Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3579/22.2T8FNC.L1-8
Relator: TERESA SANDIÃES
Descritores: DECISÃO PENAL CONDENATÓRIA
OPONIBILIDADE A TERCEIROS
PRESUNÇÃO ILIDÍVEL
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Decorre do art. 623º do CPC que a presunção (ilidível) incide unicamente sobre os factos que integram os pressupostos da punição e dos elementos do tipo legal de crime – ou seja, a apreciação e qualificação jurídica feita desses factos na sentença penal não é, naturalmente, objeto da presunção, não vinculando o tribunal civil.
Assim, pode o juiz atribuir percentagem diferente da conferida na ação penal para a contribuição da conduta do lesado no agravamento dos danos.
(sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do CPC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

Ageas Portugal – Companhia de Seguros S.A., intentou ação declarativa de condenação contra RC, EC, MC e herança jacente aberta por óbito de AC, peticionando a condenação destes no pagamento de 105.000,00 € (cento e cinco mil euros), acrescidos de juros de mora, vencidos desde a citação e vincendos até efetivo e integral pagamento.
Para o efeito alegou, em síntese, que por contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, outorgado entre si e AC, a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pelo veículo matrícula …, foi transferida, para si, através de contrato de seguro válido e eficaz à data do acidente e titulado pela apólice n.º 000. No dia 9 de novembro de 2017, AC foi interveniente, na qualidade de condutor da viatura segura na ora A., em acidente de viação. Mais alegou que na ocasião AC conduzia o veículo em causa com uma taxa de alcool no sangue registada de 1.567 g/l, correspondente à TAS registada de 1,65 g/l, pelo que violou o disposto no art. 81.º, n.ºs 1, 2 e 3 do Código da Estrada. Na decorrência do acidente e por conta deste, a ora A. procedeu ao pagamento de uma indemnização, no montante de € 105.000,00, aos herdeiros do lesado, que veio a falecer em consequência das lesões sofridas em resultado do acidente, quando se fazia transportar como passageiro no veículo automóvel identificado. Pretende exercer o direito de regresso sobre os herdeiros do já falecido condutor.
Os três primeiros RR. apresentaram contestação conjunta. Alegaram, em suma, que são os herdeiros do falecido AC, mantendo-se a herança indivisa, em comum e sem determinação de parte ou de direito. A responsabilidade pelas dívidas do falecido é da herança e não do património pessoal de cada um dos herdeiros, conforme o disposto do artigo 2068º do C.C.. Mais aduziram que aceitam a dinâmica do acidente, mas entendem que o montante indemnizatório peticionado pela Autora deve ser reduzido para 50% com fundamento na concorrência de culpas. Conforme sentença proferida no processo nº …/17.9PTFUN-J3, que correu termos na instância local do Funchal, ficou provado que no momento do acidente de viação, o passageiro não levava posto o cinto de segurança, que o passageiro no momento do acidente porque não fazia uso do cinto de segurança, embateu com a cabeça no vidro da frente do para-brisas do veículo sinistrado, tendo sofrido lesões traumáticas raquimeningo, as quais foram a causa da sua morte. Mais, a vítima sabia que o condutor do veículo sinistrado não estava em condições para conduzir, pois tinha ingerido bebidas alcoólicas, mas mesmo assim aceitou ser transportado. A conduta da vítima contribuiu substancialmente para o agravar das lesões e o resultado morte. A culpa do passageiro no agravamento dos danos justificam a redução para metade a indemnização nos termos do artigo 570ºdo C.C..
Concluem pela improcedência da ação, no que toca ao pedido de condenação dos próprios Réus no pagamento das dívidas da herança e, em consequência, pela absolvição do pedido. Sem prescindir, pugnam pela redução para metade do valor indemnizatório peticionado pela Autora, com fundamento na concorrência de culpas.
A A. apresentou resposta às exceções, tenho alegado que o pedido formulado nos autos contra os Réus é na medida de herdeiros da herança indivisa de AC. Acrescentou: ainda que em tese se considere que efetivamente o passageiro circulava sem o cinto de segurança, a culpa do lesado, e ou eventual concorrência da culpa deste não se configura quando o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor do veículo seguro, e não sendo esta da exclusiva responsabilidade do lesado. Na realidade, poder-se-iam ter verificado os mesmas lesões e resultados caso o passageiro fizesse uso do cinto de segurança. No demais, mantém o alegado na petição inicial quanto à culpa exclusiva do condutor do veículo seguro para a eclosão do sinistro.
Com dispensa de realização de audiência prévia foi proferido despacho saneador, delimitado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Após realização da audiência de julgamento foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgo parcialmente procedente por provada a presente ação e, em consequência decido:
a) Condenar a Ré Herança indivisa, aberta por óbito de AC, representada pelos seus herdeiros RC, EC e MC, a pagar à Autora a quantia de € 73.500,00 (setenta e três mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora civis, computados à taxa legal de 4%, bem como às demais taxas legais que se sucederem no tempo, a contar da citação até efetivo e integral pagamento.
b) Absolver a Ré Herança indivisa, aberta por óbito de AC, representada pelos seus herdeiros RC, EC e MC do demais contra ela peticionado.
c) Absolver os Réus RC, EC e MC do pedido contra eles formulado.”
 

A A. interpôs recurso da sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
“1. O presente recurso visa a alteração da sentença proferida, na parte em que limitou o direito de regresso da Recorrente a 73.500,00 €, em vez de 105.000,00 €, valor que foi efetivamente pago pela Autora aos herdeiros do lesado.
2. O Tribunal a quo ignorou o depoimento da testemunha PP, prestado no dia 27/03/2025, entre as 11:07 e as 11:14, gravado no sistema de gravação com a designação “Diligencia_3579-22.2T8FNC_2025-03-27_11- 07-09.mp3”, o qual foi considerado credível, espontâneo e objetivo, e afirmou de forma clara que o pagamento de 105.000,00 € já refletia a concorrência de culpa do lesado em 50%.
3. A sentença recorrida desconsidera a sentença penal transitada em julgado em momento prévio ao pagamento, que fixou a concorrência de culpa do lesado em 50%.
4. A sentença recorrida ignora o sentido do acordo extrajudicial alcançado entre a Recorrente e os herdeiros do lesado, que refletiu a repartição de responsabilidades estabelecida na sentença penal, fixando o pagamento de 105.000,00 € como refletindo a concorrência de culpa do lesado em 50%.
5. Ao ignorar o excerto transcrito do depoimento de PP, o Tribunal a quo criou uma versão fictícia dos factos, tratando o pagamento de 105.000,00 € como uma assunção de responsabilidade integral pela Recorrente, o que é manifestamente incorreto e contraditório.
6. O Tribunal a quo, ao considerar que o pagamento de 105.000,00 € correspondeu a uma assunção de responsabilidade de 100%, acaba por decidir contra o próprio conteúdo da sentença penal transitada em julgado em momento anterior ao pagamento, que reconheceu uma concorrência de culpa do lesado em 50%.
7. A única redação correta para o facto provado 20 é a que reflete que o pagamento de 105.000,00 € já incluía a redução pela concorrência de culpa do lesado em 50%, tal como ficou provado pelo depoimento de PP e pela sentença penal transitada em julgado.
8. O facto 20 deverá passar a ter a seguinte redação: Após a comunicação referida em 19) e as negociações decorrentes, chegaram a um valor final, tendo a A. pago, a 28 de agosto de 2019, a quantia de 105.000,00 € (centos mil euros), a título de indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente sofrido pelo citado falecido, já refletindo a concorrência de culpa do lesado em 50%”.
9. Resulta do exposto que a Recorrente despendeu o montante de € 105.000,00 com a regularização do sinistro, tendo em consideração a concorrência de culpa do lesado em 50%, pelo que deve o facto provado 20 ser alterado em conformidade e o Recorrido condenado no pagamento integral deste montante.
Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Exa. mui doutamente suprirá, deve ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se a Douta Sentença recorrida em conformidade com o alegado, assim se fazendo A COSTUMADA JUSTIÇA.”

Não foram apresentadas contra-alegações.

A sentença recorrida considerou como provada a seguinte matéria de facto:
“1) A Autora é uma Sociedade que se dedica à atividade seguradora. 
2) No exercício da sua atividade profissional a A. outorgou com o falecido AC, escrito particular titulado pela apólice n.º 000, através do qual transferiu para a A., a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de matrícula ….
3) No dia 09 de Novembro de 2017, pelas 18h50, ocorreu um acidente de viação no cruzamento formado pela Estrada … e o Caminho ….
4) No qual foi interveniente o veículo de matrícula  … seguro na ora A. e conduzido pelo falecido AC,  
5) E no qual seguia, na qualidade de passageiro, no banco situado do lado direito do condutor, o seu irmão, já falecido, JC. 
6) O falecido AC, conduzia a viatura  segura na ora A. na Estrada …, pela metade direita da faixa de rodagem, no sentido Norte/Sul. 
7) A Estrada …, configura uma reta constituída por duas faixas de rodagem, afetas a cada um dos sentidos de circulação, separadas por uma linha longitudinal descontínua. 
8) O piso é asfaltado e, à data do acidente, encontrava-se em bom estado de conservação, sem lombas ou buraco. 
9) No momento do acidente era noite e o tempo apresentava-se bom. 
10) A velocidade máxima permitida no local da ocorrência é de 50 km/h. 
11) Nestas circunstâncias de modo, o condutor, falecido, AC, chegado ao cruzamento com o Caminho …, ao descrever uma curva à esquerda, não moderou nem reduziu a velocidade, perdeu o controlo da viatura segura na ora A. que tripulava, e foi embater com o vértice anterior do lado direito e com a parte anterior direita da viatura num prumo em cimento, existente no lado direito da via. 
12) O ocupante do veículo, JC, seguia no lugar do passageiro, mas sem o cinto de segurança, razão pela qual embateu com a cabeça no para-brisas. 
13) JC tinha passado o dia com AC e por essa razão tinha conhecimento de que este tinha ingerido bebidas alcoólicas, ainda assim decidiu deixar-se transportar pelo mesmo sabendo que aquele não estava em condições de o fazer em segurança.
14) na sequência dos factos descritos em 11) e 12) o passageiro da viatura …, JC, foi transportado para o Hospital …, na qualidade de ferido grave. 
15) Tendo sofrido lesões traumáticas raqui-meningo medulares, designadamente, traumatismo vertebro medular C5/C6, com tetraparesia flácida e desautonomia marcada, que foram causa adequada da sua morte, a 12 de Março de 2018 
16) O condutor do veículo … circulava nas circunstâncias referidas em 11) e 12) portando uma Taxa de Álcool no Sangue (doravante TAS) de pelo menos, 1.567 g/l, correspondente à TAS registada de 1,65 g/l. 
17) Pelos factos descritos em 16) e 17) o falecido AC foi julgado no âmbito do processo judicial n.º 000, que correu termos no Juízo …, tendo sido condenado pela prática de: 
a) um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º n.º1 do Código Penal;
b) Um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º do Código Penal, tudo conforme cópia da Sentença  
18) O falecido JC, deixou como herdeiros a sua esposa MM, e quatro filhos, NN, CC, LL e JJ.
19) Os herdeiros referidos em 18) endereçaram à ora A., uma comunicação, nos termos da qual, reclamaram o pagamento da quantia de 520.000,00 €, a título de indemnização pelo direito à vida (80.000,00 €), danos morais sofridos pela vítima (200.000,00 €), dano da perda da capacidade de ganho (50.000,00 €) danos morais da esposa (50.000,00 €) dos filhos (30.000,00 € para da um) e netos (10.000,00 € para cada um). 
20) Após a comunicação referida em 19) e as negociações decorrentes, chegaram a um valor final, tendo a A. pago, a 28 de agosto de 2019, a quantia de 105.000,00 € (cento e cinco mil euros), a título de indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente sofrido pelo citado falecido. 
21) O condutor do veículo … faleceu, sendo que, a herança do mesmo encontra-se por partilhar.
                                                    *
A sentença recorrida considerou como não provada a seguinte matéria de facto:
“a) O condutor do veículo … circulava nas circunstâncias referidas em 6) e 11)) a uma velocidade nunca inferior a 100 km/h.”

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo apelante e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do CPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do CPC).
As questões a decidir são as seguintes:
1. Da impugnação da decisão de facto
2. Do quantum indemnizatório
*
Questão prévia
Na pág. 3 da alegação de recurso, na parte atinente ao seu objeto, a apelante afirmou de forma manifestamente conclusiva: “ademais, a douta Sentença recorrida está igualmente ferida de nulidade, visto que o Mm.º Juiz do Tribunal a quo não conheceu de questões que deveria ter apreciado.”
Todavia, nas conclusões nenhuma nulidade vem imputada, pelo que dela não se conhecerá.
                                                                *
1. Da impugnação da decisão de facto
A apelante impugna o facto provado 20, pugnando para que o mesmo passe a ter a seguinte redação:
“Após a comunicação referida em 19) e as negociações decorrentes, chegaram a um valor final, tendo a A. pago, a 28 de agosto de 2019, a quantia de 105.000,00 € (centos mil euros), a título de indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente sofrido pelo citado falecido, já refletindo a concorrência de culpa do lesado em 50%”.
Alega para o efeito que o pagamento de € 105.000,00 acordado já refletia a concorrência de culpa do lesado em 50%, em conformidade com a sentença penal proferida no âmbito do processo n.º 000, que correu termos no Juízo …, e na qual o condutor do veículo seguro na ora Autora veio a ser condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º n.º 1 do Código Penal, e por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º do Código Penal. Acrescenta que a redação atribuída ao facto provado 20 não reflete a realidade dos factos devidamente apurada nos autos, nem a integralidade da prova produzida em sede de Audiência de Julgamento.
Indica como meio de prova o depoimento da testemunha PP e o documento nº 8 anexo à p.i.
O facto pretendido aditar constitui facto essencial do direito invocado. A causa de pedir consiste no acidente de viação em que foi interveniente o veículo seguro na A./apelante, o pagamento por esta efetuado aos lesados e o direito de regresso em relação aos herdeiros/herança do falecido condutor. E se a indemnização paga corresponde a uma determinada percentagem do valor global, em virtude de concorrência de culpas, agravamento dos danos, imperioso era a sua alegação. Na petição inicial a A. alegou o seguinte:
29º (…) o falecido AC, tripulava a viatura segura na ora A. de matrícula …, na Estrada …,
30.º  No sentido Norte/Sul,
31.º  A uma velocidade não concretamente apurada, mas manifestamente excessiva para o local,
32.º  Desatento à configuração da via,
33.º  Alheado ao processamento do trânsito em seu redor,
34.º  Com os reflexos e sentidos tolhidos pelo consumo do álcool.
35.º  Nestas circunstâncias de modo, o falecido AC, chegado ao cruzamento com o Caminho …,
36º Ao descrever uma curva à esquerda, não moderou nem reduziu a velocidade,
37.º Perdeu o controlo da viatura segura na ora A. que tripulava,
38.º  E, foi embater com o vértice anterior do lado direito e com a parte anterior direita da viatura segura na ora A.,
39.º  Num prumo em cimento, existente no lado direito da via,
40.º Causando diversos danos, conforme infra se descreverá.
41.º O falecido AC, tripulava a viatura segura na ora A., na inobservância das mais elementares regras estradais,
42.º A uma velocidade nunca inferior a 100 km/h,
43.º E por isso, desadequada, porque excessiva, mormente tendo em a configuração da via.
44.º Na sequência do acidente dos autos e dos ferimentos sofridos, o passageiro da viatura segura, JC, foi transportado para o Hospital …, na qualidade de ferido grave, onde viria a acabar por falecer, tudo conforme PAV já junta sob doc. n.º2.
45.º Por outro lado, após a ocorrência do acidente supra descrito, o falecido AC, foi sujeito ao teste de pesquisa de álcool no sangue,
46.º Tendo acusado uma Taxa de Álcool no Sangue (doravante TAS) de pelo menos, 1.567 g/l, correspondente à TAS registada de 1,65 g/l, tudo conforme PAV junta sob doc. n.º2.
47.º Nessa sequência, o falecido AC foi julgado no âmbito do processo judicial n.º 000, que correu termos junto do douto Juízo …,
48.º E, condenado, pela prática de:
a) um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º n.º1 do Código Penal;
b) Um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo  292.º do Código Penal, tudo conforme cópia da Sentença  que ora se junta sob doc. n.º3 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
49.º Em face do exposto, dúvidas não restam que o falecido AC, foi o único e exclusivo responsável pela eclosão do acidente dos presentes autos, tendo com a sua conduta infringido o disposto nos artigos 3º n.º2, 11º n.º2 e 24º n.º1 do Código da Estrada (…)
71.º Tendo a ora A., assumido escrupulosamente todas as suas obrigações emergentes do contrato de seguro melhor identificado no artigo 2º desta peça processual, atenta a responsabilidade inequívoca do falecido AC, na produção do sinistro, conforme supra demonstrado.
78.º À semelhança do alegado no artigo 45º do presente articulado, na sequência do acidente dos autos, o passageiro da viatura segura na ora A., JC, foi transportado para o Hospital …, na qualidade de ferido grave,
79.º Tendo sofrido lesões traumáticas raqui-meningo medulares, designadamente, traumatismo vertebro medular C5/C6, com tetraparesia flácida e desautonomia marcada,
80.º Que foram causa adequada da sua morte, a 12 de Março de 2018, tudo conforme doc. n.º3 já junto e doc. n.º5 que ora se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
82.º Nessa senda, os supra citados herdeiros do falecido JC, endereçaram à ora A., uma comunicação, nos termos da qual, reclamaram o pagamento da quantia de 520.000,00 €, a título de indemnização pelo direito à vida (80.000,00 €), danos morais sofridos pela vítima (200.000,00 €), dano da perda da capacidade de ganho (50.000,00 €) danos morais da esposa (50.000,00 €) dos filhos (30.000,00 € para da um) e netos (10.000,00 € para cada um), tudo conforme comunicação que ora se junta sob doc. n.º7 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
83.º Após negociações estabelecidas com os herdeiros do falecido JC, a ora A. liquidou-lhes a 28 de Agosto de 2019, a quantia de 105.000,00 € (cento e cinco mil euros), a título de indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente sofrido pelo citado falecido, tudo conforme Comprovativo de Pagamento que ora junta sob doc. n.º8 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
84.º Quantia esta que não fora reembolsada pelo falecido AC, nem pelos seus herdeiros,
85.º E que, por isso, a ora A. pretende reaver por meio da presente acção,”.
Na contestação os RR. alegaram:
“11. (…) entendem os RR que o montante indemnizatório peticionado pela Autora deve ser reduzido para 50% com fundamento na concorrência de culpas.
12º Conforme da douta sentença proferida no processo nº 000, que correu termos na instância local do Funchal, (junta na PI), ficou provado que no momento do acidente de viação, o passageiro não levava posto o cinto de segurança,
13º que o passageiro no momento do acidente porque não fazia uso do cinto de segurança, embateu com a cabeça no vidro da frente do párabrisas do veículo sinistrado, tendo sofrido lesões traumáticas raquimeningo.
14º Conforme resulta da sentença, as referidas lesões sofridas pela vítima foram a causa da sua morte.
15ºMais, resulta também da douta sentença, que a vítima sabia que o condutor do veículo sinistrado não estava em condições para conduzir, pois tinha ingerido bebidas alcoólicas, mas mesmo assim aceitou ser transportado.(…)
17º Não há duvida que a conduta da vítima contribuiu substancialmente para o agravar das lesões e o resultado morte. (…)
24º A Autora/seguradora pagou mais do que devia, pois não teve em consideração que o sinistrado contribuiu com culpa para o agravamento dos danos por si sofridos.
25º A culpa do passageiro no agravamento dos danos justificam a redução para metade a indemnização nos termos do artigo 570ºdo C.C..”
A A. apresentou resposta às alegadas exceções, nos seguintes termos:
“3.º Os Réus vêm alegar a existência de causas concorrentes para a verificação das lesões do passageiro do veículo seguro.
4.º Nomeadamente por ter sido a ausência de utilização de cinto de segurança concorreu para a verificação das lesões que levaram à morte daquele.
5.º Suportam a sua alegação em documento que se impugna, por se desconhecer a sua autenticidade, impugnando-se igualmente o valor probatório de que os Réus pretendem do mesmo retirar, já que este se baseia em suposições e cenários, que podem, ou não ter ocorrido.
6.º Ainda que em tese se considere que efetivamente o passageiro circulava sem o cinto de segurança, a culpa do lesado, e ou eventual concorrência da culpa deste não se configura quando o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor do veículo seguro, e não sendo esta da exclusiva responsabilidade do lesado.
7.º Na realidade, poder-se-iam ter verificado os mesmas lesões e resultados caso o passageiro fizesse uso do cinto de segurança.
8.º No demais, mantém a Autora tudo o alegado na sua petição inicial quanto à culpa exclusiva do condutor do veículo seguro para a eclosão do sinistro.”
Verifica-se dos excertos transcritos que a petição inicial é totalmente omissa quanto ao facto de a A. ter efetuado o pagamento de metade do valor da indemnização devida em virtude do agravamento dos danos resultar também da conduta do lesado. E após a apresentação da contestação - em que os RR. pugnaram pela redução para metade do montante da indemnização, por entenderem que o comportamento do lesado agravou os danos sofridos, por circular sem cinto de segurança e por se ter feito transportar no veículo, bem sabendo que o condutor tinha ingerido bebidas alcoólicas – a A. não alegou que o montante de € 105.000 que havia pago aos herdeiros do lesado correspondia a metade do valor global da indemnização, tendo em consideração essa proporção estabelecida na sentença penal. Ao invés, na resposta às exceções, a A. manteve o por si alegado na pi.. Ainda que tenha sintetizado de forma adequada a matéria invocada na contestação, ao referir ” …por ter sido a ausência de utilização de cinto de segurança que concorreu para a verificação das lesões que levaram à morte daquele”, concluiu expressamente que a culpa do lesado, e ou eventual concorrência da culpa deste não se configura quando o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor do veículo seguro, e não sendo esta da exclusiva responsabilidade do lesado. Na realidade, poder-se-iam ter verificado os mesmas lesões e resultados caso o passageiro fizesse uso do cinto de segurança.”
Ou seja, a A. não só nunca alegou que a quantia paga aos herdeiros do lesado correspondia apenas a metade da indemnização devida, como afastou perentoriamente a possibilidade de o lesado ter contribuído para o agravamento dos danos.
Apenas em sede de recurso a apelante, perante o teor da sentença, veio pugnar pela alteração do facto provado 20, insurgindo-se por não ter o tribunal considerado o teor do depoimento da testemunha e o documento nº 8 junto com a p.i.
Como já afirmámos, o pagamento efetuado pela A. corresponder a uma proporção de 50% pela concorrência de culpas ou pelo agravamento dos danos imputável à vítima, constitui factualidade que tem natureza constitutiva nuclear, pelo que não pode ser aditada por via da impugnação da decisão de facto, nos termos do disposto no artº 5º, nº 1 do CPC, sendo irrelevante o que resulta ou não dos meios de prova indicados. Nunca tal facto poderia ser considerado complemento dos factos constitutivos alegados na petição inicial, dado que a A., quer na petição inicial quer após ter sido confrontada com o teor da contestação, assumiu expressamente posição oposta: de o lesado não ter contribuído para o acidente nem para os danos, reclamando o pagamento do valor pago aos herdeiros daquele, como sendo a indemnização integral dos danos.
Pelo exposto, improcede a impugnação da decisão de facto.

2 Do quantum indemnizatório
A R. pugna pela condenação dos RR. no pagamento da quantia de € 105.000, tendo como pressuposto a alteração do facto provado 20, tal como pugnou na impugnação da decisão de facto. Tendo esta sido julgada improcedente quedam inalterados os factos provados e não provados (artº 663º, nº 6 do CPC), improcedendo a pretensão quanto ao montante objeto da condenação.
A apelante esgrime, ainda, o argumento de não ter a sentença recorrida respeitado a concorrência de culpa do lesado fixada em 50% na sentença penal – sem questionar a percentagem fixada na sentença recorrida (que atribuiu 30% à conduta do lesado no agravamento dos danos), por interpretação/integração jurídica dos factos considerados provados e aplicação das normas legais ali mencionadas.
Dispõe o artº 623º do CPC que “a condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração.”
Decorre deste preceito que a presunção (ilidível) incide unicamente sobre os factos que integram os pressupostos da punição e dos elementos do tipo legal de crime – ou seja, a apreciação e qualificação jurídica feita desses factos não é, naturalmente, objeto da presunção, não vinculando o tribunal civil.
Assim, pode o juiz atribuir percentagem diferente da conferida na ação penal para a contribuição da conduta do lesado no agravamento dos danos, como foi o caso.
“I - Quanto a terceiros, quanto a todos aqueles que são alheios ao contraditório no processo penal, prescreve a lei, no art. 623.º do CPC, uma presunção ilidível da ocorrência dos factos que foram apreciados e considerados provados no âmbito do processo penal, presunção esta que vale e pode ser invocada em qualquer ação de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infração.
II - Presunção (de existência) dos factos, apurados em processo penal, que, sendo ilidível, apenas significa que a parte que dela beneficia fica desonerada do labor probatório conducente à prova do facto presumido – que se cumpre mediante a junção da certidão da sentença condenatória – mas que não significa que tal parte fique a coberto da parte contrária poder provar o contrário, ou seja, da parte contrária poder provar que os factos não existiram e/ou que não ocorreram exatamente do modo que consta da fundamentação da sentença penal.
III - Pode pois – e a partir de meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador – dar-se como provada uma dinâmica do acidente diferente da fixada na sentença penal, uma vez que, por força do preceituado no art. 623.º do CPC, o interesse público da não prolação de decisões de conteúdo contraditório não prevaleceu perante a necessidade de garantir que sujeito algum possa suportar prejuízos emanados de um processo no qual não participou ou não foi colocado em condições de participar.” – Ac. STJ de 30/11/2021, proc. nº 1544/16.8T8ALM.L1.S2, in www.dgsi.pt

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da A./apelante.
Lisboa, 23 de outubro de 2025              
                                                    
Teresa Sandiães
Amélia Puna Loupo
Rui Vultos