Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6348/2006-7
Relator: PIMENTEL MARCOS
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITO
LIVRANÇA
TRANSMISSÃO DE TÍTULO
SUCESSÃO
LEGITIMIDADE
EXECUÇÃO
ENDOSSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I- As letras e livranças podem ser transmitidas, para além do endosso, também por acto entre vivos, com os efeitos de uma normal cessão de créditos ou por sucessão mortis causa, não perdendo, por isso, a sua natureza de títulos executivos (artigo 46.º ,alínea c) do Código de Processo Civil)
II- É parte legítima na execução, enquanto cessionário do título, o exequente que alegou ser portador de livrança por a ter adquirido por contrato de cessão de posição contratual que celebrou com o emitente da livrança, observando, assim, o disposto no artigo 56.º/1 do Código de Processo Civil.
III- De acordo com este preceito, que contempla desvios à regra geral de determinação da legitimidade na execução, segundo a qual (ver artigo 55.º/1 do C.P.C.) esta tem de ser promovida pela pessoa que no título figura como credor, que no caso é o cedente e não o cessionário, admite-se a possibilidade de a execução poder ser instaurada por este último.
IV- O facto de o artigo 11.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças prescrever que, uma vez inseridas na letra (ou na livrança - ver artigo 77.º da L.U.L.L.) - as palavras “ não à ordem”, a letra ( ou a livrança) só é transmissível pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos, não significa que, na falta dessa cláusula, esteja impedida a transmissão do título por meio de cessão ordinária de créditos.
V- A transmissibilidade do título por endosso (artigo 11.º/1 da L.U.L.L.) não obsta à transmissibilidade do título por cessão ordinária de créditos a qual, porém, tem de ser alegada no requerimento executivo nos termos do referido artigo 56.º/1 do Código de Processo Civil, ou seja, deduzindo o exequente no próprio requerimento para a execução os factos constitutivos da sucessão

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.

 “.[…] SA”  instaurou execução contra F.[…] e outros invocando como título executivo uma livrança emitida por aquele e por B.[…] a favor de “M.[…] SA”.

Para tanto alegou, em síntese, ser legítimo portador dessa livrança por a ter adquirido em virtude de um contrato de cessão de posição contratual celebrado com “Mello e Crédito”, tendo, por isso, legitimidade activa para a presente execução.

O executado F.[…] deduziu os presentes embargos alegando em síntese que:

- a livrança que serve de título executivo à presente acção foi subscrita pelo executado/embargante e emitida a favor da sociedade "M.[…]";

- a referida livrança não foi endossada, sendo certo que apenas a sociedade a favor da qual tal livrança foi emitida, ou seja, a sociedade "M.[…]", pode exigir o seu pagamento.

E concluiu dizendo que, não tendo a livrança dada à execução sido emitida a favor do exequente/embargado, este só poderia ser considerado seu legítimo portador se o seu direito estivesse justificado através de uma série ininterrupta de endossos, não bastando para tal o facto de a "M.[…] " ter cedido a sua posição contratual ao ora exequente no contrato de mútuo para cuja garantia de cumprimento foi subscrita a livrança em causa, razão pela qual é o exequente parte ilegítima na acção executiva.

O "I.[…] SA"  contestou  os embargos, dizendo que o embargante não põe em causa que tivesse dado o seu consentimento à cessão da posição contratual no que respeita à titularidade da livrança, pelo que, havendo consentimento na cessão dessa posição, não pode agora aquele voltar atrás na sua manifestação de vontade.

 E acrescenta o embargante que se as livranças, nos termos do artigo 11° da LULL, são transmissíveis pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos, não carecendo do consentimento do devedor, por maioria de razão o são quando esse consentimento efectivamente existe.

Conclui pela improcedência dos embargos.

Por despacho de 21.02.2006 foram “os embargos julgados procedentes” e o embargante absolvido da instância.

Deste despacho recorreu o embargado formulando as seguintes conclusões:

1. A apelante adquiriu da M.[…] a posição contratual que esta detinha num contrato de financiamento celebrado com o apelado;

2. Com a cessão da posição contratual transmitiram-se todas as garantias associadas, designadamente, a livrança dada à execução;

3. Tal livrança, apesar de não ter sido endossada, transmitiu-se legitimamente pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos;

4. Até porque essa era a intenção do cedente e do cessionário, isto é, fazer acompanhar a cessão da posição contratual de todas as garantias;

5. A livrança dada à execução não podia ser objecto de endosso por tal ser proibido pelo artigo 11.° do Dec.-Lei 359/91, de 21 de Setembro;

6. Pelo que a livrança só podia ser transmitida sob a forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos;

7. O Tribunal a quo errou ao entender que esta transmissão pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos só é possível se na Livrança estiver inserida a expressão não à ordem ou outra equivalente;

8. A livrança é transmissível pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos ainda que o seu endosso não esteja proibido, conforme resulta da aplicação do princípio a maiori ad minus;

9. A questão do consentimento ou não por parte do apelado na cessão da posição contratual não foi alegada pelas partes, pelo que nem sequer é questão controvertida nos presentes autos;

10. 0 apelado não invocou o seu não consentimento, pelo que o Apelante nem sequer teve a oportunidade de contradizer e fazer prova desse consentimento;

11. Pelo que errou o Tribunal a quo ao julgar procedentes os embargos de executado por se ter provado a inexistência de consentimento do apelado na cessão da posição contratual.

O embargante contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da sentença que considerou o recorrente parte ilegítima nos presentes autos por não figurar no título executivo como credor do recorrido e que, em consequência, absolveu este da instância.

2. Entende o recorrente que o facto de não figurar no título executivo como credor não tem como consequência a sua ilegitimidade, uma vez que a posição jurídica da sociedade M.[…], entidade que figura na livrança dada à execução como credora, lhe foi transmitida por força do contrato de cessão da posição contratual entre ambos celebrado.

3. Ora, salvo o devido respeito, não assiste qualquer razão ao Recorrente, como se demonstrará.

4. Com efeito, nos termos conjugados dos art. 16.° e 77.° da LULL o detentor de uma livrança só é considerado portador legítimo da mesma se o seu direito for justificado através de uma série ininterrupta de endossos.

5. 0 que não sucede nos presentes autos.

6. E o facto de a "M.[…]" (sociedade que figura no título executivo como credor) ter cedido a sua posição contratual ao Recorrente no contrato de mútuo para cuja garantia de cumprimento foi subscrita a livrança em causa nos presentes autos não é suficiente para tornar o Recorrente parte legítima nos presentes autos.

7. Com efeito, esquece-se o Recorrente que uma livrança consubstancia um título de crédito, sendo como tal considerado o título que incorpora um direito de crédito, e que reveste as seguintes características: autonomia, abstracção e literalidade.

8. Do princípio da literalidade decorre que a existência, validade e persistência da obrigação cambiária não podem ser comprovadas por meios exteriores, não reconhecíveis pelo simples exame do título.

9. Tal característica tem vindo a ser considerada essencial pela jurisprudência, citando-se por todos o Acórdão da 5.a Secção do Tribunal da Relação do Porto, de 10 de Janeiro de 2000, publicado no sítio da internet www.trp.pt, onde se lê: "A execução instaurada com base em letra de câmbio subscrita pelo executado, como aceitante, e no endosso ao exequente desse título de crédito efectuado pelo sacador, é uma típica acção executiva cambiária em que o executado só é demandado pela obrigação incorporada na letra, obrigação essa formal e abstracta onde funciona o princípio da literalidade. Não constando da letra dada à execução, expressamente, o endosso feito pelo sacador ao exequente — embargado — único caso em que poderia ser feito no rosto da letra ,- assim como não constando no seu verso qualquer endosso em branco operado por aquele, o exequente não justifica, por forma válida, a sua posição como legítimo portador da letra, sendo, por via disso, parte ilegítima."

10. Tanto assim é que o recorrente sentiu a necessidade de garantir que a sociedade "M.[…]" ficaria obrigada a endossar quaisquer títulos que incorporem os créditos cedidos.

11. Entende o recorrente que o facto de a livrança dada à execução não ter sido endossada é absolutamente irrelevante, uma vez que a mesma foi transmitida com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos, e, como tal, o endosso não é necessário para legitimar o Recorrente.

12. Esquece-se o Recorrente que propôs uma acção executiva e que, neste tipo de acções, a legitimidade das partes se afere pela nome ou firma da pessoa que figure no título executivo como credor (facto que resulta claramente do disposto no n.° 1 do art. 55.° do C.P.C.).

13. A acção executiva objecto dos Embargos de Executado que são agora objecto de recurso foi proposta pela sociedade "I.[…] S.A.", sociedade que não figura no título dado à execução.

14. Donde se conclui que o recorrente é parte ilegítima nos presentes autos.

15. Defende ainda o recorrente que a livrança dada à execução não poderia ter sido endossada, porquanto tal endosso violaria o disposto no artigo 11.° do Decreto-Lei n.° 359/91, de 21 de Outubro.

16. Estipula o artigo 11.° do Decreto-Lei n.° 359/91, de 21 de Outubro que: "1 . Se, em relação a um contrato de crédito ao consumo, o consumidor subscrever letras ou livranças com função de garantia, deve ser aposta naqueles títulos a expressão não à ordem, ou outra equivalente, nos termos e para os efeitos previstos na legislação aplicável. 2. A inobservância do disposto no número anterior presume-se imputável ao credor que, salvo caso de culpa do consumidor, será responsável perante terceiros”

17. De tal artigo resulta que, como regra geral, as livranças subscritas para garantir um crédito ao consumo não devem ser passíveis de ser endossadas, mas, resulta também que, para que tal se aplique é necessário que nas mesmas seja inscrita a cláusula "não à ordem".

18. O que não sucedeu nos presentes autos.

19. Não tendo tal cláusula sido inserida na livrança dada à execução, a mesma só se pode transmitir nos termos da LULL (como resulta a contrario do disposto no n.° 1 do artigo 11.° do Decreto-Lei n.° 359/91, de 21 de Outubro), ou seja através de um endosso (que, no caso dos autos, não existiu).

20. O que torna o Recorrente parte ilegítima nos presentes autos, por não figurar no título dado à execução como credor.

21. Pelo que bem andou a sentença sub judice ao considerar procedentes os Embargos de Executado e, consequentemente, absolver o Recorrido da instância.

Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.

OS FACTOS A TER  EM CONTA SÃO OS REFERIDOS.
O que está em causa é saber se o exequente é parte legítima na execução.

No despacho recorrido foi entendido que o exequente era parte ilegítima nos autos de execução por não figurar no título executivo como credor dos executados.

Pelo contrário, o exequente entende que o facto de não figurar na livrança como credor não tem como consequência a sua ilegitimidade, uma vez que a posição jurídica da “Mello Crédito”, que figura no título executivo como credor, foi-lhe transmitida por força do contrato de cessão da posição contratual entre eles celebrado.

Vejamos.

I

Sobre a legitimidade das partes na acção executiva estabelece o artigo 55° do CPC:

"1. A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor.

2. Se o título for ao portador, será a execução promovida pelo portador do título".

No caso dos autos, o exequente não figura no título como credor, pois nessa posição figura a "M.[…] SA" (ou seja o aludido cedente).

Portanto, na acção executiva a questão da legitimidade das partes resolve-se pela simples observação do título: têm legitimidade como exequente e como executado, respectivamente, aqueles que no título executivo figuram como credores e como devedores.

Sendo o título executivo uma livrança (título de crédito) nele imperam os princípios da incorporação, literalidade , abstracção e autonomia……

E o ora exequente não consta do título executivo, pelo que, em princípio, não teria legitimidade para a execução.

Todavia, como veremos, a falta deste requisito nem sempre tem como resultado a ilegitimidade das partes.

Na verdade existem excepções a esta regra.

II

Às livranças são aplicáveis as disposições relativas às letras, nomeadamente o artigo 11° da LULL, por força do seu artigo 77°.

As formas de transmissão destas vêm assim reguladas no artigo 11° a 20° da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.

Estabelece o artigo 11º na parte que agora interessa considerar:

Toda a letra de câmbio, mesmo que não envolva expressamente a cláusula à ordem, é transmissível por via de endosso.

Quando o sacador tiver inserido na letra as palavras “não à ordem”, ou uma expressão equivalente, a letra só é transmissível pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos.

O endosso é uma declaração aposta no verso da livrança, pela qual o seu portador a transfere para outrem. É este o modo normal de transmissão de letras e livranças e, consequentemente, do crédito nelas representado. Mas, para o efeito, não é necessário que das letras e livranças conste a expressão “à ordem” ou equivalente.  Se nada constar da livrança ela é transmissível pela via do endosso.

Mas se tiverem sido inseridas na letra ou livrança as palavras “não à ordem”, ou uma expressão equivalente, aquelas só são transmissíveis pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos.

No caso sub judice da livrança não consta a expressão “não à ordem” ou equivalente, pelo que poderia ser transmitida por endosso.

Todavia, por essa mesma razão, nada justifica que a livrança não possa ser transmitida pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos. Na verdade, o endosso é apenas um dos meios de transmissão das letras e livra

Com efeito, as letras ou livranças podem ser transmitidas, para além do endosso, por exemplo, por acto entre vivos, com os efeitos de uma normal cessão de créditos, ou por sucessão mortis causa (neste caso transmitem-se aos herdeiros quer os títulos quer o crédito que eles encerram). Portanto, a livrança pode circular sob a forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos.

A cessão é um negócio jurídico celebrado entre cedente e cessionário ao passo que o endosso é uma declaração unilateral prestada pelo endossante. Feita esta declaração, e entregue o título, opera-se desde logo a transferência dos direitos a ela inerentes e é desde logo eficaz, mesmo em relação a terceiros.  E então, o portador é desde logo parte legítima em execução a intentar contra os obrigados cambiários, como se do originário portador se tratasse.

Pelo contrário, na cessão de créditos, tal eficácia está sujeitas às regras normais destes contratos.

Neste último caso já não se verifica a transmissão de direitos cambiários, ao contrário do que sucede com o endosso, pelo qual se transmitem todos os direitos emergentes da letra, ou seja, todos os direitos cambiários nela incorporados.

Como estabelece o artigo 16º da LULL o detentor de uma letra é considerado portador legítimo se justifica o seu direito por uma série ininterrupta de endossos, mesmo que o último seja em branco.

Portanto, além do tomador da letra (seu originário portador) é também considerado seu portador legítimo qualquer detentor que justifique o seu direito através de uma série ininterrupta de endossos, ainda que o último seja em branco (por se tratar de uma presunção “iuris tantum”, pode a mesma ser ilidida).

Diz o apelante que o tribunal “a quo” errou ao entender que esta transmissão pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos só é possível se na Livrança estiver inserida a expressão não à ordem ou outra equivalente.

Parece-nos que assim é, como já dissemos.

A questão está em saber quais as consequências jurídicas dessa transmissão na presente execução, e, nomeadamente, interessa considerar se a livrança deixa de valer como título executivo.

Foi referido na sentença recorrida: Nos termos do contrato de cessão de posição contratual, a "M.[…] SA" e o "I.[…] SA" acordaram expressamente que «a "M.[…]" entrega nesta data ao "I.[…]", os documentos que titulam os contratos, e tudo o demais com eles relacionados, nomeadamente títulos cambiários que incorporem os respectivos créditos, os quais serão endossados a favor do “I[…]”».

Aliás, diga-se que nos termos do Código Civil, artigo 424°, "no contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão", sendo que "se o consentimento do outro contraente for anterior à cessão, esta só produz efeitos a partir da sua notificação ou reconhecimento".

No caso dos autos, não se verificou por parte do embargante/executado qualquer consentimento na cessão efectuada, nem a livrança alvo da execução foi sujeita a qualquer endosso a favor da I.[…]/exequente/embargada.

E, por isso, foi o embargante absolvido da instância.

Como dissemos, a livrança entrou na posse do exequente através de uma cessão ordinária de créditos.

É certo que o contrato de cessão da posição contratual prevê que a “M.[…]” deve endossar a livrança a favor da ora exequente.

Mas, não tendo sido feito o endosso, há que ter em consideração as consequências dessa cessão para os efeitos desta execução. E isto porque, como já dissemos, a livrança também pode circular pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos, ainda que dela não conste a expressão “não à ordem” ou semelhante.

Diz o apelado que o detentor de uma livrança só é considerado portador legítimo da mesma se o seu direito for justificado através de uma série ininterrupta de endossos, e que o facto de a "M.[…]” ter cedido a sua posição contratual ao recorrente no contrato de mútuo para cuja garantia de cumprimento foi subscrita a livrança em causa nos presentes autos não é suficiente para tornar o recorrente parte legítima na execução em virtude dos princípios da autonomia, literalidade e abstracção.

E esta é realmente a grande questão.

as não há que considerar agora se o endosso era ou não admissível nos termos da referida disposição legal, uma vez que o mesmo não foi feito, razão pela qual apenas temos de averiguar da eficácia da cessão da posição contratual, que é o que está em causa.

No contrato celebrado entre a  M.[…] e a I.[…], aquela cedeu a esta a posição que detinha em vários contratos de mútuo, nomeadamente no celebrado com o exequente, transmitindo a esta todos os direitos e deveres deles resultantes.

Mas, como dissemos, o embargante não pôs em causa este contrato, tendo-se limitado a invocar a ilegitimidade do exequente, por não figurar no título executivo, e por a livrança não lhe ter sido endossada, dizendo que o detentor de uma livrança só é considerado portador legítimo da mesma se o seu direito for justificado através de uma série ininterrupta de endossos.

III

Entretanto, nos termos do artigo 424º do CC "no contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão"
 
Por outro lado estabelece o nº 1 do artigo 56º do CPC que “tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda” .

E acrescenta esta disposição legal que no próprio requerimento para a execução deduzirá o exequente  os factos constitutivos da sucessão.

Assim, tendo havido sucessão (entre vivos ou mortis causa (1)) na titularidade da obrigação exequenda, deve o exequente deduzir os factos demonstrativos dessa mesma sucessão. Foi o que fez o ora apelante.

Trata-se de um desvio à regra geral da determinação da legitimidade, como se refere na epígrafe do artigo 56º. E este confere legitimidade como exequente e como executado aos sucessores do credor e aos sucessores do devedor, respectivamente, que no mesmo título figurem nessa qualidade.

Como dissemos, o embargante não pôs em causa a cessão da posição contratual. No entanto, na douta sentença foi referido que não se verificou por parte do embargante/executado qualquer consentimento na cessão efectuada, nem que a livrança “foi sujeita a qualquer endosso a favor da Interbanco”, e daí a absolvição da instância.

Mas o apelante alega que a questão do consentimento ou não por parte do apelado na cessão da posição contratual não foi suscitada pelas partes, pelo que nem sequer é questão controvertida nos presentes autos, pois não tendo o embargante alegado o seu não consentimento, não teve ele (embargado) a oportunidade de contradizer e fazer prova da sua existência.

Não há dúvidas de que a cessão da posição contratual depende do consentimento do outro contraente, manifestado antes ou depois da celebração do contrato. E dos autos não consta que esse consentimento tenha sido dado. Mas também não consta o contrário. O embargante nada alegou nesse sentido, pelo que não poderia ser dado aqui como assente a falta do consentimento na transmissão. Pelo contrário, o embargado, na contestação, alegou que o embargante aceitou a cessão da posição contratual.

Ora, nos termos do artigo 815º do CPC, o embargante pode alegar quaisquer fundamentos que lhe seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração.

Poderia, pois, ter alegado a falta do seu consentimento à cessão da posição contratual.

Se o tivesse feito competiria ao exequente fazer a prova desse consentimento (art.º 342º, nº 1 do CC). Não o tendo feito não poderemos concluir pela sua  falta ou seja, trata-se de questão que não tem de ser apreciada neste recurso. Na verdade, tendo em consideração que o embargante não arguiu a ilegitimidade do exequente com este fundamento, fica tal questão encerrada.

Deste modo temos de considerar que o exequente é parte legítima, não obstante não figurar na livrança como credor. Esta mantém-se como título executivo (art.º 46º, alínea c. do CPC).
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Por todo o exposto acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido e julgando-se o exequente parte legítima.

Custas pelo apelado.

Lisboa, 12.12.2006.

Pimentel Marcos
Abrantes Geraldes
Maria do Rosário Morgado



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1.-O termo “sucessão” é aqui empregue em sentido amplo. E a sucessão a que se refere o artigo 56º é a que se verifica antes da instauração da execução, nada tendo a ver com o incidente de habilitação a que aludem os artigos 371º e seguintes.