Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5429/08-2
Relator: NELSON BORGES CARNEIRO
Descritores: ARROLAMENTO
EMBARGOS DE TERCEIRO
PRESSUPOSTOS
POSSE
USUFRUTO
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/06/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1.) Havendo corpus possessório e não incidindo nenhuma norma jurídica que descaracterize a situação para mera detenção, existirá posse, pois o animus não é um dos elementos da posse.
2.) Havendo corpus, em princípio há posse, salvo quando o possuidor revele uma vontade segundo a qual ele age sem animus possidendi, sendo este elemento negativo que desvaloriza ou descaracteriza o corpus.
3.) Pela usucapião, o possuidor usucapiante adquire o direito real de gozo a que a sua posse se reporta e somente este.
4.) O tipo legal do usufruto compreende, assim, o gozo da coisa, todo o uso, toda a fruição e ainda a transformação que não atinja os limites negativos do respeito pela forma e substância da coisa.
5.) Numa acção com vista ao reconhecimento de aquisição de usufruto de uma coisa por usucapião, deve provar-se, para além do mais, que a posse exercida sobre esta, deve corresponder ao usufruto, ou seja, é preciso demonstrar-se que a pessoa ou entidade se tem comportado em relação à coisa como se usufrutuário fosse, não só sob o ponto de vista de poder de facto sobre ela, mas também com a intenção de se comportar como titular desse direito real.
6.) Não havendo corpus possessório, não há posse, nem sequer detenção e, deste modo, não se pode presumir a existência de qualquer animus possidendi.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 2ª Secção (Cível) do Tribunal da Relação de Lisboa:

1.RELATÓRIO

      E... e M..., por apenso ao procedimento cautelar de arrolamento, deduziram os presentes embargos de terceiro contra G... e J....
      Para tanto e em resumo, alegaram que o arrolamento realizado sobre a fracção autónoma designada pela letra "C", correspondente ao rés-do-chão direito, 2° Piso, do prédio situado em Paço de Arcos, na actual Rua ...., ofende a posse como também o direito de usufruto sobre a mesma.
      Foi proferida sentença que julgou improcedentes os embargos e manteve o arrolamento decretado.
      Inconformados, vieram os Embargantes apelar da sentença, tendo extraído das alegações que apresentaram as seguintes
CONCLUSÕES:
      1.) O Tribunal a quo deveria ter dado como provada a matéria constante dos pontos 1, 2 e 3 da Base Instrutória.
      2.) Os Recorrentes discordam do critério de apreciação da prova que o Tribunal a quo seguiu na resposta aos quesitos, designadamente, no que respeita ao que se entende ser uma censurável valorização dos depoimentos de algumas das testemunhas e uma absoluta ausência de exame critico da prova documental.
      3.) De acordo com a decisão, demonstra-se provado o elemento objectivo da posse, o denominado corpus.
      4.) Diz a sentença que no que respeita ao animus, ou elemento subjectivo da posse, não se demonstrou provada qualquer intenção dos ali Embargantes, relacionada com o exercício de um qualquer direito real, nem os factos demonstrados são suficientes para permitir concluir pelo referido elemento subjectivo da posse.
      5.) A decisão encerra, desde logo e neste tema essencial um ostensivo erro de aplicação do direito.
      6.) É que é hoje matéria fixada em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (14 de Maio de 1996) que como a prova do animus poderá ser muito difícil, a lei estabelece uma presunção ao possuidor, dizendo que este goza da presunção de titularidade do direito “… (…por ser difícil, se não impossível, fazer prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente, estabelece o nº 2 do artigo 1252º do Código Civil, como já fazia o parágrafo 1 do artigo 481 do Código de 1867, uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus)…”.
      7.) Face a esta solução legal e jurisprudencial o Tribunal a quo teria de ser levado a presumir que os Recorrentes estando na posse da fracção dos Autos são titulares do direito de que se arrogam e que se consubstancia nos actos que se praticaram e praticam sobre a mesma.
      8.) Uma vez que a Embargada alegou mas não logrou provar, como resulta designadamente das respostas negativas à matéria vertida nos pontos 11, 12 e 13 da Base Instrutória que aqueles actos materiais e efectivos de posse, exercidos pelos Embargantes o fossem de forma esporádica, por mero favor ou tolerância dos Embargados ou de outrem.
      9.) A Embargada não elidiu a referida presunção legal a favor dos Embargantes da titularidade do respectivo direito.
      10.) O Tribunal a quo teria de considerar como obrigatoriamente preenchido o animus possidendi e com ele a posse dos Embargantes sobre a fracção e assim configurados e reunidos os elementos que caracterizam a posse como situação de facto produtora de efeitos jurídicos, maxime como fundamento da procedência dos embargos (art. 351º, do CPC).
      11.) A que a sentença a quo, deveria, também, ter-se debruçado obrigatoriamente sobre o preenchimento ou não da posse na sua vertente de posse usucapiante ou seja a idónea para a aquisição de direitos reais por usucapião.
      12.) A posse dos Embargantes é pacifica, pública, não titulada e de boa fé, durando há mais de 18 anos.
      13.) Conclusões que decorrem de uma correcta valoração da prova produzida em Tribunal e que contraria a forma como o depoimento das testemunhas e os muitos documentos presentes nos Autos foram vistos pelo Tribunal.
      14.) A resposta dada pelo Tribunal aos pontos 1, 2 e 3 da Base Instrutória, julgados não provados, não pode deixar de merecer a censura dos Recorrentes, sendo certo que para além de uma ténue fundamentação sobre os mesmos, a decisão do Tribunal assenta numa errada análise dos depoimentos das testemunhas ME (fls. 616 dos autos e cassete nº 1 lado A do dia 02.06.2006), MC  (fls. 616 dos autos e cassete nº 1  lado A e lado B  do dia 02.06.2006), MA ( fls. 617 dos autos e lado B da cassete nº 1 e lado A da cassete nº 2 ambas do dia 02.06.2006), ML  ( fls. 617 dos autos e lado A e do lado B da cassete nº 2 do dia 02.06.2006) MD (fls. 581 dos autos e cassete nº 1 lado B e nº 2 lado A do dia 24/05/2006), DS  ( fls. 581 dos autos e cassete nº 2 lado A do dia 24 de Maio de 2006) e na ausência de qualquer ponderação, entre outros, sobre os documentos juntos aos Autos a fls. 25, 99, 100, 101, 102, 104, 105, 895, 896, 897 e 900.
      15.) Testemunhas que revelaram pleno conhecimento dos factos e que muitas delas confrontadas com os documentos a que acima se alude corroboraram o seu conteúdo, que diga-se não foi posto em crise quer pelo Tribunal quer pela Embargada.
      16.) Desde a aquisição da fracção, e de acordo com a prova que de forma clara foi produzida em Tribunal que os Embargantes passaram a utilizar a fracção, deslocando-se a ela em períodos de férias e noutras ocasiões, criando as condições para vir a habitá-la o que fariam mais tarde em 1990.
      17.) Desde a aquisição da fracção que os Embargantes estabelecem com aquele bem uma relação de facto que se traduz na prática reiterada e efectiva de actos materiais capazes de “…exprimirem o exercício do direito”.
      18.) Desde 1982 que os Recorrentes se encontram na posse da fracção dos Autos, sendo certo que datando a petição de Embargos de 2001, tal situação decorre há pelo menos 18 anos.
      19.) O Tribunal deveria ter dado como provado o ponto 1 da Base Instrutória.
      20.) Em tal lapso temporal a posse dos Recorrentes reuniu as condições necessárias à aquisição, por usucapião do direito de usufruto de que se arrogam.

      21.) Os Embargantes encontravam-se na posse da fracção à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
      22.) Situação que decorre do depoimento das testemunhas acima já identificadas.
      23.) O Tribunal estava obrigado face à prova produzida em audiência e nos Autos e ter dado como provado o ponto 2 da Base Instrutória declarando assim que os Embargantes fruem e gozam a fracção (possuem-na em suma) à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
      24.) A posse dos Recorrentes é, por último de boa fé.
      25.) Os Recorrentes exercem a posse sobre a fracção dos Autos convictos de que usufruem em pleno aquele bem, não violando o direito de qualquer outra pessoa, fazendo-o sempre na convicção de que exerciam e exercem um direito próprio.
      26.) Termos em que deveria o Meritíssimo Tribunal a quo ter dado como provado o ponto 3 da Base Instrutória que expressamente questionava – “Agindo na plena convicção de que são seus usufrutuários e assim tidos por todos?”
      27.) Quer no âmbito da prova testemunhal quer no âmbito da prova documental detinha o Tribunal a quo todos os elementos necessários para ter dado como provada tal matéria de facto.
      28.) Com a prova produzida em Tribunal elidiram os Recorrentes qualquer presunção que da ausência de título pudesse jogar contra si, nomeadamente no sentido de considerar como de má fé a posse de que são notoriamente titulares.
      29.) A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 1252º, nº 2 (conjugado com o art. 350, nº 1), art. 1285º, 1287º, 1296º, nº 1 (1ª parte) todos do Código Civil e artºs. 515º, 351º, nº 1, 732º-A e 732º-B do Código do Processo Civil (estes em virtude do desrespeito pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/05/96 in Diário da República, II Série de 24 de Junho de 1996).

      A Embargada contra-alegou, pugnando pela improcedência da Apelação dos Embargantes.

      Colhidos os vistos, cumpre decidir.

    OBJECTO DO RECURSO:[1]

      Emerge das conclusões de recurso apresentadas por  E... e MARIA..., ora Apelantes, que o seu objecto está circunscrito às seguintes questões:
        1.) Impugnação da matéria de facto.
        2.) Aquisição, por usucapião, do direito de usufruto.

       
             
2.FUNDAMENTAÇÃO

    A.) FACTOS PROVADOS NA 1ª INSTÂNCIA:           

    DA MATÉRIA DE FACTO ASSENTE:

      1.) Por escritura pública de 28/10/82, a sociedade N..., Limitada declarou vender a J..., representado naquela escritura pela embargante M..., pelo preço de 1700 contos, a fracção autónoma designada pela letra "C", correspondente ao rés-do-chão direito, 2° Piso, do prédio situado em Paço de Arcos, na actual Rua ..., inscrito na matriz sob o artigo nº ... e descrito na Conservatória do Registo Predial, ...Secção, sob o nº ..., a folhas ....do Livro ...., aqui se dando por integralmente reproduzido o restante teor do documento de fls. 70 a 75.
      2.) À data da referida escritura, J... era emigrante nos Emirados Árabes Unidos, tendo feito a aquisição da dita fracção com recurso a crédito ao abrigo do sistema denominado de "Poupança-Crédito".
      3.) Para pagamento de parte do preço da aludida fracção os embargados J.... e G...., representados pela embargante M..., contraíram dois empréstimos junto da Caixa, um no montante de 479, e outro no montante de 573 contos.
      4.) Por decisão proferida em 21-12-2000 na providência cautelar, requerida como incidente da acção de divórcio, por G.... contra o marido J..., foi decretado o arrolamento da fracção autónoma designada pela letra "C", correspondente ao rés-do-chão direito – 2° piso, do prédio urbano situado na Rua ...., em Paço de Arcos.
      5.) Na sequência da referida decisão, a fracção foi arrolada em 8/1/01, por auto lavrado a folhas 49 da referida providência cautelar, ficando depositário da mesma, J....
    DA BASE INSTRUTÓRIA:
      6.) Desde Outubro de 1990, são os Embargantes quem paga as despesas de água e electricidade, telefone e condomínio referentes à aludida fracção – Resposta ao artigo 4º.
      7.) Em Outubro de 1990, os Embargantes passaram a comer, dormir, receber a sua correspondência, os seus amigos e familiares na aludida fracção C – Resposta ao artigo 5º.
      8.) Desde data concretamente não apurada posterior à sua aquisição, os Embargantes passaram a utilizar a fracção nas suas deslocações ocasionais a Lisboa – Resposta ao artigo 12º.
      9.) Com a reforma do Embargante marido, a partir de Outubro de 1990, os Embargantes passaram a residir na aludida fracção C – Resposta ao artigo 13º.

    B.) O DIREITO:
   
      Importa conhecer o objecto do recurso, circunscrito pelas respectivas conclusões.           

    1.) IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO.
       
      A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida – al. a), do n.º 1, do art. 712.º, do CPCivil.
      A reapreciação da matéria de facto por parte desta Relação, tem um campo muito restrito, limitado, tão só, aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada. Com efeito, não se trata de um segundo julgamento até porque as circunstâncias não são as mesmas, na 1ª e na 2ª instância. Não basta, pois, que não se concorde com a decisão dada, pois é necessária a demonstração da existência de erro na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efectivamente, no caso, foram produzidos.
      É já hoje lugar-comum a nota de que tanto ou mais do que o que o depoente diz vale o modo por que o diz, é que se as declarações contam, contam também as reticências, as hesitações, as reservas, enfim a atitude e a conduta do declarante no actos do depoimento.[2]
      Por isso começamos por afirmar que não são coincidentes as circunstâncias na 1ª e na 2ª instância, dado que as gravações não comportam, pela sua própria natureza todos os aspectos importantes a considerar na avaliação dos depoimentos, segundos os quais e de acordo com o "princípio da livre convicção e apreciação da prova" (aqui não sindicável), foram essenciais para as respostas dadas à matéria de facto por parte daquela instância.
      O controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, está em melhor posição.
      Na verdade, só perante uma situação de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão é que haverá erro de julgamento; situação essa que não ocorre quando estamos na presença de elementos de prova contraditórios, pois nesse caso deve prevalecer a resposta dada pelo tribunal a quo, por estarmos então no domínio e âmbito da convicção e da liberdade de julgamento, que não compete a este tribunal (ad quem) sindicar.[3]
      Mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, é necessário que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante ou quando também eles sejam contrariados por meios de prova de igual ou de superior valor ou credibilidade.[4]
      O tribunal de 2ª jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.[5]
      Forçoso se torna concluir que, na reapreciação da matéria de facto, à Relação apenas cabe, pois, um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no tribunal “a quo” lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou.[6]
      Para que possa ser atendido neste Tribunal a divergência quanto ao decidido em 1ª instância na fixação da matéria de facto, deverá ficar demonstrado pelos meios de prova indicados pelos Apelantes, a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, exigindo-se, contudo e para tanto, que tais elementos de prova sejam inequívocos quanto ao sentido pretendido por quem recorre.
      Na realidade, tem que se ter presente, que no âmbito do julgamento em processo civil rege o princípio da livre apreciação das provas, sem prejuízo da observância de formalidade especial para a existência ou prova de um determinado facto, pese embora seja exigível que o julgador decida segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.[7]
      Alegam os Apelantes que face à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, as respostas aos artigos 1º, 2º e 3º, da base instrutória, deverão ser dadas como “provadas”.
      Vejamos a questão.
      Pergunta-se no artigo 1º, da base instrutória se “Desde a sua aquisição a aludida fracção “C” tem sido utilizada pelos embargantes sendo estes que de forma ininterrupta a fruem e gozam exclusivamente?”; no artigo 2º, se “À vista de toda a gente e sem oposição de ninguém?”, e no artigo 3º, “Agindo na plena convicção de que são seus usufrutuários e assim sendo tidos por todos?”, tendo o tribunal a todos eles respondido: “Não provados”.
      O Tribunal fundamentou tais respostas negativas pois “nenhuma das testemunhas oferecidas pelos embargantes e embargado revelou conhecimento directo e suficientemente fundamentado no que respeita à utilização da fracção desde data anterior a 1990”.
      A estas matérias, a testemunha, ME (vizinha dos embargantes há cerca de 15 anos), referiu que “os conhece desde 1990/1991”, e que “antes de ir viver para o local não os conhecia”; a testemunha, MC disse que “os embargantes viviam em Paços de Brandão na altura da compra da casa”, e “não conheceu a casa de Paço de Arcos antes de 2000”; a testemunha MA (sobrinha dos Embargantes), disse que estes “vieram viver para a casa de Paço de Arcos quando o tio se reformou”, e este “reformou-se há 15 anos (1990)”; a testemunha ML (sobrinha dos embargantes), depôs no sentido de que “o tio viveu em Paços de Brandão até se reformar, …, e só quando se reformou veio para Paço de Arcos”; a testemunha MD, referiu “nunca ter ido a casa dos Embargantes a Paço de Arcos”, “deduzindo que estes aí vivam por conversa tidas com o Embargado”, e a testemunha DS disse “não saber quando ocorreu a compra da casa, nem nunca ter ido à mesma”.
      Por outro lado, dos documentos de fls. 25 (requisição de gás canalizado), 99, 100, 101, 102, 104 e 105, 895, 896, 897 e 900 (facturas de compra de bens móveis), não se retira a conclusão que a fracção autónoma designada pela letra "C" era utilizada pelos Embargantes, desde a sua aquisição, de forma ininterrupta e exclusiva.
      Pelo facto de os Embargantes terem eventualmente adquirido bens móveis para a fracção, não se pode concluir, sem mais, que estes usufruíam da mesma, desde a data da sua aquisição e de forma ininterrupta.
      Aliás, concluindo-se da prova testemunhal que os Embargantes residiam em Paços de Brandão até à reforma do Embargante, não podiam até 1990, utilizar de forma ininterrupta a fracção “C”, mas eventualmente, utilizá-la de uma forma ocasional.
      Assim, perante tais depoimentos revela-se adequada a conclusão do tribunal “a quo”, ao considerar “não provados” os factos constantes nos artigos 1º, 2 º e 3º, da base instrutória, pois as testemunhas não revelaram conhecimento directo sobre se os Embargantes utilizavam a fracção desde a data da respectiva aquisição de forma ininterrupta, e nem tal também se pode extrair da prova documental.
      Tais depoimentos permitem-nos concluir, como concluiu o tribunal “a quo”, que vivendo os Embargantes em Paços de Brandão até 1990, data da reforma do Embargante, só a partir desta data, puderam passar a utilizar de forma ininterrupta a fracção autónoma designada pela letra “C”.
      Porque as testemunhas nada disseram que possam alterar as respostas dadas, ou por não haver outros elementos de prova que infirmem tais respostas, não há erro de julgamento, não havendo por isso, que alterar as respostas aos artigos 1º, 2º e 3º, da matéria de facto.
      Concluindo, constata-se que o Tribunal “a quo” fundamentou devidamente as respostas aos artigo 1º, 2º e 3º, da base instrutória, de forma critica, a prova em que se alicerçou, sendo esta análise e conclusão o resultado encontrados segundo o princípio da livre convicção e apreciação da prova, que aqui não cabe censurar.
      Não se vislumbra pois qualquer erro de julgamento, decorrente de concreta e flagrante desconformidade entre as respostas dadas e a prova produzida, não obstante a verificação feita, através da gravação efectuada, dos depoimentos considerados de interesse, e, segundo os Apelantes, erradamente avaliados pelo Tribunal “a quo”.
      Deste modo, não importa pois, alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto e que ficou consagrada no julgamento efectuado em 1ª instância, em relação aos artigos 1º, 2º e 3º, da base instrutória, pois não se mostra verificado qualquer dos fundamentos tipificados no n.º 1, do art. 712º, do CPCivil.

    2.) AQUISIÇÃO, POR USUCAPIÃO, DO DIREITO DE USUFRUTO.

      Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro – n.º 1, do art. 351º, do CPCivil.
      Um dos requisitos dos embargos é que a posse ofenda (ou ameace ofender) a posse de alguém, pelo que se exige que o terceiro tenha a posse dos bens penhorados.
      Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real - art. 1251º, do CCivil.
      Na análise de uma situação de posse distinguem-se dois momentos: um elemento material - «corpus» - que se identifica com os actos materiais (detenção, fruição, ou ambos conjuntamente) praticados sobre a coisa; domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo de certos poderes materiais sobre a coisa; um elemento psicológico - «animus» - que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados.[8]
      O facto de a lei exigir o corpus e o animus para o efeito de haver posse implica que o possuidor tenha de provar a existência dos dois elementos. A prova do animus resulta, no entanto, de uma presunção, isto é, o exercício do primeiro faz presumir a existência do segundo.[9]
      Para outros, o Código Civil português é integralmente objectivista em sede de regulação de posse. Havendo corpus possessório e não incidindo nenhuma norma jurídica que descaracterize a situação para mera detenção, nomeadamente qualquer das alíneas do art. 1253º, existirá posse. O animus não é, assim, um dos elementos da posse.[10]
      Havendo corpus, em princípio há posse, salvo quando o possuidor revele uma vontade segundo a qual ele age sem animus possidendi. É este elemento negativo que desvaloriza ou descaracteriza o corpus.[11]
      A posse cobre não só a propriedade como qualquer outro direito real.[12]
      Quem alegar em acção ou excepção a posse, há-de provar a sua existência – é princípio geral de direito. E como a posse é constituída por uma detenção exercida no próprio interesse, aquele que a invoca terá de demonstrar que detém o objecto, ou que outrem o detém por ele, e que a detenção é exercida em seu proveito, se não tiver em seu favor alguma presunção, ou então que adquiriu a posse de quem tinha possuído.[13]
      A posse considerada em abstracto é um simples nome, classe ou categoria legal, que nenhum efeito pode produzir; para que o direito surja é indispensável um certo acto de posse, isto é, o facto individual e concreto pelo qual se possua determinada coisa.[14]
      O carácter permanente, duradouro, da aquisição da posse não exige, pois, necessariamente, a prática repetida de actos de uso e de gozo; mas exige, a prática de um acto ou de uma série de actos que, no consenso público, sejam considerados como meio de criar uma relação duradoura.[15]
      A actuação material sobre a coisa ou a possibilidade dessa actuação supõe o controlo material dela ou, como alguns preferem dizer, o domínio da coisa. O corpus possessório projecta-se, por conseguinte, a um nível físico, significando que alguém pode praticar os actos de aproveitamento da coisa correspondentes ao direito que exterioriza.[16]                           
      Invocam os Apelantes, que encontrando-se na posse da fracção autónoma há pelo menos 18 anos, adquiriram o direito de usufruto, por usucapião.
      Vejamos a questão.
      A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida durante certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião - art. 1287º, do CCivil.
      Nos termos do art. 1287º, a usucapião produz a aquisição, por efeito da posse, mantida durante um certo tempo, do direito real a cujo exercício ela corresponde. A aquisição por usucapião é, assim, efeito da posse reiterada de um direito real.[17]
      A usucapião traduz-se na constituição do direito real correspondente a certa posse, desde que esta se prolongue, com certas características, pelo período de tempo fixado na lei.
      Só a posse pública e pacífica conduz à aquisição por usucapião, como decorre do disposto no art. 1297º.
      É um modo de aquisição originária de direitos reais e baseia-se num facto do homem: a própria posse e a invocação do seu decurso.
      Uma vez invocada, a usucapião determina a aquisição originária do direito correspondente à posse exercida.[18]
      Pela usucapião, o possuidor usucapiante adquire o direito real de gozo a que a sua posse se reporta e somente este. Dito por outras palavras, o direito real adquirido por usucapião é aquele a que se refere a posse do possuidor.[19]
      Usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância – art. 1439º, do CCivil.
      O usufrutuário pode usar, fruir e administrar a coisa ou o direito como faria um bom pai de família, respeitando o seu destino económico – art. 1446º, do CCivil.
      Se descontarmos a duração – temporária – do usufruto e os limites negativos da forma e da substância, a delimitação positiva do usufruto oferece semelhança com a propriedade (art. 1305º).[20]
      O tipo legal do usufruto compreende, assim, o gozo da coisa, todo o uso, toda a fruição e ainda a transformação que não atinja os limites negativos do respeito pela forma e substância da coisa.[21]
      A única objecção levantada à admissibilidade da usucapião do usufruto procede da equivocidade da posse correspondente a este direito, visto os actos do usufrutuário coincidirem em larga medida com os praticados pelo proprietário ou pelos titulares de outros direitos pessoais de gozo sobre a coisa. Simplesmente, se essa coincidência normal se verifica em relação a um dos elementos da posse – o corpus -, já o mesmo não sucede no que toca ao segundo elemento da relação possessória – o animus.[22]
      A convicção com que age o possuidor, designadamente nas suas relações com o proprietário da coisa ou o titular do direito, ajudará em regra a esclarecer o sentido da materialidade factual em que se traduz a actuação do possuidor.[23]
      Podem, todavia, surgir dificuldades práticas na determinação do conteúdo da posse, quando seja idêntico o corpus em dois ou mais direitos. Nestes casos de posse equivoca, a qualificação dela terá de ser feita através do animus ou do título.[24]      
      Assim, numa acção com vista ao reconhecimento de aquisição de usufruto de uma coisa por usucapião, deve provar-se, para além do mais, que a posse exercida sobre esta, deve corresponder ao usufruto, ou seja, é preciso demonstrar-se que a pessoa ou entidade se tem comportado em relação à coisa como se usufrutuário fosse, não só sob o ponto de vista de poder de facto sobre ela, mas também com a intenção de se comportar como titular desse direito real.[25]
      Ficou provado que em Outubro de 1990, os embargantes passaram a comer, dormir, receber a sua correspondência, os seus amigos e familiares na fracção “C”, pagando as despesas de água, electricidade, telefone e condomínio – factos provados nºs 6 e 7.
      Não se provou porém, que os Embargantes tivessem o direito de gozar plenamente a fracção até ao fim dos seus dias, assumindo eles todos os encargos decorrentes dessa fruição, que lhes tivesse sido assegurado pelos Embargados que poderiam usufruir até à sua morte a fracção suportando eles os encargos a ela inerentes, e que agiam na plena convicção de que eram seus usufrutuários e assim eram tidos por todos – respostas negativas, respectivamente, aos artigos 7, 10º e 3º, da Base Instrutória.
      Temos pois que os Apelantes/Embargantes não provaram que os actos materiais exercidos sobre a fracção autónoma fossem os correspondentes ao direito de gozar temporária e plenamente a coisa, sem alterar a sua forma ou substância, isto é, que correspondessem ao usufruto.
      Assim, pese embora os Apelantes/Embargantes terem provado que tinham um contacto periódico e duradouro sobre a fracção, não provaram porém, que se comportassem como se usufrutuários fossem, não só sob o ponto de vista de poder de facto, nem com a intenção de se comportarem como titulares desse direito real.
      Acresce ainda dizer que não tendo os Apelantes provado que o poder de facto exercido sobre a fracção autónoma correspondia ao usufruto, não se pode presumir o animus, pois este pressupõe a existência do corpus.
      Isto porque, os Apelantes/Embargantes só teriam a posse da fracção caso a sua actuação correspondesse ao exercício do direito real de usufruto, pois não provaram que com essa actuação tivessem o seu controlo material, isto é, o seu domínio, podendo-a usar, administrar e usufruir.
      O corpus possessório alude simplesmente ao estado de facto em que um sujeito tem o controlo material da coisa e pode actuar sobre ela nos termos de um direito.[26]
      O simples contacto material sobre uma coisa, seja efémero e ocasional seja periódico e duradouro, não basta para constituir o corpus possessório a favor de alguém. E sem corpus, não há posse, nem sequer detenção.[27]
      Concluindo, os Apelantes/Embargantes não provaram que estivessem na posse da fracção autónoma pois os actos materiais praticados sobre a mesma não se identificam com os actos relativos ao direito de usufruto, ou qualquer outro direito real.
      Não se sabendo em que termos podem actuar sobre a fracção autónoma, pese embora aí residirem, não provaram os Apelantes/Embargantes a existência de um corpus possessório a seu favor, pois não se poder dizer que tivessem o controlo  material sobre a mesma.
      Logo, não havendo corpus possessório, não há posse, nem sequer detenção e, deste modo, não se pode presumir a existência de qualquer animus possidendi.
      Destarte, improcedendo as conclusões dos Apelantes, há que confirmar a sentença recorrida, pois os Apelantes não estando na posse da fracção autónoma, não a podem adquirir por usucapião.

3.DISPOSITIVO      

    DECISÃO:
      Pelo exposto, Acordam os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso de Apelação e, consequentemente, em confirmar-se a decisão recorrida.
      REGIME DE CUSTAS:
      Custas pelos Apelantes, porquanto a elas deram causa por terem ficado vencidos - art. 446.º, do CPCivil.
Lisboa,2008-11-06
 (NELSON PAULO MARTINS DE BORGES CARNEIRO) – Relator
(ONDINA DE OLIVEIRA CARMO ALVES)
(ANA PAULA LOPES MARTINS BOULAROT)
[28]

[1] As conclusões das alegações do recorrente fixam o objecto e o âmbito do recurso – n.º 3, do art. 684.º, do CPCivil.
  Todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
  Vem sendo entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.

[2] PROF. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil, Anotado, vol. IV, pág. 137.

[3] Ac. Rel. Coimbra de 25-11-2003, Proc. nº 3858/03, Relator: ISAÍAS PÁDUA, www.dgsi.pt.

[4] Ac. Rel. Lisboa de 13-11-2001, CJ, Tomo V, pág. 85.

[5] Ac. Relação Coimbra de 03-10-2000, CJ, Tomo 4º, pág. 28.
[6] Ac. Rel. Coimbra de 22-06-2004, Proc. nº 1861/04, Relator: HÉLDER ALMEIDA, www.dgsi.pt.

[7] Ac. Rel. Évora de 2004-06-03, CJ, Tomo 2.º, pág. 251.
[8] MOTA PINTO, Direitos Reais, 1970 pág. 180; HENRIQUE MESQUITA, Direitos Reais, págs. 66 / 67, e Ac. Rel. Porto de 1979.10.02, CJ, Tomo 4º, pág. 1273.

[9] MOTA PINTO, ob. cit., pág. 191.

[10] JOSÉ ALBERTO VIEIRA, Direitos Reais, pág. 545.

[11] LUÍS CARVALHO FERNANDES, Lições de Direitos Reais, 3ª ed., pág. 274.

[12] RT, 92º, pág. 153.

[13] MANUEL RODRIGUES, A Posse, Estudo de Direito Civil Português, págs. 336/337.

[14] ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, 2º vol., pág. 375.

[15] MANUEL RODRIGUES, A Posse, Estudo de Direito Civil Português, pág. 185.
[16] JOSÉ ALBERTO VIEIRA, Direitos Reais, pág. 548.

[17] LUÍS CARVALHO FERNANDES, Lições de Direitos Reais, 3ª ed., pág. 230.

[18] LUÍS CARVALHO FERNANDES, Lições de Direitos Reais, 3ª ed., pág. 236.

[19] JOSÉ ALBERTO VIEIRA, Direitos Reais, pág. 425.

[20] JOSÉ ALBERTO VIEIRA, Direitos Reais, pág. 746.

[21] JOSÉ ALBERTO VIEIRA, Direitos Reais, pág. 748.

[22] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. 3º, 2ª ed., pág. 463, nota (5).

[23] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. 3º, 2ª ed., pág. 463, nota (5).

[24] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. 3º, 2ª ed., pág. 66, nota (7).

[25] Ac. STJ de 2008-04-17, Proc. 07A4348, Relator: GARCIA CALEJO, htpp//www.dgsi.pt/jstj.


[26] JOSÉ ALBERTO VIEIRA, Direitos Reais, pág. 548.

[27] JOSÉ ALBERTO VIEIRA, Direitos Reais, pág. 548.

[28] Foram utilizados meios informáticos na elaboração e execução da presente peça processual – n.º 5, do art. 138.º, do CPCivil.