considerar-se que entre elas se contam as hipóteses em que as razões que sustentam o requerimento de abertura dessa fase não se apresentam aptas a servir a finalidade que a enforma, e que é, quando requerida pelo arguido, a de obstar à sua submissão a julgamento. --- Na circunstância, a alteração de qualificação jurídica propugnada pelo arguido não se apresenta apta a produzir qualquer interferência sobre o impulso da causa para a fase de julgamento, em razão do que a instrução por ele pretendida desencadear é, para os efeitos previstos pelo nº 3 do artº 287º do Cód. de Proc. Penal, legalmente inadmissível, o que constitui causa de rejeição do requerimento que, para o indicado fim, foi por ele apresentado. --- Não merecendo a decisão do tribunal a quo censura ou reparo, é de negar provimento ao recurso interposto. --- III. DECISÃO Pelo exposto, decide-se negar provimento ao presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida. --- Custas a cargo do recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 UC – cfr. artºs 513º e 514º do Cód. de Proc. Penal e tabela III anexa ao RCP. --- ** Notifique. --- ** Lisboa, 2025.10.22 ** (Acórdão integralmente redigido pela relatora, primeira signatária, revisto e assinado electronicamente por ela e pelas juízas adjuntas, no canto superior esquerdo da primeira página) Sofia Rodrigues Lara Martins Cristina Almeida e Sousa _______________________________________________________ 1. Se o procedimento não depender de acusação particular. --- 2. Em sentido essencialmente convergente, vd. Acórdão do TRL de 18.06.2025 [Proc. nº 1128/21.9JGLSB-B.L1-3], disponível in www.dgsi.pt. --- 3. O que não deixará de remeter o tribunal de julgamento para a questão de saber se se formou, ou não, por via da anterior decisão deste Tribunal da Relação, caso julgado formal. ---  |