Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2170/25.6YRLSB-6
Relator: MARIA TERESA MASCARENHAS GARCIA
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
BRASIL
ESCRITURA PÚBLICA
PERFILHAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO/CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA - CONFERÊNCIA
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário (elaborado pela Relatora):
A Escritura Pública, levada a cabo no Brasil, na qual um pai reconhece um filho havido fora do casamento, nos termos permitidos pelo art. 1609.º do Código do Civil Brasileiro, não é susceptível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, no âmbito do processo especial previsto nos arts. 978.º e seguintes do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
AA e BB intentaram a presente acção de revisão de sentença estrangeira, ao abrigo do disposto no artigo 978º e seguintes do Código de Processo Civil pedindo a revisão e confirmação da confirmação da escritura pública de reconhecimento de paternidade realizada no 34.º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, em que o primeiro requerente reconheceu a paternidade biológica da 2.ª Requerente.
Foi facultado o exame ao Ministério Público (artigo 982.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), vindo o Exmo. Procurador Geral Adjunto apresentar as suas Alegações, concluindo que não se encontram reunidos os requisitos legais para ser concedida revisão e confirmação da sentença estrangeira em causa porquanto “…não se está perante um ato notarial ou registal equiparado a sentença, mas antes perante uma mera declaração de perfilhação prestada perante funcionário do registo civil, com o assentimento da filha dado por igual forma.”
A 19-09-2025 foi proferida decisão sumária que decidiu conceder a revisão, para o efeito de confirmação, da escritura publica de reconhecimento de paternidade de 08-03-2004 em que AA reconheceu a paternidade biológica de BB.
Devidamente notificado da decisão singular, veio o M.P. dela reclamar para a conferência nos termos do disposto no art. 652.º, n.º 3, do CPC, solicitando que sobre a matéria em causa recaia um acórdão.
Foi ouvida a parte contrária, nos termos do art. 652.º, n.º 3, in fine.
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II. Objecto e a delimitação da reclamação
Cumpre proceder, em colectivo, à apreciação do pedido de revisão e confirmação de escritura publica de reconhecimento de paternidade, no âmbito de um processo com os contornos que pelos arts. 978.º do CPC são traçados aos processos de Revisão de Sentenças Estrangeiras.
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III. Os factos
Encontra-se provada, com relevo para a decisão, a seguinte factualidade:
1. A autora BB é nacional brasileira.
2. Sua mãe, a Sra. CC teve uma relação amorosa com o autor AA e, das relações sexuais que mantiveram entre si, ocorreu o nascimento da autora BB em 10/11/1981.
3. O autor AA não reconheceu a paternidade da autora BB, pois desconhecia o seu nascimento.
4. Quando soube da existência da autora BB de imediato foram ao Cartório e fizeram uma escritura de reconhecimento de paternidade.
5. Conforme consta da escritura pública de reconhecimento de paternidade que se quer revisar, o pai biológico autor AA compareceu juntamente com a autora BB e a sua mãe ao 34.º Ofício de Notas no Rio de Janeiro para efetivar o reconhecimento de paternidade no dia 08/03/2004 (doc. 1).
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IV. Enquadramento Jurídico
Ao abrigo do disposto no art. 652.º, n.º 1, al. c) foi proferida decisão sumária nos presentes autos.
Fazendo uso da faculdade conferida pelo pelo n.º 3 do art. 652.º do CPC, veio o Ministério Público requerer que sobre a questão apreciada recaísse acórdão.
Para que uma decisão de um tribunal estrangeiro, sobre direitos privados, possa ter eficácia em Portugal, tem de ser revista e confirmada nos termos do processo especial regulado pelos artigos 978.º a 983.º do Código do Processo Civil (com as naturais, específicas e excepcionais situações reguladas em Regulamentos da União Europeia, Leis especiais, Tratados e Convenções de que Portugal faça parte).
“A decisão é considerada ‘estrangeira’ quando for proferida por tribunal ou (…) por autoridade no exercício de competências atribuídas por uma ordem jurídica estrangeira”.
É certo que no caso dos presentes autos não estamos perante uma sentença estrangeira.
E essa é a primeira questão que há de apreciar.
No acórdão do STJ de 25-06-2013 (processo 623/12.YRLSB.S1), de que foi Relator o Conselheiro Granja da Fonseca, afirma-se – de forma ampla – que certos actos administrativos têm igual força à das sentenças proferidas sobre a mesma matéria, desde que seja emitida pela entidade legalmente competente para o efeito no pais de origem.
A questão foi primeiramente tratada relativamente ao divórcio. E o facto é que relativamente a situações de divórcio, há muito se sedimentou o entendimento jurisprudencial de que a decisão de uma autoridade administrativa estrangeira sobre direitos privados deve ser considerada como abrangida pela previsão do (então) art. 1094.º do CPC.
Conforme se referiu igualmente no Ac. do STJ de 22-05-2013 o que interessa – para que se considere uma escritura publica como uma decisão da autoridade administrativa, é o conteúdo do acto e o modo como regula os interesses privados.
Conclui assim esse acórdão que (i) se não ofende a ordem pública portuguesa, quanto à maneira como regulou esses interesses privados, e (ii) provém de uma autoridade administrativa, estão então preenchidos os requisitos para a confirmação do seu conteúdo.
Dito de outra forma, consideram estes dois acórdãos do STJ irrelevante o modo como se chegou à produção desse acto: se através duma emissão formal da vontade da entidade administrativa, ainda que de carácter meramente homologatório, ou se apenas através das declarações dos outorgantes.
Basta que se trate de um acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido. De outra forma estar-se-ia a denegar competência à entidade que o produziu, quando é certo que a competência para o acto é definida pela lei nacional dessa entidade.
Esse mesmo entendimento foi seguido pelo Ac. do STJ de 12-10-2023 (processo 2810/22.9YRLSB.S1) onde se afirma que “entendendo-se que circunstância de a autoridade administrativa não emitir uma vontade de produção de efeitos jurídicos de regulação do interesse privado em questão não retira ao ato em causa a natureza de decisão, para os efeitos da pretendida revisão. O que releva é que essa intervenção constitua requisito e fonte da produção dos desejados efeitos jurídicos no ordenamento jurídico estrangeiro, o que se pretende que ocorra também no ordenamento jurídico português. Dito de outro modo: basta, para a aplicação da presente ação especial, que se esteja perante intervenção de oficial público que produza efeitos jurídicos relevantes segundo o ordenamento jurídico do Estado de origem, como se fora um tribunal. Nesse sentido a intervenção do oficial público terá uma repercussão performativa na ordem jurídica onde está prevista e onde foi praticada, significando essa intervenção mais do que o mero reforço da força probatória de uma determinada situação. O plus dessa intervenção não poderá residir na mera força probatória acrescida atribuída às declarações presenciadas pelo oficial público.”
Assim, somos do entendimento que um documento administrativo caucionado poderá, à partida, equivaler, para efeitos de revisão e confirmação, a uma sentença.
Mas se, à partida, assim será, entendemos ser de escalpelizar esta afirmação averiguando os contornos e efeitos concretos da questão.
O artigo 980.º do Código de Processo Civil define minuciosamente quais os requisitos da revisão:
1 – que não haja dúvidas sobre a autenticidade e sobre a inteligibilidade do documento de que conste a sentença (alínea a));
2 – que tenha ocorrido o trânsito em julgado da sentença (alínea b));
3 – que a sentença/decisão/acto provenha do tribunal estrangeiro ou autoridade administrativa cuja competência não tenha sido provocada com fraude à lei e que não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses (alínea c));
4 - que não possam invocar-se as excepções de litispendência ou caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição (alínea d));
5 – que a citação do réu tenha tido lugar nos termos da lei do país de origem e tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes (alínea e));
6 – que a sentença/decisão não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português (alínea f)).
Atento o disposto no art. 983.º, n.º 1, o pedido de confirmação só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no art. 980.º ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g) do art. 696.º.
Relativamente às condições indicadas nas alíneas a) e f) do citado art. 980.º, o art. 984.º impõe que o tribunal verifique oficiosamente se as mesmas ocorrem e que também recuse a confirmação se dos autos concluir que não estão preenchidos os requisitos das demais alíneas daquele artigo.
Estamos, assim, perante uma actividade de controlo da regularidade formal ou extrínseca da sentença estrangeira, que dispensa a apreciação dos seus fundamentos de facto e de direito.
Entendeu a relatora deste Acórdão, na decisão sumária que proferiu, que no caso não se verificava nenhuma dessas situações e, em conformidade, concedeu revisão, confirmando, o acto administrativo de perfilhação.
Da análise da documentação junta aos autos, que serviu de suporte à factualidade considerada provada, não resultam dúvidas acerca da autenticidade e inteligibilidade do aludido “termo de reconhecimento de filho”, figura essa que, no sistema jurídico português, corresponde à declaração prestada perante o funcionário do registo civil de reconhecimento da paternidade por perfilhação – cf. artigos 1847.º a 1857.º do CC.
Igualmente, o direito brasileiro permite, relativamente a filhos nascidos fora do casamento, o reconhecimento voluntário da paternidade.
Nessa conformidade, o art.1609.º do Código Civil brasileiro estabelece que o “reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento” pode ser feito:
“I – no registro do nascimento;
II – por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório;
III – por testamento, ainda que incidentalmente manifestado;
IV – por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém.”
Acrescenta ainda o art. 1.614, 1.ª parte, desse mesmo Código que o filho maior não pode ser reconhecido sem o seu consentimento.
A Relatora deste acórdão entendeu não conduzir o reconhecimento deste acto administrativo a um resultado manifestamente incompatível com princípio da ordem pública internacional do Estado Português, na medida em que, o direito Português, à semelhança do Brasileiro, permite que o reconhecimento de paternidade, de filhos nascidos fora do casamento, seja feito voluntariamente ou por reconhecimento judicial, correspondendo o primeiro à perfilhação, acto através do qual um homem declara que determinada pessoa é sua filha.
A questão que se coloca é a de saber se se justifica reponderar esse primeiro entendimento da Relatora.
Vejamos:
A reclamação apresentada pelo MP convoca para a decisão do presente caso o AUJ do STJ que, não incidindo sobre igual situação, não deixa de se pronunciar sobre uma outra que aquele entende ser similar.
O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 10/2022, de 19-10-2022 (publicado no DR n.º 227/2022, Série I, de 2022-11-24), firmou jurisprudência no sentido que a escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados, não sendo, por isso, susceptível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil.
Nesse mesmo sentido, numa caso, esse sim similar, se pronunciou o acórdão da Relação de Lisboa de 17-11-2022, no proc. n.º 14/22.0YRLSB-8, disponível em www.dgsi.pt, sumariado da seguinte forma:
“1 - A declaração do requerente J… numa escritura pública perante uma autoridade administrativa estrangeira não está abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1 do CPC, pelo que não pode ser revista e confirmada.
2 - Rever escritura de reconhecimento da paternidade conduz a um resultado manifestamente incompatível com princípio da ordem pública internacional do Estado Português - o princípio da verdade biológica -, pois o reconhecimento da paternidade por escritura pública é um reconhecimento voluntário e confirmar a escritura implicaria convertê-lo em reconhecimento judicial e, consequentemente, coartar a possibilidade de impugnação do reconhecimento quando o mesmo não corresponde à verdade biológica.”
Da mesma forma o decidiu o
Ac. da Relação de Lisboa de 04-07-2024, de cujo sumário consta “O termo de reconhecimento de filho lavrado no Registro Civil das Pessoas Naturais da República Federativa do Brasil não é suscetível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, no âmbito do processo especial previsto nos arts. 978.º e seguintes do CPC.”
Mais recentemente assim decidiu, igualmente, um Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20-02-2025, em que foi adjunto o também aqui 1.º adjunto.
Igual entendimento foi plasmado no Ac. do STJ de 02-02-2023, proferido no proc. n.º 2014/22.0YRLSB.S1, também disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se afirmou que “A declaração do requerente numa escritura pública perante uma autoridade administrativa estrangeira não está abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1 do CPC, pelo que não pode ser revista e confirmada.”
A fundamentação desenvolvida nesse acórdão é clara, explicando a diferença entre os diferentes tipos de actos notariais, mormente a escritura pública pela qual se realiza a separação ou divórcio consensual (acto equiparado à sentença proferida na competente acção de separação ou divórcio) e a escritura pública/acto notarial declaratória da união estável ou de reconhecimento de paternidade, afirmando-se que: “No caso dos autos a situação apresenta paralelismo com a escritura de constituição da união estável, como resulta da leitura do doc. apresentado pelos recorrentes e acima reproduzido.
A intervenção notarial não envolve uma decisão no sentido de afirmar que estão preenchidos os pressupostos legais que a lei prevê para a constituição da situação, havendo exclusivamente uma confirmação de que declaração foi prestada pelo declarante. Não há qualquer intervenção do suposto filho, reconhecido, nem forma de o mesmo contestar a declaração prestada se a mesma viesse a ser reconhecida e confirmada, como explicita o tribunal recorrido.

Há assim paralelismo com a escritura de constituição da união estável, em relação à qual o STJ proferiu Ac. de UJ no sentido de não poder haver reconhecimento e confirmação ao abrigo do art.º 978.º e ss do CPC.”
Sopesados os argumentos elencados nestes acórdãos somos sensíveis ao argumento de que conceder revisão, confirmando este acto administrativo, equivaleria a um reconhecimento judicial que, por si só, obstaria à possibilidade de impugnação desse reconhecimento quando o mesmo não correspondesse à verdade biológica. E é exactamente neste ponto que se entende, melhor equacionadas todas as consequências da revisão, que a mesma a proceder conduziria a um resultado contrário aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português, muito concretamente ao princípio da verdade biológica.
Se é certo que o AUJ não recaiu sobre esta concreta questão, a similitude não deixa de ser inegável.
Por essa mesma razão entendemos, analogamente, ter inteira aplicação o entendimento plasmado num acórdão da autoria da Relatora (Proc. nº. 6786/23.7T8LRS-A.L1), votado nesta mesma sessão, em cujo sumário se fez constar:
“(…)
V. Embora seja certo que os Acórdãos uniformizadores de jurisprudência não têm força obrigatória geral – que no passado era atribuída aos assentos pelo art. 2.º do CC, já revogado – não deixa de ser certo que os mesmos comportam em si um valor reforçado que deriva não apenas do facto do emanarem do pleno das Secções Cíveis do STJ como ainda da circunstância de o seu não acatamento pelos Tribunais de 1.ª instância e Relação serem causa de admissibilidade especial de recurso (art. 629.º, n.º 2, al. c), do CPC).
VI. Assim, para decidir em sentido contrário a um acórdão uniformizador necessário será trazer uma argumentação nova e ponderosa, quer pela via da evolução doutrinal posterior, quer pela via da actualização interpretativa.”
Em face do exposto, mostra-se legalmente inadmissível conceder a revisão e confirmar o acto em análise pela qual foi a Requerente foi reconhecida pelo Requerente como sua filha biológica.
Por ficarem vencidos, são os Requerentes responsáveis pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º a 529.º do CPC).
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V. Decisão
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em julgar improcedente a presente acção e, em consequência, negar revisão e confirmação da escritura publica de reconhecimento de paternidade de 08-03-2004 em que AA reconheceu a paternidade biológica de BB.
Custas pelos Requerentes, confirmando-se o valor da causa fixado na decisão singular de 19-09-2025.
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Lisboa, 23 de Outubro de 2025
Maria Teresa Mascarenhas Garcia
Adeodato Brotas
Gabriela de Fátima Marques