Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ADEODATO BROTAS | ||
Descritores: | CONTRATO DE SEGURO DANOS PRÓPRIOS DESVALORIZAÇÃO DO VEÍCULO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
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Sumário: | Sumário (artº 663º nº 7 do CPC). 1-O regime jurídico geral do contrato de seguro, introduzido pelo DL 72/2008 (LCS), mormente o seu artº 130º, não é aplicável à indemnização por danos em veículos automóveis que tenham contratado a cobertura facultativa de danos próprios. 2- Isto porque o artº 6º do DL 72/2008 (LCS), que constitui norma revogatória de diversos regimes jurídicos de seguro, não revogou, nem derrogou, o regime do DL 214/97, de 16/08, que veio instituir regras destinadas a assegurar uma maior transparência em matéria de sobresseguro nos contratos de seguro automóvel facultativo e que constitui um regime especial e excepcional, determinando regras específicas a aplicar ao contrato de seguro automóvel que inclua coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelo veículo. 3- E o artº 3º desse DL 214/97 determina que, em caso de incumprimento, pela seguradora, da alteração dos prémios em função da desvalorização do veículo seguro, é obrigada a “…responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, sem direito a qualquer acréscimo de prémio”, e não pelo valor da coisa à data do sinistro, afastando, assim, a regra do artº 130º nº 1 do DL 72/2008 (LCS), que constitui uma decorrência do princípio indemnizatório. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes desembargadores que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa: I-RELATÓRIO 1-AA instaurou acção declarativa, com processo comum, contra Ageas Portugal – Companhia de Seguros, SA, pedindo: -A condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 16 366€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde 19/05/2022, até integral pagamento. Alegou, em síntese, que em 22/10/2021 celebrou com a ré contrato de seguro, do ramo automóvel, com cobertura de danos próprios, relativamente ao veículo de matrícula ..-QH-.., pelo valor de 16 700€. Em 19/04/2022 ocorreu uma colisão entre o veículo do autor e um veículo de matrícula ..-FP-.., de que resultaram danos significativos para o veículo do autor. A seguradora do QH, Tranquilidade, assumiu a responsabilidade pelos danos no veículo do autor; no próprio dia do acidente o autor participou a colisão do veículo à ré; a ré, em 13/05/2022 comunicou ao autor a perda total do veículo, dado ter estimado os danos em 15 546€; e, colocou à disposição do autor a quantia de 5 389€ correspondente ao valor venal do veículo deduzido o salvado que ficou na posse do autor; em 19/05/2022, o autor interpelou a ré accionando a cobertura de danos próprios. A ré está vinculada ao pagamento do valor do capital segurado, 16 700€, deduzida a franquia de 2% no montante indemnizatório de 16 366€. 2- Citada, a ré contestou. Reconhece a celebração do contrato de seguro com cobertura de danos próprios, com uma franquia de 2%. O valor venal do veículo era de 12 000€ e, sendo o custo de reparação de 15 545,63€, foi considerada perda total; ao valor venal foram descontados 6 611€ do valor do salvado. Requereu a intervenção da Generali Seguros, SA, seguradora do veículo responsável pelo Acidente. 3-Foi indeferido o incidente de intervenção da Generali Seguros, SA. 4- Dispensada a realização de audiência prévia, com data de 02/07/2024, foi proferida sentença com o seguinte teor decisório: “Por todo o exposto, julgo parcialmente procedente a presente ação e, em consequência: a. Condeno a ré a pagar ao autor BB, a título de indemnização, a quantia de € 9.887,22 (nove mil oitocentos e oitenta e sete euros e vinte e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, devidos desde 19.05.2022; b. Condeno o autor e a ré no pagamento das custas do processo, na proporção, para o autor, de 40%.” 5- Foi requerida a rectificação de erro material da sentença quanto ao nome do autor: AA e não BB. No despacho que admitiu o recurso, foi corrigido o erro material relativo ao nome do autor, nos seguintes termos: “a. Condeno a ré a pagar ao autor AA, a título de indemnização, a quantia de € 9.887,22 (nove mil oitocentos e oitenta e sete euros e vinte e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, devidos desde 19.05.2022;”. 6- A ré, inconformada, interpôs o presente recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES: a) Entende a Recorrente que a decisão do Tribunal viola o princípio indemnizatório vertido nos artigos 128.º e 132.º, n.º 1, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro. b) Encontra-se consagrado, nos referidos preceitos, o princípio indemnizatório, que determina que a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro. c) Concretizando ainda o artigo 130.º, n.º 1, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro que, no seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro. d) Temos assim que a prestação devida pelo segurador não pode ser superior ao dano decorrente do sinistro, nem ao montante do capital seguro, servindo de referência, em caso de sinistro, o mais baixo desses valores. e) O valor efetivamente devido pela Recorrente é o resultado da subtração das seguintes parcelas ao valor venal do veículo de matrícula ..-QH-.., que ascende a 12.000,00 € (facto n.º 22 dado como provado): i) 6.611,00 € referente ao valor do salvado do veículo de matrícula ..-QH-.. (facto n.º 23 dado como provado); ii) 107,78 € referente à franquia a cargo do segurado, de 2% (facto n.º 2 dado como provado). f) Impõe-se reduzir a indemnização arbitrada para o montante de 5.281,22 € (cinco mil, duzentos e oitenta e um euros e vinte e dois cêntimos). NESTES TERMOS, e nos demais de direito, concedendo provimento ao recurso, e alterando a sentença sub judice conforme supra preconizado. 7- O autor contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES: 1. O A. reclamou a condenação da Ré, no pagamento decorrente do acionamento da cobertura facultativa de choque, colisão ou capotamento (a que se refere como danos próprios). 2. Nos presentes autos não está controvertida a existência, validade, vigência e conteúdo do contrato de seguro celebrado entre o autor e a ré, incluindo a cobertura facultativa de choque, colisão ou capotamento. 3. Estando em causa nos autos a relação entre seguradora e segurado (e não terceiro), e o accionamento de cobertura facultativa vigente no contrato de seguro celebrado entre ambos, que não foi contestado. 4. Não é por isso aplicável o regime decorrente do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto – cfr. artigo 92.º do dito diploma, cuja remissão não contempla o seu artigo 41.º, referente à perda total. 5. Devem ser consideradas as normas contratuais acordadas entre as partes e a que estas livremente se vincularam. (n.º 1 do artigo 405.º do Código Civil). 6. De acordo com a cobertura facultativa de choque, colisão ou capotamento, a ré obrigou-se perante o autor a pagar-lhe os danos sofridos no veículo seguro na sequência de choque, colisão ou capotamento (artigo 2.º das condições especiais relativas à cobertura em causa). 7. Considerando o que dispõem as cláusulas gerais, relativamente às coberturas facultativas, a ré obrigou-se a indemnizar o segurado pelos danos no veículo seguro, podendo este optar entre a reparação do veículo, a sua substituição ou a atribuição em dinheiro (n.º 1 do artigo 50.º). 8. No caso dos autos estamos na presença de uma perda total, dado que o veículo seguro ficou parcialmente destruído. 9. O valor da reparação e do salvado (= € 15.234,72 + € 6.611,00 = € 21.845,72) excedia o valor do capital seguro (€ 16.700,00). 10. São aplicáveis as normas contratuais estabelecidas na alínea b) do artigo 50.º das condições gerais: a indemnização é limitada ao capital/valor seguro [alínea b.1)] e o salvado fica na posse do segurado, sendo deduzido esse valor ao montante indemnizatório (alínea c). 11. Os valores que devem ser considerados para a aplicação das normas contratuais estão assentes, e são os seguintes: - o valor seguro é de € 16.700,00 e o valor do salvado é de € 6.611,00. 12. Nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 50.º das condições gerais, o autor optou pela indemnização em dinheiro. 13. O valor da indemnização é, assim, de € 10.089,00 (= € 16.700,00 - € 6.611,00), a que se deduz a franquia a cargo do segurado, de 2% (€ 201,78), nos termos do disposto no artigo 3.º das condições especiais referentes à cobertura facultativa de choque, colisão ou capotamento. 14. Tudo conforme decidido na Sentença. *** II-FUNDAMENTAÇÃO. 1-Objecto do Recurso. 1-É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC) e, ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida. Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, é a seguinte a questão que importa analisar e decidir: -Se há fundamento para revogar a sentença em termos de condenar a ré a pagar ao autor, apenas, a quantia de 5.281,22 €. *** 2- Fundamentação de Facto. É a seguinte a matéria de facto decidida pela 1ª instância, sem impugnação das partes: Factos provados 1. Entre as partes foi celebrado contrato de seguro automóvel titulado pela apólice n.º ..., com início em 22.10.2021, com a duração de 1 ano renovável (artigo 1.º da petição inicial, artigo 1.º da contestação). 2. Pelo mencionado contrato a responsabilidade civil por danos provocados a terceiros emergente da circulação rodoviária do veículo com a matrícula ..-QH-.. encontrava-se transferida para a ré, sendo que a referida apólice cobria ainda os danos próprios do veículo, no âmbito da cobertura “choque, colisão ou capotamento” inscrita nas respetivas condições particulares, com o capital de € 16.700,00, com franquia de 2% (artigos 2.º e 24.º da petição inicial, artigo 1.º da contestação). 3. Integram as condições particulares do mencionado contrato, entre outras, as seguintes: (artigo 2.º da petição inicial, artigo 4.º da contestação). 4. Integram as condições gerais do mencionado contrato, entre outras, as seguintes: 5. Integram as condições especiais do mencionado contrato, entre outras, as seguintes: (artigo 2.º da petição inicial, artigo 4.º da contestação). 6. O autor é proprietário do veículo automóvel de marca BMW, Série 2 – Active Tourer Diesel, com a matrícula ..-QH-.. (artigo 3.º da petição inicial, não impugnado). 7. No dia 19.04.2022, o autor deslocava-se na viatura acima referida, no sentido Rua 1 para a Rua 2, em Lisboa, quando pelas 11.45 horas ao chegar ao cruzamento da Rua 1 com a Calçada 3, apresentou-se pela sua esquerda a viatura com a matrícula ..-FP-.., conduzida por CC, que embateu na sua viatura na parte da frente esquerda (artigo 4.º da petição inicial, artigo 1.º da contestação). 8. Da referida colisão resultaram danos na viatura do autor, nomeadamente a parte da frente totalmente danificada, guarda lamas laterais e os pneus da frente destruídos (artigo 5.º da petição inicial, artigo 1.º da contestação). 9. Após o embate, ambos os veículos ficaram imobilizados (artigo 6.º da petição inicial, artigo 1.º da contestação). 10. A PSP dirigiu-se ao local, onde tomou nota da ocorrência, efetuando as respetivas marcações e medições (artigo 7.º da petição inicial, artigo 1.º da contestação). 11. A seguradora da viatura com a matrícula ..-FP-.. assumiu a responsabilidade do acidente na sua totalidade, e sem qualquer reserva (artigo 8.º da petição inicial, artigo 1.º da contestação). 12. A viatura do autor teve de ser rebocada para o parque colisão da BMW, em Alfragide, onde ficou a aguardar a peritagem (artigo 9.º da petição inicial, artigo 1.º da contestação). 13. No próprio dia do acidente o autor remeteu a participação do sinistro para a ré (artigo 10.º da petição inicial, artigo 1.º da contestação). 14. O autor recebeu uma carta remetida pela ré, datada de 13.05.2022, com, entre outro, o seguinte teor: (artigos 11.º a 13.º da petição inicial, artigos 1.º e 9.º da contestação). 15. O autor remeteu à ré, em 19.05.2022 uma comunicação por correio eletrónico com, entre outro, o seguinte teor: (artigo 16.º da petição inicial, artigo 1.º da contestação). 16. A ré não respondeu a esta comunicação (artigo 17.º da petição inicial, artigo 1.º da contestação). 17. O autor tornou a reencaminhar a mesma missiva, no dia 26.05.2022 (artigo 18.º da petição inicial, artigo 1.º da contestação). 18. A ré não respondeu a esta comunicação (artigo 19.º da petição inicial, artigo 1.º da contestação). 19. O autor tornou a reencaminhar a mesma missiva, no dia 30.05.2022 (artigo 20.º da petição inicial, artigo 1.º da contestação). 20. A ré não respondeu a esta comunicação (artigo 21.º da petição inicial, artigo 1.º da contestação). 21. No dia 20.06.2022 o autor remeteu à ré uma comunicação por correio eletrónico com, entre outro, o seguinte teor: (artigo 22.º da petição inicial, artigo 1.º da contestação). 22. O valor venal do veículo ..-QH-.. era de € 12.000,00 (artigo 6.º da contestação, documento n.º 3 junto com a contestação). 23. O valor do salvado do veículo ..-QH-.. era de € 6.611,00 (artigo 9.º da contestação, documento n.º 3 junto com a contestação). 24. O custo da reparação do veículo ..-QH-.. foi orçamentado em € 15.545,63 (artigo 7.º da contestação, documento n.º 3 junto com a contestação). *** 3- A Questão Enunciada: Se há fundamento para revogar a sentença em termos de condenar a ré a pagar ao autor, apenas, a quantia de 5.281,22 €. A ré/apelante fundamenta a sua pretensão de diminuição da quantia indemnizatória invocando o Princípio Indemnizatório e, especificamente, o artº 130º, do DL 72/2008, de 16/04, defendendo que, no seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro, não podendo ser superior ao dano decorrente do sinistro, nem ao montante do capital seguro, servindo de referência, em caso de sinistro, o mais baixo desses valores pelo que o valor devido pela apelante é o que resulta da subtração ao valor venal do veículo, que ascende a 12.000 €, deduzido o valor do salvado, de 6 611€ e, 107,78€ de franquia (2%), perfazendo o montante de 5.281,22 €. Por sua vez, o autor/apelado defende que devem aplicar-se as estipulações contratuais e não o regime jurídico do seguro obrigatório da responsabilidade civil automóvel (Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto) e, por isso, defende que ao valor de indemnização contratualizado, de 16 700€, deve ser deduzido o valor do salvado, de 6 611€, o que perfaz o valor de 10.089,00 a que se deduz a franquia a cargo do segurado, de 2% (€ 201,78), perfazendo a indemnização de 9 887,22€ decidida na sentença. Vejamos de que lado está a razão. A primeira questão que se coloca é a de saber se o Regime Jurídico do Contrato de Seguro (DL 72/2008, de 16/04, doravante LCS) pode ser convocado como fonte de solução jurídica para o litígio em apreço, mormente se são aplicáveis as regras relativas à determinação do montante indemnizatório referidas no artº 130º da LCS. Pois bem, adiantando a resposta diremos que não. Analisemos. Como vimos acima, a seguradora/apelante entende que, à luz do artº 130º da LCS, o valor a indemnizar é o correspondente ao valor da coisa segura à data do sinistro. E que esse valor, o valor venal do veículo, à data do sinistro, era de 12 000€, ao qual deve ser deduzido o valor do salvado, de 6 611€ e, o valor de 107,78€ de franquia, perfazendo 5.281,22 € e não os 9 887,22€ atribuídos pelo tribunal a quo. Salvo o devido respeito, o regime jurídico do contrato de seguro, introduzido pelo DL 72/2008, mormente o seu artº 130º, não é aplicável à indemnização por danos em veículos automóveis que tenham contratado a cobertura facultativa de danos próprios sofridos pelos veículos seguros. Na verdade, como decorre do artº 6º do DL 72/2008 (LCS), que constitui norma revogatória de diversos regimes jurídicos de seguro, esse diploma legal não revogou, nem derrogou o regime do DL 214/97, de 16/08, que instituiu regras destinadas a assegurar uma maior transparência em matéria de sobresseguro nos contratos de seguro automóvel facultativo. Esse diploma legal estabelece, no seu artº 1º, que “O presente diploma institui regras destinadas a assegurar uma maior transparência nos contratos de seguro automóvel que incluam coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelos veículos seguros.”. Trata-se de um regime especial e excepcional, determinando regras específicas a aplicar ao contrato de seguro automóvel que inclua coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelo veículo. Com efeito, como salienta Arnaldo Costa Oliveira (Lei do Contrato de Seguro anotada, 2ª edição, AAVV, pág. 441) “Regime excepcional – portanto admitindo como solução de base a prestação do segurador superior ao valor do bem seguro (pois que se trata de seguro de objectos, concretamente veículos automóveis) – é o previsto no artº 3º do DL 214/97, de 16/08 (regime de maior transparência em matéria de sobresseguro nos contratos facultativos do ramo Automóvel)…”. Efectivamente, o artº 2º do DL 214/97, institui a alteração automática do valor seguro do veículo, estabelecendo: “O valor seguro dos veículos deverá ser automaticamente alterado de acordo com a tabela referida no artigo 4.º, sendo o respectivo prémio ajustado à desvalorização do valor seguro.” E o artº 3º desse diploma determina que em caso de incumprimento, pela seguradora, da alteração dos prémios em função da desvalorização do veículo seguro, as seguradoras são obrigadas a “…responder em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, sem direito a qualquer acréscimo de prémio…” Finalmente, o artº 4º daquele diploma legal impõe às seguradoras o dever de “…elaborar a tabela de desvalorizações periódicas automáticas a que se refere o artigo 2.º para determinação do valor da indemnização em caso de perda total, incluindo, necessariamente, como referências, o ano ou o valor da aquisição em novo, ou ambos…” Ora, no caso dos autos, o contrato de seguro do veículo, com cobertura de danos próprios, foi celebrado a 21/10/2021. A cobertura de danos próprios incluía, além do mais, o risco de colisão. O capital segurado, para os danos próprios, foi acordado por um valor de 16 700€, sujeito a uma franquia de 2%. O sinistro ocorreu a 19/04/2022, portanto, durante a primeira anuidade. Não foi invocada, pela ré seguradora, qualquer tabela de desvalorização do veículo. A ser assim, face ao que determina o artº 3º do DL 214/97, a ré, seguradora responde, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, isto é, responde pelo valor de 16 700€, deduzida a franquia de 2% e abatendo o valor correspondente ao salvado, como posteriormente de fundamentará. Este entendimento é, ao que sabemos pacífico na jurisprudência. Sem sermos exaustivos, salientam-se: -STJ, de 03/05/2023 (António Barateiro Martins, 4280): “I- Face ao que decorre do DL 214/97 – ou seja, no âmbito dos seguros que confiram coberturas facultativas a danos próprios de veículos automóveis – não é deixada à autonomia privada do tomador do seguro a indicação do valor ou capital que pretende seja considerado seguro, cabendo, isso sim, ao tomador de seguro fornecer ao segurador os elementos que permitam a este a determinação do valor da indemnização em caso de perda total e do capital seguro, tendo em conta as tabelas de desvalorização a que se refere o DL 214/97. II- Caso o segurador não proceda a tal determinação – caso aceite acriticamente o valor indicado pelo tomador do seguro e cobre o prémio correspondente ao valor indicado (superior ao valor do veículo) – responde, em caso de sinistro, pelo valor seguro à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à verificação desse mesmo sinistro (nos termos do art.º 3.º do DL 214/97), ou seja, satisfaz uma prestação superior ao valor do veículo (uma vez que tal art. 3.º do DL 214/97 constitui uma exceção ao “princípio indemnizatório” consagrado nos arts. 128.º, 130.º e 132.º do RJCS).” -TRL de 25/06/2009 (Ezagüy Martins, 1515): “I- No âmbito do seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel, enquanto não for actualizado, nos termos legais, o valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total, e tal actualização comunicada ao tomador de seguro, as seguradoras estão constituídas na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro.” - TRL de 19/06/2014 (Isoleta Costa, 791): “1. O DL 72/2008 de 16 de Abril que veio regular a actividade seguradora não revogou o regime especial estabelecido no DL 214/97 de 16.08 que por isso se mantém em vigor. 2. As normas do RJCS (Regime Jurídico do Contrato de Seguro) terão que ser interpretadas em consonância com aquelas outras do DL n.º 214/97, de 16 de Agosto, pois, são estas que definem as regras a seguir em matéria de sobresseguro no ramo automóvel e é com base nelas que se calcula o valor a considerar para efeito de indemnização – o valor do interesse seguro ao tempo do sinistro, conforme refere o artigo 130.º, n.º 1 do RJCS, mas atendendo às regras de fixação desse valor constantes daquele diploma legal. 3. Sendo o regime estabelecido no Decreto Lei nº 214/97 aplicável ao contrato em causa, celebrado em 21.07.2009, e início na mesma data com a duração de quatro anos, facilmente se constata que, aquando do sinistro dos autos, ocorrido em 10 .03. 2012, o valor a considerar para efeitos de indemnização era aquele que estava em vigor no contrato e em relação ao qual eram pagos os prémios de seguro.” -TRG de 18/06/2013 (Rosa Tching, 703): “- Da conjugação do disposto nos arts 3º, 4º e 8º, n.º 2 do DL nº 214/97, de 16 de Agosto, extrai-se que, no âmbito do seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel, enquanto não for actualizado, nos termos legais, o valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total, nem for comunicada essa actualização ao tomador de seguro, as seguradoras estão constituídas na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro.” -TRG de 17/11/2013 (Ana Cristina Duarte, 2135): “1 – O DL n.º 214/97, de 16/08 estabeleceu um regime especial para o seguro facultativo de danos próprios em veículo automóvel, instituindo regras de transparência em matéria de sobresseguro que impõem às seguradoras a elaboração de tabelas de desvalorização periódicas automáticas para determinação da indemnização. 2 – Enquanto não for atualizado o valor do veículo seguro, as seguradoras estão obrigadas a responder com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro.” -TRG de 29/05/2024 (Jorge Santos, 820): “- O DL 214/97, de 16 de Agosto, estabeleceu um regime especial para o seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel consagrando uma regulamentação expressa em matéria de sobresseguro. II - Este regime especial não veio a ser derrogado ou alterado com a entrada em vigor do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril, que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro. III - A regulamentação específica do DL nº 214/97 impondo a regra da desvalorização automática do valor seguro, com a consequente redução proporcional da parte do prémio, por forma a garantir a indemnização pelo valor seguro em caso de perda total, não conflitua com as normas previstas no RJCS que integram o chamado princípio indemnizatório, nos termos do qual a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro. IV - Tal assim é, na medida em que, como já se antevia no preâmbulo do DL nº 214/97 "as consequências previstas para o incumprimento deste regime legal não colidem com o princípio do indemnizatório, que mantém plena aplicabilidade nos casos de normalidade contratual". V - Ora, não podem as seguradoras opôr aos tomadores o valor real depois do sinistro ter ocorrido para evitarem sobreindemnizações, se antes de celebrarem o contrato nada fizeram para o apurar, como o que evitaria celebrar o contrato com sobresseguro (e com os inerentes sobreprémios), apesar de o poderem ter feito com facilidade, se tivessem actuado com um mínimo de diligência que a boa fé lhes impunha (art. 227º do CC).” -TRP de 04/06/2015 (Aristides Rodrigues de Almeida, 705): “I - O regime jurídico do contrato de seguro aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, não revogou, expressa ou tacitamente, o Decreto-Lei n.º 214/97, de 16 de Agosto, relativo aos contratos de seguro automóvel facultativo. II - Nos termos desse diploma, se o valor do veículo não for actualizado em função da respectiva desvalorização (de acordo com uma tabela ou segundo o critério específico eleito por acordo) e a seguradora cobrar prémios de seguro por valor que não considere a desvalorização ocorrida, em caso de sinistro a seguradora terá de pagar o valor seguro que teve em conta no último apuramento do prémio a suportar.” A esta luz, vejamos o cálculo da indemnização. Na cláusula 50º nº 2, al. b 1) das Condições Gerais, está estipulado que em caso de perda total o segurador pagará ao segurado uma indemnização limitada ao capital/valor seguro indicado nas Condições Particulares. O valor do capital seguro do veículo a considerar é de 16 700€, acordado nas Condições Particulares. Verificou-se Perda Total do veículo face ao que dispõe a cláusula 38º, 3º§ b) 3: “…o valor da reparação adicionado do valor do salvado exceda 100% do Capital/ Valor seguro, salvo convenção em contrário expressa nas Condições Particulares.”. Isto porque o salvado foi avaliado (sem contestação) em 6 611€ (ponto 23 dos factos provados) e o valor da reparação avaliado/orçamentado em 15 545, 63€, (ponto 24 dos factos provados), o que soma 22 156,63€, que é superior aos 16 700€ de capital seguro. Ora, se ao valor do capital seguro de 16 700€, abatermos o valor da franquia de 2%, nos termos do artº 43º nº 5 das Condições Gerais – “5. A franquia, quando percentual, será aplicada sobre o valor seguro do veículo” -, teremos um valor de indemnização de 16 366€. Se a este valor abatermos o valor do salvado (6 611€), como determina a cláusula 50ª, al. c), - “…o salvado fica sempre na posse do Segurado, sendo deduzido o respetivo valor ao montante indemnizatório…”, obtemos o valor indemnizatório de 9 757€. Este valor difere do fixado na sentença (9 887,22€) porque, nesta, a 1ª instância fez incidir a percentagem da franquia (2%) sobre 10 089€, correspondente ao resultado da subtração ao capital seguro (16 700€) do valor do salvado (6 611€) e não, como determina a cláusula 43º nº 5 das Condições Gerais, sobre o valor do capital seguro. A esta vista, resta concluir que o recurso procede parcialmente. *** III- DECISÃO. Em face do exposto, acordam os juízes desembargadores que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, alteram o valor de indemnização a suportar pela ré/seguradora/apelante, para a quantia de 9 757€ (nove mil setecentos e cinquenta e sete mil euros) mantendo a decisão quanto aos juros, data de início do respectivo cômputo e taxa (taxa de 4%, devidos desde 19/05/2022). Custas na instância de recurso na proporção de 90% para a apelante e de 10% para o apelado. Lisboa, 11/09/2025 Adeodato Brotas João Paulo Brasão António Santos |