Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
92194/24.1YIPRT.L1-2
Relator: TERESA BRAVO
Descritores: INJUNÇÃO
PARQUE DE ESTACIONAMENTO PÚBLICO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário:
1. Numa injunção para pagamento de quantia pecuniária resultante de utilização, por pessoa particular, de um parque de estacionamento público concessionado a uma sociedade comercial são materialmente competentes os tribunais comuns.
2. A partir do momento em que o Município concessiona o espaço de estacionamento (que é público, sem dúvida) e fá-lo a uma entidade privada para efeitos de gestão e manutenção, emerge, ex novo uma relação de direito privado agora entre o concessionário (sociedade anónima) e os respetivos utilizadores/ pagadores.
3. E essa relação de direito privado não cabe em nenhuma das alíneas do nº1 e 4 do art. 4º do ETAF na redação introduzida pelo Lei 13/2002, de 19 de fevereiro, aplicável nestes autos com a redação introduzida pelo DL 214-G/2015, de 2 de outubro que alterou as alíneas e) e f) do Nr.1 do Art.4º do ETAF e, posteriormente pela L 114/2019, de 12 de setembro, que introduziu a alínea e) ao Nr.4 do Art.4º do E.T.A.F).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,

I. Relatório
Data Rede – Sistemas de Dados e Comunicações, S.A., apresentou requerimento de injunção contra a ré AA, ao abrigo do art. 7.º, do Regime Anexo ao D.L. n.º 269/98, de 01/09, com vista a obter o pagamento da quantia de 1.428,00 € a título de capital, acrescida de juros de mora vencidos no montante 50,57 €, e da taxa de justiça paga, no montante de 76,50 €.
No requerimento de injunção, a autora alega que é uma sociedade que se dedica, além do mais, à exploração e prestação de serviços na área do parqueamento automóvel, e que, no âmbito da referida exploração, adquiriu e colocou, em vários locais da cidade da Praia da Vitória, máquinas para pagamento de estacionamento automóvel, com a indicação dos preços e condições de utilização dos mesmos.
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Mais invoca que a ré é proprietária do veículo automóvel com a matrícula ..-TL-.., e que, enquanto utilizadora do referido veículo, estacionou-o, nos vários parques de estacionamento que a autora explora na cidade da Praia da Vitória, entre os dias 05/11/2018 e 03/06/2024, sem proceder ao pagamento do tempo de utilização, conforme regras devidamente publicitadas no local (cfr. ref.ª 5926014).
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Citada para o efeito, veio a ré deduzir oposição (cfr. ref.ª 57978074), invocando, na parte que ora nos interessa, o seguinte:
- o que existe é uma relação contratual efetivamente estabelecida entre a autora e o município, materializando-se na concessão de serviço de parqueamento automóvel abrangendo determinados espaços, vulgarmente conhecido por contrato público ou contrato administrativo;
- são os tribunais administrativos e fiscais os competentes para tramitar tais litígios, pelo que a matéria aqui em causa sempre estaria atribuída à jurisdição administrativa, o que determina a incompetência absoluta da jurisdição civil comum, o que constitui uma exceção dilatória;
- o procedimento de injunção apenas e tão só se aplicará ao âmbito da jurisdição comum, sendo, pois, inaplicável na jurisdição administrativa, pelo que o procedimento de injunção não é aplicável à situação em apreço.
Assegurado o contraditório, veio a autora responder às mesmas através do requerimento datado de 20/12/2024 (cfr. ref.ª 6059310), invocando que:
- é uma sociedade que se dedica, além do mais, à exploração e prestação de serviços na área do parqueamento automóvel, e no âmbito da sua atividade, celebrou um contrato de Concessão de Exploração, para o fornecimento, instalação e exploração de parquímetros, em zonas e parques de estacionamento automóvel de duração limitada, mediante o qual passou a explorar e gerir parques de estacionamento automóvel na cidade da Praia da Vitória;
- nos termos do referido contrato de concessão, para o desempenho da sua atividade, produziu e instalou em vários locais da cidade, máquinas para pagamento de estacionamento automóvel, com a ampla informação e indicação dos preços e condições de utilização dos mesmos;
- ao recusar o pagamento dos tempos de utilização dos parques, a ré violou o contrato de utilização que celebrou tacitamente com a autora, e o incumprimento pela ré da sua obrigação de pagamento, não gera procedimentos contraordenacionais, típicos da violação/incumprimento de obrigações do domínio do Direito Público, mas sim procedimentos de cobrança comercial, por incumprimento da obrigação contratual de facto de uma das partes contratantes;
-sendo o contrato de utilização dos parqueamentos explorados pela autora, um contrato de natureza privada, a sua violação faz incorrer o utilizador inadimplente em responsabilidade civil por incumprimento da obrigação de confiança decorrente da relação contratual de facto;
- autora, no âmbito da atividade comercial contratada, não exerce, nem a atividade de manutenção, nem a atividade de fiscalização dos parqueamentos, estando tal atividade reservada à autarquia e demais autoridades administrativas, pelo que os montantes por si cobrados não consubstanciam a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações praticadas pelos utentes dos parqueamentos, pois limita-se a cobrar uma contraprestação pela utilização dos parques de estacionamento automóvel na cidade da Praia da Vitória, devidamente delimitados e assinalados;
- a relação de prestação que se estabelece entre o concessionário e os utentes é uma relação contratual de direito privado, pois a natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não de uma taxa, encargo ou contrapartida com natureza tributária;
- a autora ao atuar perante terceiros, neste caso a ré, não age munida dos poderes de uma entidade pública, mas sim, com poderes de uma entidade privada, pelo que, o contrato estabelecido entre ambos, relativo à utilização dos parqueamentos explorados pela primeira, é de direito privado, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade civil contratual por incumprimento;
- não estando perante litígios emergentes de relações jurídico-administrativas e fiscais, mas sim, perante relações jurídicas privadas, consubstanciadas numa proposta contratual e numa aceitação pura e simples (tácita embora), geradoras de responsabilidade civil contratual, são os tribunais comuns os competentes para apreciar o incumprimento da presente relação jurídica;
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No dia 22.04.2025 o tribunal a quo proferiu saneador- sentença, no qual conheceu da exceção dilatória de incompetência material dos tribunais comuns, tendo absolvido a Requerida da instância.
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Da douta sentença recorrida resultou o seguinte:
“Da incompetência material do Tribunal
Em face do concretamente invocado pela ré, temos que a primeira questão a apreciar é a da (in)competência material deste Tribunal. Com efeito, a ré alega que a matéria aqui em causa sempre estaria atribuída à jurisdição administrativa, o que determina a incompetência absoluta da jurisdição civil comum, o que constitui uma exceção dilatória.
Por seu turno, a autora invoca que não estamos perante litígios emergentes de relações jurídico-administrativas e fiscais, mas sim, perante relações jurídicas privadas, consubstanciadas numa proposta contratual e numa aceitação pura e simples (tácita embora), geradoras de responsabilidade civil contratual, pelo que são os tribunais comuns os competentes para apreciar o incumprimento da presente relação jurídica.
Ora, nos termos do disposto no art. 64.º, do Código de Processo Civil e no art. 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26/08), os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
As referidas normas configuram a concretização legal do normativo constitucional previsto no art. 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que estabelece o seguinte: Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. De acordo com o art. 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, que delimita o campo de intervenção jurisdicional dos tribunais administrativos, estes têm por objetivo a resolução de litígios de natureza administrativa e fiscal. Por sua vez, o art. 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, estabelece que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.
Assim, essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é a existência de uma relação jurídica administrativa. A relação jurídico-administrativa pode ser definida como aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido.
O art. 4.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais enumera, de forma exemplificativa, os litígios cuja competência se defere à jurisdição administrativa (enumeração positiva – nºs. 1 e 2 do citado art. 4.º), e os que dela se mostram excluídos (enumeração negativa – nºs.3 e 4 do citado art. 4.º).
O art. 4.º, n.º 1, al. e), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, estatui que: compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: e) validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.
Nos termos do disposto no art. 200.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo, são contratos administrativos os que como tal são classificados no Código dos Contratos Públicos ou em legislação especial. Por sua vez, o Código dos Contratos Públicos adota uma noção ampla de contrato público, que delimita em função dos sujeitos outorgantes, para efeitos da aplicação de um determinado regime procedimental de formação de contratos (regulado na Parte II do Código
Este conceito legal de contrato público (cfr. art. 1.º, n.º 2, do Código dos Contratos Públicos) abrange, à primeira vista, todos os contratos celebrados no âmbito da função administrativa, independentemente da sua designação e da sua natureza (isto é, mesmo que sejam de direito privado), desde que sejam outorgados pelas entidades adjudicantes referidas na lei (cfr. art. 2.º, do Código dos Contratos Públicos).
No entanto, o regime de contratação estabelecido no Código dos Contratos Públicos não se aplica a todos os contratos celebrados pelas entidades adjudicantes, mas apenas àqueles cujas prestações suscitem, pelo menos potencialmente, a concorrência no mercado (cfr. art.os 5.º, n.º 1, e 16.º, n.º 2, ambos do Código dos Contratos Públicos).
Por outro lado, o Código dos Contratos Públicos estabelece um outro conceito, tendencialmente mais restrito: o de contrato administrativo, celebrado por contraentes públicos (entre si ou com “co-contratantes privados”), para efeitos de aplicação do regime substantivo dos contratos de natureza administrativa – regime de execução, modificação e extinção das relações jurídicas administrativas (cfr. art. 1.º, n.º 5, referido à Parte III).
Com a nova redação conferida ao art. 4.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais foi abandonada a distinção tradicional entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, de tal modo que, em concreto, a alínea e) do n.º 1 desse normativo legal, abstrai da natureza das normas que materialmente regulam o contrato, passando a integrar no âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos a apreciação de questões de validade, interpretação e execução de contratos que tenham sido submetidos a um procedimento pré-contratual de direito público ou relativamente aos quais a lei preveja a possibilidade da sua submissão a esse procedimento, de modo que a natureza administrativa da relação jurídica litigiosa decorre, não do conteúdo do contrato ou da qualidade das partes, mas das regras de procedimento pré-contratuais aplicadas ou aplicáveis (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06/07/2021, proc. n.º 1297/20.5T8PDL-A.L1-7, disponível em www.dgsi.pt). No caso em apreço, no requerimento de injunção consta que a ré, na qualidade de proprietária e utilizadora do veículo automóvel com a matrícula ..-TL-.., estacionou, nos vários parques que a autora explora na cidade da Praia da Vitória, sem proceder ao pagamento do tempo de utilização, entre os dias 05/11/2018 e 03/06/2024.
In casu, em 27/07/2011, o Município da Praia da Vitória celebrou com a autora um contrato que tem por objeto a concessão da instalação, manutenção e exploração doa parquímetros da Praia da Vitória, pelo período de cinco anos (cfr. cláusulas 2.º e 3.º do contrato de 27/07/2011 junto com a ref.ª 6183999), tendo, para o efeito, sido promovido o competente concurso público (cfr. preâmbulo do contrato de 27/07/2011 junto com a ref.ª 6183999).
O referido contrato de concessão da instalação, manutenção e exploração dos parquímetros da Praia da Vitória foi prorrogado pelo período de cinco anos, por acordo datado de 09/12/2015 (cfr. cláusula 1.º do contrato de 09/12/2015 junto com a ref.ª 6183999).
Em 27/12/2019, entre Município da Praia da Vitória e a autora foi celebrado o acordo modificativo ao contrato de concessão da instalação, manutenção e exploração dos parquímetros da Praia da Vitória, tendo sido acordado que a concessão seria feita pelo período de cinco anos, sendo prorrogada a sua vigência até 31/07/2024 (cfr. cláusula 1.º do contrato de 27/12/2019 junto com a ref.ª 6183999), bem como que o referido acordo modificativo não altera as prestações principais abrangidas pelo objeto do contrato (cfr. preâmbulo do contrato de 27/12/2019 junto com a ref.ª 6183999).
Assim, à luz das considerações supra explanadas, temos que o contrato celebrado entre o Município da Praia da Vitória e a autora pode ser qualificado como contrato administrativo.
Do conteúdo do referido contrato resulta que a autora, na qualidade de concessionária, fica obrigada a cumprir o estipulado na tabela de taxas e licenças e no regulamento das zonas de estacionamento tarifado em vigor no Município da Praia da Vitória (cfr. cláusula 5.º do contrato de 27/07/2011 junto com a ref.ª 6183999) Por seu turno, nos termos do disposto no art. 18.º, do Regulamento das Zonas de Estacionamento Tarifado na Cidade da Praia da Vitória (Regulamento n.º 207/2016), a fiscalização do cumprimento das disposições do presente regulamento será exercida por agentes de fiscalização devidamente identificados, nos termos previstos na lei, tendo a Assembleia Municipal e a Câmara Municipal da Praia da Vitória decidido pela concessão da fiscalização das normas do referido regulamento ao com cessionário das zonas de estacionamento de duração limitada, ou seja, a autora (cfr. regulamento junto com a ref.ª 6183999).
Ora, o contrato de concessão outorgado entre o Município da Praia da Vitória e a autora, precedido por concurso público, rege-se pelo conteúdo das suas disposições e pelas disposições constantes dos aludidos Regulamentos, no qual se encontram previstos, designadamente, as taxas devidas pelo estacionamento, bem como a fiscalização do regime previsto nos aludidos Regulamentos.
Tendo em conta que no âmbito do referido contrato de concessão, a autora se vinculou expressamente ao cumprimento dos aludidos Regulamentos Municipais, recai sobre esta o ónus de conformar a sua atuação com o disposto naqueles diplomas e agir no âmbito dos poderes que os mesmos lhe confere, nomeadamente na sua relação com os terceiros particulares que usufruem do estacionamento concessionado e como tal passam a estar sujeitos às suas respetivas regras e condições.
Assim, contrariamente ao que sucede no âmbito de relações contratuais entre particulares, as quais se regem pelo princípio da liberdade contratual e que dizem respeito a atividades de direito privado suscetíveis de ser desenvolvidas por particulares, no caso em apreço, a autora, na relação jurídica que estabelece com a ré, surge investida de prorrogativas próprias de um sujeito público, revestido de jus imperii, podendo cobrar-lhe uma taxa pelo estacionamento nas zonas concessionadas.
Neste sentido, conforme tem vindo a ser entendido pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, é da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais «conhecer de ação intentada por empresa a quem o Município adjudicou a concessão da exploração e gestão de zonas de estacionamento de duração limitada, para haver de particular utilizador daquelas a importância de tarifas devidas pela falta de pagamento da taxa correspondente à utilização da zona de estacionamento» (vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22/04/2010, proc. n.º 1950/09.4TBPDL.L1-2. No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06/05/2010, proc. n.º 1984/09.9TBPDL.L1-8, ambos disponíveis em www.dgs.pt).
Assim sendo, nos termos do disposto no art. 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, nos art.os 64.º a contrario, 97.º e 99.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e no art. 4.º, n.º 1, al. e), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, este juízo Local Cível de Angra do Heroísmos, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores é materialmente incompetente para apreciar a matéria em causa nos presentes autos.
A incompetência em razão da matéria configura uma incompetência absoluta (cfr. art. 96.º, al. a), do Código de Processo Civil), sendo uma exceção dilatória (cfr. art.os 576.º, n.os 1 e 2 e 577.º, al. a), ambos do Código de Processo Civil), de conhecimento oficioso (cfr. art. 97.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), que acarreta a absolvição do réu da instância (cfr. art. 99.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
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Pelo exposto, ao abrigo do disposto nos art.os 64.º, 96.º, al. a), 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, 576.º, n.os 1 e 2 e 577.º, al. a), todos do Código de Processo Civil, no art. 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08, nos art.os 211.º, n.º 1 e 213.º, n.º 3, ambos da Constituição da República Portuguesa, e nos art.os 1.º, n.º 1 e 4.º, n.º 1, al. e), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais declara-se o Juízo Local Cível de Angra do Heroísmo, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, incompetente em razão da matéria, para apreciar a presente ação e, em conformidade, absolve-se a ré da instância.”
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Notificada da decisão, a requerente/ ora recorrente interpôs recurso de apelação, o qual foi admitido e fixado efeito meramente devolutivo.
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Não foram produzidas contra -alegações.
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O tribunal é competente, o processo é o processo, não se verificando nulidades que o invalidem.
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Alegou a recorrente o seguinte:
1. No âmbito da sua atividade, a Autora celebrou contrato com a Câmara Municipal de Praia da Vitória, através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade, ou de disciplina.
2. No seguimento deste contrato, a Data Rede adquiriu e instalou em vários locais da cidade, dispendiosas máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático.
3. Enquanto utilizadora do veículo automóvel ..-TL-.., a Ré estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a Autora explora comercialmente na cidade, sem proceder ao pagamento do tempo de utilização, num total em dívida de € 1.428,00 que a Ré recusa pagar.
4. Para cobrança deste valor, a Autora viu-se obrigada a recorrer aos tribunais comuns, peticionando o seu pagamento, pois a sua nota de cobrança está desprovida de força executiva, não podendo, portanto, dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo ou fiscal.
5. A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não a de uma taxa, sendo as Taxas verdadeiros tributos (Art.3º Nr.2 da LGT), que visam a satisfação das necessidades financeiras do Estado e demais entidades públicas e sendo a receita da utilização dos parqueamentos, propriedade da Data Rede, tal contrapartida escapa por definição ao conceito de taxa.
6. As ações intentadas pela Autora contra os proprietários de veículos automóveis, que não tenham procedido ao pagamento dos montantes devidos, não se inserem em prorrogativas de autoridade pública munida de ius imperii, mas sim no âmbito da gestão enquanto entidade privada.
7. A Recorrente ao atuar perante terceiros, não se encontra munida de poderes de entidade pública, agindo como mera entidade privada, pelo que, contrariamente ao entendimento do Tribunal “a quo”, o contrato estabelecido entre si e os automobilistas, relativo à utilização dos parqueamentos explorados, é de natureza privada, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade civil contratual por incumprimento.
8. A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto, assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais.
9. O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre a concessionária e a utente resulta de um comportamento típico de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, e sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento, mediante retribuição.
10. Proposta tácita temporária da Autora, que se transforma num verdadeiro contrato obrigacional, mediante aceitação pura e simples do automobilista, o qual, ao estacionar o seu automóvel nos parques explorados pela Autora, concorda com os termos de utilização propostos e amplamente publicitados no local.
11. O conceito de relação jurídica administrativa pode ser tomado em diversos sentidos, seja numa aceção subjetiva, objetiva, ou funcional, sendo certo que nenhuma das acessões permite englobar a presente situação.
12. A DATA REDE SA., não efetua, tão pouco, atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras estradais, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade.
13. Nos termos do disposto no artigo 2º do DL 146/2014 de 09 de outubro, a atividade de fiscalização incide exclusivamente na aplicação das contraordenações previstas no artigo 71º do Código da Estrada, o qual estabelece as coimas aplicáveis às infrações rodoviárias ali identificadas.
14. Os montantes cobrados pela Data Rede SA., também não consubstanciam a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações praticadas pelos utentes dos parqueamentos.
15. Quaisquer infrações ou coimas que devam ser aplicadas aos automobilistas prevaricadores de regras estradais, ficam a cargo da Autarquia, sem qualquer intervenção ou conexão com a atividade da empresa concessionária.
16. A Data Rede, ao contrário o que vem referido na douta sentença, nunca atuou nem quis atuar, em substituição da autarquia, munida de poderes públicos concessionados.
17. Entender que os tribunais competentes são os administrativos e de entre estes os fiscais, sendo inconstitucional, corresponde a esvaziar de conteúdo e utilidade o Contrato de Concessão de Exploração dos Parqueamentos, por retirar à concessionária o poder de reclamar judicialmente os seus créditos.
18. Institucionalizar este entendimento, fomenta o incumprimento das obrigações dos automobilistas, que cientes da impossibilidade de cobrança coerciva dos valores devidos pelo estacionamento dos seus veículos, deixam de pagar deliberadamente, em claro incentivo ao incumprimento, em direta violação do direito constitucional de acesso à tutela jurisdicional efetiva, previsto e defendido pelo Artigo 20º Nr.1 da Constituição da República Portuguesa.
19. Não estando em causa a natureza pública do contrato celebrado entre a Câmara Municipal e a Data Rede SA., não pode, contudo, este primeiro contrato, contagiar ou ser equiparado, aos posteriores contratos tacitamente celebrados entre a Data Rede e os utentes, pois tais contratos têm natureza privada, até só pela forma como os seus intervenientes atuam.
20. Refira-se finalmente que, ainda que se entenda estarmos perante a prestação de serviços de interesse público, as competências dos tribunais administrativos e fiscais estão hoje definidas no artigo 4.º do ETAF (Lei 13/2002, de 19 de fevereiro, aplicável nestes autos com a redação introduzida pelo DL 214-G/2015, de 2 de outubro que alterou as alíneas e) e f) do Nr.1 do Art.4º do ETAF e posteriormente pela L 114/2019, de 12 de setembro, que introduziu a alínea e) ao Nr.4 do Art.4º do E.T.A.F).
21. Da alteração introduzida pelo DL 214-G/2015, resultou que a matéria que antes se encontrava na alínea f) do Nr.1 do Art.4º do ETAF, passou para a alínea e) do mesmo número, mas com conteúdo muito diferente, que não alude às circunstâncias acima referidas, que antes colocavam situações como a dos autos na esfera de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.
22. O contrato de utilização temporária de espaço público para estacionamento em causa nos autos, celebrado entre a empresa privada, ora apelante, e a utilizadora privada, ora apelada, não é um contrato administrativo, não é um contrato celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública, não é celebrado por pessoa coletiva de direito público, e não é celebrado por qualquer entidade adjudicante.
23. Da alteração introduzida pela Lei 114/2019, por sua vez, resulta que nos termos da alínea e) do Nr.4 do Art.4º, “estão… excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.
24. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”
25. O serviço de estacionamento não é um dos serviços elencados no Art.1º nº 2 da L 23/96, mas, tal como ocorre nos serviços públicos essenciais, a relação entre o prestador do serviço e o utente é uma relação de direito privado.
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Objeto do recurso e Questão a decidir:
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.o, 637.o, n.o 2, e 639.o, n.os 1 e 2, do CPC), neste caso, a única questão a decidir é se os tribunais judiciais são materialmente competentes para apreciar e decidir o litígio sub judice.
II. Fundamentação de facto
Os factos relevantes são os que constam do relatório supra.
III. Fundamentação de Direito
No caso vertente, estamos perante um procedimento de injunção instaurado, em 07.10.2024 por via do qual a recorrente pretende cobrar a quantia de 1.428,00 € a título de capital, acrescida de juros de mora, vencidos no montante 50,57 €, e da taxa de justiça paga, no montante de 76,50 €, relativa ao pagamento de estacionamento automóvel, na Praia da Vitória e que a recorrida não pagou até ao momento.
Sendo este o pano de fundo do litígio, a questão a decidir centra-se na competência material dos tribunais comuns para apreciar e decidir este tipo de conflitualidade, e que tem sido objeto de decisões distintas.
Salvo melhor opinião, a sentença recorrida centra a sua argumentação na análise da relação contratual entre o Município e a entidade concessionária- a Data Rede, desconsiderando a relação entre as partes no presente litígio a saber, o contrato de parqueamento celebrado entre a ora Recorrente (requerente da injunção) e a recorrida (requerida nos autos de injunção).
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Efetivamente, na Decisão Sumária proferida nos autos Nº 118028/24.7YIPRT.L1, anexa ao recurso (em que foi relatora, a ora 2ª Adjunta), foi adotada a tese da competência material dos tribunais comuns por se entender inter alia que estava em causa uma relação de direito privado e não uma relação administrativa ou um contrato administrativo.
Por seu turno, o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão proferido no processo Nº 126611/24.4YIPRT.P1, datado de 26.06.2025, que pode ser consultado em https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/6cec1f2c5547f40480258cc00045201b?OpenDocument, decidiu em sentido contrário, concluindo nos seguintes moldes:
“Os tribunais administrativos e fiscais são os competentes para tramitar e julgar acção declarativa, intentada por empresa concessionária da exploração e gestão de zonas de estacionamento de duração limitada municipais, que visa a obter de particular utilizador de tais zonas o valor da taxa correspondentemente devida.”
Entendemos, salvo melhor opinião que a posição vertida na Decisão Sumária acima referida é a que melhor espelha o quadro normativo aplicável à situação sub judice.
Passemos a explicar.
Importa relembrar que, para a determinação da competência do tribunal em razão da matéria, que se fixa no momento em que a ação é proposta (art. 38.º, n.º 1, da LOSJ e art. 5.º, n.º 1, do ETAF), importa aferir dos termos em que é formulada a pretensão do autor, maxime os respetivos fundamentos, a causa de pedir e de pedido.
No caso em apreço está em causa o pedido de condenação da Requerida ao pagamento de uma quantia pecuniária, em favor da Requerente, resultante da utilização do (s) parqueamento(s) explorados pela Requerente/ aqui Recorrente na Praia da Vitória num período temporal compreendido entre os dias 05/11/2018 e 03/06/2024.
Assim, e em primeiro lugar, há que distinguir duas dimensões do problema que não se confundem entre si; a primeira relação jurídica que está em causa é, realmente, uma relação de cariz administrativo porquanto, envolve o Município (entidade coletiva de direito público) e a concessionária Data Rede, sociedade comercial, mas sujeita que também foi à legislação administrativa e a prévio concurso público.
Neste contexto, ficou demonstrado que, em 27/07/2011, o Município da Praia da Vitória celebrou com a autora um contrato que teve por objeto a concessão da instalação, manutenção e exploração dos parquímetros da Praia da Vitória, pelo período de cinco anos (cfr. cláusulas 2.º e 3.º do contrato de 27/07/2011 junto com a ref.ª 6183999), tendo, para o efeito, sido promovido o competente concurso público (cfr. preâmbulo do contrato de 27/07/2011 junto com a ref.ª 6183999). O referido contrato de concessão da instalação, manutenção e exploração dos parquímetros da Praia da Vitória foi prorrogado pelo período de cinco anos, por acordo datado de 09/12/2015 (cfr. cláusula 1.º do contrato de 09/12/2015 junto com a ref.ª 6183999).
E em 27/12/2019, entre Município da Praia da Vitória e a autora foi celebrado o acordo modificativo ao contrato de concessão da instalação, manutenção e exploração dos parquímetros da Praia da Vitória, tendo sido acordado que a concessão seria feita pelo período de cinco anos, sendo prorrogada a sua vigência até 31/07/2024 (cfr. cláusula 1.º do contrato de 27/12/2019 junto com a ref.ª 6183999), bem como que o referido acordo modificativo não altera as prestações principais abrangidas pelo objeto do contrato (cfr. preâmbulo do contrato de 27/12/2019 junto com a ref.ª 6183999).
Neste caso, o contrato celebrado entre o Município e a Concessionária é, sem dúvida, um contrato de direito público administrativo.
Já a segunda relação, a que se estabelece entre esta última entidade e o cidadão utilizador do parqueamento, neste caso, a recorrida AA é, eminentemente, uma relação de direito privado.
Efetivamente, a partir do momento em que o Município concessiona o espaço de estacionamento (que é público, sem dúvida) e fá-lo a uma entidade privada para efeitos de gestão e manutenção, emerge ex novo uma relação de direito privado, agora entre o concessionário (sociedade anónima) e os respetivos utilizadores/ pagadores.
Isto porque, nesta segunda relação jurídica, nenhum dos contraentes é uma entidade pública, o objeto do contrato não é a prestação de um serviço de natureza pública, mas um contrato de estacionamento, sendo que, as regras aplicáveis ao caso de eventuais incumprimentos serão as da lei civil.
Ora, o art. 212.º, n.º 3, da CRP define o âmbito da jurisdição administrativa por referência ao conceito de relação jurídica administrativa, já que prescreve competir aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais, sendo residual a competência dos tribunais judiciais, ou seja, são da sua competência as causas não legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra jurisdição, conforme resulta do artigo 40.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, Lei 62/2013, de 26 de agosto, nas diversas alterações, sendo a mais recente a introduzida pela Lei 18/2024, de 5 de fevereiro.
Por seu turno, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de fevereiro, quinze vezes alterado, a última das quais, pelo DL 74-B/2023, de 28 de agosto descreve no seu artigo 4.º quais os litígios cuja apreciação compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
As alterações introduzidas por este diploma, no que respeita ao artigo 4.º do ETAF e que contém a matéria de competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal (não matéria de organização e funcionamento), entraram em vigor 60 após a publicação (artigo 15.º do DL 214-G/2015), ou seja, já se encontravam em vigor à data da propositura da presente injunção- 07.10.2024.
É que, para a determinação da competência do tribunal em razão da matéria, que se fixa no momento em que a ação é proposta (art. 38.º, n.º 1, da LOSJ e art. 5.º, n.º 1, do ETAF), importa aferir dos termos em que é formulada a pretensão do autor, maxime os respetivos fundamentos, a causa de pedir e de pedido, como vimos supra.
Efetivamente, tendo a injunção dado entrada em juízo em 07.10.2024 é à luz da redação do art. 4º do ETAF, na redação vigente à data da propositura da ação e que se mantém, que iremos analisar e decidir sobre a competência material daqueles tribunais para decidir o pleito.
Dispõe o art. 4º, nºs 1, al. E ) e 4, al. E) do ETAF o seguinte:
Artigo 4.º - Âmbito da jurisdição
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.
Em tempos, no início da segunda década do presente século, a competência material para questões de facto análogas à dos autos foi acesamente debatida com muita jurisprudência, incluindo do T. de Conflitos, no sentido da competência do T. Administrativos, exemplificando com os seguintes: Acórdãos do STJ de 12/10/2010, proc. 1984/09.9TBPDL.L1.S1, do Tribunal dos Conflitos de 09/06/2010, proc. 05/10 e de 02/03/2011, proc. 024/10, e do TRL de 20/10/2009, proc. 6149/08.4YIPRT.L1-7, de 22/04/2010, proc. 1950/09.4TBPDL.L1-2, de 07/10/2010, proc. 1763/09.3TBPDL.L1-8, e de 20/01/2011, proc. 918/09.5TBPDL.L1-8, do TCAS de 09/10/2014, proc. 11379/14 – todos eles proferidos num tempo em que vigorava uma norma atributiva de competência aos tribunais administrativos e fiscais à qual eram subsumíveis situações análogas à dos presentes autos.
Todos fundamentaram as suas decisões na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na redação anterior à conferida pelo DL 214-G/2015, de 2 de outubro.
O art. 4.º do ETAF, na redação então vigente, preceituava:
1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
(…)
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que, pelo menos, uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
Foi com base na transcrita norma constante da al. f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF na redação então vigente, que os tribunais fundamentaram as decisões dos citados acórdãos da primeira metade da segunda década do corrente século. Também esse foi o principal fundamento de muitos outros arestos que, pela mesma altura, julgaram competentes para ações análogas os tribunais administrativos e fiscais, e não os tribunais judiciais.
O contrato em causa nos autos é o estabelecido entre a concessionária ou adjudicatária da Câmara e o utilizador do espaço de estacionamento, não se confundindo com o contrato, esse sim um contrato público de natureza administrativa, celebrado entre a Câmara Municipal, na qualidade de concedente ou adjudicante, e a sociedade de direito privado, ora apelante, na qualidade de concessionária ou adjudicatária.
O contrato em causa nos autos – celebrado entre a concessionária, empresa de direito privado, e o seu cliente, sujeito de direito privado, contrato pelo qual a primeira permite ao segundo parquear o veículo em dado espaço mediante um preço, e o segundo se obriga a pagar o dito preço ao estacionar o veículo no concessionado local –, trata-se de um contrato de direito privado que, à luz do ordenamento vigente, cai sob a alçada dos tribunais judiciais, e não sob a dos tribunais administrativos e fiscais.
Quando foram proferidas as decisões acima citadas – e enquanto vigorou a norma então inscrita na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF com a redação acima transcrita –, a competência para litígios emergentes desses contratos de estacionamento (entre concessionária e particular que estaciona) cabia aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal por duas vias, ambas insertas na letra da dita alínea, acima reproduzida:
i. por se tratar de contrato cujo objeto passível de ato administrativo – o objeto mediato do contrato em causa (a utilização temporária da via pública para parqueamento de viatura) é passível de ato administrativo, assim seria se a Câmara, em vez de ter concessionado o espaço para exploração por uma empresa privada, se limitasse a cobrar taxas aos particulares que estacionassem no mesmo local; e
ii. por se tratar de contrato em que uma das partes é um concessionário a atuar no âmbito da concessão de direito público.
A primeira constava na alínea f) desde a sua redação inicial. A segunda foi introduzida pela Lei 107-D/2003, de 31 de dezembro. A Lei 59/2008 introduziu alterações no ETAF, deixando intocada a alínea f) em causa; o mesmo sucedeu com o DL 166/2009, de 31 de julho, a Lei 55-A/2010, de 31 de dezembro e a Lei 20/2012, de 14 de maio.
Atualmente, nenhuma daquelas circunstâncias determina a atribuição da competência aos tribunais administrativos e fiscais. Com efeito, o DL 214-G/2015, de 2 de outubro, veio introduzir alterações profundas no artigo 4.º do ETAF. A matéria que antes se encontrava na alínea f) do n.º 1 passou para a alínea e) do mesmo número, mas com um conteúdo muito diferente, e que não alude às circunstâncias acima referidas e que antes colocavam situações como a dos autos na esfera de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.
Nos termos da atual alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à «validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes». Claramente, o contrato em causa nos presentes autos não se subsume à previsão da alínea acabada de transcrever (nem a qualquer outra alínea do mesmo número e artigo).
O contrato de utilização temporária de espaço público para estacionamento em causa nos autos, celebrado entre a empresa privada, ora apelante, e o utilizador privado, ora apelado, não é um contrato administrativo, não é um contrato celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública, não é celebrado por pessoa coletiva de direito público, e não é celebrado por qualquer entidade adjudicante.
A noção de contrato administrativo, que é eminentemente doutrinária, encontra-se nos manuais de direito administrativo como contrato celebrado entre uma entidade pública (Estado, autarquias locais, entidades públicas empresariais) e um particular ou outra entidade pública, visando a prossecução do interesse público. No “lexionário” do Diário da República, o contrato administrativo está definido como «acordo de vontades bilateral ou plurilateral, envolvendo sempre, pelo menos, um contraente público, sujeito a um regime substantivo de direito administrativo, como tal qualificado pela lei reguladora da contratação pública ou por lei especial». Hoje, os contratos administrativos são regidos pelo Código dos Contratos Públicos (CCP), que tipifica algumas espécies, como a empreitada de obras públicas, a concessão de obras públicas ou de serviços públicos, a locação de móveis, a aquisição de móveis e a aquisição de serviços. Lê-se, a propósito, no preâmbulo do DL 18/2008, de 29 de janeiro, que aprovou o Código dos Contratos Públicos, que, no que concerne ao título dos contratos administrativos em geral, «a primeira nota vai para a preocupação de preservação do quid specificum dos contratos administrativos, perceptível através dos seguintes aspectos: (i) recorrente apelo aos imperativos de interesse público (por exemplo, na modificação e resolução contratuais); (ii) manutenção de importantes poderes do contraente público durante a fase de execução do contrato administrativo; (iii) criação de figuras como a da partilha de benefícios; (iv) criação de regras especiais para as situações de incumprimento do contraente público; (v) introdução de normas que versam, directa ou indirectamente, a repartição de risco entre as partes contratantes.
Em todas as noções de contrato administrativo encontramos três aspetos essenciais: a presença de uma entidade pública como parte contratante; a prossecução do interesse público; e, a sujeição a um regime jurídico especial de direito administrativo. Basta dizer que nenhuma das partes no litígio dos autos é uma entidade pública, para não se estar em presença de um contrato administrativo. A relação submetida a juízo, que visa a cobrança de valores que a requerida devia ter pago por ter estacionado o carro em dados locais e não pagou, também não está sujeita ao direito administrativo. Nesta relação, nenhuma das partes visa o interesse público. Não confundamos a relação dos autos com a relação de direito administrativo, constituída por contrato administrativo e submetida às regras do CCP pela qual a Câmara concessionou à ora requerente e apelante a exploração de certos espaços públicos para estacionamento. Nessa relação existe, sim, interesse público (nomeadamente o da contenção do estacionamento desorganizado e a obtenção de receitas para alocar a outros interesses públicos), que a Câmara procura satisfazer através do contrato de concessão.
Com o dito, fomos adiantando que o contrato dos autos não só não é um contrato administrativo, como não é um contrato celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública, nem nele intervém qualquer pessoa coletiva de direito público. Intervém nesse contrato alguma entidade adjudicante (último requisito da vigente alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF)? Claro que não: as partes nos contratos dos autos são a empresa privada (adjudicatária da Câmara, adjudicante é a Câmara) e a requerida.
As entidades adjudicantes estão elencadas no artigo 2.º do CCP, são entidades públicas ou, pelo menos, de direito público que celebram contratos públicos mediante aceitação de proposta ou escolha de uma de entre as propostas apresentadas no âmbito de um procedimento de contratação pública (v. artigo 73.º). A requerente, ora apelante, não é entidade adjudicante, mas sim empresa adjudicatária num contrato de concessão, por isso, também designada concessionária.
Em suma e em conclusão, os contratos em causa nestes autos não se relacionam com o disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, nem com qualquer outra.
Afastamos também e por motivos já expostos a aplicação da alínea o) que se reporta a relações jurídicas administrativas e fiscais, às quais não se subsume a relação estritamente privada dos autos.
Não se desconhece jurisprudência em contrário, incluindo recente Ac. do Tribunal de Conflitos, de 08-05-2025, proc. 079534/24.2YIPRT.P1.S1.
Por tudo o acima exposto, não encontramos na jurisprudência relativa a processos posteriores à entrada em vigor da alteração de 2015 argumentos que nos convençam da subsunção feita em qualquer norma do vigente art. 4.º do ETAF.
***
Por outro lado, um último argumento a considerar e que se prende, em nosso entender com uma opção clara do legislador:
Sendo o objeto do contrato o parqueamento de uma viatura não estão em causa nem bens nem serviços públicos essenciais porquanto, se atentarmos na redação da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente da mesma que, a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados, constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária, tal como resulta claro da al .E), do nº4 do art. 4º do ETAF.
Este raciocínio do legislador pode «mutatis mutandis» e, por maioria de razão, ser transposto para relações jurídicas como a dos autos, à luz de “boa” hermenêutica legal. Ou seja, os contratos entre duas entidades privadas, sujeitas ao regime do direito privado, ainda que esteja em causa a utilização de um bem público (que não seja um serviço essencial) não serão decididas pelos tribunais administrativos mas recaem antes na esfera de competências dos tribunais judiciais, os quais, são também os competentes para a apreciação destes tipo de litígios de consumo.
Termos em que, atento o que acima ficou dito, consideramos procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida.
IV. Decisão:
Acordam os Juízes Desembargadores desta 2ª Secção Cível em considerar o recurso de apelação procedente, revogar a decisão proferida que deverá ser substituída por outra que determine o ulterior prosseguimento dos autos.
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Custas a cargo da recorrida, atento o decaimento.
Notifique.

Lisboa, 23 de Outubro de 2025
Teresa Bravo
João Paulo Raposo
Higina Castelo