Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa  | |||
| Processo: | 
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| Relator: | JOAQUIM JORGE DA CRUZ | ||
| Descritores: |  REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA  | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/22/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: |  Sumário (da responsabilidade do Relator): I. Inexiste uma forma única de descrição factual dos elementos que constituem o tipo subjetivo de ilícito, pelo que nem o acusador, nem o julgador, se encontram amarrados à utilização de fórmulas únicas nessa descrição; II. Nos delitos dolosos de ação, como é o caso do crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, n.os 1 e 2, a descrição factual dos elementos que constituem o dolo tem de traduzir o conhecimento pelo agente da necessidade de ser titular de documento que o habilite a conduzir (carta ou licença de condução ou outro título válido) e conhecimento de que, no momento da condução, não é titular de tal documento, nisso se traduzindo o elemento intelectual do dolo; e, ainda assim, assuma tal conduta: (i) porque quer conduzir sem estar habilitado (dolo direto); (ii) embora saiba que não está habilitado, resolve conduzir, aceitando esse facto como uma condição necessária da sua conduta (dolo necessário); (iii) prevê a possibilidade de não estar habilitado e, conformando-se com ela, conduz da mesma forma (dolo eventual), nisso se traduzindo o elemento volitivo do dolo; III. Constando da acusação que o arguido conduzia, em determinado dia, hora e local um ciclomotor, que não era titular de carta de condução ou outro documento que o habilitasse a tal condução e que agiu de forma voluntária e conscientemente, numa via que que sabia ser pública, sem ser titular de carta de condução válida, não oferece dúvidas que o Ministério Público quis reportar a expressão conscientemente ao conhecimento que o arguido tinha de ter conduzido um ciclomotor numa via pública sem que tivesse habilitado com carta de condução ou outro documento equivalente (elemento intelectual do dolo) e que quis reportar a expressão voluntária à vontade de o arguido conduzir naquelas condições, ou seja, vontade de conduzir um ciclomotor numa via pública, que que fosse titular de carta de condução ou outro documento equivalente (elemento volitivo do dolo direto), pelo que inexiste fundamento legal para a mesma ser rejeitada ao abrigo do disposto do disposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 311º, do Código de Processo Penal, por referência à alínea b), do n.º 3, do mesmo artigo;  | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: |  Acordam, em conferência, na 3.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório: 1. Por despacho de ... de ... de 2025, o Ex.mo Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal do Barreiro - Juiz 2, decidiu, nos termos do artigo 311.º, n.º 2 alínea a) e n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, pelo artigo 3.º, n.os 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, por referência ao artigo 121.º do Código da Estrada, por entender que a mesma é manifestamente infundada. * 2. Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, extraindo da motivação as seguintes conclusões: 1) O tribunal a quo fez uma incorreta aplicação do Direito, violando os artigos 13.º e 14.º do Código Penal e os artigos 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3 e 283.º, n.º 3, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, ao ter rejeitado a acusação pública. 2) Na acusação pública o Ministério Público procedeu à narração factual de todos os elementos constitutivos do tipo objetivo e subjetivo do crime de condução sem habilitação legal, explicitando o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, ou seja, narra toda a factualidade que descreve que o arguido praticou os factos consciente que não era titular de carta de condução, o que fez de forma voluntária (querendo a realização do facto), livre (podendo agir de modo diverso, em conformidade com o dever ser jurídico) e conscientemente (representou todas as circunstâncias do facto). 3) O acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2015, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça apenas tem aplicação aos casos de total ausência da descrição do elemento subjetivo na acusação, o que não se verifica nos presentes autos. 4) O douto despacho recorrido ignora o mencionado nos artigos 3.º e 4.º da acusação pública que contêm a descrição factual de todos os elementos constitutivos que integram o crime de condução sem habilitação legal, donde resulta que o arguido agiu com a vontade concretizada e a consciência, em todas as suas vertentes (intelectuais e volitivas) de que a ausência de titulo de condução, emitido por entidade competente o inibia de conduzir veículos motorizados, na via pública; 5) O Ministério Público, na acusação pública, fez a descrição factual de todos os elementos constitutivos dos elementos objetivos e subjetivos do crime de condução sem habilitação legal, de forma sucinta, objetiva e concretizada, razão pela qual respeitou o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), inexistindo fundamento para a aplicação do artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, do Código de Processo Penal, pelo que a acusação deduzida nos presentes autos não pode ser considerada manifestamente infundada. Conclui o recurso, pugnado pela revogação do despacho e a sua substituição por outro que receba a acusação pública deduzida nos presentes autos e, consequentemente, determine o prosseguimento dos mesmos. * 3. O arguido não apresentou resposta ao recurso, o qual foi admitido na 1ª instância, por despacho proferido em ... de ... de 2025. . 4. Nesta Relação, o Ex.mo Sr. Procurador Geral Adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, nos termos e para os efeitos do artigo 416º do Código de Processo Penal [doravante CPP], emitiu parecer no qual pugna pela procedência do recurso, por adesão aos argumentos constantes do recurso apresentado pelo Magistrado do Ministério Público na 1ª instância, que se encontram devidamente desenvolvidos e adequadamente sustentados, quer de facto quer de direito. . 5. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º/2 do C.P.P., não tendo o arguido apresentado resposta. . 6. Efetuado o exame preliminar, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, de harmonia com o preceituado no art.º 419.º, n.º 3, al. c), do CPP, cumprindo agora decidir. . II. Fundamentação: 1. Delimitação do objeto do recurso: Constitui entendimento consolidado que do disposto no n.º 1, do artigo 412º, do CPP, decorre que o âmbito dos recursos é delimitado através das conclusões formuladas na motivação [vide Germano marques da silva, in «Curso de Processo Penal», vol. III, 2ª edição, 2000, pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I.ª Série-A, de 28-12-1995 e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt,], sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [como sucede, nomeadamente, nos casos previstos nos artigos 119.º, n.º 1; 123.º, n.º 2, e 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP]. Por seu turno, resulta do disposto nos artigos 368º e 369º, aplicáveis ex vi do artigo 424º nº 2, todos do CPP, que o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objeto do recurso pela seguinte ordem: Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão; se esse conhecimento não tiver ficado prejudicado, deve, seguidamente, abordar as questões atinentes à matéria de facto, e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e depois dos vícios previstos no artigo 410º nº 2 do CPP; por fim, as questões relativas à matéria de Direito. No caso que nos ocupa, inexistem questões que obstem ao conhecimento de mérito, sendo apenas uma a questão a decidir, consubstanciada em aferir se a acusação pública é manifestamente infundada por ausência de descrição de um dos elementos do tipo subjetivo – o elemento volitivo do dolo - do crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível, pelo artigo 3.º, n.os 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, por referência ao artigo 121.º do Código da Estrada. . 2. Apreciação: Na parte relevante para a apreciação do recurso, consta da decisão recorrida o seguinte: “Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro, por referência ao artigo 121.º do CE. Nos termos do disposto no artigo 311.º do CPP, recebidos os autos no Tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. Acrescenta o n.º 2 do citado normativo que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente rejeita a acusação se a considerar manifestamente infundada [al. a)], considerando-se como tal aquela que, além do mais, não contenha a narração dos factos (artigo 311.º, n º 3, al. b), do CPP). Relativamente ao estatuído na última alínea do nº 3 do preceito acabado de citar, tem entendido a doutrina e a jurisprudência atuais que a rejeição da acusação somente pode ocorrer quando manifestamente inexistam factos que correspondam à prática de um ilícito criminal, ou seja, quando diante do texto da acusação faltem elementos típicos objetivos e subjetivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante (neste sentido vide Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, 2008, p. 791, n. 8). Sucede que, do ponto de vista subjetivo, o crime de condução sem habilitação legal é um crime doloso. A estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo. Seja qual for a modalidade de dolo que no caso concreto se verifique, é sempre necessário que o agente conheça, saiba, represente corretamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto- elemento intelectual do dolo- mas também que se verifique no facto uma particular intenção dirigida à sua realização- elemento volitivo. Temos que, o elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objetivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável. O elemento volitivo consiste na especial direção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber: o dolo direto – a intenção de realizar o facto – o dolo necessário – a previsão do facto como consequência necessária da conduta – e o dolo eventual – a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta. Consta do libelo acusatório que «3. O arguido bem sabia que a condução de um veículo a motor, numa via pública, exigia habilitação legal» e que «4. Agiu aquele voluntária, livre e conscientemente ao conduzir o referido veículo, cujas características conhecia, numa via que sabia ser pública, sem ser titular de carta de condução válida, conhecendo a ilicitude e punibilidade da sua conduta». Os factos suprarreferidos reconduzem-se, desde logo, ao elemento intelectual do dolo. A par deste, encontra-se igualmente alegado que o arguido agiu de forma livre (ou seja, sem coação) e consciente (esclarecida). Mais se fez constar que a sua atuação foi «voluntária», o que pressupõe que o ato é dominado pela vontade do agente (o que é diferente de qualificar a intenção com que age), não sendo por isso um ato incidental ou reflexo, como ocorre, por exemplo, com um espasmo corporal que o agente não consegue controlar. A atuação livre, voluntária e consciente traduz um juízo de culpabilidade. Na verdade, a culpa implica o uso indevido da vontade livre, e por isso pressupõe a liberdade de decisão e de atuação - a liberdade de o agente se determinar de acordo com o dever ser jurídico. (…) Mas o dolo não se basta, como se disse, com o conhecimento das circunstâncias do facto e da sua configuração jurídica, antes sendo igualmente necessário a verificação no facto de uma particular vontade dirigida à sua realização – ou seja, o elemento volitivo do dolo do tipo. Compulsado o teor da acusação constatamos que o Ministério Público, no que ao concerne ao dolo do tipo, limitou-se a enunciar o elemento intelectual, sendo aquela totalmente omissa na descrição de factos que configurem o elemento volitivo. Efetivamente, nada consta da acusação quanto à vontade que norteou a atuação do arguido. Nada se diz se a realização do tipo era o seu objetivo último, ou se antes foi encarada como uma consequência necessária ou eventual da sua conduta. Ora, estando em causa crime doloso, “a acusação deve conter a referência aos factos que sustentam a imputação do dolo do tipo, ou seja, o elemento intelectual (conhecimento de todos os elementos descritivos e normativos do facto) e o elemento volitivo (vontade de realizar o facto típico), precisando a modalidade em que se exprime essa vontade (intenção direta de praticar o facto, previsão do resultado como consequência necessária ou possível da conduta e aceitação do resultado...) a estes elementos acresce um terceiro, chamado emocional, que se consubstancia na falta de consciência ética por parte do agente, ou seja, na sua atitude de indiferença perante os valores tutelados pelo direito, que deve igualmente constar da acusação.”- Ac. do TRL de 23.09.21, disponível em www.dgsi.pt (sublinhado nosso). Aliás, como foi decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº1/2015, “a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual). A acrescer a esses elementos teríamos o tal elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso, na doutrina de FIGUEIREDO DIAS”. Mais entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”. Pelos fundamentos expostos, por ser omissa na descrição de factos essenciais, os quais não podem ser aditados pelo Tribunal em sede de julgamento (considerando a doutrina do AUJ n.º 1/2015), não recebo a acusação deduzida e determino a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para os fins tidos por convenientes. Extrai-se do despacho recorrido, que o fundamento legal invocado para sustentar a rejeição da acusação, assentou no disposto no artigo 311º, n.º 2, alínea a), do CPP por referência à alínea b), do n.º 3, do mesmo preceito, do CPP, conjugado com a jurisprudência uniformizada pelo acórdão do STJ n.º 1/2015. Dispõe o artigo 312º, do CPP, sob a epígrafe saneamento do processo: 1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. 2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respetivamente. 3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) Quando não contenha a identificação do arguido; b) Quando não contenha a narração dos factos; c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) Se os factos não constituírem crime. . Por seu turno, o Supremo Tribunal Justiça, no acórdão n.º 1/2015 [ publicado no Diário da República n.º 18/2015, Série I de 2015-01-27, páginas 582 - 597], procedeu à uniformização de jurisprudência nos seguintes termos: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.». O n.º 3, do artigo 311º, do CPP foi introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, vindo densificar e delimitar o conceito de acusação manifestamente infundada [que já existia na redação original, mas como conceito aberto e indeterminado], fazendo-lhe corresponder taxativamente as situações previstas nas suas quatro alíneas, sem espaço para quaisquer outras que aí pudessem caber a partir da interpretação do conceito aberto e indeterminado acolhido na versão originária, fazendo caducar a jurisprudência fixada pelo Assento n.º 4/93, do STJ, que sustenta que a alínea a) do n.º 2, do artigo 311º, do CPP, incluía a rejeição da acusação por manifesta insuficiência indiciária [nestes termos António Latas, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, anotação ao artigo 311º, do CPP, pp. 47/48, § 31]. A alusão à narração dos factos previstos na alínea b), do n.º 3, do CPP [única aplicável ao caso que nos ocupa] não pode deixar de ter-se por referida à alínea b), do n.º 3, do artigo 283º, do CPP, nos termos da qual, a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamenam a aplicação ao arguido de uma pena o de medida de segurança (…), sendo tais factos os de ordem objetiva e subjetiva que integram os elementos do tipo legal imputado ao arguido [António Latas, in ob., cit., p. 56, § 63]. A nulidade prevista no n.º 3, do artigo 283º, é sanável, uma vez que não consta do elenco do artigo 119.º, mas como constitui simultaneamente motivo de rejeição da acusação, por ser integrável no conceito de “acusação manifestamente infundada”, converte-se em matéria de conhecimento oficioso do tribunal. Quer isto dizer que o juiz, no momento em que profere o despacho a que se refere o artigo 311.º, conhece oficiosamente de vícios da acusação que, encarados sob a perspetiva das nulidades, não podia, em princípio, conhecer, por estar esse conhecimento dependente de arguição. Esta a razão por que se fala em nulidades sui generis, atípicas ou de regime híbrido, que num determinado momento processual podem ser conhecidas oficiosamente e fundamentar a rejeição da acusação [Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 2000, pp. 207-208; António Latas, in ob., cit., p. 48, §§ 34 e 35, acórdão do STJ de 17.11.2010, relatora Isabel Pais Martins e acórdão d o TRL, de 24.05.2022, relator Jorge Gonçalves, ambos disponíveis, em texto integral, no endereço eletrónico www.dgsi.pt, como os outros que venham a ser citados sem diversa indicação]. As normas referidas são reflexo da estrutura acusatória do Código Processo Penal Português, como impõe a própria Constituição da República Portuguesa (artigo 32.º, n.º 5), sendo o objeto do processo fixado pela acusação (ou pela pronúncia, no caso de ter havido instrução). Os princípios da vinculação temática da acusação, do contraditório e do respeito pelas garantias de defesa do arguido, exigem a delimitação clara do objeto do processo que define as fronteiras da atividade cognitiva e decisória do tribunal, devendo, por isso, a acusação obedecer aos princípios da suficiência e clareza, que se consubstanciam na narração dos factos integradores de todos os elementos típicos do crime imputado, quer os objetivos, quer os subjetivos [no sentido apontado, os já mencionados acórdãos dos STJ de 17.11.2010 e do TRL de 24.05.2022, mas também o acórdão do TRC de 13.09.2017, relator Brígida Martins e acórdão do TRG de 16.06.2017, relator Jorge Bispo, que citam doutrina pertinente, e para a qual se remete]. O acórdão e uniformização de jurisprudência acima citado, ao entender que o juiz não pode suprir a ausência de descrição dos elementos do tipo subjetivo, por via do disposto no artigo 328º, do CPP, reforça que o local próprio para aferir de tal ausência é despacho de saneamento de processo previsto no artigo 311º, do CPP. Assim sendo, temos por consolidado que a falta de descrição dos elementos subjetivos do crime na acusação consubstancia causa de rejeição da mesma ao abrigo dos preceitos legais acima citados, integrados pela jurisprudência uniformizada. Posto isto, estamos em condições de abordar a cerne da questão objeto do presente curso, ou seja, aferir se, efetivamente, a acusação peca pela ausência da descrição do elemento volitivo do dolo do crime de condução sem habilitação legal, o que implica que se proceda à análise dos elementos constitutivos do referido crime. Para aferição de tais elementos, importa ter presente seguinte normativo do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro: Artigo 3.º 1. Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias; 2 - Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias. E os seguintes normativos do Código Penal [aplicáveis subsidiariamente à legislação de caráter especial, por via do disposto no n.º 1, do artigo 8º, do mencionado diploma]: Artigo 13.º Dolo e negligência Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência; Artigo 14.º Dolo 1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com intenção de o realizar; 2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta; 3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente atuar conformando-se com aquela realização; Sobre a constitucionalidade da tipificação do crime de condução sem habilitação legal por referências às normas ora transcritas, foi chamado a pronunciar-se o Tribunal Constitucional, que decidiu, nos acórdãos n.º 337/2002 e n.º 173/2012 [ambos disponíveis, em texto integral, no endereço eletrónico www.tribunalconstitucional.pt], julgar não inconstitucional, respetivamente, a norma do n.º 2 e a norma do n.º 1, do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro. Os normativos acima transcritos revelam que o tipo incriminador do crime de condução sem habilitação legal foi construído como um delito doloso de ação, o qual, a semelhança de todos os delitos dolosos de ação, apresenta uma estrutura complexa, composta por elementos de natureza objetiva e de natureza subjetiva e com os quais é possível, respetivamente, apreender um tipo objetivo e um tipo subjetivo [Figueiredo Dias - com a colaboração de Maria João Antunes; Susana Aires de Sousa; Nuno Brandão e Sónia Fidalgo -, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais; A doutrina Geral do Crime, 3ª edição, outubro de 2019, p. 329, § 1º]. Ao nível do tipo objetivo, a conduta típica do crime sob análise implica: (i) a condução de veículo; (ii) a motor; (iii) na via pública ou equiparada, (iv) sem habilitação legal para o efeito. A condução relevante para efeitos do ilícito em apreço, terá que ser de um veículo a motor, ou seja, de veículo automóvel (ligeiro ou pesado, de mercadorias ou de passageiros), motociclo, ciclomotor, triciclo, quadriciclo, veículos agrícolas, veículo sobre carris, máquina industrial, reboques, veículos únicos e conjuntos de veículos, velocípedes e reboque de veículos de duas rodas e carro lateral [artigos 105º a 113º do Código da Estrada]. Além disso, aquela condução deverá realizar-se numa via pública ou equiparada, i. e., toda a via de comunicação terrestre, de domínio público ou privado, afeta ao trânsito público [artigo 1º, v) e x) do Código da Estrada]. Finalmente, o agente, para incorrer no crime em apreço, deverá conduzir sem estar habilitado nos termos do Código da Estrada para o efeito. Nos termos do disposto no artigo 121.º, n.os 1 e 4 e 123º, n.º 1, do Código da Estrada, só pode conduzir um veículo a motor, na via pública, quem estiver legalmente habilitado para o efeito com carta de condução, ou qualquer um dos outros títulos referidos no artigo 125º do mesmo Código. No que concerne ao tipo subjetivo de ilícito, o crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, ao não prever a punição a título de negligência, exige o dolo. O Código Penal não define o dolo do tipo, mas apenas, no seu artigo 14º, cada uma das formas em que ele se analisa. Não obstante, é a doutrina hoje dominante, a cujo entendimento nos acolhemos, que, na sua formulação mais geral, o dolo pode ser conceitualizado como o conhecimento (representação) e vontade de realização do facto material típico [Figueiredo Dias, com a colaboração de Maria João Antunes; Susana Aires de Sousa; Nuno Brandão e Sónia Fidalgo, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais; A doutrina Geral do Crime, 3ª edição, outubro de 2019, § 4, p. 407], constituído pelos elementos objetivos, naturalísticos ou normativos de uma infração. Engloba, assim, os elementos: a) intelectual - a exigência de que o agente conheça as circunstâncias de facto que pertençam ao tipo legal – e; b) volitivo - a vontade ou desejo de produzir certo resultado ou ato. O último elemento confere ao dolo três graus distintos, consoante o agente atue: com intenção de realizar o facto ilícito - dolo direto [cf. artigo 14º, n.º 1, do Código Penal]; a realização do facto típico seja consequência necessária, mas não diretamente desejada, da sua conduta - dolo necessário [cf. artigo 14º, n.º 2, do C.P.]; a realização do facto típico seja consequência possível, da sua conduta e, não obstante, o agente atue conformando-se com essa realização - dolo eventual [cf. artigo 14º, n.º3, do C.P.]. O dolo não se reduz ao conhecimento e vontade de realização do tipo de ilícito objetivo; a estes elementos acresce uma autónoma atitude interior, […], que não podem ser retirados à culpa [Figueiredo Dias - com colaboração de Maria João Antunes; Susana Aires de Sousa; Nuno Brandão e Sónia Fidalgo-, Direito Penal, Parte Geral, 3ª edição (…), pp. 317, § 64]. É este acréscimo/alargamento (na verdade, um enriquecimento) que consubstancia o chamado “dolo da culpa” [Figueiredo Dias - Idem, p. 319]. Daí que o facto punível com uma pena criminal não se esgota na desconformidade com o ordenamento jurídico-penal refletida no tipo de ilícito, necessário se tornando sempre que a conduta seja culposa, isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever ser sócio-comunitário [Ibidem, idem, pp. 318/319, § 65]. É pacificamente aceite que a culpa pressupõe a imputabilidade que é, na terminologia penal, a possibilidade de se atribuir a uma pessoa a prática de um ato ilícito, tipificado como crime, e de a responsabilizar penalmente pela sua prática. Dito por outras palavras, a imputabilidade constitui o pressuposto essencial para a formulação de um juízo de culpa. Essa responsabilização penal pressupõe que o agente tenha capacidade para avaliar o mal que pratica e se determinar de acordo com essa avaliação ou, o que é mesmo, é necessário que o agente disponha do discernimento suficiente para representar a situação, consciencializar a ilicitude da mesma e agir de acordo com essa avaliação. Isso mesmo resulta do artigo 20.º, n.º 1 do Código Penal, nos termos do qual “é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”. O que fica dita dito reflete a conceção bidimensional do dolo, à qual nos acolhemos e nos termos da qual, ao dolo, que a doutrina designa por “dolo do tipo” e que se decompõe nos já referidos elementos intelectual e o volitivo, acresce, um elemento emocional, que é expressão de uma atitude interna juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever ser sócio-comunitário, o qual é elemento constitutivo do tipo de culpa dolosa. De todo o exposto, resulta que para se afirmar o dolo do crime de condução de veículo sem habilitação legal, torna-se necessário que o agente não ignore a necessidade de ser titular de documento (carta ou licença de condução ou outro título válido) para conduzir e, ainda assim, sabendo que o não tem, assuma tal conduta: (i) porque quer conduzir sem estar habilitado (dolo direto); (ii) embora saiba que não está habilitado, resolve conduzir, aceitando esse facto como uma condição necessária da sua conduta (dolo necessário); (iii) prevê a possibilidade de não estar habilitado e, conformando-se com ela, conduz da mesma forma (dolo eventual). Além disso, o agente tem de representar que a sua atitude interna é juridicamente desaprovada, ou seja, que é ilícita, o que pressupõe a imputabilidade. Todos esses elementos subjetivos do crime, são habitualmente expressos na acusação através da utilização de uma fórmula pela qual se imputa ao agente ter agido de forma livre (isto é, podendo agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude) [transcrição de parte da fundamentação do mencionado acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2015, sendo o itálico e negrito da nossa responsabilidade]. Embora muito utilizada na prática para a descrição factual do dolo, acompanhamos o entendimento expresso no acórdão do TRE, 27/06/2017 [proc. 171/14.9GDEVR- relatora Ana Barata Brito, in www.dgsi.pt]: “(…) na ponderação sobre a suficiência dos factos articulados pelo Ministério Público, releva logo a circunstância de que inexiste uma forma única de descrição factual do dolo. Nem o acusador, nem o julgador, se encontram amarrados à utilização de fórmulas únicas ou “sacramentais”, nessa descrição. Os factos – da acusação e da sentença – são sempre “enunciados linguísticos descritivos de ações” (na expressão de Perfecto Ibanez): da ação executada – factos externos – e da ação projetada na vontade – factos internos. O Ministério Público é livre de escolher os enunciados linguísticos de que faz utilização, na acusação, desde que descreva plenamente o objeto do processo, desde que esgote factualmente a descrição dos tipos objetivo e subjetivo do crime imputado. Assim, inexiste uma fórmula única para a descrição factual do dolo, não só porque essa redação é livre, mas, sobretudo, porque as exigências de concretização factual do dolo dependerão sempre do concreto crime em apreciação.”. Ou seja, a descrição do dolo não exige especificação prática por via do enunciado “o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente”, que mais não é do que uma fórmula genérica e abstrata, muito utilizada na prática para a descrição factual do dolo, mas que por si só, como se refere no acórdão do TRE, de 07/01/2016 [processo 49/15.9PATVR.E1, relatora Ana Barata Brito], nem consegue esgotar a especificação factual do dolo, nem se mostra imprescindível a essa descrição. Apreciando o caso concreto à luz das considerações tecidas, verifica-se que consta do libelo acusatório o seguinte: “1. No dia ... de ... de 2024, pelas 16h45, conduzia o ciclomotor, com a matrícula AT-..-CF, na .... 2. O arguido não tinha carta de condução válida ou qualquer outro documento que legalmente o habilitasse a conduzir veículos a motor na via pública. «3. O arguido bem sabia que a condução de um veículo a motor, numa via pública, exigia habilitação legal»; «4. Agiu aquele voluntária, livre e conscientemente ao conduzir o referido veículo, cujas características conhecia, numa via que sabia ser pública, sem ser titular de carta de condução válida, conhecendo a ilicitude e punibilidade da sua conduta». Ou seja, o Ministério Público optou pela dita “fórmula sacramental”, pelo que retomando o que acima ficou dito, ao referir agiu de forma voluntária e conscientemente, acrescentando “numa via que que sabia ser pública, sem ser titular de carta de condução válida”, tendo descrito nos artigos 1º e 2º da acusação o dia, hora e local da condução, o tipo de veículo que conduzia e que o arguido não era titular de carta de condução ou outro documento que o habilitasse a tal condução, entendemos, sem margem para dúvidas razoáveis, que o Ministério Público quis: a. reportar a expressão conscientemente ao conhecimento que o arguido tinha de ter conduzido um ciclomotor numa via pública sem que tivesse habilitado com carta de condução ou outro documento equivalente, ou seja, descreve o elemento intelectual do dolo; e b. reportar a expressão voluntária à vontade de o arguido conduzir naquelas condições, ou seja, vontade de conduzir um ciclomotor numa via pública, sem que fosse titular de carta de condução ou outro documento equivalente, ou seja, descreve o elemento volitivo do dolo; Os elementos do tipo subjetivo pertencentes ao chamado “dolo da culpa” também se mostram descritos, na medida em que: - as expressões livre e conhecendo a ilicitude e punibilidade da sua conduta, significam que o arguido tem a liberdade necessária para avaliar a ilicitude da sua conduta e de determinar de acordo com essa avaliação e, como tal, pode ser pessoalmente censurado, por revelar expressão de uma atitude interna juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever ser sócio-comunitário; Do exposto, resulta que entendemos que não assiste razão ao M.mo Juiz à quo quando sustenta que os factos da acusação [acima transcritos] apenas descrevem o elemento intelectual do dolo. Tudo visto e pelas razões supra expostas, procede na íntegra o recurso interposto pelo Ministério Público. . - Da responsabilidade tributária: Atenta a procedência do recurso e o disposto no n.º 1, do artigo 522º, do CPP, não são devidas custas. * III. Decisão: Pelo exposto, acordam os Juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar provido o recurso interposto pelo Ministério Público e, em conformidade, decidem: a. Revogar o despacho recorrido na parte em que rejeitou a acusação por manifestamente infundada, determinando a sua substituição por outro que a receba e ordene o prosseguimento dos ulteriores trâmites do processo; b. Declarar que não devidas custas; . Notifique-se e, após trânsito, remetam-se os autos ao tribunal de origem. . [acórdão elaborado pelo 1º signatário em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelo próprio e demais signatários, com aposição de assinaturas digitais certificadas - artigo 94º n.os 2 e 3 do CPP]. . Lisboa, 22 de outubro de 2025 Joaquim Jorge da Cruz Carlos Alexandre Ana Rita Loja  |