Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | PIMENTEL MARCOS | ||
Descritores: | INVENTÁRIO BENFEITORIA HERANÇA RECONHECIMENTO DA DÍVIDA OBRIGAÇÃO NATURAL | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/24/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | AGRAVO | ||
Decisão: | PROVIMENTO PARCIAL | ||
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Sumário: | 1) As benfeitorias realizadas por terceiros, ou mesmo por um herdeiro, em bens da herança, em data posterior ao falecimento do “de cuius”, constituem matéria alheia ao inventário e, por isso, não devem ser relacionadas como passivo da herança. 2) Apenas relevam para efeitos de inventário as benfeitorias realizadas em vida do autor da herança, pelo que só estas devem ser relacionadas. 3) Um documento escrito e assinado pelo declarante, que contenha o reconhecimento duma determinada dívida, sem indicação da respectiva causa, constitui o reconhecimento dessa dívida nos termos e para os efeitos do artigo 458º do CC. 4) Compete ao autor da declaração, ou aos seus herdeiros, o ónus de provar que a presumida relação fundamental nunca existiu, não é válida ou cessou . 5) Na averiguação sobre a existência duma obrigação natural compete à jurisprudência averiguar em cada caso (excepto naqueles que são expressamente previstos na lei), de harmonia com as concepções sociais predominantes e as circunstâncias concretas, primeiro, se existe um dever moral ou social, e, seguidamente, se esse dever é de tal importância que o seu cumprimento envolva um dever de justiça. 6) Por isso, exige-se que o dever de prestar não respeite somente à consciência moral do agente; deve respeitar também à sua consciência jurídica. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa. Procedeu-se a inventário por óbito de Lo..., falecido em 06.01.90, MT, falecida em 15.06.91, e LT, falecida em 20.12.01, no qual exerceu as funções de cabeça de casal Maria. A interessada ML reclamou, na parte que agora interessa, o seguinte: 1. que deviam ser relacionadas como verbas do passivo as benfeitorias realizadas por ela própria, na qualidade de herdeira, no prédio urbano relacionado sob o nº 19, no montante de 4.494.388$00. 2. que devia ser relacionado um direito de crédito que diz ter sobre a herança de LT, no valor de 1.900.000$00, relativo ao apoio económico que teria prestado à falecida desde que esta ficou doente e até ao seu falecimento. Com interesse para a apreciação e decisão destas questões foi dado como provado em 1ª instância: 1 - Por volta do ano de 1994, a interessada ML passou a ocupar o prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia da...., concelho da L... sob o artigo 848°, integrante do prédio descrito sob a verba 19 da relação de bens. 2 - Na altura, o prédio tinha o valor aproximado de 3.500 euros. 3 – Entre 1994 e 1999, a interessada ML procedeu a diversas obras no aludido prédio, que consistiram.: ** Por despacho de 02.02.2004 foram indeferidas as pretensões da reclamante (não relacionação como passivo das benfeitorias realizadas no prédio relacionado sob o nº 19 e não relacionação da alegada dívida de 1.900. contos).Dele recorreu a interessada ML, formulando as seguintes conclusões: 1°- A interessada ML, ora recorrente, procedeu à realização de diversas obras no prédio urbano relacionado na verba 19 da relação de bens. 2°- Obras essas que pela sua natureza constituem benfeitorias realizadas no dito prédio, pois acrescentam valor àquele e não podem ser levantadas sem deterioração do mesmo. 3°- Consistem as indicadas obras no seguinte: Aplicação de 5 janelas em madeira rija; Duas portas em madeira rija; Construção de urna casa de banho com 5 m2, toda forrada a azulejo e instalação da respectiva, electricidade e canalização, louças e acessórios; Reposição de nova canalização e esgotos na cozinha; Colocação dos móveis da cozinha, lava loiça e placa a gás. Construção de uma placa no telhado e restauro de telhados já existentes; Picar e rebocar as paredes exteriores; Restauro do fumeiro; Pintura exterior da casa; Reparação da instalação eléctrica existente; 4°- Tais obras valorizaram o prédio em 29.000,00€; 5°- Estamos, assim, inequivocamente perante o Instituto das benfeitorias. 6°- Estipula o artigo 216°., n° 1 do C.C. quanto a. esta matéria o seguinte: "Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar e melhorar a coisa." 7°- As benfeitorias em apreço foram realizadas depois de 1994, isto é em data posterior ao óbitos dos inventariados. 8°- O artigo 2068° do C.C. dispõe:" A herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentária, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dividas do falecido e pelo cumprimento dos legados.". 9°- Neste preceito leal estão contemplados, entre outros, os encargos com a administração do património, nele se integrando os encargos ordinários destinados à conservação do património a partilhar – vide Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-07-2002 disponível em www.dgsi.pt. 10°- Tal como dispõe o n°. 5 do art. 1345° do CPC, "as benfeitorias feitas por terceiros em prédio da herança são descritas como dívida, quando não possam ser levantadas por quem as realizou.". 11°- Terceiros, são neste caso, todos os interessados da herança – Vide Ac. da Relação do Porto de 26-05-92 e 10-03-03 in www.dgsi.pt. 12°- Não obstante tudo o que ficou explanado, o despacho de que se recorre refere: "só podem ser atendidas no inventário as benfeitorias feitas em vida do inventariado." 13°- Não pode a recorrente concordar com tal decisão. 14°- Com efeito, o disposto no citado n°. 5 do art. 1345° do CPC vigora quer para as despesas feitas em vida do inventariado, quer para as despesas realizadas após o seu óbito – nesse sentido vide Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 26 de Maio de 91 in www.dgsi.pt.. 15°- A agravante não pode, pois, partilhar do sentido e alcance dado pelo Tribunal a quo, quanto à interpretação e aplicação daqueles normativos legais – art.s. 2024°, 2025°, e 2031° do C.C. e 1345° do C.P.C.. 16°- Por outro lado, o Tribunal a quo entendeu que o teor do documento junto a fls. 234 dos autos consubstancia "... uma verdadeira proposta de doação, a qual sempre teria caducado com a morte da doadora, já que não foi aceite em vida da mesma.", tendo fundamentado a sua decisão com o disposto no n° 1 do artº 945° do C.C.. 17°- Mais uma vez não pode a agravante concordar com tal decisão. 18°- A inventariada LT declara no documento o seguinte: "(...) peço para que seja feito um documento da dívida que tenho para com a minha irmã ML. O montante da dívida é no total de mil e novecentos contos." 19°- Não restam dúvidas que a declaração da inventariada LT consubstancia, verdadeiramente, uma declaração de reconhecimento de dívida, pelo que o regime aplicável será o constante do artº. 458° do C.C. e não o do 945° n°. 1 do C.C., aplicável às doações. 20°- A propósito do reconhecimento de dívidas, escreve Inocêncio Gaivão Teles: "(...) Estamos na presença de simples declarações unilaterais que não criam obrigações mas apenas fazem presumir a existência de obrigações derivadas de outros actos ou factos, que esses, sim, são a sua fonte (...) pode mesmo o declarante não especificar a causa ou título justificativo da dívida que promete cumprir ou reconhece existir (...) Presume-se no entanto que a dívida realmente existe (...)" in Direito das Obrigações, 6ª. Edição pág. 166 e 167. 21º- No mesmo sentido veja-se Ac. STJ de 22-11-2001, 6-07-200, 9-12-99 e 18-01-00, disponíveis no www.dgsi.pt. 22°- Os herdeiros da inventariada LT não lograram provar que a relação fundamental não existe. 23°- Assim sendo, não se pode deixar de presumir a existência da referida declaração de dívida. 24°- O despacho de que se recorre deve, assim, ser substituído por outra, que: - admita a inclusão na relação de bens por óbito dos Inventariados Lo... e MT, o valor das benfeitorias reclamadas, do montante de 29.000,00€, realizadas pela agravante no prédio da verba n° 19 da mesma, passando estas a constar como dívida da herança; - admita a inclusão na relação de bens por óbito da inventariada LT, como passivo da herança, o direito de crédito a favor da agravante, do montante de 1.900.000$00, a que corresponde actualmente a quantia de 9.477,16 €, titulada pelo documento de fls. 234 dos autos. 25°-O despacho recorrido violou o disposto nos artºs. 1326° n° 1, e 1345° do CPC e 485°, 2024°, 2025°, 2031°, 2068° e 2069° todos dos C.C. A agravada pede a confirmação do despacho recorrido. Colhidos os vistos legais cumpre decidir ** São duas as questões a decidir:a) Falta de relacionação das benfeitorias; b) Falta de relacionação da alegada dívida da falecida Leonilde para com a ora agravante. I A primeira questão que se coloca é saber se as benfeitorias feitas por um dos herdeiros num prédio da herança, em data posterior ao falecimento do de cuius, devem ser relacionadas como passivo da herança (e, no caso sub judice, as obras realizadas pela agravante constituem benfeitorias realizadas no dito prédio, pois lhe acrescentam valor e não podem ser levantadas sem deterioração do mesmo).A agravante, invocando o preceituado no artigo 2068º do CC, (e o ac. TRL de 11.07.2002 – www.dgsi.pt) responde afirmativamente. A agravada diz que não devem ser relacionadas as benfeitorias feitas por terceiros ou herdeiros após a morte do inventariado. Estabelece o artigo 2068º que a herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentária, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas, e pelo cumprimento dos legados. Este artigo trata especificamente da enumeração das dívidas que são da responsabilidade da herança (que recaem sobre os bens deixados pelo falecido). No passivo da herança compreendem-se as dívidas do de cuius existentes à data da sua morte e certas despesas posteriores relacionadas com o falecimento ou com a administração e liquidação do seu património. Por exemplo, as despesas do funeral e o sufrágio do seu autor surgem após a morte, mas estão intimamente relacionados com os fins do próprio defunto. Os encargos com a testamentária, a administração e a liquidação do património hereditário também surgem após a morte. Mas constituem encargos da própria herança e, por isso, por ela devem responder. Escrevem Pires de Lima e A Varela em anotação ao artigo 2068º, depois de considerarem que esta disposição legal trata especificamente da enumeração das dívidas da herança e que nele se consagra uma dualidade de situações: “ao lado do pagamento das dívidas do falecido, em que há uma verdadeira sucessão nas relações creditórias de que o de cuius era titular passivo, surge o cumprimento dos legados (....) e ainda as despesas, também de duas espécies e de igual modo nascidas ou constituídas depois de expirada a vida do finado: primeiro, as despesas com o funeral e sufrágios do autor da herança; depois, as despesas com a testamentária e com a administração e liquidação do património hereditário....” Mas não parece que aí se incluam as benfeitorias feitas em bens da herança após o falecimento do inventariado. E desde logo haveria que distinguir entre benfeitorias úteis, necessárias e voluptuárias, mesmo que feitas em vida do autor da herança. E estas últimas não deveriam ser relacionadas. Sendo certo que in casu tal questão não foi suscitada. Mas nada justifica que se relacionem as benfeitorias feitas após o óbito, quer pelos herdeiros quer por outras pessoas alheias à herança. Como vimos, a herança responde, além do mais, pelo pagamento das dívidas do falecido, ou seja, as contraídas em vida pelo autor da herança, o que é natural. Ora as benfeitorias realizadas após a morte não podem ser consideradas dívidas do falecido. Pelos encargos posteriores ao falecimento, a herança apenas responde pelas despesas referidas no citado artigo 2068º, o que bem se compreende. Existe sem dúvida uma grande diferença entre as dívidas contraídas antes e depois do falecimento. As primeiras são dívidas da herança, pois se trata de relações jurídicas patrimoniais da titularidade do falecido e existentes à data da morte; o mesmo não sucede, naturalmente, com as outras. Como estabelece o artigo 1326º do CPC, o processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária ou a relacionar os bens que constituem objecto de sucessão e que devam ser partilhados entre os herdeiros. Mas aqui apenas interessa considerar o “inventário partilha” (não há que considerar os casos do “inventário arrolamento” a que se refere a 2ª parte do nº 1 do artº 1326º) E no caso sub judice, ficou provado que: entre as filhas dos inventariados existia um pré-acordo de partilhas segundo o qual a casa referida seria adjudicada à cabeça de casal. a ocupação da aludida casa pela interessada Maria da Luz Almeida foi feita sem o conhecimento e contra a vontade da cabeça de casal. as obras referidas foram feitas pela interessada Maria da Luz Almeida contra a vontade da cabeça de casal. em Maio de 1995, a cabeça de casal informou a interessada Maria da Luz Almeida de que deveria parar com as obras em curso no mencionado prédio. Diz a agravante que no artigo 2068º estão contemplados, entre outros, os encargos com a administração do património, nele se integrando os encargos ordinários destinados à conservação do património a partilhar. E na verdade, face ao aí referido, apenas a este título poderiam ser admitidas as benfeitorias, pois se entenderia que estavam englobadas na administração do património hereditário Mas, a ser necessária a realização de obras, deviam as mesmas ser feitas pela cabeça de casal, entrando então como verbas de despesas que eventualmente viesse a apresentar, por exemplo na acção de prestação de contas. Com efeito estabelece o artigo 2079º que a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal. Ora, as alegadas benfeitorias não constituem necessariamente actos de administração, nem a agravante estava autorizada a fazê-las. E é ao cabeça de casal que compete a administração dos bens do falecido ate á liquidação e partilha (artº 2087º). E então há que distinguir os poderes da mera administração dos poderes de disposição. A agravante invoca ainda o preceituado no nº 5 do artº 1345º do CPC, segundo o qual as benfeitorias pertencentes à herança são descritas em espécie, quando possam separa-se do prédio em que foram realizadas, ou como simples créditos, no caso contrário; as efectuadas por terceiros em prédio da herança são descritas como dívidas, quando não possam ser levantadas por quem as realizou. Mas, como se disse, apenas devem ser relacionadas e depois descritas as benfeitorias feitas em vida do inventariado. Para os efeitos de inventário apenas há a tomar em consideração, além das referidas, que têm carácter excepcional, (artº 2068º) as obrigações do falecido existentes à data da sua morte. E este artigo do CPC não indica (nem tinha que indicar) quais as benfeitorias a relacionar. Nele apenas de refere o modo como devem ser descritas as benfeitorias relacionadas. Com efeito, as benfeitorias realizadas por terceiros, ou mesmo por um herdeiro, em bens da herança, após o óbito do inventariado, constituem matéria alheia ao inventário e, por isso, não devem ser relacionadas como passivo da herança. Esses eventuais créditos poderão ser exigidos pelos meios comuns. Mas não são dívidas da herança, pelo que não devem como tal ser relacionadas. Consequentemente apenas relevam para efeitos de inventário as benfeitorias realizadas em vida do autor da herança, pelo que só estas devem ser relacionadas. Nesta conformidade improcede o agravo nesta parte. II Quanto à falta de relacionação da alegada dívida da falecida LT para com a ora agravante, no montante de 1900 contos (agora 9.477,16 euros).Como vimos, Em 03/01/2001, a inventariada LT escreveu, assinou e entregou à interessada ML um escrito manual, que intitulou de “declaração” (fls. 77 deste apenso) no qual, além do mais, pede que: «seja feito um documento da dívida que tenho para com a minha irmã ML. O montante da dívida é no total de mil e novecentos contos». A este propósito foi referido no despacho recorrido: “Não se provou a existência da dívida no montante de 9.477,16 euros que a inventariada LT teria para com a reclamante ML. A declaração por esta emitida não atesta a constituição de tal obrigação, sendo certo que, como se apurou, tratar-se-ia de uma verdadeira proposta de doação, a qual sempre teria caducado com a morte da doadora, já que não foi aceite em vida da mesma” (artº 945, nº 1 do CC). A agravante defende que tal documento é manifestamente uma declaração de vontade da falecida, da qual consta o reconhecimento de uma dívida para com ela própria. Tratar-se-á de um documento de reconhecimento de dívida sendo-lhe aplicável o regime jurídico constante do artigo 458º do CC. Diz também que resulta deste artigo a presunção de que a dívida realmente existe e que há uma relação fundamental em que se integra, mas que compete ao autor da declaração e, no caso sub judice aos herdeiros da inventariada Leonilde, o ónus da prova de que a presumida relação fundamental não existe. Não competiria à recorrente provar a causa da dívida, uma vez que gozaria da presunção decorrente da declaração feita pela falecida. Vejamos. A agravante pretende que seja relacionado um alegado direito de crédito seu sobre a falecida irmã, no montante de 1900 contos (agora 9.477,16 euros). Mas não ficou provado designadamente: que a agravante tivesse emprestado à falecida aquela quantia; que tivesse sido a agravante a prestar todo o apoio económico à falecida desde o início da doença. Portanto, não se provou a existência da alegada dívida. Porém, o artigo 458º, nº 1 do CC determina que se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário. Escrevem Pires de Lima e Antunes Varela em anotação a este artigo (CC Anotado): “não se consagra neste artigo o princípio do negócio abstracto. O que se estabelece é apenas a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental”. Assim, se alguém declara dever a outrem uma determinada quantia em dinheiro, sem invocação da respectiva causa (por exemplo, um empréstimo), presume-se que esta obrigação tem uma causa, podendo o devedor fazer a prova do contrário. Portanto, feita aquela declaração de dívida, presume-se (iuris tantum) que essa dívida tem uma causa, podendo, contudo, o devedor fazer a prova em sentido contrário. É que, em tais casos, a relação fundamental presume-se e, consequentemente, nos termos daquele artigo, o credor está dispensado de fazer a sua prova. Como estabelece o artigo 349º do CC, presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. “Diz-se prova por presunção a que, partindo de determinado facto, chega por mera dedução lógica à demonstração da realidade de um ou outro facto” (1). As presunções são legais e judiciais. Quem tiver a seu favor uma presunção legal (aquela que resulta directamente da lei) escusa de provar o acto que a ela conduz (artº 350º). É que, nestes casos, a lei, partindo da verificação de determinado facto conhecido, dá como provado um outro facto (este desconhecido). Assim, o interessado apenas terá que fazer prova do facto que serve de base à presunção, pois da prova deste infere a lei o facto presumido. E dentro das presunções legais distinguem-se as presunções iuris et de iure e as presunções iuris tantum. As primeiras não admitem prova em contrário. As últimas podem ser ilididas. Portanto, este artigo apenas dispensa o credor de provar a existência da relação fundamental, invertendo-se, assim, o ónus da prova. Mas, obviamente, compete-lhe provar a existência da referida declaração unilateral. Entretanto, como referem Pires de Lima e A. Varela na citada obra, o nº 1 do artigo 458º não consagra um desvio ao princípio do contrato. Nenhum dos actos nele referidos, v.g. o reconhecimento da dívida, constitui fonte autónoma duma obrigação. Esses actos “criam apenas a presunção da existência de uma relação negocial ou extranegocial (a relação fundamental a que este preceito se refere), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação”. Por isso, se o autor da declaração (ou os seus sucessores) alegar e provar que a invocada relação fundamental não existe, a obrigação não subsiste (pois foi ilidida a presunção). É que, quer a promessa da prestação, quer o reconhecimento da dívida, são causais (têm uma causa), razão pela qual pode o declarante provar que essa relação fundamental não existe ou é nula. E nos termos do citado artigo 458º presume-se não só a existência da dívida, mas também que esta tem uma causa justificativa (o alegado credor não precisa de provar a “causa debendi”, a relação causal; ao autor da declaração é que compete provar que não é devedor porque a invocada dívida não tem qualquer causa justificativa ou já não existe). Não estamos, pois, em presença de negócios unilaterais, como fontes autónomas de obrigações, mas antes de simples declarações unilaterais que, por si, não criam obrigações, mas fazem presumir a sua existência, derivadas de outros factos, esses, sim, fontes de obrigações. Se “A” declara dever a “B” 1000 euros, sem indicar a sua causa justificativa, fica-se sem se saber qual a fonte dessa obrigação. Presume-se, contudo, que essa dívida existe e que há uma causa justificativa para a sua existência (que essa dívida tem uma causa que a justifica). Então, o alegado credor não precisa de provar a dívida nem a sua causa. O pretenso devedor é que tem de provar que não existe tal causa, assim se invertendo o ónus da prova “(2). Se o não fizer mantém-se a presunção. Retira-se, pois, daquele artigo que sempre que alguém, através de uma declaração unilateral, sem indicação da respectiva causa, reconheça uma dívida, a pretensão do credor respectivo não fica prejudicada pela falta da prova da sua causa, ficando antes o devedor onerado com o encargo de demonstrar o contrário, ou seja, que tal causa não existe, é ilícita ou se extinguiu. A reclamante alega, em síntese, sobre o invocado crédito: - que foi ela que acompanhou a irmã durante a doença; - que sempre que esta precisava de dinheiro “recorria aos préstimos da requerente”, o que sucedeu durante alguns anos e com alguma frequência; - que uns meses antes de falecer, a irmã lhe entregou a aludida declaração em que se reconhecia devedora da quantia de 1900 contos, “o equivalente ao que a requerente lhe emprestara”. - que este crédito deverá fazer parte do passivo e como tal relacionado. Por sua vez, a cabeça de casal disse, na parte que agora interessa considerar: - o invocado crédito teria resultado de ajudas pecuniárias feitas pela reclamante á irmã durante a doença; - este tipo de apoio é considerado como uma obrigação natural (artº 402º do CC), pelo que não é juridicamente exigível; - a reclamante não deu dinheiro à irmã, pois esta não precisava dele, nem nunca lhe pagou remédios, não existindo qualquer dívida. Já vimos quais os factos provados e não provados. O que significa que não ficou provada a tese de qualquer da partes. Mas a reclamante não precisava de provar a relação fundamental, por se presumir, como se disse, face à invocada “declaração de dívida”. Competia à cabeça de casal provar que a invocada relação fundamental não existia, ou seja, que a agravante não deu ou emprestou dinheiro à falecida, pelo que não teria existência o alegado crédito. Mas, tal prova não foi feita. Acontece, porém, que a requerente/agravante invocou a relação fundamental, ou seja, que a inventariada, sua irmã, durante a doença precisou de dinheiro, e que sempre que isso acontecia recorria aos “préstimos” da ora reclamante. Significa isto que a ora agravante entregaria à irmã determinadas quantias quando esta delas necessitava, sendo esta a causa da alegada dívida. Estaremos aqui perante uma obrigação natural, como defende a cabeça de casal? Estatui o artigo 402º do CC: “a obrigação diz-se natural quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça”. Temos assim a três seguintes características: - fundamento em mero dever de ordem moral ou social; - correspondendo a um dever de justiça; - cumprimento não juridicamente exigível. Ou, dito doutro modo, fora dos casos expressamente previstos na lei, para que possamos falar em obrigação natural é necessária a verificação destes requisitos: 1. que a prestação em causa não seja judicialmente exigível; 2. que a respectiva obrigação se baseie num dever moral ou social; 3. que o seu cumprimento corresponda a um dever de justiça. Nestas obrigações, se o devedor não cumpre, o credor não pode exigir juridicamente o cumprimento. Mas se aquele cumpre voluntariamente, a prestação não pode ser repetida. No domínio do Código de Seabra estavam previstos dois casos de obrigações naturais: a) o da dívida proveniente de empréstimo feito a menor, sem autorização do seu legal representante; b) o das dívidas de jogo, quando este não fosse jogo de azar. O artigo 402º citado consagra agora a obrigação natural como figura de carácter geral, estendendo o seu domínio a todos os deveres de ordem moral e social, cujo cumprimento não seja judicialmente exigível, mas corresponda a um dever de justiça. Todavia, nem todo o cumprimento de deveres morais ou sociais se traduz numa obrigação natural. O cumprimento desses deveres traduz-se muitas vezes numa doação ou donativo conforme os usos sociais (artº 940º, nº 1 e 2 do CC) (v.g. dar uma esmola, cumprir um dever social de cortesia, cumprimento de um dever cívico). “Para que haja obrigação natural é necessário que exista, como fundamento da prestação, um dever moral ou social específico entre pessoas determinadas, cujo cumprimento seja imposto pelos ditames da justiça” (3). Um exemplo de obrigação natural está previsto no artigo 495º, nº 3 do CC (prestação de alimentos efectuada a favor de certas pessoas que não tenham o direito e exigi-los (por exemplo prestações feitas a familiares próximos, que não tenham direito a exigir alimentos) (estando, por isso, excluídas as pessoas referidas no artigo 2009º, nomeadamente os irmãos). Mas nem sempre é fácil distinguir uma obrigação natural duma obrigação civil. Menezes Cordeiro diz que “há obrigação natural sempre que uma obrigação jurídica (dever de justiça) seja privada de exigibilidade judicial, sem prejuízo da sua idoneidade (dever moral ou social)” (4). Almeida Costa diz que as obrigações naturais constituem casos intermédios entre os meros deveres de ordem moral ou social e os deveres jurídicos. “Os primeiros fundamentam liberalidades, os últimos consubstanciam obrigações civis munidas de acção”. No campo delimitado pelas duas fronteiras é que se situam as hipóteses a qualificar como obrigações naturais (5). Compete assim à jurisprudência averiguar em cada caso (excepto naqueles que são expressamente previstos na lei), de harmonia com as concepções sociais predominantes e as circunstâncias concretas de cada caso, averiguar, primeiro, se existe um dever moral ou social, e, seguidamente, se esse dever é de tal importância que o seu cumprimento envolva um dever de justiça. Por isso, exige-se que o dever de prestar não respeite somente à consciência moral do agente; deve respeitar também à sua consciência jurídica. É preciso não esquecer que o regime jurídico das obrigações naturais é semelhante ao das obrigações civis, excepto quanto à não coercibilidade. Ora, se, como diz a agravante, sempre que a falecida precisava de dinheiro “recorria aos seus préstimos”, o que teria sucedido durante alguns anos e com alguma frequência, não parece que o fizesse com base em mero dever de ordem moral ou social. É preciso não esquecer que a inventariada tinha outros irmãos e possuía bens. Por isso nada justificaria que apenas a ora reclamante contribuísse para o seu sustento, nomeadamente, concedendo-lhe empréstimos. Consequentemente, não vemos que estejamos perante uma obrigação natural. Mas a cabeça de casal diz que a ML nunca deu dinheiro à inventariada, até porque esta dele não precisava e ainda que a declaração “foi extorquida à inventariada LT” pela ora agravante. A verdade é que não fez a agravada prova de qualquer destes factos. O que significa que não logrou ilidir a referida presunção de dívida. E não competia à agravante fazer a prova da relação fundamental. À cabeça de casal é que competia provar a sua não verificação. III Como vimos, no despacho recorrido afirmou-se que a declaração emitida não atesta a constituição da alegada obrigação, mas que se apurou tratar-se de uma verdadeira proposta de doação, a qual sempre teria caducado com a morte da doadora, já que não foi aceite em vida.Para tanto parece ter-se tido em consideração o seguinte: “no toca à alegada dívida da inventariada LT para com a reclamante, levou-se em conta o documento junto a fls. 234, no seu teor literal, já que a testemunha MM, filha da reclamante, foi peremptória ao afirmar que não existiram empréstimos feitos por aquela à inventariada, mas pura e simplesmente a vontade desta em recompensar a atenção que a reclamante lhe dedicou ao visitá-la frequentemente. A reclamante limitou-se a levar-lhe algumas coisas...referindo a testemunha que, a considerar-se uma dívida da inventariada para com a interessada, o valor da mesma seria da ordem dos 50 euros”. A verdade é que se trata apenas de uma afirmação feita por uma testemunha (embora filha da reclamante), e por isso não consta dos “factos provados”. Assim, não nos parece que possamos concluir tratar-se de uma “simples proposta de doação”. Com efeito, não se encontra provado qualquer facto que nos permita concluir pela dita doação. Ora, como se disse, a lei permite que, através de acto unilateral, se efectue a promessa de uma prestação ou o reconhecimento de uma dívida, sem que o devedor indique o fim jurídico que o leva a obrigar-se, presumindo-se a existência e a validade da relação fundamental. IV Como estabelece o nº 2 do artigo 458º, a promessa ou o reconhecimento deve constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental.A declaração é de 2001. Tratando-se de um empréstimo de 1900 contos, seria válido se celebrado apenas por escrito. Portanto, é suficiente que o reconhecimento da dívida seja feita por escrito. Consequentemente, não tendo sido ilidida tal presunção há que aceitar a existência da dívida e, como tal, deve ser relacionada. V Parece-nos, pois, poder concluir-se o seguinte:a) As benfeitorias realizadas por terceiros, ou mesmo por um herdeiro, em bens da herança, em data posterior ao falecimento do “de cuius”, constituem matéria alheia ao inventário e, por isso, não devem ser relacionadas como passivo da herança. b) Apenas relevam para efeitos de inventário as benfeitorias realizadas em vida do autor da herança, pelo que só estas devem ser relacionadas. c) Um documento escrito e assinado pelo declarante, que contenha o reconhecimento duma determinada dívida, sem indicação da respectiva causa, constitui o reconhecimento dessa dívida nos termos e para os efeitos do artigo 458º do CC. Por isso, a declaração sub judice consubstancia uma declaração de reconhecimento de dívida, sendo-lhe aplicável o regime deste artigo. d) Compete ao autor da declaração, ou aos seus herdeiros, o ónus de provar que a presumida relação fundamental nunca existiu, não é válida ou cessou . ** Pelo exposto acorda-se em conceder parcial provimento ao agravo e, em consequência:1) ordena-se que se proceda à relacionação da dívida de 9.477,16 euros 2) não se ordena que sejam relacionadas as aludidas benfeitorias, assim se confirmando nesta parte o despacho recorrido. Custas na proporção do vencido. Lisboa, 24.05.2005. Pimentel Marcos Vaz das Neves Abrantes Geraldes. ___________________ (1).-Antunes Varela e outros, in “Manual de Processo Civil”, pag. 500. (2).-Conferir I Galvão Telles, in “Direito da Obrigações”, 4ª edição, pag. 119. (3).-Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral, vol. I- 596, que vimos seguindo de perto. (4).-Direito das Obrigações, 1º vol. 322 (5).-Noções de Direito Civil, pag. 30. |