Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | NUNO GONÇALVES | ||
Descritores: | CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS APLICAÇÃO INTERPRETAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | - O regime do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro (cláusulas contratuais gerais), tem como âmbito de aplicação as cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar; - Não é de aplicar tal regime (cláusulas contratuais gerais), nomeadamente que, na dúvida sobre o sentido da cláusula, prevalece o sentido mais favorável ao aderente, perante um contrato escrito para prestação de serviços de transbordo rodoviário em substituição dos comboios suprimidos, que alude a um “procedimento pré-contratual” em que uma das partes “apresentou a melhor proposta” e “foi-lhe adjudicado o presente contrato”, sendo que ambas as contraentes são empresas que se dedicam ao transporte de passageiros e não se evidenciam os traços de pré-elaboração, rigidez e indeterminação característicos das cláusulas contratuais gerais; - Em face das regras legais relativas à interpretação e integração a declaração negocial, em princípio, haverá que interpretar o sentido da declaração de acordo com o que as partes exprimiram no contrato escrito; - Tendo sido exarado no contrato escrito que “Todos os veículos a utilizar na prestação do serviço devem ser de Turismo/Longo Curso” é mister reconhecer que a interpretação desta cláusula não poderá reconduzir ao seu esvaziamento ou irrelevância, nomeadamente porque a mesma não se apresenta como indeterminável. Para mais em face da circunstância do próprio fabricante do autocarro disponibilizado para prestar o serviço em causa o apresentar como um autocarro urbano e intercidade (destacando a eficiência na entrada e saída de passageiros e a rápida deslocação no tráfego intercitadino), em contraposição com os autocarros de turismo que são apresentados de forma distinta, para além da distinção ser conhecida nesse sector específico de actividade. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: 1. Relatório. 1.1. A autora Vale do Ave - Transportes, Lda., demandou a ré CP – Comboios de Portugal, E.P.E.. Em síntese, alegou que foi contratada pela ré para prestar serviços de transbordo rodoviário em substituição dos comboios suprimidos por interrupção da circulação ferroviária, em virtude da Modernização da Linha da Beira Alta. Nos trajetos Guarda-Coimbra-Guarda e Mangualde-Coimbra-Guarda os autocarros deveriam ter “50 a 55 lugares sentados” e todos os veículos a utilizar deveriam ser de turismo /longo curso, dotados de ar condicionado e bagageiras inferiores. Acordaram ainda que, se a autora procedesse à prestação dos serviços com autocarros que não reunissem tais condições, ser-lhe-ia aplicada uma penalidade por cada trajeto realizado correspondente a 25% do preço do autocarro/trajeto indicado na proposta do fornecedor. A ré prestou os serviços nos moldes acordados, mas a ré impôs-lhe uma penalidade no valor de € 16.847,50, invocando que: a) O autocarro com a matrícula AL-..-PG possui 49 lugares e não 50-55 lugares sentados, nem possui a tipologia turismo/longo curso, foi utilizado num total de 46 viagens; b) O autocarro com a matrícula AL-..-RA não possui a tipologia turismo/longo curso e foi utilizado num total de 54 viagens; c) O autocarro com a matrícula AL-..-PG não possui a tipologia turismo/longo curso e foi utilizado num total de 09 viagens. O Anexo I do Regulamento 2018/258, quanto ao “número de lugares sentados” refere no seu ponto 2.1.6. que “Uma zona destinada a uma cadeira de rodas com ocupante deve ser considerada como um lugar sentado”. Assim, o veículo com a matrícula AL-..-PG cumpre com o previsto no contrato pois referindo o certificado de matrícula que possui “49 LUG. SENTADOS + 15 DE PÉ + MOT + CADEIRA DE RODA” significa que possui o mínimo de 50 lugares sentados. A ré também impôs outras duas penalizações no valor de € 24.690, invocando que a Autora incumpriu as suas obrigações porquanto: a) utilizou o veículo com a matrícula AL-..-PG, com a lotação de 49 lugares sentados e sem a tipologia turismo /longo curso, num total de 91 viagens; b) utilizou os veículos com as matrículas AL-..-RA e AL-..-PG sem a tipologia turismo/ longo curso, num total de 54 e de 84 viagens, respetivamente. O que a autora refuta pelas mesmas razões. Mas a autora aceita a penalidade aplicada ao veículo com a matrícula ..-VM-.., que perfaz a quantia de total de € 4.612,50. Terminou peticionando o seguinte: a) Serem anuladas as penalidades no valor de € 12.235 e de € 24.690,00 que a Ré aplicou à Autora no âmbito dos contratos n.ºs ... e ..., respetivamente; b) Ser anulada a compensação que a Ré realizou por via do crédito que entendia ser-lhe devido pela aplicação das penalidades pelo incumprimento dos contratos n.ºs ... e ..., com o crédito que a Autora detinha sobre a Ré e que tinha como causa a prestação de serviços titulada pelos mesmos contratos, declarando-se que os mesmos foram validamente cumpridos (com exceção do veículo com a matrícula ..-VM-.., utilizado no cumprimento do contrato ..., em 41 serviços); c) Mais deve a Ré ser condenada a pagar à Autora a quantia de € 36.925, acrescida de juros de mora à taxa legal comercial a contar da data da citação. * 1.2. A ré contestou a acção, impugnando a interpretação da autora e referindo que a expressão Turismo/Longo Curso constante dos contratos que vincula as partes que livremente os subscreveram mais não é que os chamados serviços expresso que IMT - Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P. define como sendo os que utilizam veículos com condições de conforto adequadas a percursos de media e longa distância e construídos exclusivamente para o transporte de passageiros sentados. Terminou peticionando a sua absolvição de todos os pedidos. * 1.3. Foi proferido o saneador sentença que, conhecendo do mérito da causa, julgou a acção improcedente por não provada e, em consequência, absolveu a Ré “CP – Comboios de Portugal, E.P.E.” dos pedidos contra ela formulados pela Autora “Vale do Ave – Transportes, Lda.”. * 1.4. A autora interpôs o presente recurso de apelação em que formulou as seguintes conclusões: “1. A Recorrida não impugnou o conteúdo dos documentos 4 e 6 juntos com a p.i. pelo que, de acordo com o artigo 574.º, n.º 2, do Código do Processo Civil deve ser aditada à FACTUALIDADE RELEVANTE o facto n.º 8. de acordo com o qual “na utilização que a Autora fez dos veículos com as matrículas AL-..-PG, AL-..-RA e AL-..-PG para, em concreto, executar a prestação de serviços de transbordo rodoviário, todos os passageiros foram transportados sentados”. 2. Os contratos celebrados pelas partes versam sobre um sector específico de atividade – o do transporte rodoviário de passageiros em autocarros – que é um sector especialmente regulamentado, não sendo possível o Tribunal ater-se ao critério da razoabilidade abstrata do declaratário, devendo considerar a legislação que regulamenta a atividade do transporte rodoviário de passageiros, as circunstâncias que rodearam a celebração dos contratos, os clausulados contratuais e a forma como foram cumpridos. 3. Quanto à lotação do veículo AL-..-PG, a sentença recorrida aplicou o disposto no ponto n.º 2.1.6 do Anexo I do Regulamento (UE) 2018/858, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2018, e em comentário final, considerou que tal autocarro cumpria com o requisito de 50 lugares sentados pois a existência de uma zona destinada a cadeira de rodas é equiparada a um lugar sentado, o que se reitera. 4. Do mesmo modo deverá o Tribunal recorrer ao quadro normativo em vigor para determinar o conceito de autocarros de turismo/longo curso. 5. Nem o Regulamento (UE) 2018/858, nem o Regulamento 219/2144, nem o Regulamento n.º 17 da ONU, nem o Regulamento do Código da Estrada utilizam o conceito de autocarro de turismo /longo curso. 6. Os autocarros com as matrículas AL-..-PG, AL-..-RA e AL-..-PG e que foram utilizados pela Recorrente na execução dos contratos são autocarros da categoria M3, da classe II. 7. Não se pode concluir dos clausulados contratuais que os autocarros a utilizar pela Recorrente tivessem de pertencer à categoria /classe III pois se assim fosse, bastaria que a Recorrida o tivesse expressamente previsto no contrato, o que não fez. 8. Como resulta e é afirmado duas vezes nos contratos celebrados, para a Recorrida era decisivo que os passageiros fossem todos transportados em lugares sentados (o que sucedeu) e que os autocarros possuíssem bagageiras inferiores. 9. Depois, que os autocarros estivessem todos apetrechados com ar condicionado, o que também tinham. 10. E que apresentassem conforto para as viagens a que se destinavam, o que, de acordo com a atividade do sector possuíam: cadeiras reclináveis e ergonómicas, portas de única folha, “Wifi”, microfone para comunicação com os passageiros e luz individual de presença por cada passageiro/assento (factualidade assente sob o n.º 6). 11. Os contratos celebrados não foram a expressão do culminar de um processo negocial individualizado, em que o clausulado contratual tenha sido o resultado da vontade real e comum das partes. 12. Os contratos celebrados foram contratos estandardizados ou rígidos pelo que é materialmente adequado socorrermo-nos do Decreto-lei 446/85, de 25 de outubro que, no caso de cláusulas ambíguas, determina no artigo 11.º que: 1 - As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real. 2 - Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente. 3 - O disposto no número anterior não se aplica no âmbito das ações inibitórias. 13. Porque, a possibilidade de aplicação do critério fixado no n.º 1 do artigo 11.º do DL 446/85 claudica em face da inexistência de conceitos legais, pré-negociais ou concretos que nos permitam determinar o que é o turismo /longo curso, a dúvida interpretativa deve ser resolvida por aplicação do sentido mas favorável ao aderente, seja, à Recorrente. 14. Assim, autocarro de turismo/longo curso apenas poderá significar autocarro apto a efetuar transportes em percursos fora das localidades e apetrechado com as comodidades para os passageiros que, de acordo com os usos da atividade, se encontram nesses veículos: cadeiras reclináveis e ergonómicas, portas de única folha, “Wifi”, microfone para comunicação com os passageiros e luz individual de presença por cada passageiro/assento, 15. O que era o caso dos autocarros com as matrículas AL-..-PG, AL-..-RA e AL-..-PG, que efetuaram os percursos acordados. 16. Pelo que a Recorrida indevidamente aplicou sanções à Recorrente, devendo, assim, restituir a esta o valor das penalizações aplicadas. Deve o presente recurso ser julgado procedente e consequentemente ser revogada a sentença proferida com o que se fará Justiça”. * 1.5. Não foram apresentadas contra-alegações. * 1.6. As questões a decidir estão delimitadas pelas conclusões da recorrente e centram-se no seguinte: - A ampliação da matéria de facto; - A escolha do regime legal aplicável à interpretação do contrato; e, - A interpretação e integração do contrato. * 2. Fundamentação. 2.1. Foi julgado provado que: 1. Em escrito encimado pelas expressões “Contrato de Prestação de serviços de transporte rodoviário de substituição nos troços Guarda/Coimbra /Guarda, Mangualde /Coimbra /Mangualde e Guarda /Vilar Formoso/Guarda no período previsto de 01 a 28 de fevereiro de 2023 Contrato n.º ... (…) a Ré, aí designada como “CP" e a Autora, aí designada como “Fornecedor”, declararam «(…) É celebrado o presente contrato, que se regerá pelas seguintes Condições Particulares e, no que nelas não estiver especialmente previsto, pelas Condições Gerais de Aquisição de Bens e Serviços CP. 1. Objeto Prestação de serviços de transporte rodoviário de substituição nos troços Guarda/Coimbra/Guarda, Mangualde/Coimbra/Mangualde e Guarda/Vilar Formoso/-Guarda no período previsto de 01 a 28 de fevereiro de 2023. 2. Âmbito Constitui âmbito do presente contrato a prestação de serviços de transbordo rodoviário em substituição dos comboios suprimidos por interrupção da circulação ferroviária, em virtude da Modernização da Linha da Beira Alta, nos termos definidos no Anexo 1 - Especificação Técnica do Serviço. (…) 3. Anexos: São parte integrante do presente Contrato, para todos os efeitos contratuais e legais, os seguintes anexos: 1. Especificação Técnica do Serviço (…) 2. Condições Gerais de Aquisição de Bens e Serviços CP (…) 5. Caracterização da prestação de serviços 5.1 A prestação de serviços de transbordo rodoviário em substituição dos comboios suprimidos, deverá ser feita conforme Anexo 1 - Especificação Técnica do Serviço, salvaguardando-se as necessidades não previstas, que serão comunicadas ao Fornecedor com a antecedência mínima de 6 horas. (…) 6. Modo de Execução 6.1 No âmbito da presente prestação de serviços decorrem para o Fornecedor as seguintes obrigações: a) Assegurar o serviço de transbordo rodoviário alternativo no horário e local pretendido, através de autocarros de 50 a 55 lugares sentados no trajeto Guarda - Coimbra - Guarda e Mangualde – Coimbra - Guarda e de 28 lugares sentados no trajeto Guarda - Vilar Formoso - Guarda tendo sempre em consideração as restrições que eventualmente sejam impostas devido à pandemia do COVID-19, relativamente à quantidade máxima de passageiros por viagem e outras situações que serão comunicadas pelo gestor do contrato; (…) f) Todos os veículos a utilizar na prestação do serviço devem ser de Turismo/Longo Curso, dotados de ar condicionado e bagageiras inferiores, ter como data da primeira matrícula o ano de 2012 ou posterior e apresentar certificado de inspeção obrigatória e seguro válidos; (…) 14. Penalidades: (…) 14.2 Se o Fornecedor proceder à realização de qualquer dos serviços com autocarros que não respeitem as alíneas a), f) e h) do ponto 6.1 do Contrato, ser-lhe-á aplicada uma penalidade por cada trajeto realizado correspondente a 25% do preço do autocarro/trajeto indicado na proposta do Fornecedor. (…) ANEXO 1 - Especificação Técnica do Serviço (…) I – SERVIÇO INTERCIDADES (…) Para efetuar o transbordo será necessária a utilização de autocarros de 50 a 55 lugares sentados e em número conforme indicação específica para cada comboio e dia da semana, exceto os que sejam Feriado Oficial: (…) II. SERVIÇO REGIONAL – COIMBRA/GUARDA/COIMBRA (…) Para efetuar o transbordo será necessária a utilização de autocarros de 50 a 55 lugares sentados e em número conforme indicação especffica para cada comboio. III - SERVIÇO REGIONAL -GUARDA/V.FORMOSO/GUARDA (…) Para efetuar o transbordo será necessária a utilização de 1 autocarro de 28 lugares sentados por cada comboio. (…) NOTAS FINAIS 1. Todos os veículos a afetar a este serviço deverão: a. ser de Turismo/Longo Curso, dotados de ar condicionado e bagageiras inferiores. b. ter como data da primeira matrícula o ano de 2012 ou posterior. (…) CONDIÇÕES GERAIS DE AQUISIÇÃO DE BENS E SERVIÇOS CP Objeto e âmbito As presentes Condições Gereis estabelecem as cláusulas básicas aplicáveis à aquisição de bens e serviços efetuadas pela CP-Comboios de Portugal, E.P.E., (abreviadamente designada por CP) e regulam os direitos e obrigações da mesma e dos seus fornecedores. (…) 18. Penalidades e sanção por incumprimento definitivo (…) 5. A CP pode compensar os pagamentos por ela devidos ao abrigo do contrato com as penalidades por mora e ou sanção por incumprimento definitivo aplicáveis nos termos da presente cláusula. (…) 20. Resolução 1. Sem prejuízo de quaisquer outras causas de resolução previstas no Contrato ou na lei, a CP tem o direito de resolver o contrato total ou parcialmente, com efeitos imediatos nos seguintes casos: (…) 3. Em caso de resolução, total ou parcial, (…), o Fornecedor reembolsará a CP do excedente que relativamente a este tenha recebido, sem prejuízo de eventuais penais, sanção e/ou indemnizações que tenha direito a aplicar (…) 21. Foro e Lei Aplicável (…) 2. O contrato rege-se pela legislação aplicável de Direito Civil Português. 2. Em escrito encimado pelas expressões “Contrato de Prestação de serviços de transporte rodoviário de substituição nos troços Guarda/Coimbra/Guarda, Mangualde/Coimbra/Mangualde e Guarda/Vilar Formoso/Guarda no período previsto de 01 a 31 de fevereiro de 2023 Contrato n.º ... (…) a Ré, aí designada como “CP" e a Autora, aí designada como “Fornecedor”, declararam «(…) É celebrado o presente contrato, que se regerá pelas seguintes Condições Particulares e, no que nelas não estiver especialmente previsto, pelas Condições Gerais de Aquisição de Bens e Serviços CP. 1. Objeto Prestação de serviços de transporte rodoviário de substituição nos troços Guarda/Coimbra/Guarda, Mangualde/Coimbra/Mangualde e Guarda/Vilar Formoso/ Guarda no período previsto de 01 a 31 de março de 2023. 2. Âmbito Constitui âmbito do presente contrato a prestação de serviços de transbordo rodoviário em substituição dos comboios suprimidos por interrupção da circulação ferroviária, em virtude da Modernização da Linha da Beira Alta, nos termos definidos no Anexo 1 - Especificação Técnica do Serviço. (…) 3. Anexos: São parte integrante do presente Contrato, para todos os efeitos contratuais e legais, os seguintes anexos: 1. Especificação Técnica do Serviço 2. Condições Gerais de Aquisição de Bens e Serviços CP (…) 5. Caracterização da prestação de serviços 5.1 A prestação de serviços de transbordo rodoviário em substituição dos comboios suprimidos, deverá ser feita conforme Anexo 1 - Especificação Técnica do Serviço, salvaguardando-se as necessidades não previstas, que serão comunicadas ao Fornecedor com a antecedência mínima de 6 horas. (…) 6. Modo de Execução 6.1 No âmbito da presente prestação de serviços decorrem para o Fornecedor as seguintes obrigações: a) Assegurar o serviço de transbordo rodoviário alternativo no horário e local pretendido, através de autocarros de 50 a 55 lugares sentados no trajeto Guarda - Coimbra - Guarda e Mangualde - Coimbra- Guarda e de 28 lugares sentados no trajeto Guarda - Vilar Formoso - Guarda tendo sempre em consideração as restrições que eventualmente sejam impostas devido à pandemia do COVID-19, relativamente à quantidade máxima de passageiros por viagem e outras situações que serão comunicadas pelo gestor do contrato; (…) f) Todos os veículos a utilizar na prestação do serviço devem ser de Turismo/Longo Curso, dotados de ar condicionado e bagageiras inferiores, ter como data da primeira matrícula o ano de 2012 ou posterior e apresentar certificado de inspeção obrigatória e seguro válidos; (…) 14. Penalidades: (…) 14.2 Se o Fornecedor proceder à realização de qualquer dos serviços com autocarros que não respeitem as alíneas a), f) e h) do ponto 6.1 do Contrato, serlhe-á aplicada uma penalidade por cada trajeto realizado correspondente a 25% do preço do autocarro/trajeto indicado na proposta do Fornecedor. (…) ANEXO 1 - Especificação Técnica do Serviço (…) I – SERVIÇO INTERCIDADES (…) Para efetuar o transbordo será necessária a utilização de autocarros de 50 a 55 lugares sentados e em número conforme indicação específica para cada comboio: (…) II. SERVIÇO REGIONAL – COIMBRA/GUARDA/COIMBRA (…) Para efetuar o transbordo será necessária a utilização de autocarros de 50 a 55 lugares sentados e em número conforme indicação especffica para cada comboio. III - SERVIÇO REGIONAL -GUARDA/V.FORMOSO/GUARDA (…) Para efetuar o transbordo será necessária a utilização de 1 autocarro de 28 lugares sentados por cada comboio. (…) NOTAS FINAIS 1. Todos os veículos a afetar a este serviço deverão: a. ser de Turismo/Longo Curso, dotados de ar condicionado e bagageiras inferiores. b. ter como data da primeira matrícula o ano de 2012 ou posterior. (…) CONDIÇÕES GERAIS DE AQUISIÇÃO DE BENS E SERVIÇOS CP Objeto e âmbito As presentes Condições Gereis estabelecem as cláusulas básicas aplicáveis à aquisição de bens e serviços efetuadas pela CP-Comboios de Portugal, E.P.E., (abreviadamente designada por CP) e regulam os direitos e obrigações da mesma e dos seus fornecedores. (…) 18. Penalidades e sanção por incumprimento definitivo (…) 5. A CP pode compensar os pagamentos por ela devidos ao abrigo do contrato com as penalidades por mora e ou sanção por incumprimento definitivo aplicáveis nos termos da presente cláusula. (…) 20. Resolução 1. Sem prejuízo de quaisquer outras causas de resolução previstas no Contrato ou na lei, a CP tem o direito de resolver o contrato total ou parcialmente, com efeitos imediatos nos seguintes casos: (…) 3. Em caso de resolução, total ou parcial, (…), o Fornecedor reembolsará a CP do excedente que relativamente a este tenha recebido, sem prejuízo de eventuais penais, sanção e/ou indemnizações que tenha direito a aplicar (…) 21. Foro e Lei Aplicável (…) 2. O contrato rege-se pela legislação aplicável de Direito Civil Português. (…)». 3. Em escrito datado de 11 de Maio de 2023 e remetido à Autora, a Ré declarou: «(…) Assunto: Contrato N.º ... - Intenção de aplicação de penalidades Exmos. Senhores, Foi celebrado entre a CP e a Vale do Ave - Transportes, Lda. o contrato de prestação de serviços pelo qual se obrigam a fazer o transporte rodoviário de substituição, no período de 1 a 28 de fevereiro de 2023, por interrupção da circulação ferroviária em virtude da Modernização da Linha da Beira Alta. Nas datas e serviços indicados no anexo à presente, foram utilizadas viaturas com lotação inferior à prevista e que não respeitam a categoria de Turismo/Longo Curso, como consta do mesmo anexo, o que viola os pontos 6.1 a) e f), do Contrato. A aplicação de penalidades pela mencionada violação encontra-se prevista no ponto 14.2 do referido documento. O montante total das sanções é de 16847,50 € (…), conforme cálculo anexo. Os incumprimentos acima referidos devem-se a factos imputáveis à Vale do Ave - Transportes, Lda. o que, nos temos da lei e do contrato, acarreta a aplicação de penalidades. (…). PENALIDADES FEVEREIRO 2023 (…) MATRÍCULA (…) TIPOLOGIA TURISMO/LONGO CURSO LOTAÇÃO N.ºLugares sentados AL-..-PG (…) Não 49 (…) Este autocarro não respeita as alíneas a) e f) do ponto 6.1 (…) AL-..-RA (…) Não 51 (…) Este autocarro não respeita a alínea f) do ponto 6.1 (…) AL-..-PG (…) Não 51 (…) Este autocarro não respeita a alínea f) do ponto 6.1 (…)». 4. Em escrito datado de 31 de Maio de 2023 e remetido à Autora, a Ré declarou: «(…) Assunto: Contrato N.º ... - Intenção de aplicação de penalidades Exmos. Senhores, Foi celebrado entre a CP e a Vale do Ave - Transportes, Lda. o contrato de prestação de serviços pelo qual se obrigam a fazer o transporte rodoviário de substituição, no período de 1 a 31 de março de 2023, por interrupção da circulação ferroviária em virtude da Modernização da Linha da Beira Alta. Nas datas e serviços indicados no anexo à presente, foram utilizadas viaturas com lotação inferior à prevista e que não respeitam a categoria de Turismo/Longo Curso, como consta do mesmo anexo, o que viola os pontos 6.1 a) e f), do Contrato. A aplicação de penalidades pela mencionada violação encontra-se prevista no ponto 14.2 do referido documento. O montante total das sanções é de 24.690 € (…), conforme cálculo anexo. Os incumprimentos acima referidos devem-se a factos imputáveis à Vale do Ave - Transportes, Lda. o que, nos temos da lei e do contrato, acarreta a aplicação de penalidades. (…). PENALIDADES FEVEREIRO 2023 (…) MATRÍCULA (…) TIPOLOGIA TURISMO/LONGO CURSO LOTAÇÃO N.º Lugares sentados AL-..-PG (…) Não 49 (…) Este autocarro não respeita as alíneas a) e f) do ponto 6.1 (…) AL-..-RA (…) Não 51 (…) Este autocarro não respeita a alínea f) do ponto 6.1 (…) AL-..-PG (…) Não 51 (…) Este autocarro não respeita a alínea f) do ponto 6.1 (…)». 5. Por conta dos valores referidos nos pontos n.os 3 e 4 a Ré emitiu em nome da Autor as facturas n.ºs F2 BD0F/... e F2 BD0F/..., fazendose pagar por conta de valores que teria a pagar à Autora. 6. Os veículo automóveis referidos nos pontos n.os 3 e 4 são da marca “Volvo”, modelo “8900”, têm ar condicionado, cadeiras reclináveis e ergonómicas, portas de única folha, “Wifi”, microfone para comunicação com os passageiros e luz individual de presença por cada passageiro/assento. 7. O veículo automóvel de matrícula n.º AL-..-PG tem uma área destinada a cadeira de rodas com ocupante. * 2.2. A questão do aditamento à matéria de facto. A apelante sustenta que deve ser aditado à matéria de facto que: “na utilização que a Autora fez dos veículos com as matrículas AL-..-PG, AL-..-RA e AL-..-PG para, em concreto, executar a prestação de serviços de transbordo rodoviário, todos os passageiros foram transportados sentados”. O artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, preceitua que, na elaboração da sentença, o juiz deverá discriminar os factos que considera provados. Tal indicação visa interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes. Em sede de recurso, a Relação pode determinar a ampliação da matéria de facto quando a considere indispensável ou substituir o tribunal recorrido – cfr. art.ºs 662.º, n.º 2, alínea c), e 665.º, do Código de Processo Civil. Sucede que, em bom rigor, a apelante não alegou que todos os passageiros foram transportados sentados, mas apenas que enviou uma carta à apelada onde referiu que todos os passageiros foram transportados sentados. Logo, o que se provou foi apenas que a apelante comunicou por escrito à apelada que todos os passageiros foram transportados sentados. Assim, desde já se nota que, se o facto era relevante – como a apelante sustenta –, a mesma tinha o ónus de o alegar com precisão, retidão e clareza, em face do disposto no artigo 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na medida em que se trata de um facto pessoal e do qual sempre esteve conhecedora. Mais importante ainda, a apelante não apresentou qualquer justificação quanto à relevância desse facto, em face da solução jurídica. Por outro lado, não se encontra qualquer relevância a tal facto, na medida em que o que motivou a imposição pela apelada das penalizações à apelante foram duas circunstâncias perfeitamente identificadas na carta datada de 11/5/2023 (doc. n.º 3 da douta petição inicial), a saber: 1.º Foram utilizadas viaturas com lotação inferior à prevista; e, 2.º Foram utilizadas viaturas que não respeitam a categoria de Turismo/Longo Curso. De acordo com os motivos invocados pela apelada para impor as penalizações contratuais, a apelante não foi penalizada por motivo de terem deixado de se transportados quaisquer passageiros ou por motivo de terem sido transportados passageiros de pé, nomeadamente porque foram utilizadas viaturas com lotação inferior à prevista. De sorte que não se concebe qualquer relevância ao facto cujo aditamento é pretendido em termos da solução jurídica do caso. A irrelevância e inutilidade da alteração dita a improcedência desta conclusão do recurso. * 2.3. A invocada questão das cláusulas contratuais gerais. As partes estão de acordo quanto à questão da contratação da apelante para prestar serviços de transporte rodoviário de passageiros para a apelada. Contudo, divergem quanto à interpretação de uma das cláusulas do contrato escrito, nomeadamente a que consta de 6.1. a) do anexo ao contrato: “Todos os veículos a utilizar na prestação do serviço devem ser de Turismo/Longo Curso”. A apelante, antes de mais, pugna pela interpretação dessa cláusula à luz do disposto no artigo 11.º, do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, que dispõe o seguinte: 1 - As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real. 2 - Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente. 3 - O disposto no número anterior não se aplica no âmbito das ações inibitórias. Não se sufraga o entendimento da aplicação do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, na medida em que a autora não alegou que as cláusulas terão sido elaboradas sem prévia negociação individual, visando proponentes ou destinatários indeterminados que estavam limitados, respectivamente, a subscrever ou aceitar – art.º 1.º. Consequentemente, a ré também não precisou provar que a cláusula contratual resultou de negociação prévia entre as partes. Apesar da norma não ter apresentado uma definição, “foca os três aspectos básicos já referidos – a pré-elaboração, a rigidez e a indeterminação –, que identificam as cláusulas contratuais gerais e justificam a respectiva disciplina jurídica autónoma” – Almeida Costa e Menezes Cordeiro, in Cláusulas Contratuais Gerais, Almedina, 1987, pág. 18. São largamente desconhecidas as circunstâncias que antecederam a celebração do negócio. No entanto, não se afigura que a autora se limitou a subscrever ou a aceitar as cláusulas do negócio, na medida em que o contrato escrito alude a um “procedimento pré-contratual” e que a mesma “apresentou a melhor proposta” e “foi-lhe adjudicado o presente contrato” (cfr. doc. n.º 1 da douta petição inicial). O preâmbulo desse diploma alude à preocupação do legislador: “O comércio jurídico massificou-se: continuamente, as pessoas celebram contratos não precedidos de qualquer fase negociatória. A prática jurídico-económica racionalizou-se e especializou-se: as grandes empresas uniformizam os seus contratos, de modo a acelerar as operações necessárias à colocação dos produtos e a planificar, nos diferentes aspectos, as vantagens e as adscrições que lhes advêm do tráfico jurídico. O fenómeno das cláusulas contratuais gerais fez, em suma, a sua aparição, estendendo-se aos domínios mais diversos. São elaborados, com graus de minúcia variáveis, modelos negociais a que pessoas indeterminadas se limitam a aderir, sem possibilidade de discussão ou de introdução de modificações. Daí que a liberdade contratual se cinja, de facto, ao dilema da aceitação ou rejeição desses esquemas predispostos unilateralmente por entidades sem autoridade pública, mas que desempenham na vida dos particulares um papel do maior relevo. (…) Motivos de celeridade e de precisão, a existência de monopólios, oligopólios, e outras formas de concertação entre as empresas, aliados à mera impossibilidade, por parte dos destinatários, de um conhecimento rigoroso de todas as implicações dos textos a que adiram, ou as hipóteses alternativas que tal adesão comporte, tornam viáveis situações abusivas e inconvenientes. O problema da correcção das cláusulas contratuais gerais adquiriu, pois, uma flagrante premência. Convirá, no entanto, reconduzi-lo às suas autênticas dimensões”. Manifestamente o caso dos autos não se reconduz ao escopo do legislador: não se afigura que o negócio em causa seja próprio de um fenómeno de massificação (mas apenas de suprir uma necessidade ocasional de transporte relacionada com a realização de obras na ferrovia); que assente na ideia de celeridade (pelo contrário, a estrutura do negócio seguramente envolveu a mobilização de meios assinaláveis e a ponderação de custos); que tal negócio estivesse aberto a pessoas indeterminadas que se limitassem a aderir, sem possibilidade de discussão ou de introdução de modificações (mas limitado a empresas com meios e capacidade para, no mínimo, introduzirem a discussão sobre vários aspectos relevantes); e a autora não se apresenta como uma parte que, por mera impossibilidade, de um conhecimento rigoroso de todas as implicações dos textos a que adiram, ou as hipóteses alternativas que tal adesão comporte, tornam viáveis situações abusivas e inconvenientes (pelo contrário, presume-se que a autora terá capacidade técnica e comercial para compreender os contornos e implicações do contrato). Logo, não é de aplicar o propugnado regime especial, nomeadamente quanto à prevalência do sentido mais favorável ao aderente na interpretação das cláusulas. * 2.4. A interpretação e integração do negócio jurídico. O acordo celebrado pelas partes evidencia uma vontade comum que se manifestou num contrato escrito. Porém, essa vontade comum declarada pelas partes não corresponderá à vontade real de cada uma delas. Pelo menos, em face do que evidenciaram nos articulados. Tal situação convoca a questão da interpretação e integração do negócio jurídico, particularmente em face das regras consagradas nos artigos 236.º a 239.º, do Código Civil. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/5/2011 sintetiza os princípios essenciais a ter em consideração nesta matéria, nos seguintes termos: “- A declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário - artº 236, nº2, CC; - Não o sendo, valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (teoria da impressão do destinatário) - artº 236, nº1; - Nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto - artº 238, nº1; dito doutra forma: para que possa valer, o sentido atribuído pelo “declaratário normal” deverá estar expresso, ainda que de forma imperfeita, no próprio texto do documento que corporiza a garantia prestada; - O sentido sem correspondência mínima no texto poderá ainda valer se traduzir a vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem e essa validade - artº 238º, nº2. Estas regras, no fundo, não são mais do que critérios interpretativos dirigidos ao juiz e às partes contratantes. E o que basicamente se retira do artº 236º é que, em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico dá-se prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário (receptor). A lei, no entanto, não se basta com o sentido compreendido realmente pelo declaratário (entendimento subjectivo deste) e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal, típico, colocado na posição do real declaratário, depreenderia (sentido objectivo para o declaratário) – acordão deste Tribunal de 28.10.97, BMJ 470, 597. Há que imaginar - escreve o Prof. Paulo Mota Pinto em Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, 208 - uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando-a na posição do real declaratário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este efectivamente conheceu (mesmo que um declaratário normal delas não tivesse sabido - por exemplo, devido ao facto de o real declaratário ser portador de uma cultura invulgarmente vasta e superior à média) e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo” – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 6275/07.7TBVFX.L1. A partir deste ponto de partida, afigura-se que o juízo da sentença se mostra correcto, nomeadamente quanto à primeira evidência: não foram alegados factos que permitam conhecer a vontade real de cada um dos declarantes e o respectivo conhecimento pela contraparte, para além do que se evidencia da própria declaração. Não obstante, tendo sido exarado no contrato escrito que “Todos os veículos a utilizar na prestação do serviço devem ser de Turismo/Longo Curso” é mister reconhecer que a interpretação desta cláusula não poderá reconduzir ao seu esvaziamento ou irrelevância, nomeadamente porque a mesma não se apresenta como indeterminável. A liberdade contratual das partes resulta expressamente, entre outras disposições legais, do artigo 405.º, n.º 1, do Código Civil: “Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver”. E a expressão “dentro dos limites da lei” não significa que as partes apenas podem utilizar conceitos normativos para fixar o conteúdo do negócio, tais como a utilização de “veículos da classe de pesados”. As partes podem utilizar os conceitos que bem entendam, desde que não haja ofensa de lei imperativa e tais conceitos possam ser entendidos, i. é sejam determináveis. Neste seguimento, a apelante sustenta que nem o Regulamento (UE) 2018/858, nem o Regulamento 219/2144, nem o Regulamento n.º 17 da ONU, nem o Regulamento do Código da Estrada utilizam o conceito de autocarro de turismo/longo curso. Afigura-se que tal argumento procura esvaziar ou provocar a irrelevância do acordo manifestado pelas partes, a pretexto de inexistir tal conceito legal. Porém, não se mostra exacto que a lei desconheça o conceito de autocarro de turismo/longo curso, além de que o argumento é uma espada de dois gumes, pois as partes, ao fazerem constar no anexo ao contrato que “Todos os veículos a utilizar na prestação do serviço devem ser de Turismo/Longo Curso” seguramente tiveram algo em mente. Tal argumento da apelante poderá levar igualmente a considerar que o autocarro de turismo/longo curso não é um veículo pesado de passageiros da Categoria ou Classe II, “pois se assim fosse, bastaria que a Recorrida o tivesse expressamente previsto no contrato, o que não fez” – cfr. conclusão 7.ª do douto recurso. O ordenamento jurídico não ignora a especificidade dos vários modos de transporte rodoviá-rio, nomeadamente em termos de distinção entre as deslocações urbanas, interurbanas, de turismo e de longo curso. E as especificidades dos veículos aptos a cada um desses modos de transporte. Basta atentar que, para efeitos da Lei n.º 10/90 de 17 de Março (Lei de Bases do Sistema de Transportes Terrestres), o seu artigo 3.º, n.º 4, refere que: Quanto ao âmbito espacial da deslocação, consideram-se: a) Transportes internacionais, os que, implicando atravessamento de fronteiras, se desenvolvam parcialmente em território português; b) Transportes internos, os que se desenvolvam exclusivamente em território nacional, dentro dos quais se consideram as seguintes subcategorias: 1) Transportes interurbanos, os que visam satisfazer as necessidades de deslocação entre diferentes municípios não integrados numa mesma região metropolitana de transportes; 2) Transportes regionais, os transportes interurbanos que se realizam no interior de uma dada região, designadamente de uma região autónoma; 3) Transportes locais, os que visam satisfazer as necessidades de deslocação dentro de um município ou de uma região metropolitana de transportes; 4) Transportes urbanos, os que visam satisfazer as necessidades de deslocação em meio urbano, como tal se entendendo o que é abrangido pelos limites de uma área de transportes urbanos ou pelos de uma área urbana de uma região metropolitana de transportes. E o art.º 19.º, desse diploma, dispõe que: 1 - Os transportes de passageiros regulares e ocasionais especificamente destinados à realização de viagens turísticas colectivas poderão ser objecto de normas a definir em regulamentação especial referentes a: a) As condições de acesso à sua organização e realização, que incluirão a satisfação de requisitos de acesso à profissão fixados nos termos do artigo 19.º; b) A sujeição dos veículos a eles destinados a licenciamento e a especiais requisitos técnicos e de identificação; c) As condições específicas da sua exploração, por forma a assegurar a sua adstrição às específicas necessidades da actividade turística. 2 - Considera-se viagem turística colectiva um complexo de serviços, que não poderá circunscrever-se à mera prestação de transporte e que cubra uma totalidade convencionada de necessidades dos turistas que a ela adiram, mediante um preço global prévia e individualmente fixado. Ou seja, a lei reconhece a diferença entre o transporte interurbano, o transporte local e a viagem turística e até admite que possam existir especiais requisitos técnicos e de identificação, em função da tipologia. Além disso, quando se apela à teoria da impressão do destinatário, não nos estamos a referir a qualquer declaratário normal. O artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, centra a interpretação da declaração negocial na posição do declaratário real (salvo se este não puder razoavelmente contar com ele). Pressupõe que este será medianamente instruído, sagaz e diligente – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4/5/2010, sumário disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 2066/04.5TJVNF.P1.S1. Como refere Maria Raquel Aleixo Antunes Rei: “Sublinhe-se que a consideração da posição do real declaratário, entendido este como a pessoa concreta destinatária da declaração, permite potenciar o princípio da autonomia privada pela introdução no método de apuramento do conteúdo do negócio jurídico de factores e circunstâncias específicos daquelas duas pessoas que efectivamente celebraram aquele negócio. Dito por outras palavras, a interpretação de uma declaração negocial não se realiza de modo “padronizado”, “normalizado”, mas antes individual, específico: trata-se de interpretar a declaração x, proferida por A. e dirigida a B. É uma opção que não facilita o trabalho do jurista. No entanto, serve os interesses dos sujeitos e presta homenagem à declaração negocial como campo de acção livre de cada pessoa. E, sobretudo, é a opção do legislador” – in Da Interpretação da Declaração Negocial no Direito Civil Português, Universidade de Lisboa, 2010, pág. 93, disponível em https://repositorio.ulisboa.pt/bitstream/10451/ 4424/1/ ulsd61308_td_Maria_Rei.pdf. Ora, a objectivação do destinatário real no presente caso remete-nos para a pessoa das contratantes que são empresas que se dedicam ao transporte de passageiros e que se presume conhecedoras da especificidade desse ramo de actividade, particularmente quanto à distinção e especificidade dos veículos de Turismo/Longo Curso. A douta contestação já ilustrou documentalmente o reconhecimento público por várias empresas do sector relativamente ao transporte de passageiros, em que as mesmas destacam os seus meios próprios, nomeadamente anunciando que dispõem autocarros de turismo. Na conclusão # 10 do douto recurso, a apelante convoca acertadamente a factualidade assente sob o n.º 6: “Os veículos automóveis referidos nos pontos n.os 3 e 4 são da marca “Volvo”, modelo “8900”, têm ar condicionado, cadeiras reclináveis e ergonómicas, portas de única folha, “Wifi”, microfone para comunicação com os passageiros e luz individual de presença por cada passageiro/assento”. E conclui que era decisivo que os veículos apresentassem – como apresentavam – conforto para as viagens a que se destinavam. Pois bem, socorrendo-nos igualmente da informação publicamente disponibilizada pelo próprio fabricante Volvo em https://www.volvobuses.com/pt/city-and-intercity.html, nota-se que: 1.º O mesmo distingue os seus produtos em matéria de autocarros em dois grandes grupos, a saber: - Autocarros urbanos e intercidades; e, - Autocarros de turismo; 2.º O modelo 8900 é apresentado na página dos autocarros urbanos e intercidades, onde é destacada a eficiência na entrada e saída de passageiros e a rápida deslocação no tráfego intercitadino; 3.º A página dedicada aos Autocarros de turismo está notoriamente dirigida aos compradores (e não aos passageiros), mas destaca que “os seus passageiros irão apreciar o lendário conforto e segurança da Volvo”. Outros fabricantes fazem idênticas distinções nos seus produtos, embora recorrendo a uma linguagem técnica e comercial, tal como “autocarro interurbano e autocarro urbano, autocarro escolar ou shuttle de funcionários” (https://showroom.setra-bus.com/pt/pt/ models/mc-le-models.html). E “Viagens de longa distância ao mais alto nível - Os modelos HDH exclusivos da TopClass elevam as viagens de autocarro a um novo nível. O máximo conforto em trajetos longos, o luxo individual e a excelência técnica aliam-se para criar uma experiência de viagem que nunca poderia ser mais fantástica” (https://www.setra-bus.com/pt_PT/models/tc-hdh-models.html). Ou ainda Autocarros de turismo/ Autocarros intercidades/ Autocarros urbanos (https://www.man.eu/pt/pt/autocarro/todos-os-modelos/visao-geral-dos-modelos/visao-geral-de-modelo-autocarro.html). Como bem aponta a sentença recorrida, o artigo 29.º, do Regulamento do Código da Estrada, classifica os automóveis pesados de passageiros em três classes, incluindo a Categoria III - Compreenderá veículos concebidos e equipados para efectuar transportes de longo curso; estes veículos serão concebidos de modo a assegurar o conforto dos passageiros sentados e não poderão transportar passageiros em pé. Tal categoria é distinta das demais, nomeadamente porque não admite sequer o transporte de passageiros em pé. Leandro Ferreira, no portal Transportes XXI dedicado ao universo dos transportes, opina que “aos veículos de longo curso, é possível traçar um conjunto de características muito específicas, que os permitem distinguir dos demais. • As portas de entrada e saída, são mais estreitas, e regra geral de uma só folha, pois o fluxo de passageiros que entra e sai do veículo é menor que nas restantes categorias, contribuindo para isso a distância que separam duas paragens, ao longo de uma viagem. • Possuem WC. Nos autocarros recentes está colocado junto à escadaria da porta da rectaguarda, e possui os requisitos mínimos para ser considerado, casa de banho. No entanto, nem todos os serviços de longo curso dispõe deste equipamento; • O Ar Condicionado, é parte integrante do conforto proporcionado ao cliente, havendo alguns modelos que permitem ao motorista seleccionar para o seu habitáculo uma temperatura diferente, da disponibilizada no salão; • As cadeiras são reclináveis, e em alguns modelos há ainda um ergonómico apoio para os pés; • Pelo menos um monitor é possível encontrar em todos os modelos de longo curso. Os mais recentes são constituídos por finos monitores TFT, e são raros os veículos com menos de dois, estando um no topo do salão e outro junto à porta de saída (sensivelmente a meio do autocarro). Alguns operadores privilegiam esta característica, distribuindo-os uniformemente ao longo de todo o corredor, em maior quantidade; • Algumas empresas, apostando num maior conforto prestado ao cliente, dispõem de canais aúdio individuais, no apoio lateral das cadeiras, permitindo aos passageiros escolherem de um conjunto pré-seleccionado de canais aúdio, o da sua preferência e através de auriculares, usufruir deste serviço; • Alguns serviços Expresso, como é o caso do Expresso Qualidade da Eva Transportes, dispõe de hospedeira de bordo, disponível para indicar a localização dos lugares e auxiliar a acomodação da bagagem. • O serviço de "mini-bar", embora raro, faz parte do leque oferecido por alguns operadores. Regra geral, a venda é prestada pela hospedeira de bordo, evitando assim que os passageiros se desloquem pelo veículo, ao longo da viagem” – disponível em https://www.transportes-xxi.net/trodoviario/veiculos/longocurso. Quer dizer, é possível determinar as características que o público em geral, as empresas fabricantes de autocarros e as empresas de transporte associam aos autocarros de turismo/longo curso, nomeadamente em termos da qualidade real e percepcionada do serviço, porque estes tipos de veículos são concebidos em termos da disponibilização do máximo conforto e espaço. Ao contrário do autocarro urbano, num autocarro de turismo não haverá quaisquer concessões para maximizar o espaço para transportar de pé o maior número de passageiros possíveis ou de ajustar as suspensões o veículo aos rigores do esforço nas deslocações urbanas com um elevado número de passageiros de pé. Basta atentar nos certificados de matrícula juntos com a petição inicial como documento n.º 4 para perceber que os passageiros de vários veículos disponibilizados pela apelante têm que dividir o espaço disponível com a lotação destinada aos passageiros de pé. Tal não sucede nos veículos de longo curso da Categoria III do mencionado Regulamento. As fotografias que a apelada juntou com a douta contestação também facilmente permitem ao público percepcionar a diferença no nível de serviço entre os vários veículos. Tal não significa que os veículos utilizados pela apelante sejam desconfortáveis ou que não disponham de nenhuma das características apontadas aos autocarros de turismo/longo curso. Significa apenas que não evidenciam as características que os fabricantes, evidentemente por meio de uma linguagem comercial algo superlativa, apelidam de “lendário conforto e segurança” que proporcionam “Viagens de longa distância ao mais alto nível… O máximo conforto em trajetos longos, o luxo individual e a excelência técnica”. Em face do que foi acordado entre as partes, a apelante, na posição do declaratário real, medianamente instruído, sagaz, diligente e conhecedor das especificidades da actividade de transporte rodoviário, devia perceber que os veículos da marca Volvo, modelo 8900 (cfr. facto # 6), não correspondem aos autocarros de turismo/longo curso cujo serviço foi contratado, porque – para além do mais que foi salientado – o próprio fabricante os apresenta como autocarros urbanos e intercidades, onde é destacada a eficiência na entrada e saída de passageiros e a rápida deslocação no tráfego intercitadino. A definição de autocarro de turismo/longo curso que a apelante propugna na conclusão 14.ª das doutas alegações não corresponde integralmente ao sentido normal de um declaratário real. Está em evidente dissonância com o sentido evidenciado pelo fabricante, pelo sector dos transportes e até pelo público comum que esperava ser transportado por um autocarros de turismo/longo curso e acabou se deslocar em autocarros urbanos e intercidades, onde é destacada a eficiência na entrada e saída de passageiros e a rápida deslocação no tráfego intercitadino. Tais características podem ser importantes para quem se desloca todos os dias num trajecto urbano de vinte minutos para a escola ou para o trabalho, mas não são as mais relevantes para quem tem que viajar durante duas horas ou mais entre as cidades de Coimbra e da Guarda. Os passageiros foram sentados e com ar condicionado, mas não num veículo com todas as características convencionadas, pelo que se conclui que a apelante não realizou integralmente a prestação a que se obrigou. A interpretação proposta pela apelada evita qualquer correspondência com o texto do documento e pode conduzir a um desequilíbrio das prestações, considerando que o preço da prestação deverá corresponder à qualidade do serviço e que o contrato também menciona a existência de um procedimento pré-contratual em que a apelante apresentou a melhor proposta. Não se justifica assim uma especial e injustificada protecção à autora, nomeadamente em face da desconsideração das exigências a que se terão submetido todos os outros concorrentes. O que confere à apelada o direito às correspondentes sanções convencionadas, com a consequente confirmação da douta decisão recorrida. * 3. Decisão: 3.1. Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e em confirmar a sentença. 3.2. As custas são a suportar pela apelante. 3.3. Notifique. Lisboa, 11 de Setembro de 2025 Nuno Gonçalves Adeodato Brotas Gabriela de Fátima Marques |